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MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO:
POLÍTICA, MEMÓRIA, TESTEMUNHO, E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL
Mariana De-Lazzari Gomes
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO:
POLÍTICA, MEMÓRIA, TESTEMUNHO E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL
Mariana De-Lazzari Gomes
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor
em Ciência da Literatura (Literatura
Comparada)
Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto
Nogueira Alves
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro: política, memória, testemunho e a
literatura de Augusto Boal
Mariana De-Lazzari Gomes
Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)
Aprovada por:
______________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves
______________________________________________________
Prof. Doutora Priscila Saemi Matsunaga - UFRJ
_______________________________________________________
Prof. Doutora Flávia Trocoli - UFRJ
_______________________________________________________
Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus - UFRJ
_______________________________________________________
Prof. Doutor José Víctor Regadas Luiz - FIOCRUZ
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
Não existe revolução sem cronista, assim como não existe cronista sem história. Faço
história pelo viés da memória e do afeto.
Sílvio Tendler.
À Anna, para que eu possa ajudar a escrever sua vida e a vivê-la.
AGRADECIMENTOS
E compreendo melhor por que é que tive há
pouco tantas dificuldades em começar. Sei agora
qual é a voz que eu gostaria que me precedesse,
que me conduzisse, que me convidasse a falar e
que se alojasse no meu próprio discurso. Sei o
que é que havia de temível em tomar a palavra,
dado que o fazia neste lugar, onde o escutei, e
onde ele já não está para me escutar.
Michel Foucault, em A ordem do discurso.
Em sua lição inaugural no Collège de France, Foucault assume sua dificuldade de
tomar a palavra no mesmo espaço onde aprendeu com seu professor, Jean Hyppolite, que
já não mais estava lá.
Assim como fez Foucault, desejei que a voz do Boal me precedesse, me conduzisse
e que se alojasse em meu discurso, porque ele, também, já não está aqui para me ouvir.
Tentei. Se consegui, não sei. Ainda assim, a filha da costureira agradece ao filho do
padeiro a oportunidade de me libertar para exercer um pensamento político-ideológico-
intelectual em um cenário também político-ideológico-intelectual de tantos retrocessos
como se encontra o Brasil de 2018.
Além da de Boal, outras vozes me precederam, alojaram-se no meu discurso, me
acompanham e me conduzem:
Meus pais, irmãos e irmã, tias Neusa e Tereza, primas Fernanda e
Marcela: cada um a seu modo, contribuiu para que eu aprendesse a defender minhas ideias.
Quebraram – e quebram! – a minha velha carcaça de 44 anos da mais genuína teimosia.
Amigas, Maria Rita, Cínthia e Carla: acalorados debates tanto na
esfera privada quanto na acadêmica.
Ronaldo, amante-amigo à moda antiga, que refuta quase todos os
meus argumentos e mantém o equilíbrio nos momentos de tensão radical.
Luís Alberto, carinhosamente apelidado por mim de LA, orientador,
a quem atribuo os melhores diálogos político-ideológicos-artísticos dos últimos tempos e a
quem devo eterna gratidão por ter assumido o desafio de me orientar já na metade do
processo de doutoramento.
Eduardo Mattos Portella, orientador inicial, que apostou em mim:
generosidade sem tamanho, mesmo diante das nossas diferentes linhas de pensamento.
Sirlei Dudalski, orientadora no mestrado, que me apresentou a
Poética do Oprimido e fez valer a pena mudar de projeto.
Cecília Thumin Boal, cuja disponibilidade para ser entrevistada foi
decisiva e essencial para a elaboração desta tese.
No mais, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), pelo auxílio financeiro a esta pesquisa, e ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que me
recebeu e me proporcionou concluir este trabalho.
RESUMO
MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLÍTICA, MEMÓRIA,
TESTEMUNHO E A LITERATURA DE AUGUSTO BOAL
Mariana De-Lazzari Gomes
Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).
Esta pesquisa aborda, sob a perspectiva do testemunho e da memória, a literatura de
Augusto Boal, cujo recorte se centra nas experiências de violências oriundas do golpe
civil-militar brasileiro de 1964. Considerou-se, portanto, que sua práxis fez frutificar uma
vasta produção política, teórica e artística que abre caminho para refletir sobre a realidade
brasileira em suas mais profundas contradições sociais, políticas e ideológicas. O trabalho
tem como foco principal as análises da obra Milagre no Brasil – testemunho - e dos
capítulos finais de Hamlet e o filho do padeiro – memórias -, no que diz respeito a traçar a
trajetória do artista Boal e de suas experiências de violências. Nesse contexto, a discussão
encontra solo firme no terreno da História e coloca Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do
padeiro como obras fundamentais para a depuração de um movimento estético-político,
permitindo questionar por que a arte de resistência tornou-se, hoje, um legado
memorialístico destituído do projeto político que a motivou, bem como pode lançar luz a
futuras pesquisas que possam avançar nas mediações necessárias para problematizar as
coincidências entre os sucessivos golpes políticos desferidos contra a sociedade brasileira.
Palavras-chave: Augusto Boal, Política, Testemunho, Memória, Literatura.
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
ABSTRACT
MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLITICS, MEMORY,
TESTEMONY AND THE LITERATURE OF AUGUSTO BOAL
Mariana De-Lazzari Gomes
Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves
Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).
This research deals with the literature of Augusto Boal, under the perspective of
memory and testemony, posessing a focus point that centers around the violence originated
from the Brazilian military coup of 1964. Considering, therefore, his práxis as a spawning
factor for a vast production of political, theoretical and artistical productions that opened
paths of reflection about Brazilian reality in its most deep and striking social, political and
ideological contradictions. The research has as a main focus the analysis of the work
Milagre no Brasil – testemony – and the final chapters of Hamlet e o filho do padeiro –
memories –, regarding Boal’s trajectory and his experiences with violence. In such context
the discussion finds firm ground on the terrain of history and sets Milagre no Brasil and
Hamlet e o filho do padeiro as fundamental works in order to depuration of an aesthetic-
political movement, enabling questions with regards as to why art, as a resistence practice,
became today a memorialistic legacy destitute of the political project that was once its
original motivation, as well can to illuminate future research that might advance at the
necessary mediations to discuss the similarities between the successive brandished political
coups against Brazilian society.
Keywords: Augusto Boal, Politics, Testemony, Memory, Literature.
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
RESUMEN
MILAGRE NO BRASIL E HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: POLITICA, MEMORIA,
TESTEMONIO Y LITERATURA DE AUGUSTO BOAL
Mariana De-Lazzari Gomes
Orientador: Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves
Resumen da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).
Esta investigación aborda, desde la perspectiva del testimonio y de la memoria, la
literatura de Augusto Boal, cuyo recorte se centra en las experiencias de violencias
oriundas del golpe civil-militar brasileño de 1964. Se consideró, por lo tanto, que su praxis
hizo fructificar una vasta producción política, teórica y artística que abre el camino para
reflexionar sobre la realidad brasileña en sus más profundas contradicciones sociales,
políticas e ideológicas. El trabajo tiene como foco principal los análisis de la obra Milagre
no Brasil - testimonio - y de los capítulos finales de Hamlet e o filho do padeiro -
memorias -, en lo que se refiere a trazar la trayectoria del artista Boal y de sus experiencias
de violencias. En ese contexto, la discusión encuentra suelo firme en el terreno de la
Historia y coloca a Milagro en Brasil y Hamlet y al hijo del panadero como obras
fundamentales para depurar un movimiento estético político, que permite cuestionar por
qué el arte de resistencia se ha convertido hoy en un legado memorialístico destituido del
proyecto político que la motivó, así como puede arrojar luz a futuras investigaciones que
puedan avanzar en las mediaciones necesarias para problematizar las coincidencias entre
los sucesivos golpes políticos desechados contra la sociedad brasileña.
Palabras clave: Augusto Boal, Política, Testimonio, Memoria, Literatura.
Rio de Janeiro
Agosto de 2018
LISTA DE SIGLAS
AI-5 – Ato Institucional Número 5
ALN – Aliança Libertadora Nacional
CIE – Centro de Intervenções do Exército
CNV – Comissão Nacional da Verdade
CPC – Centro Popular de Cultura
DEOPS – Departamento Estadual de Ordem Política e Social
DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa
Interna
EAD – Escola de Arte Dramática
OBAN – Operação Bandeirantes
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PC do B – Partido Comunista do Brasil
PT – Partido dos Trabalhadores
SIAN – Sistema de Informação do Arquivo Nacional
SNI – Serviço Nacional de Informações
TBC – Teatro Brasileiro de Comédia
TO – Teatro do Oprimido
TPE – Teatro Paulista do Estudante
UNE – União Nacional dos Estudantes
VPR – Vanguarda Popular Revolucionária
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 15
1.1 Pressupostos iniciais 18
2 POLÍTICA E CULTURA 24
2.1 Cultura e condições materiais de existência 24
2.2 Política, cultura e resistência 28
3 MILAGRE NO BRASIL: PARA NÃO ESQUECER DE LEMBRAR 47
3.1 O estatuto do testemunho 47
3.2 Ele ia para casa comer milanesas... 55
3.2.1 Ato I - O incomunicável 57
3.2.1.1 Cena I 57
3.2.1.2 Cena II 59
3.2.1.3 Cena III 63
3.2.1.4 Cena IV 64
3.2.1.5 Cena V 67
3.2.1.6 Cena VI 68
3.2.2 Ato II – O incomunicável comunicável 70
3.2.2.1 Cena I 70
3.2.2.2 Cena II 73
3.2.3 Ato III – Eu queria dizer alguma coisa que não fosse triste 77
3.2.3.1 Cena final 77
4 HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: PARA LEMBRAR DE NÃO ESQUECER 82
4.1 O estatuto da memória 82
4.2 Memórias imaginadas? 84
4.2.1 Sobre Kafka e milanesas 87
4.3 Estrangeiro para si mesmo 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS 108
REFERÊNCIAS 112
APÊNDICE 119
ANEXOS 123
14
São criminosos os fabricantes irresponsáveis de
comedietas idiotas que, segundo a publicidade,
“até parecem italianas”. Estes são criminosos e
não são artistas porque arte é sempre
manifestação sensorial da verdade e não estará
dizendo a verdade o artista que constantemente
ignore a guerra de genocídio no Vietnã, ignore o
lento assassinato pela fome de milhões de
brasileiros no Norte, no Sul, no Centro, no
Nordeste e no Centroeste – Estas são verdades
nacionais e humanas que nenhuma mensagem
presidencial, por mais esperta que seja, fará
esquecer.
