Modernizacao Teatro Europeu

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1 ALGUNS ASPECTOS DA MODERNIZAÇÃO DO TEATRO EUROPEU Na abertura do curso de LB VI costumo dar uma aula para contextualizar o surgimento do teatro moderno na Europa e na sequência comentar as poucas repercussões que esse processo de modernização teve no Brasil. São ideias gerais, informações sobre dramaturgos e peças, sobre os primeiros encenadores modernos, pois a modernização, que se deu a partir mais ou menos de 1880, ocorreu tanto na dramaturgia quanto na encenação. É claro que para nós, de Letras, o texto é mais importante, mas não deixarei de dar algumas noções sobre a cena. Vamos falar de grandes escritores, como Ibsen, Tchékhov, Hauptmann, Strindberg, Maeterlinck. Não vou pedir que leiam suas peças, pois não é esse o objetivo do curso. Mas explicando um pouco da obra de cada um, quem sabe no futuro vocês possam ler algumas, não é? Comecemos então pela dramaturgia. A modernização da dramaturgia na Europa iniciou-se com os escritores naturalistas, que se opuseram de modo radical às convenções da chamada “peça benfeita”, gênero que fazia a fortuna de escritores franceses como Scribe, Victorien Sardou, Émile Augier e Alexandre Dumas Filho. O que era a “peça benfeita”? A “peça benfeita” tinha uma estrutura caracterizada pela “perfeita disposição lógica de sua ação (...). O primeiro mandamento é o desenrolar contínuo, fechado e progressivo dos motivos da ação. Mesmo que a intriga seja complicada, o suspense deve ser mantido continuamente. A curva da ação passa por altos e baixos e apresenta uma sequência de quiproquós, efeitos e golpes de teatro. O objetivo é claro: manter viva a atenção do espectador, jogar com a ilusão naturalista. A distribuição da matéria dramática se faz de acordo com normas muito precisas: a exposição coloca discretamente sinalizações para a peça e sua conclusão” (Patrice Pavis. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.281). Em outras palavras, trata-se uma peça em que nas primeiras cenas há uma exposição do assunto central, do conflito que envolve as personagens principais; em seguida o desenvolvimento desse conflito, que dever ser lógico e coerente, sem surpresas, assim chegando ao desenlace. Esse modelo de peça e seus principais autores franceses foram imitados por outros escritores europeus, americanos e mesmo brasileiros, a partir dos anos 1840.

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texto sobre a Modernização do Teatro Brasileiro escrito pelo professor Dr João Farias.

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    ALGUNS ASPECTOS DA MODERNIZAO DO TEATRO EUROPEU

    Na abertura do curso de LB VI costumo dar uma aula para contextualizar o

    surgimento do teatro moderno na Europa e na sequncia comentar as poucas repercusses

    que esse processo de modernizao teve no Brasil. So ideias gerais, informaes sobre

    dramaturgos e peas, sobre os primeiros encenadores modernos, pois a modernizao, que

    se deu a partir mais ou menos de 1880, ocorreu tanto na dramaturgia quanto na

    encenao. claro que para ns, de Letras, o texto mais importante, mas no deixarei de

    dar algumas noes sobre a cena.

    Vamos falar de grandes escritores, como Ibsen, Tchkhov, Hauptmann, Strindberg,

    Maeterlinck. No vou pedir que leiam suas peas, pois no esse o objetivo do curso. Mas

    explicando um pouco da obra de cada um, quem sabe no futuro vocs possam ler algumas,

    no ?

    Comecemos ento pela dramaturgia.

    A modernizao da dramaturgia na Europa iniciou-se com os escritores

    naturalistas, que se opuseram de modo radical s convenes da chamada pea benfeita,

    gnero que fazia a fortuna de escritores franceses como Scribe, Victorien Sardou, mile

    Augier e Alexandre Dumas Filho.

    O que era a pea benfeita?

    A pea benfeita tinha uma estrutura caracterizada pela perfeita disposio lgica

    de sua ao (...). O primeiro mandamento o desenrolar contnuo, fechado e progressivo

    dos motivos da ao. Mesmo que a intriga seja complicada, o suspense deve ser mantido

    continuamente. A curva da ao passa por altos e baixos e apresenta uma sequncia de

    quiproqus, efeitos e golpes de teatro. O objetivo claro: manter viva a ateno do

    espectador, jogar com a iluso naturalista. A distribuio da matria dramtica se faz de

    acordo com normas muito precisas: a exposio coloca discretamente sinalizaes para a

    pea e sua concluso (Patrice Pavis. Dicionrio de Teatro. So Paulo: Perspectiva, 1999,

    p.281). Em outras palavras, trata-se uma pea em que nas primeiras cenas h uma

    exposio do assunto central, do conflito que envolve as personagens principais; em

    seguida o desenvolvimento desse conflito, que dever ser lgico e coerente, sem surpresas,

    assim chegando ao desenlace.

    Esse modelo de pea e seus principais autores franceses foram imitados por outros

    escritores europeus, americanos e mesmo brasileiros, a partir dos anos 1840.

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    Na Frana, o escritor naturalista mile Zola comeou a luta pela renovao

    dramatrgica j na dcada de 1870, fazendo a crtica da artificialidade da pea benfeita.

    Ele queria que o teatro mostrasse a vida como ela . Com sua brutalidade, com assuntos

    polmicos, com personagens que fossem copiadas da vida real e que assim se mostrassem

    em cena. Sua prtica teatral, porm, ficou aqum do pensamento. Suas ideias frutificaram

    na dcada seguinte, segundo Eric Bentley,

    quando Henry Becque escreveu as peas Les corbeaux [Os corvos] e La

    parisienne [ A parisiense], quando Ibsen tornou-se conhecido na Europa com Os

    espectros e quando Andr Antoine fundou o Thtre Libre para a montagem de

    peas naturalistas. Foi esse o comeo do movimento moderno na dramaturgia1,

    Guardem esses nomes. Vamos v-los mais frente.

    De fato, o naturalismo ampliou os horizontes dos dramaturgos no final do sculo

    XIX, permitindo-lhes quebrar as velhas regras de composio dos dilogos e dos enredos,

    bem como abordar assuntos controvertidos, como o sexo e a religio, de maneira inusitada

    e corajosa. Ibsen, Strindberg, Shaw, Hauptmann e Tchkhov foram os grandes pioneiros da

    dramaturgia moderna, autores que levaram to longe o ideal naturalista de reproduzir a

    verdade no palco, que acabaram por busc-la no mais na realidade exterior. Como

    escreve Martin Esslin, eles descobriram a magia que se esconde sob a superfcie

    aparentemente banal da vida cotidiana, a trgica grandeza das pessoas comuns, a poesia

    dos silncios e das reticncias, a ironia amarga dos pensamentos reprimidos2. Essa

    descoberta, convm lembrar, foi compartilhada pelo simbolista Maeterlinck, especialmente

    empenhado na construo de uma dramaturgia voltada para a vida interior dos

    personagens. Em suas peas, povoadas de silncios e sonhos, desaparece o conflito

    dramtico tradicional e a ao se constri com nuances, meios-tons e atmosfera potica.

    A subjetivao da dramaturgia foi o resultado das inquietaes dos grandes

    dramaturgos mencionados acima. Cada qual, a seu modo, tratou de colocar em primeiro

    plano a interioridade dos personagens, processo que exigiu a superao das limitaes do

    naturalismo e que foi posteriormente radicalizado pelos autores expressionistas, voltados

    1 BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Trad. de Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1991, p.50.

    2 ESSLIN, Martin. Au del de labsurde. Trad. de Franoise Vernan. Paris, Buchet/Chastel, 1970, p.44.

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    para a expresso da vida interior das personagens. Desse modo, a modernizao da

    dramaturgia, em suas origens, apresenta duas vertentes principais: a naturalista e a

    antinaturalista, que engloba o simbolismo e o expressionismo, como observa Bentley no

    texto j citado.

    Os dramaturgos europeus serviram-se das duas, ora mantendo-se fiis a uma ou a

    outra, ora combinando aspectos de ambas, como fez especialmente Strindberg em algumas

    das suas peas. No sem razo que um estudioso francs o v como uma sntese de Zola

    e Maeterlinck, isto , como um autor que faz avanar, lado a lado, o microcosmo e o

    macrocosmo, o teatro do eu e o teatro do mundo3. Ou, em outras palavras, como um autor

    cujas peas esto solidamente fincadas na vida cotidiana, mas uma vida cotidiana que

    trabalhada, elaborada, e da qual extrada a perspectiva trgica4. Strindberg e tambm

    Ibsen, segundo Bentley, foram autores que mantiveram uma interao entre o exterior e o

    interior, o objetivo e o subjetivo, o naturalista e o no-naturalista5

    Os primeiros dramaturgos modernos, na viso de Peter Szondi (Teoria do

    Drama Moderno [1880-1950]. So Paulo, Cosac & Naify, 2001), deram incio

    imploso da forma dramtica, exibindo o seu esgotamento, a sua crise. At ento do

    Renascimento at o final do sculo XIX -, as relaes inter-humanas eram expressas nos

    dramas por meio do dilogo, a forma dramtica por excelncia. Mas para dramaturgos

    como Ibsen, Strindberg, Hauptamnn, Maeterlinck ou Tchkhov, o dilogo tal como

    praticado pelos dramaturgos anteriores a eles, j no era capaz de exprimir as novas

    subjetividades ou as novas temticas sociais.

    Em Ibsen, por exemplo, o peso do passado sobre o presente da personagem faz

    com que esse passado aparea em cena por meio de elementos lricos e picos. Pode-se

    dizer que a matria de seus dramas est centrada no passado e na interioridade das

    personagens.

    Strindberg, por sua vez, pratica o que Szondi denomina dramaturgia do eu, na

    qual vemos a progresso do Naturalismo ao Expressionismo, da observao da vida

    exterior vida interior. Exemplo de drama subjetivo O Pai, pea em que a unidade

    3 SARRAZAC, Jean-Pierre. Thtres intimes. Paris, Actes Sud, 1989, p.11.

    4 Idem, ibidem, p.35.

    5 BENTLEY, Eric. op. cit., p.130-131.

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    da personagem central mais importante que o enredo, em que a subjetivao se

    sobrepe aos fatos do cotidiano.

    Em Hauptmann a temtica social aponta a contradio entre forma dramtica e

    contedo pico. Em Os Teceles, a forma dramtica pequena para a grandeza do tema

    da greve.

