Mito Fundador, Narrativas e Historia

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MITO FUNDADOR, NARRATIVAS E HISTÓRIA: A REPRESENTAÇÃO IDENTITÁRIA SULBAIANA EM IARARANA 1 Gisane Souza Santana 2 Resumo O presente trabalho pretende analisar a construção da nação na contemporaneidade a partir dos discursos performático e pedagógico (Bhabha, 1998) no corpus literário de Iararana – poema narrativo de Sosígenes Costa, que narra a formação étnico-cultural do Sul da Bahia, partindo de elementos formadores da identidade nacional, e suscita a discussão sobre o potencial literário em servir como forma de representação de traços da cultura popular que compõem a identidade de um povo. O questionamento que norteará o trabalho busca explicar a narrativa dos mitos fundadores no tempo historicista do discurso pedagógico e as fissuras provocadas no discurso historicista pela contra- narrativa do performático. A análise será feita com base nos conceitos dos teóricos: Anderson(1989); Chauí (2001);Hall (1999); Bhabha (2003); Nestor Canclini (2000). Palavras-chave: Discursos; Identidade; Representação; Literatura. O pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas ao fazê-lo, problematiza toda noção de conhecimento Hutcheon Considerações Iniciais Em torno dos tempos áureos da lavoura cacaueira do Sul da Bahia construiu-se um imaginário que fomentou todo um discurso e um processo de identificação sócio- histórico e cultural de um povo: a Nação Grapiúna. Contribuiu para a realização desse projeto identitário, a Literatura da Região Sul-baiana que, ao estabelecer como temáticas as terras e a Civilização do Cacau, contempla um conjunto de obras e de escritores tidos como autênticos representantes da gente grapiúna dos tempos míticos do cacau. Assim, surge um tipo de literatura regional, de feições próprias, e, por assim 1 Trabalho apresentado no I Encontro Baiano de Estudos em Cultura – EBECULT. 2 Pós-graduada em Literatura Comparada pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC; Integrante do Grupo de Pesquisa Identidade Cultural e Expressões Regionais - ICER/UESC. E- mail: [email protected] . Orientadora: Mari Guimarães.

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  • MITO FUNDADOR, NARRATIVAS E HISTRIA: A REPRESENTAO IDENTITRIA SULBAIANA EM IARARANA1

    Gisane Souza Santana2

    Resumo O presente trabalho pretende analisar a construo da nao na contemporaneidade a partir dos discursos performtico e pedaggico (Bhabha, 1998) no corpus literrio de Iararana poema narrativo de Sosgenes Costa, que narra a formao tnico-cultural do Sul da Bahia, partindo de elementos formadores da identidade nacional, e suscita a discusso sobre o potencial literrio em servir como forma de representao de traos da cultura popular que compem a identidade de um povo. O questionamento que nortear o trabalho busca explicar a narrativa dos mitos fundadores no tempo historicista do discurso pedaggico e as fissuras provocadas no discurso historicista pela contra-narrativa do performtico. A anlise ser feita com base nos conceitos dos tericos: Anderson(1989); Chau (2001);Hall (1999); Bhabha (2003); Nestor Canclini (2000). Palavras-chave: Discursos; Identidade; Representao; Literatura.

    O ps-moderno realiza dois movimentos simultneos. Ele reinsere os contextos histricos como sendo significantes,

    e at determinantes, mas ao faz-lo, problematiza toda noo de conhecimento

    Hutcheon Consideraes Iniciais Em torno dos tempos ureos da lavoura cacaueira do Sul da Bahia construiu-se

    um imaginrio que fomentou todo um discurso e um processo de identificao scio-

    histrico e cultural de um povo: a Nao Grapina. Contribuiu para a realizao desse

    projeto identitrio, a Literatura da Regio Sul-baiana que, ao estabelecer como

    temticas as terras e a Civilizao do Cacau, contempla um conjunto de obras e de

    escritores tidos como autnticos representantes da gente grapina dos tempos mticos do

    cacau. Assim, surge um tipo de literatura regional, de feies prprias, e, por assim

    1 Trabalho apresentado no I Encontro Baiano de Estudos em Cultura EBECULT. 2 Ps-graduada em Literatura Comparada pela Universidade Estadual de Santa Cruz UESC; Integrante do Grupo de Pesquisa Identidade Cultural e Expresses Regionais - ICER/UESC. E- mail: [email protected]. Orientadora: Mari Guimares.