Augusto Boal, Que pensa você da arte de
esquerda?, 1968.
15
1 INTRODUÇÃO
Você é um artista engajado? Eu falei: não, eu
sou um cidadão engajado. Como eu sou um
cidadão engajado, é claro que, como artista, a
minha arte não vai ser etérea, então eu tenho que
trabalhar e pensar na realidade na qual eu vivo.
Eu acho que todo mundo tem que ser engajado,
todo cidadão que vive em sociedade. Eu sempre
digo que viver em sociedade não é andar por aí.
Isso é vegetar em sociedade. Eu acho que o
verdadeiro cidadão não é o que vive em
sociedade, é aquele que transforma a sociedade.
Augusto Boal.
O Humanismo, a necessidade da arte e a coragem para enfrentar as revoluções
marcaram as gerações do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial, artistas,
guerrilheiros e revolucionários se pautaram na mobilização social e cultural. Diversos
intelectuais europeus manifestaram seu apoio e simpatia pela dinâmica dos movimentos de
independência dos países do chamado Terceiro Mundo.
No Brasil do final dos anos 50 e início da década de 60, música, cinema, literatura,
teatro e movimentos sociais foram conquistados por essa dinâmica e pela necessidade de
uma cultura nacional. Abriu-se um campo efervescente para se debater o modo como a
cultura brasileira era idealizada. O debate era embasado na idealização de uma cultura
nacional e popular, segundo a qual caberia a todas as manifestações artísticas resgatar o
povo brasileiro das garras do imperialismo norte-americano e do capitalismo. O ensaio
Cultura e política, 1964-1969, de Roberto Schwarz, registra as condições históricas que
gestaram essa discussão:
O aliado principal do imperialismo e, portanto, o inimigo principal da esquerda,
seriam os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio,
contra o qual deveria erguer-se o povo, composto por todos aqueles interessados
no progresso do país (SCHWARZ, 1978, p. 13).
Novos atores entram na cena política: os camponeses. A batalha pela reforma
agrária ganha contornos artísticos em canção, prosa, verso, telões e dramaturgia. Para que
16
aflorasse essa cultura nacional-popular, era necessário levar a arte até o povo. Importa
destacar que a ideia do nacional-popular tinha estreito vínculo com as proposições do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e era entendida como uma tomada de consciência
revolucionária, de acordo com o que ressalta Ferreira Gullar, em Cultura popular (1980):
A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira.
Cultura popular é compreender que o analfabetismo, como o da deficiência de
vagas nas Universidades, não está desligado da condição de miséria do
camponês, nem da dominação imperialista sobre a economia do país. Cultura
popular é compreender que as dificuldades por que passa a indústria do livro,
como a estreiteza do campo aberto às atividades intelectuais, são frutos da
deficiência do ensino e da cultura, os quais são mantidos como privilégios de
uma reduzida faixa da população. Cultura popular é compreender que não se
pode realizar cinema no Brasil, com o conteúdo que o momento histórico exige,
sem travar uma luta política contra os grupos que dominam o mercado
cinematográfico brasileiro. É compreender, em suma, que todos esses problemas
só encontrarão solução se se realizarem profundas transformações na estrutura
socioeconômica e, consequentemente, no sistema de poder. Cultura popular é,
portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária (GULLAR, 1980, p.
84).
É nesse contexto de efervescência política e cultural que entra em cena Augusto
Boal. Convidado a fazer parte do grupo do Teatro de Arena, que se caracterizava como
teatro revolucionário, Boal, de fato, revoluciona a dramaturgia, tanto no aspecto formal
quanto conteudístico. Agora, a personagem principal das peças era o trabalhador, sua vida,
suas lutas. No palco, levantavam-se questões acerca da importância do protagonismo do
proletariado. O Arena propunha não só um teatro de conscientização popular como
também lutava para oportunizar o acesso a essa estética politicamente engajada àqueles
que antes não viam possibilidades de frequentar o teatro.
Em 1964, o presidente João Goulart (Jango) sobe nos palanques das reformas
sociais e é deposto por um golpe civil-militar, que visava interromper a consciência
revolucionária político-social em curso. Uma marcha reacionária, chamada pelos golpistas
de “revolução”, se instaura no Brasil. Segundo o próprio Boal, a primeira medida da
ditadura brasileira foi interditar o setor cultural: Centro Popular de Cultura (CPC), ligas
camponesas, sindicatos, uniões estudantis e qualquer forma de diálogo:
Notícias davam conta: o exército, estacionando tanques no meio-fio; a marinha,
ancorando navios ao largo; a aeronáutica, aterrissando onde havia pista; tinham
abandonado seus deveres militares e se convertido em força policial.
17
Vasculhavam, atrás de nós e do povo. Quem, alguma vez, tivesse dito coisa que
pudesse ser aparentada a pensamento assemelhado à esquerda – exemplo, a
afirmação de que comunista não comia criancinha e, caso comesse, não seria na
Praça Vermelha, em público festim! – era preso e levado para navios adaptados
ao propósito carcerário, quartéis, prisões comuns ou delegacias de bairro. Onde
houvesse porta e cadeado, aí se encerravam presos (BOAL, 2000, p. 221).
O golpe de 64 obstruiu um dos períodos maior desenvolvimento do teatro brasileiro
em sua feição estético-política, que propunha a dramaturgia enquanto decorrência de um
exame dialético da realidade, de modo que o fazer artístico pudesse intervir nessa realidade
para modificá-la. A resposta ao golpe se deu tanto pela proposta de luta armada quanto
pela representativa resistência cultural de militância política.
1968 também é um ano de luta. Em 13 de dezembro, o Ato Institucional nº 5 (AI-5)
fecha o Congresso, caça mandatos, prende, exila e censura. A frente ampla de oposição é
proibida. Era preciso derrubar a ditadura, reconquistar os direitos usurpados, reconquistar a
liberdade nas universidades e nos sindicatos, nos palcos, nas telas. De acordo com Luiz
Paixão Lima Borges (2015), o teatro, em virtude dessa feição estético-política adotada, foi
a mais perseguida das artes.
Ao longo de todo o período de obscurantismo e perseguições políticas, o teatro
procurou formas, as mais diversas, para escapulir das garras do monstro da
Censura Federal, e dizer, viva voz, o que pensava. Sem medo e sem se intimidar,
trouxe para a cena discussões profundas e fundamentais, denúncias severas e
críticas mordazes ao regime; lançou mão da metáfora e da parábola como seus
principais recursos; às vezes, situando a ação dramática em outro tempo e
espaço, ou mesmo criando situações absurdas, mostrou os desmandos cometidos
pelo regime de força. O engajamento da dramaturgia se fez sentir de maneira
clara e determinada (BORGES, 2015, p. 28).
Mesmo diante de tantas perseguições políticas, os artistas engajados acreditavam no
teatro como um instrumento que buscava apresentar e compreender o homem brasileiro e o
resultado do conflito entre suas possibilidades e necessidades. Muitos desses artistas
pagaram o preço de desafiar a ditadura com prisão, tortura e exílio, mas responderam com
suas artes, como foi o caso de Augusto Boal.
Recorrendo a essa sucinta configuração do que constituiu, politicamente, esse
processo de resistência cultural de significativa militância política, o que fica claro é que
produções artístico-literárias nas quais as temáticas se centram em narrar qualquer tipo de
18
barbárie, como perseguições, torturas e genocídios em regimes autoritários, permitem
refletir sobre a importância dessas obras enquanto registros testemunhais e memorialísticos
que problematizam, na América Latina – e, sobretudo, no Brasil -, a normalização de um
passado histórico violento que acoberta as injustiças sociais.
A partir dessa breve apresentação das condições históricas que impulsionaram toda
uma ideologia estético-política, calcada no signo de uma arte coletiva e transformadora da
realidade social, apresento os pressupostos da pesquisa.
1.1 Pressupostos iniciais
Diante de uma realidade teatral ainda influenciada pela cultura europeia, Boal, após
sua entrada para o Teatro de Arena, junto a Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha,
Gianfrancesco Guarnieri e outros, buscou uma dramaturgia com fortes significados sociais,
que se aproximasse do cotidiano popular. Em meados da década de 1950, o teatro
brasileiro consegue definir as circunstâncias para desenvolver sua dramaturgia, voltada
para o debate dos problemas mais profundos do povo brasileiro.
Gestar uma proposta teatral que ultrapassasse o divertimento e fosse um meio de
análise social foi sempre o objetivo desse dramaturgo inquieto e convencido de suas
propostas. Dono uma profunda consciência marxista e arguto observador da realidade, ele
esmiuçou as contradições sociais e produziu uma obra comprometida com a luta pela
transformação social. Dessa forma, participou dos mais importantes movimentos culturais
dos anos 50 e 60, levando a eles reflexão e crítica, seja em termos de conteúdo ou de
forma. Sua práxis teatral mais conhecida é o Teatro do Oprimido (TO), cuja metodologia
foi sendo concebida durante o período em que dirigiu o Arena, passando pela censura,
prisão, tortura e exílio político.
Portanto, o projeto inicial era resgatar três peças do Boal - Torquemada, de 1971;
Tio Patinhas e a pílula, de 1974; e Murro em ponta de faca, de 1978 -, todas produzidas
em tempos de censura, tortura e exílio após o golpe civil-militar brasileiro de 64. Tomando
como fios condutores a memória e a performance, a estreita a relação entre o Boal
dramaturgo e o Boal teórico da dramaturgia, a ideia era a de mapear a importância da
articulação entre elementos estéticos e momento histórico-social, em que este momento
adquiriu relevância sobre a forma como se estruturaram essas três peças.
19
No intercurso das disciplinas obrigatórias do doutorado, porém, tive um contato
mais aprofundado com os debates sobre o testemunho na literatura, que – conforme já
apontei anteriormente - problematizam, especialmente na América Latina, a normalização
de passados históricos de perseguições, torturas e genocídios em regimes autoritários.