    Tchkhov faz da renncia ao presente, da vida no passado e na utopia a matria

    de seus dramas, como se v em As trs Irms ou O Jardim das Cerejeiras. Em termos

    formais, os dilogos mascaram os monlogos das personagens encarceradas em sua

    prpria interioridade.

    Maeterlinck elabora o drama esttico, com linguagem potica que introduz o

    lirismo na ao, e com as descries que trazem o elemento pico. A ao em suas

    peas substituda pela situao. No drama tradicional, a situao dramtica o ponto

    de partida para as aes subsequentes dos personagens. Estes, em Maeterlinck,

    permanecem em completa passividade, isto , persistem na sua situao at avistar a

    morte.

    Depois dos pioneiros, a dramaturgia moderna ganha peso. Na Itlia, com

    Pirandello; Nos Estados Unidos, com ONeill, Arthur Miller e Tennessee Williams; mas

    na Alemanha que acontece a grande revoluo dramatrgica do sculo XX, com

    Bertolt Brecht e o seu teatro pico. A crise do drama desemboca numa nova forma

    teatral, capaz de exprimir o novo mundo que surgiu aps a Primeira Grande Guerra, em

    peas como Me coragem; Galileu Galilei, O crculo de giz caucasiano etc.

    Vamos reler a citao de Bentley, segundo a qual o primeiro impulso para a

    modernizao do teatro partiu de Zola, quando fez a adaptao teatral de seu romance

    Threse Raquin. A pea no fez sucesso, mas abriu um caminho novo para o teatro. As

    ideias que Zola divulgou no prefcio da pea, repercutiram, diz Bentlet,

    quando Henry Becque escreveu as peas Les corbeaux e La parisienne,

    quando Ibsen tornou-se conhecido na Europa com Os espectros e quando Andr

    Antoine fundou o Thtre Libre para a montagem de peas naturalistas. Foi esse o

    comeo do movimento moderno na dramaturgia6,

    6 BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Trad. de Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1991, p.50.

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    Essa citao o ponto de partida para um ensaio que escrevi sobre o naturalismo

    no teatro, a ser includo num livro que organizei junto com J. Guinsburg e que deve sair

    no prximo ano pela editora Perspectiva. Vou colar abaixo as partes que interessam para

    o nosso curso e para que vocs conheam um pouco da obra dos principais dramaturgos

    que esto na origem da modernizao teatral.

    mile Zola: a batalha pelo teatro naturalista

    A ideia de que seria possvel escrever dramas com o mesmo aparato terico que

    alimentava os romances naturalistas seduziu mile Zola j no incio de sua carreira

    literria. Como se sabe, o escritor publicou seu primeiro romance importante, Thrse

    Raquin, em 1867, aos vinte e sete anos de idade. Em 1873, ele fez a adaptao teatral

    desse romance, com o objetivo de estender ao teatro o amplo movimento de verdade e

    cincia experimental que, a partir do sculo passado, propaga-se e vem crescendo em todos

    os atos da inteligncia humana7. A seu ver, o movimento naturalista logo se imporia no

    teatro, acabando com as velhas convenes da pea benfeita, que impediam o drama de

    se tornar um documento da realidade. Thrse Raquin foi uma primeira tentativa, j

    trazendo em seu bojo uma srie de inovaes:

    A ao no ocorria mais numa histria qualquer, mas nos conflitos interiores

    dos personagens; no havia mais uma lgica dos fatos, mas uma lgica de sensaes e

    sentimentos; e o desenlace se tornava um resultado aritmtico do problema posto

    exposto. Ento, segui o romance passo a passo; encerrei o drama no mesmo aposento,

    mido e sombrio, a fim de nada retirar de seu relevo nem de sua fatalidade; escolhi

    comparsas tolos e inteis para incluir, por baixo das angstias atrozes de meus

    heris, a banalidade da vida cotidiana; tentei associar continuamente a encenao s

    ocupaes normais de meus personagens, de maneira que eles no representassem,

    e sim vivessem diante do pblico. Confesso que contava, com alguma razo, com o

    lado pungente do drama para fazer os espectadores aceitarem esse vazio de intriga e

    essa mincia dos detalhes8.

    7 mile Zola, prefcio de Thrse Raquin, trad. de Sergio Flaksman. So Paulo: Peixoto Neto, 2007, p. 24 8 Idem, p. 27.

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    De fato, comparada s peas de Alexandre Dumas Filho ou mile Augier, que

    faziam sucesso na poca, Thrse Raquin inova ao apresentar o tema do adultrio por

    um prisma que no levava em conta a questo moral. Sem lanar mo do personagem

    raisonneur [aquele que comenta o que se passa em cena, dando explicaes], o escritor

    ausenta-se da cena e lana aos olhos do pblico um drama violento, sem tirar qualquer

    tipo de concluso. Interessa-lhe apenas apreender as reaes e os comportamentos dos

    personagens, ditados pelo meio em que vivem - o espao escuro, deteriorado, mido,

    pobre - e pela hereditariedade. Assim, Teresa e o amante Laurent assassinam Camille, o

    marido fraco e doente, movidos pelos instintos, pela natureza de cada um, pelos

    temperamentos: ela seca e nervosa, ele sanguneo e rude. So caractersticas

    herdadas, das quais no podem escapar.

    A encenao de Thrse Raquin, apresentada no Thtre de la Renaissance, em

    Paris, teve apenas nove rcitas e no agradou nem ao pblico, nem crtica. Com o

    fracasso dessa pea desagradvel, que resultou num espetculo sombrio e um tanto

    assustador, Zola comeou a batalha naturalista pela conquista do teatro. Entre 1876 e

    1880, ele exerce o papel de crtico teatral, primeiramente no jornal Bien Public, e depois no

    Voltaire, aproveitando o espao para fazer propaganda sistemtica das suas ideias e crticas

    aos dramaturgos da poca.

    No tarefa fcil resumir as ideias teatrais de Zola, mas o essencial talvez esteja

    em suas crticas s convenes de todo tipo que impediam, a seu ver, a reproduo da

    realidade no drama e no palco. Ele afirma, no texto que abre Le Naturalisme au Thtre,

    que tem esperanas de ver surgir um homem de teatro que venha revolucionar as

    convenes estabelecidas e instaurar enfim o verdadeiro drama humano no lugar das

    mentiras ridculas atualmente instaladas9. Com o sucesso do naturalismo no romance, era

    preciso vencer tambm no terreno do teatro, com peas escritas de acordo com a

    observao e a anlise concreta do ser humano. A dramaturgia deve utilizar os mesmos

    procedimentos que j deram certo na prosa, que sofreu enormes transformaes a partir de

    Balzac. O romance libertou-se dos clichs, das convenes, e passou a alimentar-se da

    observao da realidade, apoiado num mtodo novo, racional e cientfico. Por que o teatro

    no pode fazer o mesmo? Zola explicita, ento, o que espera que acontea:

    Espero que se coloquem de p no teatro homens de carne e osso, tomados da

    realidade e analisados cientificamente, sem nenhuma mentira. Espero que nos

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    libertem das personagens fictcias, destes smbolos convencionais da virtude e do vcio

    que no tm nenhum valor como documentos humanos. Espero que os meios

    determinem as personagens e que as personagens ajam segundo a lgica dos fatos

    combinada com a lgica de seu prprio temperamento. Espero que no haja mais

    escamoteao de nenhuma espcie, toques de varinha mgica, mudando de um

    minuto a outro as coisas e os seres. Espero que no nos contem mais histrias

    inaceitveis, que no prejudiquem mais observaes justas com incidentes

    romanescos, cujo efeito destruir mesmo as boas partes de uma pea. Espero que

    abandonem as receitas conhecidas, as frmulas cansadas de servir, as lgrimas, os

    risos fceis. Espero que uma obra dramtica, desembaraada das declamaes,

    liberta das palavras enfticas e dos grandes sentimentos, tenha a alta moralidade do

    real, e seja a lio terrvel de uma investigao sincera. Espero, enfim, que a evoluo

    feita no romance termine no teatro, que se retorne prpria origem da cincia e da

    arte modernas, ao estudo da natureza, anatomia do homem, pintura da vida, num

    relatrio exato, tanto mais original e vigoroso que ningum ainda ousou arrisc-lo no

    palco10.

    Lembrando a citao de Eric Bentley, vejamos agora o papel desempenhado por

    Henry Becque no processo de modernizao teatral.

    Henry Becque

    Na dcada de 1880 Becque escreveu duas peas notveis: Les Corbeaux e La

    Parisienne. [Os Corvos] [A Parisiense]

    A primeira estreou em 1882, na Comdie-Franaise, e deixou o pblico e os

    crticos estupefatos com seu realismo contundente. O tema aparece na fala de uma

    personagem: o que acontece a uma famlia de mulheres quando morre o homem que a

    sustentava? A descrio das engrenagens sociais e do funcionamento do mundo dos

    negcios, onde apenas sobrevivem os mais fortes, para no dizer desonestos e trapaceiros,

    feita sem condescendncia, com personagens e linguagem colhidas na sociedade da

    poca. O primeiro ato apresenta a famlia de Vigneron, numa casa luxuosa, vivendo o

    9 mile Zola, Le Naturalisme au Thtre, Paris: Franois Bernouard, 1928, p. 11. 10mile Zola, O Romance Experimental e o Naturalismo no Teatro, trad. de talo Caroni e Clia Berrettini, So Paulo: Perspectiva, 1982, p.122-123.

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    cotidiano da burguesia endinheirada, feliz com os arranjos para o casamento da filha mais

    nova. Um jantar rene os amigos mais prximos, ocasio para conhecermos a esposa, o

    jovem filho brincalho e as filhas bem educadas, que tocam piano e bordam; a pragmtica

    Madame de Saint Genis, me do noivo; o scio Teissier, de quem as mocinhas no gostam;

    o tabelio Bourdon. No se esboa, nos dilogos do primeiro ato, nenhum conflito. No h

    uma exposio, como pedia a estrutura da pea benfeita. O anncio da morte sbita de

    Vigneron, no final, uma surpresa que no nos permite imaginar como evoluir o enredo.

    Da o choque provocado pelas cenas do segundo e terceiro atos, nas quais a famlia da

    viva Vigneron ser espoliada por Teissier e Bourdon, por meio das mais baixas

    artimanhas e mentiras. Como observa uma personagem secundria, quando os homens de

    negcios chegam casa de um morto, pode-se dizer: a esto os corvos, eles s no levam

    embora o que no podem carregar11.