  • dizer originalmente brasileira, j que as histrias do cacau tm por cenrio as terras do

    Descobrimento do Brasil e os municpios circunvizinhos.

    O presente trabalho pretende analisar a construo da nao na

    contemporaneidade a partir dos discursos performtico e pedaggico (Bhabha,1998) no

    corpus literrio de Iararana poema narrativo de Sosgenes Costa, que narra a formao

    tnico-cultural do Sul da Bahia, partindo de elementos formadores da identidade

    nacional. Ou seja, a partir de elementos que remetem miscigenao brasileira,

    Sosgenes se apropria de diversas culturas para expressar uma mtica hibridao cultural

    (CANCLINI, 2003),

    O questionamento que nortear o trabalho busca explicar a narrativa dos mitos

    fundadores no tempo historicista do discurso pedaggico e as fissuras provocadas no

    discurso historicista pela contra-narrativa do performtico. O estudo tomou como

    elemento norteador as concepes da reflexo contempornea nas reas de Literatura

    Comparada e dos Estudos Culturais.

    Sobre o conceito de identidade...

    Discutir a questo da identidade exige a retomada de alguns conceitos que

    permitem que esta seja vista como uma construo discursiva pela qual os indivduos se

    localizam individual e socialmente (Hall, 1999). A partir dessa localizao so

    construdos os sentidos que marcam as caractersticas mais representativas de um povo.

    No temos conhecimento de um povo que no tenha nomes, idiomas ou culturas que em alguma forma de distino entre o eu e o outro, ns e eles, no seja estabelecida.... O autoconhecimento invariavelmente uma construo, no importa o quanto possa parecer uma descoberta nunca est totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos especficos, pelos outros (CASTELLS, 2000 p. 22).

    Castells caracteriza a identidade como o processo de construo de significado

    com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-

    relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(em) sobre outras fontes de significado. Assim,

    entende-se, que operada uma espcie de seleo por parte da sociedade dos atributos

    culturais que devem definir os seus traos distintivos e, a partir dos sentidos conferidos

    a eles pelos indivduos, passa-se a edificar as identidades.

    A identidade , ento, construda a partir de um repertrio cultural que se

    apresenta na sociedade, que pode se expressar como conhecimento cientfico, prticas

  • artsticas ou religiosas. Mas, todos esses materiais so processados pelos indivduos,

    grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em funo de tendncias

    sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua viso

    de tempo e espao. Os grupos sociais remodelam essas prticas e conhecimentos de

    acordo com o propsito dos seus projetos de formao, transformao ou manuteno

    das identidades. Esse aspecto far com que os indivduos enquadrem a produo

    cultural individual e coletiva aos interesses dos projetos comuns da sociedade.

    Estabelece-se a quem est apto ou se interessa a pertencer a determinados grupos de

    acordo com as suas identidades.

    Woodward afirma que com freqncia, a identidade envolve reivindicaes

    essencialistas sobre quem pertence e quem no pertence a um determinado grupo

    identitrio, nas quais a identidade vista como fixa e imutvel (2003, p.13). No

    entanto, ver a identidade como fixa e imutvel corresponde apenas a uma estratgia para

    tentar formar nas conscincias a sensao de homogeneidade que, na verdade, no

    corresponde mais ao conceito ps-moderno de identidade, devido aos processos de

    hibridizao cultural (CANCLINI, 2003).

    O sujeito ps-moderno, segundo Hall, conceptualizado como no tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma celebrao mvel: formada e transformada continuamente em relao s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente uma fantasia. (2005, p. 13).

    A identidade, de acordo com a concepo ps-moderna e enquanto resultado das

    atribuies culturais, vista como uma manifestao muito mais flexvel, uma vez que

    tem sido mais difcil a tarefa de se situar num ambiente mediado e formado por uma

    constante hibridizao cultural (CANCLINI, 2003,p.19). Os sujeitos passam a assumir

    diversas identidades que no mais existem como algo unificado, mas que respondem a

    momentos especficos e a contextos diversificados. Da a necessidade de se formular

    estratgias que permitam que, mesmo com a hibridizao das culturas e formao

    mltipla das identidades, sejam construdos aspectos que renam os indivduos em

    categorias de acordo com algumas caractersticas comuns ao grupo e que permitam que

    esses se sintam como parte de um todo.