Produções literárias cujas temáticas se centram em narrar essas barbáries são importantes
registros testemunhais e memorialísticos que permitem questionar o processo de
esquecimento em relação aos horrores praticados durante esses eventos.
Por causa do contato com o testemunho na literatura, minha memória acionou duas
obras do Boal que abordam suas violentas experiências relativas ao tempo do golpe civil-
militar de 64: Milagre no Brasil, escrito no exílio, após prisão e tortura, e publicado em
1979, e Hamlet e o filho do padeiro, de 2000, que resgata, em seus últimos capítulos, as
experiências relatadas em Milagre no Brasil. O recorte dos últimos capítulos feito em
Hamlet e o filho do padeiro é amparado pelos dois sentidos do testemunho, conforme
detalho no primeiro capítulo. Portanto, no que se refere a Hamlet e o filho do padeiro,
leiam-se os capítulos 17 a 25.
Em relação aos objetos escolhidos para a pesquisa, saliento que não se trata de
relegar a obra dramatúrgica de Boal a um segundo plano. Trata-se, antes de tudo, de trazer
à tona essas obras tão relevantes porque elas manifestam uma dimensão da sua arte que,
embora não sendo estritamente dramática, constitui-se de importantes relatos cujos
significados e alcance se articulam com sua dramaturgia e com seus posicionamentos
teóricos e políticos.
O objetivo, então, foi o de colocar esse intelectual/dramaturgo na cena da
literatura, em uma tentativa de demonstrar os caminhos que seu testemunho e suas
memórias - assim como o TO – abriram para denunciar um regime que, em sua
propaganda, “salvou” o Brasil do terror do comunismo, mas que, em seus porões, garantiu
a sobrevivência de 20 anos de um Estado ilegítimo, consolidado sob a força bruta e o
silêncio dos seus cidadãos, bem como pela tentativa de apagamento de um período
histórico que perseguiu, encarcerou, torturou, exilou e matou.
O argumento central que norteou todo o processo de elaboração da pesquisa foi a
percepção de que a produção política, teórica e artística de Boal se alarga para além do TO:
Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro são obras emblemáticas, em cujo centro a
política se evidencia, mas que, de modo algum, se dissociam nem de suas peças nem de
sua incursão pela teoria do teatro. Pelo contrário, são relatos calcados no estatuto político
20
da arte e abrangem uma proximidade com os despatriados de qualquer época ou lugar,
como tantas outras deflagradas em todo o mundo e muito mais conhecidas e estudadas no
Brasil que o próprio Boal.
Sobre isso, Iná Camargo Costa, em um círculo de palestras sobre Boal, pronuncia:
Penso que ainda vamos esperar por alguns anos para definir a importância, a
estatura da obra de Augusto Boal no teatro brasileiro. O Izaías falou sobre a
surpresa dele numa livraria de Londres com o número de livros editados em
inglês sobre Boal... Eu desafio aqui a qualquer um de vocês a ir a qualquer
livraria brasileira e lá encontrarem três livros do Boal ou sobre o Boal...
(COSTA, 2012)1.
Tendo em vista a relevância do argumento, em ambas as obras, as referências para
a sua condução foram os estudos sobre o teor testemunhal e memorialístico na literatura da
América Latina – especificamente no Brasil –, cujo fio condutor das análises foram as
experiências de violências, uma vez que esse teor testemunhal da arte contemporânea se
estende a narrativas repletas de traços e rastros das experiências catastróficas do século
XX, como as guerras, os campos de concentração e, na América Latina, os regimes
militares, que perseguiram, encarceraram, torturaram e mataram.
No que diz respeito ao regime civil-militar brasileiro, esse boom da literatura de
testemunho deixa uma lacuna: na medida em que não houve uma adequada transição entre
o fim da ditadura e a chamada “abertura” política, também não houve o desenvolvimento
da democracia. Assim, a própria anistia tem sido dissociada da memória e, em virtude
disso, troca-se o reconhecimento pelo esquecimento e as práticas autoritárias, travestidas
de discurso democrático, estendem-se à literatura e mantêm marginalizadas as experiências
de violências de muitos artistas que foram presos políticos, dentre eles Augusto Boal.
Quando não, essas experiências ficam relegadas à categoria de “literatura menor” e
carregam o rótulo de “memórias ficcionais”, como foi, durante muito tempo, caracterizada
Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.
Cabe ressaltar que não foi crucial para a pesquisa uma abordagem teórica sobre os
gêneros aos quais se filiam essas duas obras. A rigor, seu andamento é movido não pelas
1 Esse círculo de palestras ocorreu entre os dias 19 e 22 de junho de 2012, no Teatro Studio 184, em São
Paulo, organizado por Izaías Almada. As transcrições das palestras, bem como de entrevistas, inclusive
realizados com o próprio Boal, encontram-se no livro Teatro de Arena: Uma estética de resistência,
publicado em 2004.
21
tipologias correntes e externas a elas, pois, no caso do Boal, o essencial está na
experiência, isto é, na práxis. É por meio da práxis que Milagre no Brasil e Hamlet e o
filho do padeiro vão adquirindo sentido, bem como definindo sua importância. Assim,
observando a trajetória do artista Boal, a questão se desloca do abstrato para o terreno
concreto da história, o que confere relevância à discussão e convida ao debate.
As experiências de violências, desse modo, permeiam nossa identidade nacional e,
na esteira dessa discussão, os estudos sobre as literaturas que acionam a memória
promovem um recorte nessa construção ideológico-social e colocam foco nas narrativas
dessas experiências de violências, funcionando como espaço, no tempo presente, de relato
do trauma – tal como o testemunho que é Milagre no Brasil - ou mesmo como memórias
desse testemunho – presentes em Hamlet e o filho do padeiro -, o que em muito contribui
para reconstituição de parte da nossa história, qual seja, o tempo do Estado de Exceção
após o golpe civil-militar de 1964, e que têm a dizer muito mais que a historiografia dita
“oficial”.
Para esse contexto de pesquisa, em razão da análise que me propus a fazer, a
expressão poéticas políticas adquire bastante relevância, uma vez que o estético e o social
estão em uma relação de mútua subordinação, numa clara vinculação da produção artística
a uma opção político-ideológica. Em outras palavras, se a realidade social tem relevância
na composição da obra literária, também a literatura torna-se uma via para desnudar essa
realidade. Assim, além das orientações teóricas, considero também uma relação dialógica
dessas com o materialismo cultural.
O processo de elaboração da pesquisa, então, foi delineado da seguinte maneira: em
primeiro lugar, propôs-se uma discussão acerca da incontestável aproximação entre a
dimensão cultural e as condições materiais de existência, relevantes para pensar a
construção social do Brasil; a abordagem dos percursos teóricos e políticos que ampararam
as análises, englobando o panorama do golpe civil-militar de 1964 e seus impactos na
produção cultural brasileira; e a atuação de Boal nesse panorama.
No segundo momento, busquei reflexões também teóricas e políticas acerca das
narrativas que abordam as experiências de violências, na perspectiva do testemunho e da
memória.
Traçados esses caminhos teóricos e políticos, segue a análise de Milagre no Brasil -
em que Boal dá seu testemunho tanto como sobrevivente quanto como aquele que viu, que
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testemunhou e ainda como testemunha solidária, que se compromete com a experiência de
violência do outro - e de Hamlet e o filho do padeiro, na qual, ao recordar os eventos que o
levaram a escrever Milagre no Brasil, Boal lança mão de uma narrativa de teor
testemunhal, a partir da qual resgata, no tempo presente, memórias da prisão, da tortura, do
exílio e da impossibilidade de retorno.
A escolha por Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro sob a perspectiva do
testemunho e da memória permitiu identificar um entrecruzamento entre memória e
experiência histórica, em que a questão crucial, reafirmo, não se limita aos gêneros aos
quais essas duas obras se filiam, mas sim à práxis: ao analisar a trajetória do artista Boal e
suas experiências de violências, a discussão encontra solo firme no terreno da História e
coloca Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro como obras não só fundamentais
para propalar a depuração de um movimento estético-político, mas também essenciais ao
compromisso ético de reconhecer que o olhar lançado para a história não se isenta de suas
vivências posteriores.
Longe de pretender esgotar essa discussão, que encontra solo firme, mas também
fértil, o que esta tese defende é a pertinência e a atualidade de se discutir a emancipação
enquanto a violência - e suas múltiplas formas de manifestação, físicas e simbólicas -,
perdura, persiste e se transmuta. As obras de Boal, suas posições políticas - depuradas ao
longo do tempo - mostram, ao contrário do senso comum, a importância da luta pela
emancipação. Nenhum regime autoritário que persegue, tortura e mata pode ser apagado da
memória. A ditadura não pode ser tomada como algo positivado.
Em razão disso, o trabalho de pesquisa que aqui se apresenta é antes uma tentativa,
a partir do testemunho e da memória de Augusto Boal, de propor um exercício de reflexão
que abre espaço para questionar por que a arte de resistência tornou-se, hoje, um legado
memorialístico destituído do projeto político que a motivou, bem como para lançar luz,
quem sabe, a futuras pesquisas que possam avançar nas mediações necessárias para
problematizar as coincidências entre os sucessivos golpes políticos desferidos contra a
sociedade brasileira.
23
Os reacionários buscam sempre, a qualquer
pretexto, dividir a esquerda. A luta que deve ser
conduzida contra eles é, às vezes, por eles
conduzida no próprio seio da esquerda. Por isso
nós – festivos sérios ou sisudos – devemos nos
precaver. Nós que, em diferentes graus
desejamos modificações radicais na arte e na
sociedade, devemos evitar que diferenças táticas
de cada grupo artístico se transformem numa
estratégia global suicida. O que os reacionários
desejam é ver a esquerda transformada em saco
de gatos; desejam que a esquerda se derrote a si
mesma. Contra isso devemos todos reagir: temos
o dever de impedi-lo.
Augusto Boal, Que pensa você da arte de
esquerda, 1968.