    Les Corbeaux uma pea desagradvel, no sentido de retratar uma parcela da

    sociedade francesa que no gostou de se ver espelhada no palco. possvel imaginar o mal

    estar da plateia quando a cortina baixou. A ltima cena da pea mostra Teissier, que vai se

    casar com uma das filhas de Vigneron sacrifcio que ela faz para salvar a famlia da

    misria enxotando da casa um tapeceiro desonesto que queria cobrar uma dvida

    inexistente. Hipcrita e cnico ele diz mocinha: Depois da morte de seu pai, vocs esto

    cercadas de bandidos, minha filha. Vamos reencontrar sua famlia12.

    Para um dos mais importantes crticos da poca, Jules Lematre, Les Corbeaux no

    s uma pea de primeira ordem como um marco na histria do teatro francs: a primeira

    data importante desde aquela de A Dama das Camlias13. Ou seja, desde 1852.

    Em 1885, Becque volta a surpreender com a comdia La Parisienne, encenada no

    Thtre de la Renaissance. E desta vez o fracasso junto crtica e ao pblico foi ainda

    maior. A primeira cena de uma vivacidade extraordinria e contm uma surpresa em seu

    desfecho que encantou a todos. Mas na sequncia o desenho da adltera Clotilde causou

    enorme mal estar na plateia formada por pessoas da mesma classe social. A burguesia j

    havia se divertido muito com o tema do adultrio em vaudevilles repletos de quiproqus,

    coincidncias e tramas mirabolantes, recursos que alimentavam os enredos de Sardou e

    que se encontram no paradigma do gnero, a comdia Le Chapeau de Paille dItalie, de

    Labiche. E havia tambm aplaudido as peas mais srias de Dumas Filho e Augier, nas

    11 Henry Becque, Les Corbeaux. Paris: Les ditions du Delta, 1970, p. 126. 12 Idem, p. 152. 13 Jules Lematre, Impressions de Thtre, Paris: Socit Franaise dImprimerie et de Librairie, 1898, v. 10, p. 303.

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    quais as crticas vida social vinham acompanhadas de lies moralizadoras. Becque se

    afasta dos modelos consagrados nem a pura diverso, nem o intuito didtico e edificante

    e cria um enredo que gira em torno de uma personagem inteligente, sedutora,

    encantadora, mas ao mesmo tempo amoral, cnica e mentirosa.

    Clotilde a parisiense do ttulo: uma generalizao ultrajante para as mulheres da

    plateia, as esposas dos respeitveis maridos burgueses. Afinal, ela no s trai o marido o

    que seria eventualmente suportvel -, mas tambm o amante, algo que pareceu estar fora

    de qualquer medida. Pior que isso: a pea termina sem nenhuma punio personagem.

    Como no incio, ela continua a dar as cartas, com um crdito a mais: a nomeao do

    marido para um cargo no governo se deu graas a sua amizade com uma mulher do demi-

    monde parisiense, justamente a me de seu segundo amante.

    O pragmatismo e a firmeza de Clotilde contrastam com a cegueira do marido que

    nada v, nada percebe e de nada desconfia e com a ingenuidade do amante, um ciumento

    de comdia que ludibriado o tempo todo. Nem mesmo em situaes adversas Clotilde

    perde o controle. Abandonada pelo segundo amante, recompe-se rapidamente, j

    pensando na reaproximao com o primeiro, que , poderamos dizer, quase parte da

    famlia, para ficarmos no mesmo patamar de ironia e cinismo que marca o relacionamento

    das trs personagens do clssico tringulo amoroso que a pea apresenta.

    Com tais caractersticas, no admira a reao contrria dos crticos. Ainda que

    Henry Baur tenha apreciado a originalidade, a aspereza irnica e a penetrante

    acuidade de La Parisienne, o tom geral foi dado pelas restries de Sarcey, que escreveu:

    Becque v o homem como vil e baixo, v o mundo como cnico e vulgar, v a sociedade

    como uma caverna onde tudo o que bom e honesto imolado a tudo que mau e

    desonesto14. Segundo Antoine, uma parte da imprensa considerou a pea imoral, mal

    construda, sem comeo, meio ou fim, e no aceitou as torpezas da vida real postas no

    palco15.

    Enredo tnue, dilogos brilhantes, nfase na construo dos caracteres, La

    Parisienne impressionou os jovens dramaturgos franceses da poca, que se inspiraram em

    Becque para criar um repertrio de peas curtas que ficaram conhecidas como comdias

    amargas, tamanho o seu grau de pessimismo e de cinismo. Mais do que Zola, ele tornou-

    se uma referncia no terreno da dramaturgia, pois foi alm do plano das ideias, oferecendo

    um modelo novo de pea teatral. Alis, Becque chegou a afirmar, em 1887, que os

    14 Apud Edmond Se, Henry Becque. Paris: Vald. Rasmussen, 1926, p. 40. 15 Andr Antoine, Le Thtre, op. cit., p. 236.

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    romancistas naturalistas s conseguiram fazer teoria, fracassando como dramaturgos.

    Nesse mesmo texto, reconhece a importncia do trabalho de Andr Antoine, que acolheu

    no Thtre-Libre dezenas de peas de seus seguidores. Foi no palco desse pequeno teatro

    que o naturalismo teatral se consolidou, em termos cnicos e dramatrgicos.

    Vou falar sobre o encenador Antoine depois de comentar a dramaturgia

    naturalista.

    Ibsen e o esprito do tempo

    A pea de Ibsen que dialoga mais de perto com o naturalismo Os Espectros,

    publicada em 1881.

    De fato, no h como negar a aproximao de Ibsen com o naturalismo, na medida

    em que as principais personagens de Os Espectros so delineadas em funo do meio em

    que vivem e uma delas carrega uma terrvel doena que teria herdado do pai. Alm disso, o

    prprio Ibsen confessou, em carta ao escritor Sophus Schandorph, que sua inteno era

    produzir na mente do leitor a impresso de que ele estava experimentando algo real16. Ao

    ator sueco August Lindberg, que se preparava para montar Os Espectros na Sucia,

    observou que a traduo devia levar em conta a naturalidade do dilogo e as diferenas

    entre os modos de expresso de cada personagem, que so diferentes, acrescentando: O

    efeito da pea depende em grande medida em fazer o espectador sentir como se ele

    estivesse realmente ouvindo e vendo fatos acontecendo na vida real17. Zola e Antoine

    formularam o mesmo pensamento em muitos de seus textos. desse efeito realista que se

    alimenta o naturalismo teatral, alm, claro, das ideias deterministas ligadas ao meio e

    hereditariedade.

    Seguramente, a figura de Osvald, o filho sifiltico que volta para casa, onde

    conhece a verdade sobre a vida dissoluta do pai, numa cena pungente com a me no

    terceiro ato, concentra o teor naturalista de Os Espectros. Mas, curiosamente, ao contrrio

    de Zola, que leu obras de medicina para construir suas personagens, no se tem notcia de

    que Ibsen tenha feito o mesmo. Ou seja, ele no buscou uma base cientfica para

    demonstrar que a sexualidade desenfreada do pai est na origem da doena do filho,

    16 Cf. Donald Marinelli (ed.), Henrik Ibsens Ghosts: a Dramaturgical Sourcebook. Pittsburgh: Carnegie Mellon University Press, 1997, p. 185. 17 Christopher Innes, op. cit., p. 76.

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    deixando um tanto em aberto a questo da hereditariedade por esse ngulo. Talvez por isso

    tenha dado importncia para uma das poucas reminiscncias infantis de Osvald, que relata

    ter fumado certa vez no cachimbo do pai. De qualquer forma, a doena referida como um

    mal herdado. Alm disso, o fantasma do passado ressurge quando Osvald, no final do

    primeiro ato, sexualmente atrado pela empregada Regina, tenta agarr-la na sala de jantar.

    Sem saber que se tratava de sua meia-irm, ele repetia o comportamento do pai, que

    naquele mesmo lugar seduziu a me de Regina, tambm empregada da casa,

    engravidando-a. Aos poucos, o passado comea a invadir o presente. medida que Helena

    Alving revela o que foi a sua vida de casada ao pastor Manders, a pea sugere que so

    muitos os fantasmas que retornam. No a doena do filho que est no centro da pea

    como queriam os adeptos do naturalismo no final do sculo XIX -, mas, digamos, a doena

    da sociedade hipcrita e convencional, que impede a emancipao do esprito, que reprime

    os impulsos da natureza individual. Helena resume esse ponto de vista nesta fala do

    segundo ato:

    Quanto ouvi Regina e Osvald na sala de jantar, pareceu-me estar diante de

    fantasmas. Mas eu quase creio que todos ns somos fantasmas, pastor Manders. No

    apenas aquilo que herdamos do pai e da me que revive em ns. tambm todo o

    tipo de velhas opinies e crenas mortas e ideias semelhantes. Elas no esto vivas em

    ns, mas existem e no podemos nos livrar delas. To logo pego um jornal para ler,

    tenho a impresso de que os fantasmas deslizam entre as linhas. Deve haver

    fantasmas que vivem em todo o pas, formando uma camada espessa como a areia. E

    assim todos temos um medo terrvel da luz18.