    Deve-se encontrar, portanto, formas de se costurar as diferenas decorrentes das

    vrias identificaes, a fim de constituir uma certa homogeneidade capaz de classificar

    os indivduos segundo particularidades que os definam. Para Hall

  • uma forma de unific-las tem sido a de represent-las como a expresso da cultura subjacente de um nico povo. A etnia o termo que utilizamos para nos referirmos s caractersticas culturais lngua, religio, costume, tradies, sentimento de lugar - que so partilhados por um povo.(2005, p. 62).

    Essas classificaes acerca das caracterizaes do povo so fundamentais para

    gerar um agrupamento em torno dos mesmos aspectos culturais que promovero as

    impresses de homogeneidade. A unicidade mostra-se a como uma marca que rene os

    requisitos que cada indivduo deve conter para que nasa a sensao de pertencimento a

    uma cultura.

    Perceber a identidade como processo que emerge de atributos culturais crucial,

    portanto, para a compreenso do papel que as representaes tm na edificao dos

    sentidos que compem as identidades. Assim, possvel dizer que s a partir da

    representao ser possvel conceituar a identidade nacional explicando a sua

    importncia nas sociedades contemporneas, nos domnios cultural e social. Nesse

    contexto, a cultura, enquanto expresso da produo de bens simblicos que definem as

    identidades surge como uma sntese de representaes capazes de produzir as

    identificaes dos sujeitos com o meio no qual est inserido.

    Dessa forma, a literatura adquire o status de representao identitria cujo

    funcionamento age como fonte de significados e suscita a abordagem dos aspectos

    culturais da sociedade a que se refere. A partir dessa abordagem pode-se inferir que a

    construo de traos caractersticos que compem as identidades so provenientes das

    representaes que abarcam e sintetizam os elementos da cultura. A representao

    literria estudada, por exemplo, apresenta o potencial de retratar com grande riqueza os

    aspectos da cultura regional, permitindo que a identidade seja consolidada a partir de

    sua dimenso local.

    Antes que se perceba imerso numa cultura universal, na qual se experencia um

    contato mais ntimo com outros ambientes culturais, o sujeito precisa se centrar num

    contexto local para encontrar os referenciais que interferem de forma mais contundente

    na sua individualidade: Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um pas, uma

    cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que compartilhado pelos que

    habitam esse lugar se tornasse idntico ou intercambivel (Canclini, 2003, p. 190). As

    identificaes com os fatores sociais formam-se primeiro nos espaos cujas identidades

    so mais facilmente constitudas, ou seja, a formulao da identidade se processa

    inicialmente em referncia ao contexto local. As produes culturais das comunidades

  • passam a ter maior relevncia por refletir mais diretamente as caractersticas que se

    relacionam aos grupos sociais locais. Isso refora tambm a idia de que a nao uma

    comunidade simblica

    Outro aspecto relevante que se refere aos produtos culturais que visam a

    reafirmao das identidades que estes funcionam, ainda, a partir de algumas

    estratgias a fim de situar as origens de um povo atravs de narrativas que agem como

    mitos fundadores ou lendas de tradio oral, construindo os sentidos que compem as

    identidades (Bhabha, 1998,p.56).

    Esse aspecto se verifica, assim, na literatura, na cultura popular atravs de

    estratgias discursivas que objetivam gerar a noo de continuidade, de intemporalidade

    e de tradio inventada (Hobsbawm, 1997) fato observvel em Irarana. A crena em

    um passado imaginado comum a todos orientam os indivduos na histria de formao

    da sua coletividade e preenchem de sentidos suas identidades, trazendo assim a idia de

    comunidades imaginadas

    imaginada porque os membros at das menores naes nunca chegam a se conhecer mutuamente. [...] imaginada como soberana porque o conceito nasceu numa era em que o Iluminismo e a Revoluo destruam a legitimidade do reino dinstico hierrquico, ordenado pelo poder divino. [] imaginada como comunidade porque a nao sempre concebida como um profundo companheirismo horizontal (ANDERSON, 1989,p.6-7)

    Dessa maneira, a partir da produo cultural possvel que as pessoas de determinado

    local sintam-se agregadas, compartilhando modos de se comportar e pensar,

    vivenciando um sentimento de cultura partilhada.