24
2 POLÍTICA E CULTURA
2.1 Cultura e condições materiais de existência
Frente às mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais pelas quais o mundo
passa, sobretudo desde o século XIX, é importante revisitar o materialismo cultural de
Raymond Williams, proposto em Cultura y sociedad: 1780-1950. De Coleridge a Orwell
(2001)2, principalmente para uma pesquisa que busca trazer à tona o testemunho e as
memórias das experiências de violências de Augusto Boal durante o período de ditadura
civil-militar (Insisto: o olhar lançado para a história não se isenta de suas vivências
posteriores). Para a análise dos escritos dessa “sobrevivência”, torna-se imprescindível
tomar a cultura, em todas as suas nuances, como a literatura, enquanto produto e produção
de um modo de vida social intrinsecamente ligado a uma base socioeconômica:
Una hipótesis esencial en el desarrollo de la idea de cultura es la de que el arte
de un período está estrecha y necesariamente relacionado com el “modo de vida”
dominante en general, y que, en consecuencia, los juicios estéticos, morales y
sociales muestram una íntima interrelación. Esa hipótesis goza hoy de uma
aceptación tan generalizada, como cuestión de hábito intelectual, que no siempre
es fácil recordar que se trata, en esencia, de un produto do siglo XIX. Una de sus
formas más importantes es, por supuesto, la de Marx (WILLIAMS, 2001, p.
119)3.
Assim, Williams conceitua o materialismo cultural como uma necessária
aproximação entre cultura e condições materiais de existência e como uma maneira de
2 Apesar de o princípio norteador da obra ser a descoberta de que a ideia de cultura tem seu início no
pensamento inglês da Revolução Industrial, Williams, no prefácio da segunda edição, diz: já se foram mais
de 25 anos que escrevi Cultura e sociedade. Às vezes, quando o releio todo ou em parte, me parece que é
como ler um livro escrito por outro. Não obstante, foi nele onde encontrei pela primeira vez uma posição que
expressava minha ideia do que havia passado e ainda estava passando na civilização industrial e em sua arte e
em seu pensamento. Desde então desenvolvi e em ocasiões modifiquei determinados aspectos e juízos,
porém não renunciei a minha opinião de que uma das formas fundamentais de entender os dois
extraordinários séculos que mudaram tão enormemente o mundo e que subjazem a sua grande crise atual
consiste em valer-se da reflexão detalhada e completa sobre a cultura que tem sido tão atrativa e vibrante em
todas as suas etapas (WILLIAMS, 2001, p. 9, livre tradução minha). 3 Uma hipótese essencial no desenvolvimento da ideia de cultura é a de que a arte de um período está
próxima e necessariamente relacionada com o “modo de vida” dominante em geral, e que, em consequência,
os juízos estéticos, morais e sociais mostram uma íntima inter-relação. Essa hipótese goza hoje de uma
aceitação tão generalizada que nem sempre é fácil lembrar que se trata, em essência, de um produto da
história intelectual do século XIX. Uma de suas formas mais importantes é, claro, a de Marx (WILLIAMS,
2001, p. 119, tradução minha).
25
resgatar o legado de Marx. Para ele, cumpre reabrir o debate acerca da importância da
emancipação dos oprimidos pela via da cultura, de acordo com a proposta da hegemonia
gramsciana. Em outras palavras, Williams discute que um sistema de produção unicamente
baseado na lei da oferta e da procura reduz os homens tão somente ao papel de mão de
obra disponível, impossibilitando o cumprimento de sua função última como ser humano4,
o que inviabiliza, por consequência, a produção cultural em comum, em virtude dos
interesses dominantes veiculados na esfera do que esses interesses entendem por “cultura”.
O desenvolvimento da palavra cultura é um registro de várias reações importantes a
grandes mudanças históricas na vida social, econômica e política. Esse desenvolvimento
mescla duas respostas: primeiro, o reconhecimento da separação prática de certas
atividades intelectuais e morais do ímpeto dirigido de um novo tipo de sociedade; em
segundo lugar, a ênfase dessas atividades, como um tribunal de apelo humano, deve ser
colocada sobre os processos de julgamento social prático, e ainda se oferecer como uma
resposta mitigadora e mobilizadora. A cultura não seria apenas uma resposta a novos
métodos de produção, mas também estaria preocupada com novos tipos de relacionamento
pessoal e social. Cultura passa a significar, então, todo um modo de vida (WILLIAMS,
2001), isto é, uma hipótese essencial no desenvolvimento da ideia de cultura é a de que a
arte de um período está intimamente e necessariamente relacionada ao modo de vida
geralmente prevalecente e, além disso, em consequência, juízos estéticos, morais e sociais
estão intimamente inter-relacionados.
No que se refere ao contexto brasileiro, as ideias de Raymond Williams foram
interpretadas, de forma muito consistente, por Maria Elisa Cevasco, em Dez lições sobre
Estudos Culturais (2008). Segundo ela, há acadêmicos que, ao se apropriarem do conceito
de Williams, se afastam da crítica desse pensador à ordem capitalista e se engajam na
lógica da mercantilização:
Está montada aí a estrutura que permitirá a disjunção de base da atuação crítica
da cultura em geral e da literária em particular: é o tribunal onde se aferem os
valores de uma sociedade, sem no entanto se imiscuir nas polêmicas e nos
conflitos que definem esses valores. Está dado o caminho que leva a um certo
conformismo militante da crítica literária: é uma instância que se auto-representa
como radical, como de oposição aos valores vigentes, mas, na medida mesma em
que se refugia na abstração, sua atuação se dá no sentido de manter o estado de
coisas a que pensa se opor (CEVASCO, 2008, p. 17).
4 Cf. WILLIAMS, 2001, p. 119.
26
Ora, para Williams (2001), a literatura é uma atividade social que tem uma origem
mais do que literária, porque permeia todo o complexo de uma relação do artista com a
realidade e, mesmo que o elemento econômico seja determinante, este determina todo um
modo de vida. Portanto, é a isso, e não ao sistema econômico, que a literatura precisa estar
relacionada. O método interpretativo que é governado pela correlação arbitrária da situação
econômica e do objeto de estudo leva, muito rapidamente, tanto à abstração e à irrealidade
quanto à superação de julgamentos concretos e práticos por generalizações.
Desse modo, o conservadorismo dos anos 80 sepulta a tradição crítica da qual Boal
fez parte como um de seus principais formuladores, dialogando com uma realidade pautada
na colonização da sua sociedade e, por conseguinte, rendida à ambição da ordem
econômica mundial:
Por este lado se arma a ponte para a crítica da ideologia do presente. Em 1997
[...] já estamos em plena era de Plano Real e estabilização econômica. Reina no
país a noção de que o progresso vale todos os preços, inclusive o da enorme
fratura social que se agudiza nesses anos de modernização que conserva a
iniquidade social (CEVASCO, 2014, p. 12).
Não é de se estranhar, portanto, que a sucessão de golpes que o Brasil vem sofrendo
desde 1930, passando por 64 e culminando em 2016 repete um mesmo roteiro, motivado,
sobretudo, por uma violência simbólica exercida pelos privilegiados sobre os excluídos de
privilégios. A questão, nesse caso, é a subversão do marxismo quando esses privilegiados
disseminam discursos que negligenciam a importância das tentativas de silenciamento
comuns na formação do panorama social e político. Tais silêncios tendem a constituir uma
censura cultural que, diferentemente da censura patrocinada pelo Estado, é praticada na
ausência de coerção ou execução explícita. Essa censura cultural tende a ser constituída e
circunscrita por interesses políticos dos grupos dominantes.
Por conseguinte, as memórias de violências – físicas e/ou simbólicas – têm sido
permeadas por esses discursos, em um esforço para difundir concepções predominantes de
“honra nacional”. Sobre isso, Sérgio Buarque de Holanda, em O homem cordial, quinto
capítulo do seu livro, Raízes do Brasil (2015), sugere um paradoxo básico: certas formas
de vida e associação política trazidas da Europa Ibérica encontraram na América um
terreno muito diferente daquele em que se originaram, o que produziu a sensação de que,
no nível da cultura, nós permanecemos exilados em nossa própria terra. O seu conceito de
27
“homem cordial”, interpretado por Iná Camargo Costa no ensaio Sérgio Buarque, o
“Homem Cordial” e uma crítica inepta (2018), explica essa sensação de exílio. O “homem
cordial” é o exato oposto daquele que, ao proteger sua vida privada, a considera inviolável,
escondendo todos os tormentos e segredos dentro do sagrado inescrutável espaço de seu
status como indivíduo.
O “homem cordial”, como conceito e como metáfora, retoma na leitura de Hegel de
Antígona, de Sófocles, em que se vê, no conflito entre Antígona e Creonte, um confronto
entre valores familiares e valores cívicos, entre um círculo de conhecidos e a abstração da
polis e, em resumo, entre o homem cordial e o cidadão. Esse impasse ainda não está
resolvido hoje e pode permanecer assim por muito tempo: no Brasil, o político, como
representante de grupos maiores, nem sempre é capaz de se libertar de compromissos
pessoais. Em outras palavras, o homem não cede para a persona política. Como Antígona,
quando ela foi proibida de enterrar seu irmão, o homem cordial está sempre pronto para
violar as necessidades da comunidade, permanecendo um indivíduo leal à sua família, mas
nunca um bom cidadão. Nesse trágico conflito, lido por Hegel, a lealdade à família é o
anverso da traição à polis.
A modelagem do espaço público, assim, é problemática e precária onde quer que os
valores de cordialidade prevaleçam e sempre que a ética é baseada no bem-estar de um
pequeno núcleo familiar que serve apenas a um círculo de amigos e beneficiários em
detrimento da coletividade. O “homem cordial” recusa todas as restrições, bem como todos
os mecanismos de proteção, em relação à sociedade e ao outro.
Então, não seria exagero afirmar que o “homem cordial” também é uma maneira de
dramatizar impasses políticos em um mundo dividido entre os fantasmas do totalitarismo e
os valores do liberalismo, o que possibilitou, por um lado, que artistas e intelectuais como
Boal debatessem, no período ditatorial brasileiro, a posição e o papel do indivíduo, quando
confrontado com as exigências imperiosas da coletividade e, por outro, se traduziu, no 64,
em violências físicas e violências simbólicas, mas efetivas, que isolaram e exilaram
aqueles que pactuaram com o coletivo.