    Grande parte da pea so dilogos entre o pastor Manders e Helena. Ele representa

    tudo o que h de pior na vida social; um poo de convenes, com sua retrica religiosa e

    clichs que a stira de Ibsen alcana com grande maestria, mostrando-o como um homem

    ridculo. medida que antagoniza com ele, Helena cresce como personagem, revelando

    sua rebeldia e inconformidade em relao a tudo que viveu. Como j observaram alguns

    crticos de Ibsen, ela a contrapartida da Nora de Casa de Boneca. Embora o autor tenha

    18 Henrik Ibsen, Les Revenants, in Oeuvres Compltes, tome 12. Trad. de P.-G. La Chesnais. Paris: Plon, 1940, p. 140.

  • 12

    dito que uma pea no tem nada a ver com a outra19, Helena, um ano depois de casada,

    abandona o marido, mas convencida por Manders a voltar para casa. A incluso desse

    detalhe no enredo pode significar uma resposta aos crticos que repudiaram a atitude de

    Nora. Helena a Nora que no abandonou o lar, que sacrificou sua individualidade para

    parecer a esposa perfeita, a boa me de famlia, escondendo de todos o carter odioso do

    marido. Presa s convenes sociais, quando a pea comea Helena est prestes a enterrar

    o passado e comear nova vida ao lado do filho. Mas os fantasmas do passado se fazem

    presentes, condicionando os acontecimentos e o destino das personagens diretamente

    envolvidas na tragdia que sobrevm: Regina, fadada prostituio, como a me; Osvald,

    condenado morte; Helena, no terrvel desfecho da pea, sofrendo a pior consequncia de

    no ter abandonado o marido, tendo que decidir se ajuda ou no o filho a morrer.

    claro que uma pea como Os Espectros extrapola o mbito do naturalismo. Mas

    o que mais contribuiu para que fosse vista como obra representativa desse movimento

    artstico foram as trs encenaes sucessivas que teve, em trs teatros de pases diferentes,

    todos com ligaes estreitas com o repertrio naturalista. A primeira, em 1889, ocorreu na

    Freie Bhne [Cena Livre], em Berlim. Otto Brahm e Paul Schlenther criaram esse teatro

    semelhana do Thtre-Libre de Antoine, para fugir ao da censura, e o inauguraram

    com a montagem de Os Espectros. Em 1890 foi o prprio Antoine que a encenou em seu

    teatro, fazendo ele mesmo o papel de Osvald. Em 1891, Jack Grein escolheu-a para abrir o

    Independent Theatre of London, outra cena livre.

    A despeito do nmero limitado de espetculos, a repercusso dessas montagens foi

    imensa. Os aspectos desagradveis da pea e sua contundncia, postos em cena em registro

    naturalista, chamaram a ateno da crtica, principalmente na Inglaterra, onde os ataques a

    Ibsen foram o mais violentos. William Archer recolheu-os no artigo Ghosts and

    Gibberings, onde podemos ler apreciaes do tipo: um repulsivo e degradante trabalho,

    mrbida, doentia, imoral e repulsiva histria, um esgoto aberto e ftido20. Em

    contrapartida, no mesmo ano de 1891 Bernard Shaw lana o importante livro A

    Quintessncia do Ibsenismo, comentando de maneira positiva os temas e as novas tcnicas

    19 Em carta ao seu editor, datada de 18 de junho de 1881, Ibsen afirma que est escrevendo um drama domstico em trs atos [Os Espectros] e acrescenta que essa pea no tem nenhum tipo de ligao com Casa de Boneca. Cf. Michael Meyer, op. cit., p. 481., 20 Apud Donald Marinelli, op. cit., p. 117.

  • 13

    de construo dramtica empregadas pelo autor noruegus21, que formaram a base do

    drama moderno no Ocidente.

    Ibsen no repetiu o naturalismo que se v em Os Espectros. Nas peas que

    escreveu em seguida o registro realista mantm-se nos dilogos, como se observa em Um

    Inimigo do Povo (1882), mas a fabulao incorpora outras tonalidades a partir de O Pato

    Selvagem (1884) e Rosmersholm (1886). No deixa de ser sintomtico que, na Frana,

    Ibsen passe a ser encenado pelo Thtre de lOeuvre, sob a direo de Lugn-Poe, o mestre

    do teatro simbolista, e no mais por Antoine, que, justia seja feita, tambm chamou a

    ateno dos franceses para o Ibsen no-naturalista ao encenar O Pato Selvagem no

    Thtre-Libre, em 1891.

    O naturalismo psicolgico de Strindberg

    Ao contrrio de Ibsen, que jamais procurou se aproximar de Zola, Strindberg no

    se fez de rogado quando resolveu escrever peas com base no iderio naturalista. Em 29 de

    agosto de 1887, enviou uma cpia de O Pai ao escritor francs, acompanhada de uma

    carta, na qual se apresentava como chefe do movimento experimental e naturalista na

    Sucia22 como de fato foi visto pelos seus contemporneos, enquanto autor de romances

    e contos. Depois, demonstrando conhecimento de livros como Le Naturalisme au Thtre

    e Nos Auteurs Dramatiques, pedia a Zola que lesse sua tentativa, no sentido indicado por

    vossa mo de mestre, acrescentado que O Pai era um drama composto a partir da

    frmula experimental, objetivando fazer valer a ao interior em detrimento dos truques

    teatrais, reduzir o dcor ao mnimo e conservar a unidade de tempo o mximo possvel23.

    Zola fez uma apreciao positiva da pea, mas apontou alguns problemas, que no

    impediram Strindberg de pedir-lhe permisso para utilizar a carta como prefcio edio

    francesa de O Pai. Evidentemente, queria chamar a ateno sobre seu nome, apelando para

    21 Bernard Shaw observa, por exemplo, que a pea benfeita tem uma exposio no primeiro ato, uma situao no segundo e um desenlace no terceiro. Com Ibsen, h exposio, situao e discusso. Mais importante: uma vez introduzida a discusso, ela deve espalhar-se e penetrar na ao, assimilando-a, o que tornar pea e discusso praticamente idnticas. (B. Shaw, The Quintessence of Ibsenism. 6 ed., New York: Hilland Wang, 1964, p. 171). William Archer define a tcnica de Ibsen como mtodo retrospectivo de exposio, explicando que o dramaturgo no se dedica a uma exposio no incio da pea, deixando que exposio e ao se interpenetrem. Nesse sentido, pode-se dizer que a exposio a pea, pois, no segundo ou terceiro atos o espectador ainda est descobrindo fatos antecedentes importantes para a compreenso da ao presente. Cf. Eric Bentley, The Play: a Critical Anthology. 6 ed., N.J.: Prentice-Hall & Englewood Cliffs, 1962, p. 581. 22 August Strindberg, Thtre Cruel et Thtre Mystique. Prface et presentation de Maurice Gravier, traduit du sudois par Marguerite Diehl, Paris: Gallimard, 1964, p. 94. 23 Idem, p. 94.

  • 14

    um padrinho ilustre. Por outro lado, parece que, pelo menos nessa altura, no concordou

    com as ressalvas de Zola, pois acreditava que tinha feito algo novo, como afirma ao seu

    editor OEsterling, em carta de 22 de janeiro de 1888: O Pai realiza o drama moderno e ,

    sob esse aspecto, algo bastante curioso. Bastante curioso porque a luta tem lugar entre as

    almas, o combate dos crebros, no a luta com golpes de punhal ou o envenenamento

    com suco de framboesa, como em Les Brigands. Os franceses de hoje procuram ainda a

    frmula, mas eu a encontrei24.

    Vejam essa expresso: combate de crebros. Ela mostra o que queria Strindberg:

    uma dramaturgia subjetiva.

    De fato, no apenas em O Pai, mas tambm em Senhorita Jlia Strindberg realizou

    o naturalismo teatral como poucos, escrevendo duas incontestes obras-primas, embora no

    exatamente seguindo os postulados de Zola. J nas palavras citadas acima percebe-se a

    nfase no aspecto psicolgico das personagens, no no determinismo do meio e da

    hereditariedade, ou seja, no aspecto fisiolgico. Em O Pai o problema central nasce do que

    Strindberg chama combate de crebros. no curso da ao que Laura encontra o

    argumento decisivo para desestabilizar mentalmente o Capito, seu marido. E ele que

    fornece a ela tal argumento, ao contar-lhe a conversa que teve com um criado que teria

    supostamente engravidado a empregada da casa. Como saber que ele o pai, se outros

    dormiram com a moa? Laura, inteligentemente, ou maquiavelicamente, deduz que

    nenhum homem pode afirmar com segurana que pai e, no meio da discusso com o

    marido para decidir o destino da filha se fica em casa, no campo, desenvolvendo seus

    supostos dotes artsticos ou se vai estudar na cidade para se tornar professora -, desafia-o a

    ter certeza de que o pai de Bertha.

    Esse o n da pea e a batalha entre as duas personagens em torno da dvida

    instaurada por Laura concentra todo o interesse. Como na tragdia grega, a ao dramtica

    que se v o desfecho de uma situao vivida ao longo de anos. O casamento uma

    guerra diria que finalmente termina com a vitria do crebro mais forte. Essa ideia de

    fundo naturalista aparece com clareza no final do segundo ato, neste dilogo:

    CAPITO Eu sei que nesta batalha um de ns vai perecer.

    LAURA - Quem? 24 Apud A. Jolivet, Le Thtre de Strindberg, Paris: Boivin, 1931, p. 105.

  • 15

    CAPITO O mais fraco, claro!

    LAURA Ento o mais forte tem razo?

    CAPITO -Tem, sempre, pois ele quem detm o poder.

    LAURA Nesse caso sou eu quem tem razo25.

    Nesse mesmo dilogo, um pouco antes, o prprio Capito j havia admitido que

    Laura era mais forte que ele, que o hipnotizava acordado, que no via nem ouvia nada, que

    s obedecia. Voc me dava uma batata crua e me convencia de que era um pssego, ele

    diz a ela. Os dilogos de O Pai so incisivos e mesmo violentos, reveladores de

    personalidades um tanto doentias, construdas com base em aspectos psicopatolgicos da

    vida emocional. O Capito se tortura com a dvida da paternidade, ao passo que Laura

    parece ter prazer com a imposio das suas vontades trao que a caracteriza desde a

    infncia, como revela seu irmo e com a destruio da sade mental do marido.

    Essa viso to negativa da mulher tem explicaes interessantes, ligadas s leituras

    de Strindberg, a suas obsesses e a sua vida pessoal. Martim Lamm, em sua monumental

    biografia do autor sueco26, d informaes precisas acerca das circunstncias em que O Pai

    foi escrita. Resumidamente, um dos estmulos veio da repulsa ao movimento feminista,

    que Ibsen encorajou ao escrever Casa de Boneca. Strindberg censurou o colega noruegus

    e em seus escritos dos anos 1884-1887 deixou clara sua forte misoginia, como se v no

    prefcio do segundo volume de Casados, no qual escreveu coisas terrveis,

    responsabilizando as mulheres por todas as monstruosidades da histria, as guerras, a

    perseguio religiosa etc. Em relao ao casamento, classificou-o como uma forma de

    prostituio por contrato, que, como consequncia da indolncia e da ambio da mulher

    por poder, aprisionou o marido num estado de completa escravido27. Nesses mesmos

    anos, o casamento de Strindberg desmoronou, tornando-se tema do texto autobiogrfico A

    Defesa de um Louco, no qual fez acusaes esposa, que so muito semelhantes s que faz

    o Capito a Laura em O Pai. O carter autobiogrfico da pea referido por Martin Lamm,

    nestes termos: O que faz essa dramtica vivisecao mais absorvente que Strindberg

    usou o bisturi em si mesmo, descrevendo o pesadelo em que se encontrava enquanto

    escrevia a pea28. Em relao s leituras feitas na poca pelo dramaturgo, encontram-se

    25 August Strindberg, Senhorita Jlia e Outras Peas, trad. de Guilherme da Silva Braga, So Paulo: Hedra, 2010, p. 73. 26 Martin Lamm, August Strindberg, trad. de Harry G. Carlson, New York: Benjamin Blom, 1971. 27 Idem, p. 157. 28 Idem, p. 206.