    A inveno histrica da nao, enquanto Estado poltico, deslocou o termo

    povo, utilizado para se referir s pessoas que nasceram num mesmo lugar. Para Homi K.

    Bhabha, o conceito de povo

    consiste em objetos histricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no pr-estabelecido ou na origem histrica constituda no passado; o povo consiste tambm em sujeitos de um processo de significao que deve obliterar qualquer presena anterior ou originria do povo-nao para demonstrar os princpios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente atravs do qual a vida nacional redimida e reiterada como um processo reprodutivo. (1998, p. 206).

    Nessa viso, o povo, como um conceito de massa homognea, aparece enquanto

    estratgia retrica de persuaso, que tem como fim a construo pedaggica de uma

  • coeso social. Contraditoriamente, o povo, no discurso performtico, representado

    enquanto sujeito da nao, aquele que a constitui. Portanto, o conceito de povo uma

    pea fundamental de articulao dos discursos ambivalentes da nao.

    O tempo duplo e cindido nos discursos ambivalentes da nao

    O terico Homi K. Bhabha prope a (re) escrita da histria da moderna nao

    ocidental, considerando as questes acerca da temporalidade da escrita. semelhana

    daquela passagem do tempo, representada pela ampulheta na mo do deus grego, a

    escrita da nao baseou-se num tipo de temporalidade historicista, horizontal, um

    conceito de tempo no qual acontecimentos so apresentados em sua historicidade fixa.

    O evento, com princpio e fim determinados, converte-se numa sucesso de aes presas

    a uma historicidade linear: a equivalncia linear entre evento e idia, que o

    historicismo prope, geralmente d significado a um povo, uma nao ou uma cultura

    nacional, enquanto categoria sociolgica emprica ou entidade cultural holstica.

    (BHABHA, 1998, p. 200).

    Nesse conceito de temporalidade estaria contemplado como evento histrico

    apenas aquele acontecimento que correspondesse idia previamente fixada. A nao,

    na narrativa temporal do historicismo, se converte num nico olhar sobre o

    acontecimento, como sendo capaz de represent-lo em sua amplitude. A escrita da

    nao, nessa temporalidade homognea e vazia, relega os eventos no contemplados

    pela idia s bordas e margens da escrita da nao.

    Escrever a nao a partir de suas margens e bordas exige um outro tipo de

    temporalidade, distinto daquela linearidade proposta pela viso historicista e pelo

    holismo cultural. Essa escrita da nao, a partir das margens, prope que se considere

    temporalidades diversas e mltiplas, levando-se em conta as escritas que foram

    silenciadas pelo conceito de comunidades imaginadas (ANDERSON,1989). Uma

    temporalidade na qual as diversas manifestaes culturais sejam consideradas, um

    tempo sem incio nem fim, a exemplo da emblemtica serpente na mo do deus Kronus,

    cujo movimento circular permite uma viso em totalidade do corpo representado

    espao sem lugares, tempo sem durao (ALTHUSSER apud BHABHA, 1998, p.

    202).

    Na temporalidade disjuntiva da ps-modernidade, proposta por Bhabha, a escrita

    da nao requer um tipo de duplicidade ambivalente que contemple os eventos e

    narrativas que ficaram margem da escrita monolgica do historicismo e de seu tempo

  • homogneo e vazio; um tempo ambivalente que move a escrita da nao para outro

    lugar, no qual fragmentos e retalhos de significao cultural so incorporados s

    narrativas da nao.

    Em Iararana, Sosgenes apresenta a colonizao em seu aspecto ambivalente

    veio da Oropa o danado a descobrir este rio ... e se chamou dono da gente, essa

    escrita dupla apresentadas nesses trechos permite que sejam contemplados os outros

    aspectos e as dissonncias do evento histrico o herosmo do colonizador e a (des)

    construo do heri nacional vistos a contrapelo (BENJAMIM, 1994),

    desmistificando e desconstruindo o discurso monolgico da nao. Essa escrita

    ambivalente da nao, constri uma outra temporalidade narrativa a temporalidade

    disjuntiva-, baseada na ciso entre a temporalidade continusta e cumulativa do

    pedaggico e a estratgia repetitiva, recorrente do performativo. nesse processo de

    ciso, que a escrita ambivalente torna-se o lugar de escrever a nao.