28
2.2 Política, cultura e resistência
Os movimentos sociais, junto às artes e a todas as atividades culturais dos anos 60 e
70, foram atingidos pela intensa contestação juvenil aos padrões políticos e de costumes
daquela época. Dentre as transformações sociais reivindicadas naquela época, a maior
parte das ações ocorreu no campo cultural e confrontava a concepção e a estruturação da
cultura brasileira. A maioria dos movimentos culturais de então estavam ligados ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB), cuja proposta consistia em um resgate das origens do povo
brasileiro, que se encontrava sob controle do sistema capitalista, e a arte e a cultura
poderiam resgatar a genuína cultura brasileira, proporcionando a conscientização desse
sequestro intelectual e alienante do povo:
Os comunistas devem dedicar particular atenção à intelectualidade, que, em sua
grande maioria, é partidária do progresso e da emancipação nacional. A unidade
dos intelectuais de diversas tendências políticas e ideológicas pode ser alcançada
em tomo de objectivos comuns como a defesa da cultura nacional e de seu
desenvolvimento, a preservação e ampliação das liberdades democráticas, a
salvaguarda dos interesses éticos e profissionais dos intelectuais.
A unidade dos estudantes de várias tendências doutrinárias e políticas é factor
essencial para o fortalecimento das organizações estudantis universitárias e
secundárias, que constituem baluartes da frente nacionalista e democrática. A
fim de fortalecer essa unidade e ampliar o carácter de massas do movimento
estudantil, é necessário combinar a acção política com a defesa das
reivindicações específicas dos estudantes, com a luta pela solução dos problemas
culturais, económicos e sociais que afectam a juventude.
As acções unitárias de operários e estudantes em tomo de questões de interesse
geral, quer na luta anti-imperialista, quer na luta contra a carestia, etc., devem ser
estimuladas, uma vez que representam formas práticas de aliança do proletariado
com os sectores mais combativos da pequena burguesia.
Considerando o importante papel que cabe à juventude na vida social e política
do País, devem os comunistas intensificar seu trabalho entre os jovens,
organizando-os nos sindicatos, em clubes desportivos, recreativos e culturais, e
em organizações de massas, ou em entidades especificamente juvenis.
Maior atenção deve ser dedicada ao trabalho de massas entre as mulheres, que
podem ser reunidas nos mais variados tipos de organizações, especificamente
femininas ou não, para a luta em tomo de reivindicações, tais como o amparo à
criança, o combate à carestia, a abolição da desigualdade de direitos, a melhoria
das condições de vida nos bairros, etc (RESOLUÇÃO POLÍTICA DO V
CONGRESSO PCB, 1960, p. 4).
Esse documento influenciou a formulação estético-ideológica do Teatro de Arena,
que procurou adotar um pensamento estético calcado, principalmente, na expressão das
classes trabalhadoras e se orientava por três balizas fundamentais: a primeira era de que o
29
Brasil não possuía representação expressiva dos trabalhadores no âmbito do teatro
nacional; a segunda era a de que, diante do cenário político no qual o país estava inserido,
o teatro tinha como dever realizar essa representação e, em terceiro lugar, acreditava que,
ao colocar em debate a exploração das classes trabalhadoras, o teatro estaria atuando como
instrumento de conscientização, buscando maneiras de intervir nesse cenário, para mudá-
lo.
Idealizado e fundado pelo dramaturgo José Renato Pécora, em 1953, o Arena se
constituiu como uma companhia de teatro popular, cujo projeto estético-ideológico foi o de
se engajar politicamente no que dizia respeito à sua avaliação da realidade brasileira, isto é,
“seu ciclo de espetáculos, entre laboratórios experimentais e processos criativos, constituiu
publicamente o seu caráter de persona teatral coletiva, em que se nota a imagem
reincidente de um sujeito-espaço assumindo posições diante da realidade brasileira
abordada” (CORDEIRO, 2015, p. 248).
O ano era 1956 e, por indicação de Sábato Magaldi, Boal assume a direção das
peças do Arena que, à época, já havia, de acordo com Mariângela Alves de Lima, no texto
História das ideias (1978), adotado uma nova proposta de espaço cênico5, diferente
daquela seguida até então pelo teatro brasileiro, embasada no palco italiano6. Nessa nova
estética, o espaço da representação passa a ocupar o centro e a colocar a cena à altura do
olhar do espectador. O espaço cênico, assim, poderia ser instalado em qualquer lugar, o
que, para uma proposta que ainda estava se delineando, significava economia de recursos.
Em virtude disso, o teatro passa a proporcionar acessibilidade a um público que antes não
tinha condições financeiras de assistir aos espetáculos.
Entretanto, não houve, na proposta inicial do Arena, um questionamento sobre as
características desse público, especialmente porque os espetáculos apresentados ainda
seguiam os moldes de outras companhias teatrais que se constituíram a partir de alicerces
muito díspares, como, por exemplo, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Segundo Luiz
Paixão Lima Borges, em dissertação intitulada O nacional e o popular na obra de
5 A sugestão para que J. Renato distribuísse as cadeiras ao redor do espaço cênico, no pequeno teatro onde
ele inaugura a sede da Companhia Teatro de Arena, foi dada pelo crítico Décio de Almeida Prado (um de
seus professores na EAD – Escola de Arte Dramática). A referência vinha de experiências teatrais de grupos
americanos da época. Estamos nos referindo ao início dos anos 1950, quando no “I Congresso de Teatro
Brasileiro”, Décio de Almeida Prado e José Renato apresentam um estudo sobre o espaço em arena, traço
arquitetônico que passa a determinar o projeto estético da companhia, além de registrar-se em seu nome,
carregado de significados para a história de nosso teatro (CORDEIRO, 2015, p. 249). 6 De acordo com o Dicionário de teatro, de Patrice Pavis (1999), o palco italiano é um tipo de palco separado
da plateia pelo fosso da orquestra e, nesse tipo de palco, a ação e os atores ficam confinados numa caixa
aberta, frontal ao olhar do público.
30
Oduvaldo Vianna Filho (2015), se, por um lado, o TBC contribuiu sensivelmente para um
salto de qualidade no teatro brasileiro – sobretudo no que tange ao respeito profissional
dedicado aos artistas e técnicos, bem como ao apuro estético -, por outro ficou acomodado
unicamente no prazer estético, deixando uma lacuna no que se refere a um teatro de
identidade nacional, que se ocupasse de uma discussão sobre a realidade brasileira e
reafirmando um conceito de teatro calcado tanto estética quanto politicamente em um
modelo importado.
Finalmente, em 1956, tem início a modificação na forma de atuar. A experiência
estético-política do Teatro Paulista do Estudante (TPE), grupo amador que contava com a
participação de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho7, o Vianninha, foi
embrionária na busca por essa identidade nacional no teatro (BORGES, 2015). Como
consequência natural de grupos que se afinavam política e ideologicamente, o TPE se
funde com o Arena e, em lugar de novos grupos de atuação cultural, o Arena passa a
investir em capacitações a partir de suas próprias experiências em teatro: José Renato
Pécora continua na Direção Geral, Boal assume o Departamento Cultural, Fausto Fuser
cuida do Departamento de Teatro Infantil e o Departamento de Publicidade fica a cargo de
Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Riva Nimitz (LIMA, 1978).
Enquanto essa nova organização se consolidava, espetáculos eram paralelamente
produzidos:
Ao mesmo tempo em que Boal ensaiava Ratos e homens, José Renato e Beatriz
de Toledo Segall orientavam um curso de treinamento inicialmente planejado
para ter a duração de dois anos no TPE. O curso deveria funcionar com um
estágio para os participantes que quisessem futuramente integrar a equipe do
Arena (LIMA, 1978, p. 4).
Desse modo, Eles não usam Black-tie surge como marco de uma proposta de
valorizar as produções nacionais e compor uma estética embasada em uma linha de
discussões sobre a realidade política brasileira a que Lima (1978) chama nacionalismo
crítico de vertente descolonial.
7 Vianninha e Guarnieri eram militantes ativos do PCB.
31
Grande parte dos movimentos nacionalistas da arte brasileira emergiu de uma
espécie de complexo de colonizado. A descoberta da raiz brasileira foi uma
forma, até certo ponto, útil historicamente, que permitia ao colonizado
reconhecer-se em oposição ao colonizador. Como se as diferenças pudessem
garantir ao colonizado as dimensões assustadoramente grandiosas do colonizador
(LIMA, 1978, p. 5).
Ainda que não se atentasse especificamente a este complexo, o Arena passa a
pensar o teatro por meio das relações entre o povo e o aparato do poder político e
econômico, tomando uma posição efetiva em favor da descolonização (LIMA, 1978).
Dentro dessa perspectiva, o Arena conta com Augusto Boal para efetivar, com Revolução
na América do Sul, espetáculo que estreia em 1961, sua verdade artística calcada nos
signos de uma arte coletiva. Para Lima (1978, p. 40-41) “a definição de que tipo de cultura
estaria centralizada pelo grupo só vai tomar rumo mais nítido a partir da incorporação de
Augusto Boal”.
E é por meio dessa percepção crítica que se articula o Centro Popular de Cultura,
iniciado pela reunião de intelectuais, artistas e estudantes dispostos a debater A mais valia
vai acabar, seu Edgar, peça que Vianinha escreveu por ocasião do seu desligamento do
Arena. De caráter anti-dramático, A mais valia se propôs a uma montagem totalmente
voltada ao épico – influência do teatro de Brecht -, em que as classes sociais lutavam e,
desse modo, colocava-se em discussão a exploração do trabalho de muitos e a
concentração da riqueza nas mãos de poucos.
O objetivo era analisar em cena as questões que originavam a miséria,
procurando discutir as relações e estruturas que a tornavam crônica. Buscando
ferramentas de caráter radicalmente anti-dramático (projeções de slides, cartazes,
canções, efeitos de desnaturalização interpretativa e cenográfica, humor e
técnicas circenses e de teatro de revista), a peça procurava superar as
contradições detectadas por Vianna no trabalho dramatúrgico produzido dentro
do Arena e dos Seminários de Dramaturgia, colocando em foco não as situações
que ilustravam a crônica da miséria, mas o exame crítico das condições e
mecanismos ideológicos que a perenizavam (BETTI, 2013, p. 194).