  • 16

    principalmente estudos na rea da psicologia e da psiquiatria, como Paradoxes

    Psychologiques, de Max Nordau, e De la Suggestion, de Hippolyte Bernheim. Neste

    ltimo que Strindberg encontrou o apoio cientfico de que precisava para construir a

    personalidade do Capito, vtima do poder de sugesto de Laura, a partir do momento em

    que passa a duvidar da paternidade.

    O resultado dessa soma curiosa de aspectos da vida pessoal e fico, manias e

    leituras de obras cientficas uma pea em que Strindberg via a nova frmula naturalista

    realizada, porque conseguira concentrar a ao no que havia de importante para mostrar no

    palco: a luta entre dois crebros. Mas em O Pai esse n central, que interessa apreender e

    desenvolver, s vezes fica em suspenso porque a pea tem outros personagens, como o

    mdico que vem cuidar do Capito, o Pastor, a filha Bertha, Njd e a Ama. Os dilogos

    que travam colaboram para que se compreenda o enredo, mas fazem a ateno do leitor-

    espectador se desviar do principal, que a guerra psicolgica entre os protagonistas.

    O aperfeioamento da nova frmula, que, vale dizer, mais de Strindberg do que

    de Zola, se d com Senhorita Jlia, escrita pouco depois de O Pai. Apenas trs

    personagens em cena das quais uma secundria e importa pouco - e nenhuma diviso

    em atos, um nico cenrio, toda a ao concentrada em mais uma batalha de crebros, no

    tempo ficcional que coincide com o tempo real do espectador.

    Em Senhorita Jlia, a busca pela concentrao em grau mximo perceptvel: a

    ao se desenvolve em torno de uma nica situao: numa noite de So Joo, Jlia, filha de

    um conde, se entrega a Jean, o empregado da casa. A pea tem claramente duas partes: na

    primeira, mais curta, o jogo entre as personagens se d com ntida vantagem da moa, que

    se aproveita de sua superioridade social para se insinuar sexualmente junto ao rapaz,

    provocando-o com jeito coquete, mas recuando diante de suas investidas, a ponto de

    esbofete-lo. A diferena de classes reforada pelos sonhos que ambos contam: o dela,

    que descendente uma queda de um lugar alto -, e o dele, que ascendente a

    dificuldade para alcanar o primeiro galho de uma rvore em que deseja subir. Ele tambm

    conta uma histria de quando era menino, que viu Jlia e quis morrer, pois jamais poderia

    sair da classe social em que nasceu.

    Na segunda parte observe-se que Strindberg no deixa o palco vazio quando os

    protagonistas vo para um quarto no interior da casa; enquanto a seduo acontece nos

    bastidores, os empregados que danavam no celeiro, comemorando a festa de So Joo,

    vm para a cena que comea verdadeiramente a batalha entre os sexos. Jean agora tem

    a vantagem. Seus modos bruscos e violentos em relao a uma Jlia enfraquecida

  • 17

    moralmente do o tom de um longo e tenso dilogo em que o mais forte vence o mais

    fraco. A pea se realiza na capacidade que tem o dramaturgo de levar o embate entre as

    duas personagens at o desfecho em que uma destruda. As agresses de parte a parte vo

    num crescendo dramtico extraordinrio, mas Jlia quem ouve as ofensas mais fortes,

    como estas, incomuns no teatro da poca:

    Prostituta de lacaio! Mulher de criado! Cale a boca e saia daqui! No lhe cabe

    dar lies sobre brutalidade, j que foi a mais brutal esta noite! Acha que alguma

    empregada se atiraria assim para um homem? J viu alguma mulher de minha classe

    implorando dessa maneira? Eu nunca vi. S animais e prostitutas29.

    O principal trao do carter de Jean o ressentimento, originado pela pobreza,

    servilidade e inferioridade, que condicionam o seu comportamento diante do conde.

    Liberado em relao a Jlia, trata-a com brutalidade. Mas to logo ouve o conde voltar, no

    final da pea, sua alma de lacaio se impe novamente. No uma personagem difcil de

    compreender: afirma-se pela beleza fsica, pela forte sexualidade, pela mistura de dio e

    subservincia aos patres. Psicologicamente, surge em cena limitado pelo sonho de

    melhorar de vida, de tornar-se proprietrio de um hotel. Mas claro que sua presena ativa

    uma dimenso da pea que no pode passar despercebida: a luta de classes por trs da

    batalha dos sexos.

    Jlia, por outro lado, um enigma. Como compreender tudo o que fez? Est louca?

    o que diz Jean na fala de abertura da pea, quando conta cozinheira Cristina que ela o

    tirou para danar no celeiro. Depois a vemos em cena, num jogo de seduo perigoso,

    provocando o criado, fazendo-o beijar seu p, bebendo cerveja e sendo levada por ele para

    o quarto, sob o pretexto de se esconder dos outros empregados que vinham para a cozinha.

    Seduzida, nem ela mais compreende o que se passou. Foi amor? Atrao sexual? Loucura?

    Efeito da bebida? Fraqueza? De quem a culpa pelo que aconteceu? Dela? De Jean?

    Numa fala de cunho claramente naturalista ela tenta dar uma explicao, lembrando o meio

    em que cresceu e a educao que recebeu: De quem seria a culpa do que houve? De meu

    pai, de minha me ou minha? Minha? No tenho nada de meu. No tenho um pensamento

    sequer que no tenha vindo de meu pai, uma emoo que no venha de minha me30.

    29 August Stridberg, Senhorita Jlia e A Mais Forte. Trad. de Joo Marschner. So Paulo: Brasiliense, 1968, p. 28. 30 Idem, p. 48.

  • 18

    Uma concesso a Zola, certamente. Levando em conta os postulados naturalistas

    poderamos dizer que a mente perturbada com que Jlia entra em cena, provvel herana

    materna, que a perde, que a leva cama de Jean, que a faz, na segunda parte da pea,

    falar coisas sem sentido, fazer projetos inviveis de fugir com Jean, para abrir um hotel na

    Sua. quase um delrio a descrio que faz desse hotel a Cristina. E em estado de

    quase hipnose que sai de cena, no desfecho trgico, com a navalha na mo, para suicidar-

    se.

    A aproximao de Strindberg com o naturalismo continuou at 1892. Nos anos

    seguintes, entre 1893 e 1897, nada escreve para o teatro. Em 1898, Rumo a Damasco

    indica o novo caminho que vai trilhar a obra do dramaturgo, que abandona o naturalismo

    apenas em A Dana da Morte h um retorno guerra dos crebros, maneira de O Pai

    para aprofundar em sua obra a expresso da subjetividade, que, alis, j estava presente nas

    duas peas acima comentadas. A nfase no aspecto psicolgico das personagens ganha

    agora uma dimenso maior nas chamadas peas onricas do escritor, como O Sonho, nas

    quais se anuncia o expressionismo.

    Gerhart Hauptmann e o naturalismo social

    O impacto do romance francs naturalista foi imenso na literatura alem dos anos

    de 1880 e 1890. Zola e os irmos Goncourt foram saudados como os grandes mestres a

    serem seguidos. Na dramaturgia, Ibsen o autor mais admirado. No por acaso, pois, que

    num dilogo da pea Antes do Nascer do Sol, Hauptmann (1862-1946) tenha feito uma

    personagem afirmar que os jornais alemes falam muito em Zola e Ibsen. uma

    informao, sem dvida, mas tambm uma pista para percebermos com quem o

    dramaturgo est dialogando nessa sua pea de estreia, que deixou os berlinenses chocados

    e escandalizados quando foi representada no segundo espetculo da Freie Bhne, em

    Berlim, em outubro de 1889.

    Hauptmann foi o expoente mximo do teatro naturalista alemo, numa chave

    totalmente oposta de Strindberg. Interessavam-lhe os problemas sociais, a misria do

    povo, a opresso, os ideais socialistas, que ps em discusso em suas peas mais

    importantes. Em Antes do Nascer do Sol, o dilogo com Zola fica estabelecido nos temas

    abordados: o alcoolismo, que aparece em cena e lembra o romance LAssommoir, e as

    condies de vida dos trabalhadores das minas de carvo, questo apenas referida, ecoando

    o romance Germinal.

  • 19

    O enredo gira em torno da ida de um jovem idealista, Loth, a uma fazenda na

    regio de Witzdorf, com o objetivo de estudar as condies de vida dos trabalhadores das

    minas de carvo. Evidentemente quer denunciar a misria em que vivem, a explorao a

    que so submetidos, os vcios que adquirem em tal meio etc. Coincidentemente, a fazenda

    em que se localizam as minas administrada por um amigo de juventude, Hoffmann,

    engenheiro casado com uma das filhas do proprietrio. Impressionado com um estudo que

    leu sobre os efeitos do alcoolismo nos Estados Unidos, Loth comenta nos dilogos com as

    demais personagens da famlia, que os membros da terceira e quarta gerao de um

    alcolatra podem nascer com problemas. O curioso que isso se passa enquanto todos

    mesa bebem muito, menos ele, que um convicto abstmio, pois quer ter filhos sadios.

    Toda a ao se passa em dois dias. Mas esse curto espao de tempo suficiente

    para que a cunhada de Hoffmann, Helen, se apaixone por esse homem to diferente de

    todos com quem ela convive, no rude meio rural. Ele tambm se apaixona por ela, uma

    moa sensvel, que estudou na cidade e voltou para o campo, onde sofre ao ver a irm

    Martha e o pai alcolatras, a madrasta manter relaes sexuais com o sobrinho, com quem

    a famlia quer que se case. Desde o incio, porm, sabemos que Loth irredutvel em suas

    convices sobre o alcoolismo hereditrio, e nos perguntamos o que acontecer quando ele

    conhecer melhor a famlia de Helen. No quinto ato, enquanto ouvimos os gritos de dor de

    Martha, que no andar de cima dar luz um natimorto, do-se os dilogos31. Num deles, o

    mdico que cuida dela revela a Loth que ele vai entrar numa famlia de dipsomanacos.