    Sosgenes Costa ao reunir discursos hbridos e ambivalentes e ao revelar outras

    vozes narrativas, como a dos ndios, animais, o esprito da mata, figuras folclricas e

    mitolgicas, questiona e/ou mina os conceitos de hegemonia, pureza e de nao

    homognea traduzido na metfora do muitos como um, que universaliza as experincias

    e move-se para outro topos no qual as experincias individuais so valorizadas como

    integrantes de uma coletividade.

    Partindo da literatura produzida por colonizados e colonizadores, Bhabha discute

    a narrao da nao atravs de discursos que considera hbridos e ambivalentes.

    Apresentando diferentes tradies de escrita, o autor enfoca seu estudo na ciso da

    narrativa historicista, representativa do povo, enquanto presena histrica a priori,

    linearmente contada, e a narrativa do tempo no-linear que incita uma dialtica entre

    diversos momentos histricos da cultura sempre no instante presente. Atravs dessa

    proposta de anlise, Bhabha descreve duas estratgias discursivas presentes no discurso

    de formao da nao: pedaggica e a performtica.

    Todo o esforo empregado em reunir a nao como uma uniformidade, com um

    passado que nunca cessa, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, no

    permite o trabalho da diferena temporal e da compreenso do presente enquanto tal,

    costurando tecidos histricos tradicionais para expressar a acumulao do discurso

    progressista de um todo resulta no historicismo, no conceito de pedaggico, que, por

    sua vez, funda sua autoridade narrativa em uma tradio do povo [...] encapsulado

    numa sucesso de momentos histricos que representa uma eternidade produzida por

  • autogerao (Ibid., p. 209). Esse conceito envolve o anonimato do coletivo em funo

    do todo, tomando o geral como representativo de um territrio. As fronteiras espaciais

    funcionam enquanto agentes legitimadores da tradio de um tempo interior.

    O tempo de escrita da nao, no discurso pedaggico, linear, ou seja, um

    tempo homogneo que no permite a transparncia das fissuras do presente, das vozes

    minoritrias, transformando a comunidade numa representao horizontal do espao. Na

    temporalidade pedaggica, o discurso unificador das vozes dominantes, torna-se uma

    escrita narcsica na qual o todo da nao representado metonimicamente pela parte

    que escreve a Histria oficial.

    Nessa escrita narcsica, o processo de construo da nao derivado apenas do

    trabalho do europeu, branco, cujo processo civilizatrio responsvel pelo

    desenvolvimento da nao. Por isso, o tempo pedaggico marcado pela idia de

    coeso social no presente - muitos como um. Tal temporalidade constituda por idias

    fundamentalmente baseadas num passado historicamente concebido, com uma funo

    nitidamente ideolgica.

    Se o discurso do nacionalismo articula um tipo de narrativa que privilegia a

    coeso social, Bhabha, ao contrrio, procura pensar a nao a partir de suas margens -

    os conflitos sociais e as vivncias das minorias. Assim, o referido autor pensa a nao a

    partir de suas descontinuidades; trata-se de uma recusa da narrativa monoltica da

    nao. O segundo conceito trabalhado por Bhabha - o performtico - caracterstico das

    contra-narrativas3. Isto porque resulta da tessitura dos retalhos descartados pela

    narrativa pedaggica. Esses fragmentos tematizam o particular, uma viso que no

    oferece continuidade discursiva ao projeto nacional como um todo. So silenciados,

    porm permanecem presentes, aptos a desorganizar as estratgias ideolgicas que

    atribuem nao uma identidade essencialista:

    a partir dessa instabilidade de significao cultural que a cultura nacional vem a ser articulada como uma dialtica de temporalidades diversas moderna, colonial, ps-colonial, nativa [...] sempre contempornea ao ato de recitao. o ato presente que, a cada vez que ocorre, toma posio na temporalidade efmera [...] (BHABHA, 2003, p. 215.).