De acordo com Marcelo Ridenti , em Ainda o romantismo revolucionário, subitem
do primeiro capítulo do seu livro Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do
CPC à era da tv (2000), uma forte influência exercida sobre o CPC foi do chamado
romantismo revolucionário. Tanto partidos de esquerda quanto alguns intelectuais também
de esquerda acreditavam que o verdadeiro representante do povo era o brasileiro oprimido
32
o que poderia libertá-lo da opressão seria a arte. Essa ideia fez com que se buscasse no
homem do campo o coração do Brasil, puro e sem a contaminação capitalista.
A utopia revolucionária romântica do período valorizava acima de tudo a
vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, num
processo de construção do homem novo, nos termos do jovem Marx recuperados
por Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na
idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do
“coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbana
capitalista. (RIDENTI, 2000 p. 24).
O CPC, com a importante contribuição de Vianinha, disposto a levar a cabo um
teatro que efetivamente atingisse o proletariado, é um marco histórico de significativa
politização cultural no teatro do século XX e seu trabalho em busca de uma arte popular e
revolucionária sobrevive até 1964, ano do golpe civil-militar.
O Arena, com Boal e sua Revolução na América do Sul, também experimenta o
teatro épico brechtiano:
Eu tinha acabado de escrever o texto, influência de Brecht visível a olho nu: José
da Silva, operário exemplar, acreditava em tudo o que diziam os patrões,
televisões, jornais: passava fome a peça inteira, entrecortada de canções de
Chico de Assis, acreditando. No dia das eleições, José era cortejado por todos os
políticos, acabava comendo marmelada grátis e morrendo engasgado na primeira
garfada por falta do hábito de comer. Políticos erigiam estátua em sua
homenagem, com os consequentes discursos e pedidos de votos (BOAL, 2000, p.
174).
De acordo com Betti (2013), além do contato com Brecht, Boal e Vianinha também
utilizaram a obra Teatro Político, de Erwin Piscator, como parâmetro para a concepção
cênica de suas peças. Sendo assim, fica visível que a ideologia política tanto do Arena
quanto do CPC buscava trazer para os espetáculos os processos históricos que
determinavam os problemas e não somente a representação desses problemas.
No cinema, a crescente influência da revolução comunista gerou o movimento
Cinema Novo, que retomou o romantismo revolucionário e sagrou sua cinematografia
enquanto arte engajada. Cineastas, como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Nelson Pereira
dos Santos, Ruy Guerra e Eduardo Cotinho, dentre outros, destacam-se por trazerem para
as telas vida do proletariado e seus dramas. Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos
33
Santos, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Cabra marcado para
morrer (1964), de Eduardo Coutinho, Os fuzis (1964), de Ruy Guerra e Cinco vezes favela
(1962) de Cacá Diegues, são exemplos dessa instrumentalização política da arte.
Na música, despontaram cantores e compositores que militavam na mesma esfera
da resistência. João do Vale, Zé Keti e Nara Leão soltaram suas vozes no Show Opinião,
assinado por Vianninha, Armando Costa e Paulo Pontes e dirigido por Boal. A canção
Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, tornou-se o sinônimo do
protestos nas passeatas do movimento estudantil. Roda viva, de Chico Buarque, marca a
estreia do cantor como dramaturgo, em espetáculo de título homônimo, sob a direção de
José Celso Martinez Corrêa. Também de Chico Buarque, em parceria com Francis Hime,
Meu caro amigo, carta-canção escrita para Boal quando este já se encontrava no exílio,
manda notícias de um Brasil onde “a coisa ainda tava preta”. Soy loco por ti America,
composta por Gilberto Gil e Capinan, e interpretada por Caetano Veloso, homenageava
Che Guevara. Aquele abraço, de Gilberto Gil, escrita após passar 60 dias na prisão e
gravada pouco antes de o músico se exilar, metaforiza sua insatisfação com os rumos
políticos que o Brasil tomara após o golpe.
Esses são só uns poucos exemplos de um cenário musical que veio a influenciar um
movimento quase que imediatamente posterior, do qual Caetano Veloso é considerado
expoente: o Tropicalismo que, para alguns críticos, como Roberto Schwarz, marcou o
descrédito na militância revolucionária e comprovou que a produção cultural limitava-se à
sua própria classe, nunca além8.
Retomando o teatro – a mais perseguida das artes - entre os anos de 1964 e 1968, a
liberdade de criação teatral, um dos mecanismos de livre expressão, ainda foi tolerada,
apesar do golpe civil-militar. Depois da apresentação de Roda Viva, de Chico Buarque, em
1968, explica Armando Sérgio da Silva, em seu livro Oficina: do teatro ao te-ato (1981),
8 Para não fugir ao escopo da tese, mas a título de registro, é interessante a leitura do artigo Brasilidade
encarnada: artistas da revolução (2000), de Marcelo Ridenti. O artigo propõe uma leitura do Tropicalismo
que se afasta, ao mesmo tempo em que traz algumas similaridades com a crítica de Schwarz. Segundo
Ridenti, a hipótese sugerida vai na contracorrente das ideias dominantes sobre o tropicalismo: esse
movimento traz as marcas da formação político-cultural dos anos 50 e 60; isto é, o tropicalismo não foi uma
ruptura radical com a cultura política forjada naqueles anos, apenas um de seus frutos diferenciados,
modernizador e crítico do romantismo nacional-popular, porém dentro da cultura política romântica da
época, centrada na ruptura com o subdesenvolvimento nacional e na constituição de uma identidade do povo
brasileiro, com o qual artistas e intelectuais deveriam estar intimamente ligados. Ao encerrar o ciclo
participante, o tropicalismo já indicava os desdobramentos do império da indústria cultural na sociedade
brasileira, que transformaria a promessa de socialização em massificação da cultura, inclusive incorporando
desfiguradamente aspectos dos movimentos culturais contestadores dos anos 60, como o tropicalismo e o
nacional-popular (RIDENTI, 2000, p. 2).
34
que Roda Viva era discutida em todos os lugares. Até mesmo os políticos se preocupavam
em discutir esse espetáculo na Assembleia Legislativa. Ainda que temerosa, boa parte da
população vencia o medo e lotava a plateia. Os atores de teatro passaram de artistas a
corruptores da sociedade brasileira. Proibida pela censura e, ainda assim, desafiadora,
Roda Viva sobreviveu inclusive ao espancamento dos atores. Tão desafiadora foi que
Plínio Marcos, José Celso Martinez e Boal escreveram contra a censura do texto, por meio
de um manifesto permeado de ironias e duras críticas à ditadura (ANEXO II). Se a peça foi
censurada por conter “palavrões”, a classe teatral subverte o conceito de “palavrão” e
desafia:
A fim de que fique bem claro este gasto enérgico da classe teatral, a Assembleia
determinou a elaboração da lista que se segue, contendo todos os palavrões
contra os quais São Paulo delibera lutar sem tréguas:
Ditadura
Censura
Analfabetismos
Acordo Mac-Usaid
Fome
Arrocho salarial
Napalm
Aposentaria dos Deputados
Latifúndio (A CLASSE TEATRAL CONTRA O PALAVRÃO, s/p, s/d).
A partir daí, as peças que o Arena queria montar estavam todas proibidas.
Já tendo experimentado encenar shows que aliavam música e crítica política e
percebido sua ampla repercussão, o Arena se preparou para a série Arena conta..., não sem
antes perceber a intransitividade que se dava entre o palco e o povo, embora ambos
dialogassem. Para Boal, a divisão de classes permeava o teatro, pois a plateia cantava no
coro, porém não participava do enredo. Com a repressão, pior ainda, o povo estava
proibido. Referindo-se ao Show Opinião, que, segundo ele, provocou a mesma polêmica na
fase realista do Arena, por ter sido considerado nem musical nem teatro, Boal parte para
São Paulo e, junto a Guarnieri e Edu Lobo, concebe Arena conta Zumbi e cria o Sistema
Coringa que, além de diminuir consideravelmente o custo da produção, também implanta
proposições estéticas, vinculadas a uma maneira épica e dialética9 de exibir a trama.
9 Para Sérgio de Carvalho, dramaturgo, diretor e fundador da Companhia do Latão, grupo teatral de São
Paulo, o efeito de distanciamento no teatro épico-dialético se dá na relação historicizante estabelecida pelo
trabalho dialético que ocorre no trânsito crítico e vivo entre palco e plateia, trabalho desapassivador, que gera
35
Quatro são as bases norteadoras do Sistema Coringa: (1) qualquer ator pode (e
deve) representar qualquer personagem; (2) é necessário que o ponto de vista autoral seja
assumido ideologicamente por todos os participantes do espetáculo; (3) cada cena traz seu
próprio estilo; e (4) a música funciona como elemento de ligação ou de introdução ou
mesmo de discurso no contexto da peça (BOAL, 2011).
Conforme Boal (2011), o Coringa é uma personagem onisciente, de estrutura única,
que assume a função de alterar, inverter ou recolocar a perspectiva de uma cena, sempre
que houver a necessidade de chamar a atenção da plateia para o que for significativo. Por
isso é importante que o Coringa assuma uma postura crítica e distanciada, pois ele pode,
inclusive, refazer uma cena, de modo a enfatizá-la ou corrigi-la.
Zumbi concretizou as ideologias estético-políticas que procuravam novos processos
de análise para se adaptarem às novas realidades. Em um manifesto intitulado Vivemos um
tempo de guerra10
, Boal e Guarnieri afirmam que, se o teatro é conceituável, essa definição
anula suas outras potências:
Nesta etapa do seu desenvolvimento o Arena desconhece o que é teatro.
Queremos apenas contar uma história, segundo a nossa perspectiva. Dispomos
de uma arena, alguns velhos refletores munidos de lâmpadas (aproximadamente
Cr$ 20.000 cada), acomodações para pouco menos de duzentas pessoas, roupas,
madeiras, telas, projetores, etc. Somos um grupo de gente boa, diretores, atores,
técnicos, autores, eletricistas, porteiros, bilheteiros. Somos quase vinte.
Pensamos parecido. Esta gente reunida, usando o material disponível, vai contar
uma história que tem moral escondida. Uma história que, esperamos, vai ajudar
todo o mundo a entender melhor as coisas ocorridas, e as que estão acontecendo.
Que deve ajudar todo o mundo a ver com maior clareza (BOAL; GUARNIERI,
1965, p. 1).