    Coerente com as ideias que defendeu nos atos anteriores, com boa dose de fanatismo e

    crena na cincia, o rapaz sacrifica os sentimentos: deixa uma carta a Helen e vai embora,

    pois a cr vtima de um destino do qual no pode fugir. Abre-se assim o caminho para o

    desfecho trgico, o suicdio de uma moa desesperada, que no v nenhum futuro para sua

    vida. A cena final cria um contraponto terrvel, pois o suicdio de Helen descoberto por

    uma criada que d gritos lancinantes, enquanto o velho Krause aparece completamente

    bbado para balbuciar que tem duas filhas lindas.

    H fraquezas no enredo, claro, e o resumo acima no d conta dos detalhes da pea,

    onde se encontram suas qualidades: o desenho realista das personagens do campo, com

    seus maus modos de novos-ricos, gastando com bebida e cio o dinheiro ganho com a

    31 A encenao da pea levou o realismo to longe que um mdico, no momento em que se ouviam os gritos da personagem, levantou-se indignado e jogou seus instrumentos de trabalho sobre o palco, dizendo que poderiam ajudar no parto. Vrios estudiosos de Hauptmann citam esse caso extremo de recepo, bem como a reao de parte da imprensa, que considerou a pea imoral. Para isso deve ter contribudo a cena em que Krause, bbado, abraa a filha com lascvia.

  • 20

    explorao do carvo na fazenda; os dilogos entre Hoffmann e Loth, cada qual com sua

    viso sobre as condies de vida dos trabalhadores das minas; os dilogos entre Loth e

    Helen, que trazem cena temas relevantes para a poca, como o feminismo; o cuidado

    com a mise en scne, que se nota nas longas rubricas preocupadas em criar no espectador o

    ilusionismo naturalista. A esse respeito, o prprio Hauptmann explicou que escreveu Antes

    de Nascer o Sol para um palco que tivesse quatro paredes, no trs32.

    Depois de Antes do Nascer do Sol, Hauptamnn escreveu duas outras peas A

    Festa da Paz e Vidas Solitrias, ainda no registro naturalista mas foi com a seguinte, Os

    Teceles, em 1893, que ganhou fama internacional. Nesse drama social, originalmente

    escrito no dialeto silesiano, em 1891, e logo vertido pelo prprio autor para a norma culta

    alem, as questes sociais apenas referidas nos dilogos em Antes do Nascer do Sol agora

    ganham corpo em cena, com a presena de teceles em luta contra a explorao de seu

    trabalho.

    O efeito realista da pea notvel, em cinco atos que na verdade so quadros

    praticamente independentes uns dos outros, no fosse o fato de que ao final contam uma

    histria, a da revolta dos teceles ocorrida de fato em 1844 na Silsia. Hauptmann no cria

    um enredo no sentido tradicional do termo; no h uma personagem central vivendo um

    conflito ou uma situao que necessite de um desenlace. Cada ato expe um dado da

    realidade transposta ao palco, no qual o sujeito da ao dramtica coletivo. Assim,

    desaparecem as questes ligadas hereditariedade h uma nica meno, num rpido

    dilogo, doena de uma criana e avulta a importncia do meio. A pea se abre com

    uma cena em que vrios teceles entregam o produto do seu trabalho ao feitor do patro, o

    fabricante Dreissiger, na cidade de Peterswaldau. A rubrica detalha os rostos cansados e

    plidos, a magreza de quem no se alimenta direito, as roupas remendadas, a pobreza que

    lembra algo tpico aos mendigos, que, de humilhao em humilhao, conscientes de que

    so apenas tolerados, esto acostumados a esconder-se o mais possvel33. Vemos

    concretamente como se d a explorao e seus efeitos: o trabalho remunerado por valor

    menor que o devido, a criana que desmaia de fome, a doena que abate homens e

    mulheres. Em contraponto, a insensibilidade do grande capitalista e a primeira

    manifestao de um trabalhador, Bcker, que se revolta com a situao.

    32 Apud. Warren R. Maurer, Gerhart Hauptmann, Boston: Twayne, 1982, p. 29. 33 Gerhart Hauptmann, Os Teceles. Trad. de Marion Fleischer e Ruth Mayer Duprat. So Paulo: Brasiliense, 1968, p. 4.

  • 21

    No segundo quadro, a cena mostra as pssimas condies de trabalho dos teceles,

    que ficam doentes dos olhos e dos pulmes, respirando poeira e fumaa, em ambiente

    iluminado inadequadamente. Mais uma vez a rubrica indica em detalhes o cenrio que

    uma saleta estreita com todos os apetrechos necessrios aos teceles. Nos dilogos, a

    revolta pela misria, pela fome, o despontar da conscincia de que a situao deve mudar,

    instigada por Jger, bem vestido, bem alimentado, porque acaba de voltar de seu servio

    militar .

    Nada menos que dezoito personagens entram em cena no terceiro ato, que se passa

    num bar. Teceles, camponeses, um ferreiro, um carpinteiro, um guarda florestal, um

    viajante, um policial discutem entre si, brigam por nada, conversam sobre vrios assuntos,

    numa cena coletiva de um realismo mpar. Claro que o assunto principal o que ocorre na

    firma de Dreissiger. Liderados por Bcker e Jger, os teceles cantam uma cano ofensiva

    ao capitalista e saem dispostos a fazer reivindicaes.

    Se nos dois primeiros atos, vemos como so explorados e como trabalham os

    teceles, no quarto vemos como vivem os patres. Na casa luxuosa de Dreissiger, sua

    esposa, o pastor Kittelhaus e o jovem Weinhold se preparam para jogar bridge, quando

    comeam a ouvir a cano dos teceles. A frente da casa est tomada por eles e no tardar

    para que a massa surre um delegado e invada a cena, enquanto os patres fogem pelos

    fundos.

    Desencadeada a revolta, que ganha enormes propores, resta mostr-la vitoriosa.

    Mas como no se pode pr no palco mais que certo nmero de personagens, Hauptmann

    constri o quinto ato com o recurso da narrao. A cena se passa em outra cidade,

    Langenbielau, na casa modesta do velho Hilse, um tecelo alquebrado pelos anos de

    trabalho. Outras personagens chegam para contar em detalhes como foram destrudos a

    casa, a tinturaria e os depsitos de Dreissiger ou para contar que os teceles esto

    chegando em grande quantidade para fazer o mesmo com os teares e a casa de Dietrich.

    Depois, so narrados os confrontos nas ruas, o enfretamento com a polcia, vistos da casa

    de Hilse. Ou seja, a ao ocorre fora do palco, um problema que Peter Szondi aborda com

    grande argcia em sua anlise de Os Teceles, ao argumentar que o tema tratado na pea

    no cabe na forma dramtica34.

    O quinto ato narra a luta de classes e dramatiza o individualismo de Hilse, que no

    adere revolta, porque aceita a opresso em nome de princpios religiosos, acreditando na

    compensao depois da morte. Ironicamente, a nica vtima dos acontecimentos que

  • 22

    morre em cena, atingido por uma bala perdida, enquanto trabalhava no tear, no desfecho da

    pea.

    O naturalismo de Os Teceles , portanto, de natureza social. Hauptmann criou

    quadros de um realismo autntico, inovando ao deixar de lado o enredo tradicional, como

    j observado, substituindo o destino individual pelo destino coletivo, pelo movimento de

    toda uma classe. Alm disso, no contemplou a burguesia, trazendo para o palco toda uma

    massa de trabalhadores despossudos. Mais importante, como percebeu Raymond

    Williams, a maior inovao de Hauptmann que sua pea ao, no fabulao: a fora

    motora o evento, a ao, a classe articulada em revolta35.

    Encenada na Freie Bhne em fevereiro de 1893, com enorme repercusso, j em

    maio Os Teceles era apresentada por Antoine no Thtre-Libre, com igual sucesso,

    abrindo o caminho para o reconhecimento do valor da dramaturgia de Hauptmann nos

    demais pases europeus. O autor deu continuidade a sua obra, mas ampliou sua viso de

    mundo. Se por um lado lana mo dos procedimentos naturalistas em peas como O

    Carroceiro Henschel (1898), Michael Kramer (1900), Rose Bernd (1903) ou Os Ratos

    (1911), por outro incorpora traos msticos e elementos onricos e religiosos em A

    Assuno de Hanelle (1893), Elga (1896) e O Sino Submerso (1896). Um de seus

    melhores crticos, Carl Friedrich Wilhelm Behl, observa que o horizonte literrio de

    Hauptmann, em mais de quarenta peas teatrais e duas dezenas de contos e romances,

    extrapolou o naturalismo: ele foi um escritor que soube retratar a realidade, mas tambm

    considerar o sonho uma fonte de conhecimento e no perder de vista o transcendental, o

    metafsico e o csmico [...]; quanto mais viveu, mais profundamente seu esprito penetrou

    a esfera dos segredos eternos da existncia humana36.

    O naturalismo e a dramaturgia moderna

    As ideias de Zola e as peas de Becque, as inovaes cnicas de Antoine, Otto

    Braham, (Alemanha), e Jack Grein (Inglaterra), as peas de Ibsen, Strindberg e Hauptmann

    compem um conjunto em que podemos identificar no s o naturalismo teatral, mas

    tambm as primeiras sementes da modernidade no terreno da dramaturgia e da encenao.

    Ou dando continuidade ou buscando novos caminhos ou se confrontando com as

    34 Cf. Peter Szondi. Teoria do Drama Moderno. Trad. de... So Paulo: Cosac & Naif... 35 Raymond Williams, Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto & Windus, 1965, p. 176. 36 C.F.W. Behl, Gerhart Hauptmann: his Life and Work. Translated by Helen Taubert. Ostfriesland: Holzner-Verlag Wrzburg, 1956, p. 27.

  • 23

    experincias naturalistas surgem no final dos anos de 1880 e nas duas dcadas seguintes os

    dramaturgos e os encenadores que sedimentaro as conquistas preliminarmente obtidas.