    Esse dilogo temporal ocorre em Iararana, pois a obra rene fragmentos dos

    diversos momentos histricos referidos por Bhabha, sempre na ocasio presente. No

    poema, acontece a articulao dos retalhos (etnias, lnguas, verses para os fatos etc.) 3 As contra-narrativas pertubam aquelas manobras ideolgicas atravs das quais comunidades imaginadas recebem identidades essencialistas (BHABHA,2003, p. 211)

  • que ainda no so inteiramente comportados pela narrativa tradicional. A voz de

    personagens tnicos regionais, atravs da fala dos mitos, intensifica o carter contra-

    narrativo de tornar opacas as fronteiras totalizadoras - tanto reais quanto conceituais

    (Ibid., p. 211), que passam a ser imaginadas com base na contemporaneidade. Quando

    Romozinho canta o coco da tarura, Sosgenes Costa exemplifica a voz de um

    personagem social brasileiro exibindo sua impresso sobre o colonizador, muitas vezes,

    diluda pelo discurso histrico tradicional.

    A filhinha da me-dgua Vai ficar arauaba. to branca que parece Lagartixa descascada Lagartixa tarura Caquende papai-vov (COSTA, s.d., p. 45) (grifo nosso) Menina laranja com ar de raposa E de pata-choca danada de runhe. ----------------------------- Iararana puxou ao cavalo-marinho, No puxou me-dgua que aquela beleza da boca do Bu. Iararana cresceu e tocou a judiar (Ibid., p. 60)

    A apropriao feita por Sosgenes de um arcabouo de termos da lngua tupi

    para descrever o colonizador pelo olhar do colonizado retoma o tempo de escrita das

    outras vozes do nacional, as minoritrias. O aspecto de haver na obra discursos plurais e

    vrias vozes que convivem em um s texto, j suscita a impossibilidade de se ver a

    histria como um discurso unvoco, principalmente quando a mesma voz pode falar

    de distintos ngulos e focalizar de distintas maneiras.

    Assim, a ciso provocada pela escrita ambivalente da nao questiona o

    historicismo, cuja premissa de uma suposta correspondncia linear entre evento e idia

    relegou s margens toda e qualquer Histria que no estivesse contemplada no conceito

    de comunidade imaginada da nao.

    Consideraes finais

    A anlise do texto corroborou para a aceitao de que a cultura local

    enriquecida de significao no s por seu componente histrico, mas por abrigar,

    tambm, aspectos identitrios relacionados formao da civilizao do cacau. Essa

    narrativa fundacional localiza a origem da nao e afirma o pensamento que considera

  • que as identidades nacionais no so como coisas com as quais ns nascemos, mas so

    formadas e transformadas no interior da representao (HALL, 1999, p. 48). No

    mbito da reproduo daquilo que se pensa, esse imaginrio vestido enquanto

    sentimento de nacionalidade e, mais que isso, de localidade da cultura.

    A anlise da teoria dos Estudos Culturais, aliada da obra literria, mostrou-se

    relevante, porque permitiu contemplar uma outra temporalidade de escrita da histria,

    baseada em suas fissuras, performances vividas na clandestinidade porque no so

    representadas na temporalidade vazia do pedaggico. possvel afirmar que, a

    temporalidade continusta, a pedaggica, garante a homogeneidade, na medida em que

    faz aluso a um passado supostamente comum a todos. J a temporalidade da

    performance, permite que os subordinados intervenham no processo de significao e

    alterem as representaes dominantes. Assim, a escrita da nao jamais conseguir

    abolir a diferena, uma vez que as contra-narrativas surgem no nvel performtico.

    Referncias bibliogrficas

    ANDERSON, Benedict. Nao e conscincia nacional. Trad. De Llio L. de Oliveira. So Paulo: tica, 1989. BENJAMIM, Walter.Magia e Tcnica, Arte e Poltica - Obras Escolhidas .So Paulo. Brasiliense,1994. BHABHA, Hommi K. O local da cultura. Trad.: Myriam vila, Eliana Loureno de Lima Reis, Glucia Renate Gonalves. Belo Horizonte: UFMG, 2003. CANCLINI, Nstor Garcia. Culturas hbridas: Estratgias para entrar e sair da modernidade. Trad. Helosa Pezza Cintro, Ana Regina Lessa. 3 ed. So Paulo: Edusp, 2000. CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritria, 1941. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2001. COSTA, Sosgenes. Iararana. So Paulo: Cultrix, s.d.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 3 ed. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 1999.