Como se pode notar, a cultura nacional foi bastante debatida no período de 1960 e
recebeu grandes contribuições de diversos artistas e intelectuais. Entretanto, algumas
questões acerca do alcance dessa proposta de arte política precisam ser problematizadas.
Ao adentrar a década de 1960, o PCB vive um período de crises e cisões, devido a vários
fatores, dentre eles a Revolução Cubana, as mudanças na política externa da União
Soviética e a ascensão da China no cenário comunista. Especialmente a Revolução
uma disposição à atitude reflexiva conjunta ao desfrute estético da forma representacional. O efeito não se
completa sem que a imagem cênica ofereça consigo uma possibilidade de indagação sobre sua perecibilidade,
sua transformabilidade histórica, ou sobre a causalidade social do acontecimento mostrado ou sugerido pela
cena (Cf. CARVALHO, Sérgio de. Questões sobre a atualidade de Brecht. Sala Preta, São Paulo, v. 6, p.
167-173, 2006). 10
Ver na íntegra no Anexo III.
36
Cubana, que iniciou a transição para o socialismo, repercutiu amplamente no Brasil,
inclusive no que dizia respeito às essas cisões políticas e ideológicas dentro do PCB após
1964, o que provocou o questionamento sobre a transição pacífica para o socialismo,
defendida pelo partido com a Declaração de Março11
(BASBAUM, 1977).
Em agosto de 1961, o PCB realiza uma conferência nacional e decide mudar o
nome do partido para Partido Comunista Brasileiro, de modo a legalizá-lo e a deixar claro
o seu caráter nacionalista, uma vez que um dos motivos alegados para o cancelamento do
seu registro, em 1947, foi o de que ele era um partido ligado à União Soviética, justamente
por se chamar Partido Comunista do Brasil. Todavia, no interior do partido houve uma
ruptura: de um lado estavam aqueles que defendiam as orientações da Declaração de
Março e, de outro, os que se mantinham fiéis aos métodos stalinistas e se opunham à
colaboração com o governo brasileiro. A partir dessa ruptura surge do PC do B, Partido
Comunista do Brasil.
Por conseguinte, o Brasil do início da década de 1960 vivia, por um lado, a
ascensão do nacionalismo nos movimentos populares ligados ao PCB e, por outro, a
oposição a esse nacionalismo pelos grupos que defendiam o desenvolvimento industrial do
país por meio de uma maior participação no capital estrangeiro.
Essa cisão se refletiu nos movimentos artísticos de resistência. O CPC, por
exemplo, começou a enfrentar um racha interno. Um debate se disseminou entre seus
participantes: como falar para o povo, para o proletariado, se os artistas não pertenciam ao
proletariado?
Boal, por sua vez, reconhecendo que o Arena encontrava-se limitado em suas
pretensões políticas, começa uma oficina que dá origem a um espetáculo chamado Teatro-
jornal Primeira Edição:
A forma de “teatro-jornal” tem vários objetivos. Primeiro, procura desmistificar
a pretensa “objetividade” do jornalismo: demonstra que uma notícia publicada
em um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma notícia e seu próprio
11
Apresentada em março de 1958, essa declaração deixava clara uma proposta nacional-libertadora.
Entendia-se que: (i) o país não deixou de ser subdesenvolvido, ainda que houvesse um desenvolvimento
capitalista nacional; (ii) o desenvolvimento apresentava contradições entre a nação e o imperialismo norte-
americano e entre as forças de produção desenvolvimentistas e as relações semifeudais no setor agrícola; e
(iii) a revolução brasileira era antes anti-imperialista, nacional e democrática que socialista. Por meio dessa
Declaração, enfim, o PCB propunha alianças entre operários, camponeses, pequena burguesia urbana e
setores latifundiários, de modo a lutar, pacificamente, contra a submissão do país ao imperialismo norte-
americano (PRESTES, 2014).
37
caráter dependem de sua relação com o resto do jornal. Se na manchete surge a
tragédia da jovem que foi miraculosamente salva depois de atear fogo às vestes,
desenganada no seu amor – essa tragédia de primeira página reduz à simples
condição de faits divers os sangrentos choques entre os guerrilheiros palestinos e
os mercenários do Rei Hussein. Pergunta-se: qual é a mais importante: a
conquista do tri-campeonato de futebol ou a sêca do Nordeste? (BOAL, 1971, p.
57)12
.
A partir daí, começam a se formar grupos de Teatro-Jornal13
. Esses grupos
representavam em qualquer lugar, desde que longe da polícia. Os espetáculos eram escritos
e, duas horas depois, encenados. O sonho de difundir as técnicas para que qualquer cidadão
pudesse fazer teatro, usar a riqueza da linguagem dramática para pensar a resistência à
opressão começa a tomar contornos de realidade.
É interessante notar que, quando Boal reconhece a limitação de pretensões políticas
do Arena, ele não se refere somente à censura instaurada pelo golpe civil-militar. Mais que
isso, vê como limitado, também, o projeto estético-político na medida em que reconhecia
que o teatro não poderia incitar o espectador a se rebelar contra a ditadura se o teatro não
fazia o mesmo:
Confessávamos que não sabíamos o que dizer, não queríamos aconselhar
caminhos que desconhecíamos. Mas não renunciávamos a fazer teatro. Eles que
fizessem também. Oferecíamos nosso saber. Se não sabíamos o que dizer,
sabíamos ensinar a dizer.
[...]
Entre nós e nossos espectadores não havia diferença, agora que não tínhamos
nada que nos vestisse de artistas: éramos cidadãos, humanos. Podíamos – nós e
eles – fazer teatro. Oferecíamos nosso saber, pedíamos o deles. Troca (BOAL,
2000, p. 271).
Schwarz (1978) lembra que um dos problemas enfrentados pelos movimentos
culturais logo após o golpe de 1964 residiu no fato de que esses movimentos sofreram
pressões tanto do governo golpista quanto da própria esquerda revolucionária. O primeiro,
porque tentava censurar as manifestações e a segunda, porque insistia no caráter
12
O Teatro de Arena de São Paulo publicou, em 1971, o livro de Augusto Boal Categorias do Teatro
Popular. Essa transcrição foi retirada do último capítulo do original, que se encontra no acervo do Instituto
Augusto Boal. O capítulo, na íntegra, encontra-se no Anexo IV. 13
O Teatro-Jornal foi uma resposta estética à censura imposta, no Brasil, no início dos anos 70, pelos
militares, para escamotearem conteúdos, inventarem verdades e iludirem. Nessa técnica, encena-se o que se
perdeu nas entrelinhas das notícias censuradas, criando imagens que revelam silêncios. Criada em 1971, no
Teatro de Arena de São Paulo, foi muito utilizada para revelar informações distorcidas pelos jornais da
época, todos sob censura oficial (Cf.: www.ctorio.com.br).
38
revolucionário desses movimentos. Diante disso, quem quisesse lutar contra a ditadura e
continuar articulando a cultura nacional vislumbrava apenas um caminho, o da militância
política:
Se em 64 fora possível à direita “preservar” a produção cultural, pois bastara
liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando os
estudantes e o público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música
e dos melhores livros já constituem massa politicamente perigosa, será
necessário trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os
músicos, os livros, os editores – noutras palavras, será necessário liquidar a
própria cultura viva do momento (SCHWARZ, 1978 p. 9).
No que diz respeito à música, Schwarz, em Verdade tropical: um percurso de nosso
tempo (2012), dá atenção especial ao Tropicalismo, cujo objetivo é analisar, mantendo a
ênfase nas relações sociais e nos desafios da esquerda que se refletem no país, a
autobiografia de Caetano Veloso, Verdade tropical, lançada em 1997. Debruça-se sobre o
livro de Caetano com a coerência que lhe é peculiar, focando a desordem entre as
condições de produção, o plano ideológico e o desenvolvimento do Brasil.
A impressão do autor sobre o tropicalismo, já desenhada em Cultura e política, de
1964 a 1969, ganha novos contornos quando relacionada e contrastada com
desenvolvimento posterior da história e é analisada sob três perspectivas, a saber: o
momento do tropicalismo (décadas de 60/70), o momento da escrita da biografia (década
de 90) e o tempo de se “fazer um balanço” histórico-político-cultural desses momentos
(que se constitui do próprio ensaio Verdade tropical: um percurso de nosso tempo, escrito
em 2011).
Desse “balanço”, o que fica como pressuposto central é que, se, por um lado, o
movimento tropicalista reconheceu e focou, assim como o movimento antropofágico
modernista, “o relacionamento conflitante e produtivo entre as formas estéticas, as
deformidades sociais do país e as grandes linhas do presente internacional” (SCHWARZ,
2012, p. 56), por outro, a vitória dos ideais desenvolvimentistas realizados pela ditadura,
que conseguiu apagar os movimentos sociais antes que estes pudessem realizar o desejo
por uma sociedade mais igualitária, redesenha o “desbunde” tropicalista. Desse modo, “a
satisfação legítima de sair do estado de segregação de uma cultura semicolonial se
converte, sem mais aquela, na ambição de fazer acontecer na arena internacional - em
lugar de questionar essas aspirações elas mesmas” (idem, p. 74).Ou seja: ao fim e ao cabo,
39
o ensaio é antes uma crítica ao percurso que tomou a história política e cultural brasileira
que, assim como Caetano, “vem se fazendo acontecer” internacionalmente, desde a ruptura
com interpretação do nacional e do popular e com seus correspondentes no plano político.
Em relação ao teatro, especialmente ao Arena, Schwarz (1978) afirma que o teatro
político, na verdade, foi despolitizado e despolitizante, porque se apresentava para uma
parcela da sociedade que era intelectualizada e, por isso, burguesa. Assinala, ainda, a
ausência de qualquer crítica ao populismo e ao fato de esse teatro não questionar a derrota
da esquerda. O crítico alega que a revolução estético-política alcançada por Black-tie se
perdeu diante do Show Opinião, dirigido por Boal em 196414
, que não deu uma resposta
política para o fracasso da esquerda, constituindo-se em um limite estético:
A cena não estava adiante do público. Nenhum elemento da crítica ao populismo
fora absorvido. A confirmação recíproca e o entusiasmo podiam ser importantes
e oportunos então, entretanto era verdade também que a esquerda vinha de uma
derrota, o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se
o povo é corajoso e inteligente, por que saiu abatido? E se foi abatido, por que
tanta congratulação? (SCHWARZ, 1978, p. 80-1).