    No terreno da dramaturgia, o naturalismo chegou a praticamente todos os pases

    europeus, mas sem o dogmatismo de Zola, j filtrado pelas apropriaes particulares de

    Becque, Ibsen, Strindberg e Hauptmann, que serviram de modelo para os principais

    dramaturgos do perodo. Num rpido sobrevoo, percebemos, por exemplo, que na Itlia o

    autor preferido do chamado teatro verista Becque. O naturalismo cruel de Les Corbeaux

    e a fora de seus dilogos seduziram dramaturgos como Giuseppe Giacosa, Marco Praga,

    Gerolamo Rovetta e Camillo Antona Traversi, para citar os mais importantes. Na esteira do

    autor francs, escreveram um bom nmero de peas sobre o adultrio, maneira do que se

    v em La Parisienne37.

    J no teatro de lngua alem, Hauptmann e Ibsen so referncia para autores como

    Arno Holz, Johannes Schlaf, Ludwig Fulda, Max Dreyer, Max Halbe, Ernest Rosmer (Elsa

    Berstein), Otto Erich Hartleben, Georg Hirschfeld, Arthur Schnitzler e Hermann

    Sudermann38. Mas o dramaturgo que vai importar para a modernizao da dramaturgia

    Frank Wedekind, que segue os passos de Strindberg, aprofundando as sondagens

    psicolgicas em peas como O Despertar da Primavera e A Caixa de Pandora, abrindo

    caminho para o forte movimento expressionista alemo das duas primeiras dcadas do

    sculo XX.

    Na Frana, o bero do naturalismo, vrios dramaturgos que estrearam no Thtre-

    Libre deram continuidade s suas obras, ora mantendo o registro naturalista, ora

    extrapolando-o. Nenhum deles Paul Hervieu, Eugne Brieux, Georges de Porto-Riche,

    Franois de Curel, Henri Lavedan ou Maurice Donnay - sobreviveu ao seu tempo, o que

    37 Cf. Baldo Curato, SessantAnni di Teatro in Italia. Milano: M. A. Denti, 1947, p. 11-30. A pea verista por excelncia, que trata do tema do adultrio, Cavalleria Rusticana (1884), de Giovanni Verga. Mais conhecida hoje pela pera de Pierre Mascagni, o texto em um ato uma pequena obra-prima de observao e reconstituio de costumes e valores de um vilarejo siciliano. A ao se passa num dia de Pscoa, para acentuar o contraste entre a religiosidade das personagens e a brutal exploso da sexualidade, culminando os fatos no assassinato do amante pelo marido trado, num quadro bem delineado de vida campestre. 38 Nenhum deles foi mais bem-sucedido do que Sudermann, que estreou em 1899, com A Honra, pea de forte cunho social, na qual se v a degradao moral de uma famlia pobre, cuja honra comprada por um rico industrial. Em 1893, j diluindo o naturalismo numa frmula comercial, Sudermann ganhou reputao internacional com a pea Heimat (Lar), que correu o mundo com o ttulo Magda, graas ao papel principal que seduziu as principais atrizes da virada do sculo. Sarah Bernhardt e Eleonora Duse, entre outras, viveram a intensa personagem que expulsa de casa aos dezoito anos, porque se recusa a casar com o homem escolhido pelo pai, e volta cidade natal depois de dezessete anos como cantora famosa para acertar as contas com o passado. O feminismo maneira de Ibsen evidente, mas com as devidas concesses a grandes tiradas e frases de efeito. Sobre a dramaturgia naturalista alem, leiam-se: Ludwig Lewisohn, The Modern Drama. New York: B. W. Buesch, 1915, e John Osborne, The Naturalist Drama in Germany. Manchester: Manchester University Press; New Jersey: Rowman & Littlefield Inc., 1971.

  • 24

    significa que no souberam acrescentar aos dados observados da realidade aquela centelha

    de originalidade ou mesmo genialidade na criao dos temas, situaes e personagens39.

    A ideia de que uma pea teatral deve trazer a realidade para o palco, porm indo

    alm da mera fotografia, para captar o que est oculto pela aparncia, seduziu dois dos

    principais dramaturgos do perodo: Bernard Shaw, que dialogou com o naturalismo no

    terreno do teatro social, e Tchkhov, que enveredou pelos aspectos psicolgicos.

    Ambos elegeram Ibsen como modelo, cada um buscando no dramaturgo noruegus

    a poro que interessa para os seus propsitos. Shaw, um socialista convicto, animado pelo

    desejo de reformar a sociedade inglesa, valorizou os dilogos em que avulta o debate de

    ideias. Logo, suas primeiras peas incorporam o olhar naturalista em relao a um dado da

    realidade, mas com um engajamento poltico que no teme o didatismo. Em As Casas dos

    Vivos - representada pelo Independent Theatre de Jack Grein, em 1892 - a denncia da

    explorao da classe trabalhadora se d pelas aes de um slumlord, isto , de um

    homem rico que tira grandes lucros do aluguel de quartos em cortios. Ao mesmo tempo, a

    pea aborda a corrupo dos membros do Conselho do Condado de Londres, pois, como

    confessa o autor no prefcio primeira edio, de 1893, sua inteno deliberada era

    induzir as pessoas a votar nos candidatos progressistas na prxima eleio para o Conselho

    em Londres40.

    A segunda pea de Shaw que se liga ao naturalismo A Profisso da Senhora

    Warren, escrita para o Independent Theatre em 1893, mas proibida de ser encenada na

    Inglaterra at 1925. Antes dessa data houve apenas uma representao privada em 1902.

    Em 1905, Arnold Daly encenou-a em Nova Iorque e o resultado foi a priso de toda a

    companhia dramtica41. Essas informaes do uma ideia do tema explosivo abordado

    pelo dramaturgo, de maneira crua e incisiva: a prostituio. No centro do enredo, a filha

    que descobre o passado da me e a origem do dinheiro que lhe proporcionou uma

    educao esmerada. Shaw afastou-se do naturalismo nas peas que escreveu em seguida.

    No mais faria peas desagradveis, como denominou suas primeiras criaes, mas no

    abandonou o esprito crtico, temperando-o com muito humor e ironia em toda a sua obra,

    que moderniza o teatro de ideias42.

    39 Hervieu e Brieux, por exemplo, tornaram-se pregadores, escrevendo peas didticas, peas de tese, com ntido apelo moralizante. Brieux conseguiu maior projeo com textos virulentos, como Les Avaries (1901), que leva mais longe do que Os Espectros os problemas causados pelas doenas venreas. 40 Bernard Shaw, The Complete Prefaces of Bernard Shaw, London: Paul Hamlyn, 1965, p. 703. 41 Cf. Philip Beitchman, The Theatre of Naturalism. New York: Peter Lang, 2012, p. 45-49. 42 Depois de Shaw, a dramaturgia de lngua inglesa pouco contribuiu para a continuidade do naturalismo. Lilian R. Furst e Peter N. Skrine destacam Strife (1909), de Galswhorthy; The Playboy of the Western World,

  • 25

    Em relao a Tchkhov, vejamos a sua confidncia a A. S. Vishnevsky: Ibsen,

    voc sabe, meu autor favorito e O Pato Selvagem minha pea predileta43. Em A

    Gaivota, O Jardim das Cerejeiras e As Trs Irms o dramaturgo russo combina

    procedimentos do naturalismo e do simbolismo, porque no lhe agradava ficar apenas no

    registro da vida como ela . Para ele, o grande escritor aquele que vai alm, que

    realista, por um lado, mas que por outro acrescenta algo mais em sua obra, fazendo o

    leitor-espectador sentir a vida como deveria ser, alm de v-la como 44. Em outras

    palavras, o que est no horizonte de Tchkhov conciliar a verdade artstica exterior com a

    interior; da a singularidade de suas personagens viverem cindidas entre a realidade

    concreta, mostrada em cena, e o sonho, o devaneio e a fantasia, que revelam suas almas em

    dilogos que mais parecem pequenos monlogos. Naturalismo potico45 a melhor

    definio que se pode dar s peas do escritor.

    Na Rssia czarista, antes de Tchkhov, Tlstoi j havia testado o naturalismo

    teatral com um drama fortssimo, O Poder das Trevas (1886), no qual adultrio,

    assassinato e remorso remetem a Thrse Raquin, de Zola, e a Crime e Castigo, de

    Dostoivski. Mas o autor russo que merece destaque ao lado de Tchkhov Mximo

    Grki. Em outra vertente do naturalismo, que teve em Hauptmann seu grande modelo, ele

    trouxe para a cena, com acentuado cunho poltico, os pequenos burgueses mesquinhos e os

    miserveis do submundo, em peas como Os Pequenos Burgueses (1901) e Ral (1902)46.

    A literatura e o teatro engajados ganham outra dimenso com sua obra que se torna cada

    vez mais ligada causa da revoluo47.

    de Synge; as primeiras peas de Sean OCasey, como Riders to the Sea; e as peas escritas por D H. Lawrence entre 1909 e 1913 A Colliers Friday Night e The Daughter-in-Law. Cf. O Naturalismo. Trad. de Joo Pinguelo. Lisboa: Lysia, 1975, p. 85. 43 Apud Raymond Williams, op. cit., p. 126-127. 44 Apud Christopher Innes, op. cit., p. 137. 45 Idem, p.139. 46 Sobre o teatro russo, Arlete Cavaliere e Elena Vssina. Teatro Russo. Literatura e Espetculo. Cotia: Ateli, 2012. 47 interessante observar que, fora da Europa, o naturalismo de cunho social teve forte repercusso nos Estados Unidos, em peas escritas nos anos de 1920 e 1930. A revoluo russa, a crise do capitalismo em 1929 e os anos da depresso motivaram dramaturgos de esquerda a fazer do teatro uma arma de convencimento e um instrumento de denncia. Cena de Rua (1929), de Elmer Rice; Sem Sada (1935), de Sidney Kingsley; Esperando por Lefty (1935), de Clifford Odets; As Pequenas Raposas (1939), de Lillian Hellman so alguns exemplos de peas que puseram no palco, com realismo intenso, os marginalizados da sociedade, a pobreza dos trabalhadores e os males do capitalismo. No mesmo registro naturalista de crtica social, destacaram-se Jack Kirkland, que adaptou A Estrada do Tabaco (1933), de Erskine Caldweel, para o teatro, e Steinbeck, com De Ratos e Homens (1938). Cf. Don B. Wilmeth e Christopher Bigsby (eds). The Cambridge History of American Theatre Cambridge: Cambridge University Press, 1999, vol 2: 1870-1945; Joseph Wood Krutch. The American Drama since 1918. New York: George Braziller, 1957 e In Camargo Costa. Panorama do Rio Vermelho. So Paulo: Nankin, 2001.

  • 26

    O que se percebe, diante do que foi exposto at aqui, que o naturalismo, iniciando

    o movimento de renovao teatral, ao se opor radicalmente s convenes da pea

    benfeita, ampliou o horizonte dos dramaturgos no final do sculo XIX e incio do

    seguinte, apontando-lhes os caminhos para alterar os velhos procedimentos de composio

    de dilogos, enredos e personagens. Alm disso, foi um movimento marcado pela coragem

    de seus principais autores, que no recuaram diante de temas controvertidos, mas

    importantes para a vida moderna, como sexo, religio, divrcio, reivindicaes sociais e

    polticas, feminismo libertrio.

    Eric Bentley, a certa altura do estudo intitulado As duas tradies do drama

    moderno, transcreve um longo trecho do prefcio que Zola escreveu para a adaptao

    teatral de Thrse Raquin e prope que se compreenda a importncia do naturalismo nos

    seguintes termos: Essas palavras [de Zola] frutificaram na dcada seguinte, quando Henry

    Becque escreveu suas duas grandes peas, quando Os Espectros fez de Ibsen um autor

    conhecido na Europa, quando Andr Antoine fundou o Thtre-Libre expressamente para

    a produo de peas naturalistas. Esse foi o comeo do movimento moderno na

    dramaturgia48.

    A segunda tradio a que se refere Bentley anti-naturalista, representada pelo

    simbolismo, que teve em Maeterlinck seu autor mais representativo, especialmente

    empenhado na construo de uma dramaturgia voltada para a vida interior das

    personagens. Em suas peas, povoadas de silncios e sonhos, desaparece o conflito

    dramtico tradicional e a ao se constri com nuances, meios-tons e atmosfera potica.

    Tambm o expressionismo, j no incio do sculo XX, vir engrossar a fileira da tradio

    anti-naturalista, com suas peas centradas nos sonhos, angstias e vises da vida interior

    das personagens.

    Ora, acompanhando a obra dos principais autores aqui comentados, os criadores da

    modernidade dramatrgica, o que percebemos que o dilogo que mantiveram com o

    naturalismo no os impediu de incorporar aspectos do simbolismo ou sondagens

    introspectivas em suas peas, combinando o que Bentley denomina as duas tradies do

    drama moderno. Se, por um lado, Shaw e Grki preferiram o registro realista do teatro

    social e poltico e o debate de ideias, por outro, Ibsen, Strindberg, Hauptmann e Tchkhov

    trataram de combinar os dados exteriores com a subjetividade das personagens. So

    dramaturgos, nas palavras de Martin Esslin, que descobriram a magia que se esconde sob

    48 Eric Bentley, O Dramaturgo como Pensador, trad. de Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1991, p. 50.

  • 27

    a superfcie aparentemente banal da vida cotidiana, a trgica grandeza das pessoas comuns,

    a poesia dos silncios e das reticncias, a ironia amarga dos pensamentos reprimidos49.

    BREVES NOTAS SOBRE A MODERNIZAO DA ENCENAO TEATRAL

    Antoine (1858-1943) era um jovem ator amador, empregado da Companhia de

    Gs, quando criou o Thtre-Libre, que recebeu esse nome porque iria encenar peas que

    no passariam pela censura. Seu teatro, situado em Montmartre, bairro parisiense bomio e

    artstico, era para assinantes, que pagavam para ver os espetculos de uma temporada. Em

    geral, as peas eram representadas apenas uma, duas ou trs vezes. No era um negcio

    lucrativo, evidentemente, mas Antoine conseguiu manter o Thtre-Libre em atividade

    entre 1887 e 1894, perodo em que apresentou cerca de 120 peas, entre elas, peas de

    Ibsen, Strindberg e Hauptmann.

    Antoine nunca escondeu o quanto devia s ideias de Zola, chegando a afirmar, em

    1890, que nos artigos reunidos no livro Le Naturalisme au Thtre, de 1881, o escritor

    indica a maior parte dos melhoramentos que, oito anos depois, o Thtre-Libre, nas suas

    modestas instalaes, tentou realizar50.

    No primeiro espetculo do Thtre Libre, a encenao de Jacques Damour pea

    tirada de um conto de Zola - revestiu-se, pois, de um significado simblico: Antoine

    recebia a bno de Zola para dar incio a uma revoluo teatral que, inspirada pelo

    naturalismo, deu origem modernidade cnica. Como se sabe, nasce com Antoine a

    figura do encenador moderno. O que significa isso?

    Significa que antes de Antoine no se considerava a encenao como uma arte

    autnoma. O teatro era visto como parte da literatura e o texto sempre valorizado em

    primeiro lugar. Com Antoine, a encenao ganha uma assinatura. Hoje no nos damos

    conta disso quando vamos assistir a um espetculo de Antunes Filho, por exemplo. O

    encenador o artista que sintetiza no espetculo as outras artes que se combinam sobre o

    palco: o texto, a arte do ator, a iluminao, a cenografia, os figurinos etc.

    Antoine inovou ao buscar reproduzir a realidade no palco, por meio de cenrios

    que teriam a mesma funo que as descries do espao romanesco nos romances. Ou seja:

    49 Martin Esslin, Au Del de lAbsurde, trad. de Francoise Vernan. Paris: Buchet-Chastel, 1970, p. 44. 50 Andr Antoine, Le Thtre-Libre. Genve: Slatkine Reprints, 1979, p. 132.

  • 28

    entendia que o cenrio devia ser uma reproduo exata da realidade. Assim, para

    representar uma pea de Ibsen, mandou buscar madeira da Noruega; para representar

    Tlstoi, comprou mveis russos; colocou animais de verdade em cena, fontes jorrando

    gua, feno para uma pea que tinha uma cena num estbulo.

    Na interpretao naturalista o ator vive o seu papel. Antoine exigia a

    metamorfose completa do ator em personagem e entendia a cena como um espao

    fechado, separado da plateia por uma quarta parede, opaca para os atores, que

    poderiam portanto dar as costas ao pblico, uma inovao na poca.

    Tambm a iluminao eltrica importante nos espetculos de Antoine, para

    criar atmosferas de todo o tipo. Antoine foi o primeiro encenador, depois de Wagner, a

    apaga a luz da plateia, exigindo mais ateno do espectador, que muitas vezes ia ao

    teatro para ser visto, no para ver o espetculo

    Enfim, repetindo:: Antoine foi o primeiro encenador moderno. Nasce com ele

    um novo conceito: o espetculo teatral passa a ter uma assinatura, um criador.

    A encenao torna-se uma nova arte.

    O naturalismo teatral sofreu forte oposio do Simbolismo. Maeterlinck

    encontrou em Paul Fort e Lugn-Poe artistas dispostos a levar o simbolismo para a cena.

    Ambos se opuseram a Antoine e o primeiro criou o Thtre dart, em 1891, e o segundo

    o Thtre de lOeuvre, em 1893.

    O palco dos simbolistas era completamente diferente do palco dos naturalistas:

    Palco geralmente nu, sem cenrios que pudessem atrapalhar a poesia do texto. O ator

    tambm se apagava para que a poesia ficasse em primeiro plano. Depois de Maeterlinck,

    o grande autor representado por Lugn-Poe foi Ibsen, que a Frana conhecera pelas

    mos de Antoine, com peas prximas do naturalismo.

    Um bom livro para se conhecer o processo de modernizao cnica A Linguagem

    da Encenao Teatral 1880-1980, de Jean-Jacques Roubine. Rio de Janeiro, Zahar,

    1982.

    O teatro e as vanguardas do comeo do sculo XX.

    - O Futurismo italiano e a linguagem teatral radical: peas curtas, experimentais, sem

    grande conseqncia para a histria do teatro, a no ser a influncia exercida sobre

  • 29

    artistas russos, que criaram o cubo-futurismo. Da, ser Maiakvski, o grande autor

    teatral russo desse momento. J o surrealismo no deu grandes frutos ao teatro. H uma

    tentativa curiosa de Apollinaire, chamada As mamas de Tirsias, na verdade uma

    homenagem a um precursor desse teatro de vanguarda, Alfred Jarry, autor de Ubu-Rei,

    uma farsa pardica que ainda hoje delicia.

    - o Expressionismo na Alemanha: mais fecundo dos movimentos teatrais de vanguarda.

    D continuidade a Strindberg e radicaliza o mergulho no interior do ser humano, para

    apreend-lo em seus momentos de angstia extrema, loucura, tristeza etc. Hasenclever

    (O filho); Sorge (O mendigo); Johst (O jovem). Os autores alemes foram lidos por

    dramaturgos americanos e um deles, Eugene ONeill tornou-se um dos grandes de todo

    o sculo XX, com peas extraordinrias, como Longa jornada noite adentro e O luto

    assenta bem em Electra. No Brasil, Nelson Rodrigues leu ONeill e escreveu Vestido de

    Noiva (1943), uma pea que um mergulho vertiginoso na mente de uma mulher que

    enfrenta problemas conjugais e que se projeta na figura de uma prostituta do comeo do

    sculo. Vamos voltar a isso.

    Desdobramentos.

    No terreno da encenao, as lies dos naturalistas e simbolistas desdobram-se

    em vrias tendncias e criadores. Na Rssia, em Moscou, Stanislavski leva o

    naturalismo s ltimas consequncias, e cria no Teatro de Arte de Moscou uma

    verdadeira escola de interpretao, que seria imitada em todo o mundo. O Actors Studio

    de New York, de Lee Strasberg, leva o mtodo de Stanislavski perfeio, nos anos de

    1950. Apesar disso, j na Russia, Meyerhold contesta Staanislavski em nome de uma

    teatralizao do teatro - que no seja imitao da vida.

    Na Frana, Inglaterra, Sua e Alemanha, multiplicam-se os homens de teatro, os

    encenadores, que daro continuidade ao trabalho dos primeiros encenadores. Surgiro

    tendncias de continuidade do naturalismo, de recusa do naturalismo, de obedincia ao

    texto dramtico e de recusa do texto dramtico. O textocentrismo seduz Copeau, Pitoff,

    Jouvet, Dullin e Vilar. Contra a hegemonia do texto e pela genialidade do encenador:

    Craig, Meyerhold, Baty e Artaud.