O mesmo se dá em relação a Zumbi. Para ele, a forma artística foi agradável ao
público e, simultaneamente, incompatível com a derrota da esquerda, uma vez que,
naquele momento, diante da falência do socialismo histórico, essa forma artística deixou
de ser a referência direta para uma crítica anticapitalista:
O espetáculo era verdadeira pesquisa e oferenda das maneiras mais sedutoras de
rolar e embolar no chão, de erguer um braço, de levantar depressa, de chamar, de
mostrar decisão, mas também das maneiras mais ordinárias que têm as classes
dominantes de mentir, de mandar em seus empregados ou de assinalar, mediante
um movimento peculiar da bunda, a sua importância social. Entretanto, no centro
de sua relação com o público – o que só lhe acrescentou o sucesso – Zumbi
repetia a tautologia de Opinião: a esquerda derrotada triunfava, sem crítica,
numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito (SCHWARZ, 1978, p.
82-3).
Na visão de Schwarz (1978), tratava-se de ingenuidade entender a injustiça social
como algo não natural para que a transformação social fosse possível. Além disso, essa
14
A despeito das críticas negativas, Boal (2000, p. 228) afirma que “Opinião foi o primeiro protesto teatral
coerente, coletivo, contra a desumana ditadura que tanta gente assassinou, torturou, tanto o povo
empobreceu, tanto destruiu o que antes chamávamos Pátria”.
40
euforia, em um momento no qual a esquerda vinha de uma derrota, limitou a capacidade
crítica do espectador, na medida a peça se permitiu reproduzir as estratégias de dominação
e martirizar os representantes populares:
Em consequência apagam-se as distinções históricas – as quais não tinham
importância se o escravo é artifício, mas têm agora, se ele é origem – e valoriza-
se a inevitável banalidade do lugar-comum: o direito dos oprimidos, a crueldade
dos opressores; depois de 64, como ao tempo de Zumbi (séc. XVII), busca-se no
Brasil a liberdade. Ora, o vago de tal perspectiva pesa sobre a linguagem, cênica
e verbal, que resulta sem nervo político, orientada pela reação imediata e
humanitária (não-política portanto) diante do sofrimento (SCHWARZ, 1978, p.
83).
É perceptível a crítica de Schwarz à estagnação política da esquerda. Segundo ele, a
mesma classe intelectual que não conseguiu evitar o golpe, depois deste tentava se
reafirmar no palco. A Zumbi restou lutar por uma causa perdida e ao teatro, também.
Parece-me que o grande embate de Schwarz em relação ao cenário do pós-64
encontra-se no descompasso do tempo histórico, o que se traduz em um descompasso
político, porque, segundo ele, ao se alternar entre crítica política e simples exortação,
Arena conta Zumbi oscilava entre os contextos do regime escravocrata e do pós-64 sem,
contudo, oferecer possibilidades efetivas de enfrentamento da realidade política do
momento de sua produção, qual seja, a ditadura civil-militar.
Parece-me, também, que essa crítica de Schwarz faz referência às dissidências
ocorridas dentro das esquerdas, fato que as impossibilitou de se prepararem, de forma
coesa, para enfrentar o golpe, bem como não resultou em um projeto efetivo de
enfrentamento que arrebanhasse a sociedade civil contra a repressão.
No entanto, cabe apontar aqui as pesquisas de Ridenti, em Esquerdas armadas
urbanas (1964-1974) (2007). sobre as esquerdas armadas urbanas que se organizaram a
partir dos conflitos e posteriores dissidências dentro do PCB. Dentre essas organizações
destaca-se ALN, cuja inspiração na Revolução Cubana definiu que só seria possível a
repressão por meio do enfrentamento armado.
A ALN contou com a participação de alguns intelectuais e artistas, dentre eles Boal
que, embora não empunhasse armas, colaborava com a organização, inclusive recebendo e
41
permitindo reuniões do grupo em sua casa, que também servia como esconderijo para os
perseguidos da ALN, conforme comprova o depoimento de Cecília Thumin Boal15
:
O Boal cedia a nossa casa para encontros dos militantes, em reuniões que, muitas
das vezes, varavam madrugada adentro. Ele era militante da ALN, isso está na
biografia do Marighella16
. Como viajava muito por causa do teatro, o Boal era
um tipo de apoio para a ALN, porque podia levar mensagens para outros
militantes fora do Brasil.
Por outro lado, Cecília questiona, em certa medida, leituras de Zumbi que veem na
peça um início de apelo à luta armada e que, posteriormente, se concretiza em Tiradentes.
Além disso, coloca que as críticas de Roberto Schwarz – bem como as de Anatol
Rosenfeld – fizeram certo sentido à época, pois de fato, esses espetáculos não cumpriram,
como era o desejo do Arena, com a sua finalidade de atingir as grandes massas populares.
Porém, ela ressalta a necessidade que Boal via de que o povo brasileiro resgatasse seus
heróis, que o povo tivesse heróis:
Vejo Zumbi e Tiradentes mais como um resgate de heróis. O Boal acreditava
que, naquele momento, o Brasil precisava de heróis. O Roberto Schwarz, o
Anatol Rosenfeld17
criticaram essas peças e, em certa medida, tinham razão,
porque o público desses espetáculos era mais da classe média18
, eram estudantes.
Embora eles tenham viajado e se apresentado para as classes mais populares, em
cima de caminhões, as peças não tiveram uma entrada tão significativa em meio
às grandes massas. Mas, mesmo assim, o Boal via a necessidade de o povo
brasileiro ter heróis.
Acredito que essa necessidade de Boal encontra respaldo em sua ideologia estético-
política que, à luz do distanciamento de Brecht, recusava a catarse em nome desse
15
BOAL, Cecília Thumin. Cecília Thumin Boal: entrevista [mai. 2018]. Entrevistador: Mariana De-Lazzari
Gomes. Ponte Nova/MG, 2018. 1 arquivo mp3 (22m 12s). Entrevista concedida à tese de doutorado Milagre
no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro: memória, testemunho e a literatura de Augusto Boal. [A entrevista
na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta tese]. 16
Sobre essa menção à biografia do Marighella, vale a pena conferir em MAGALHÃES, Mário. Marighella:
o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 17
No ensaio Heróis e Coringas, Rosenfeld aponta que Boal, na medida em que concedeu aos protagonistas a
empatia frente ao público que recusava ao coro, não mostrou compreensão das teses de Brecht. O crítico
aponta, ainda, essa opção abria espaço para que o público se identificasse festivamente com o herói, o que se
contrapunha às ideias de Brecht (Cf.: ROSENFELD, Anatol. Heróis e Coringas. In: ROSENFELD, Anatol.
O mito e o herói no moderno teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1966. p. 11-24). 18
Em Hamlet e o filho do padeiro Boal diz: “Zumbi foi a cristalização das experiências que havíamos feito.
Sabíamos que não iríamos dialogar com o povo. Mostraríamos a nossa cara. Não me chamo José, não me
envergonho. Nunca passei fome nem senti frio, sempre morei em conforto. Éramos classe média” (BOAL,
2000, p. 230).
42
distanciamento e da reflexão, propondo um herói que não refletia a realidade, mas que, ao
permanecer distante, oportunizava uma crítica àquela realidade.
Enfim, é inegável que, diante de tantas cisões, a esquerda se enfraqueceu diante do
enfrentamento ao golpe, o que se refletiu, em grande medida, na desarticulação da arte de
resistência. Porém, é também inegável que, assim como a cabeça de Zumbi dos Palmares
foi enviada para o Recife como simbologia da vitória sobre os quilombolas, a sua
resistência precisa ser levada em conta. Assim como o governo civil-militar perseguiu,
mentiu, encarcerou e matou, a exemplo, Heleny Guariba19
, a sua decisão de nada confessar
precisa ser levada em conta. Assim como, em 1695, Zumbi não se rendeu, “nestes 10 anos
de terror, o povo brasileiro não deixou de produzir heróis” (BOAL, 1979, p. 27). Então,
apesar de a luta armada já não ser uma possibilidade, isso não anula o fato de que política e
estética se fizeram parceiras em prol de uma arte de denúncia, de resistência e de
mobilização social.
Por tudo e portanto, as análises que se seguem de Milagre no Brasil e de Hamlet e
o filho do padeiro – nas perspectivas do testemunho e da memória, das violências físicas e
das simbólicas, da estética e da política – podem contribuir para repensar esse Brasil de
tantos golpes que colocaram em xeque a resistência e a dignidade dos oprimidos.
19
Heleny Telles Ferreira Guariba fez parte do Teatro de Arena, como professora, junto a Cecília Thumin
Boal. Era militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ficou presa no presídio Tiradentes e foi
assassinada em julho de 1971. Consta no Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964
(1995, p. 235-236): Militante da VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA (VPR). Nasceu em 13 de
março de 1941 em Bebedouro, Estado de São Paulo, filha de Isaac Ferreira Caetano e Pascoalina Alves
Ferreira. Desaparecida desde 1971 aos 30 anos. Professora universitária e diretora do “Grupo de Teatro da
Cidade”, de Santo André, São Paulo. Presa no Rio de Janeiro no dia 12 de julho de 1971, juntamente com
Paulo de Tarso Celestino da Silva (desaparecido), por agentes do DOI-CODl/RJ. Inês Etienne Romeu, em
seu relatório sobre a “Casa da Morte”, em Petrópolis, denuncia que Heleny esteve naquele aparelho
clandestino da repressão no mês de julho de 1971, tendo sido torturada por três dias, inclusive com choques
elétricos na vagina. O Relatório do Ministério da Aeronáutica diz que Eleni foi “presa em 20 de outubro de
1970, em Poços de Caldas/MG, sendo libertada em 01 de abril de 1971...” Já o Relatório do Ministério do
Exército afirma que “foi presa em 24 de abril de 1970 durante a Operação Bandeirantes e libertada a 1° de
abril de 1971.” No anexo V estão as cópias das informações do Ministério do Exército, datadas de 30 de abril
de 1970.
43
Acervo Augusto Boal
Sistema Coringa AB.ASCf.011
SÉRIE: Arena | AUTORIA: [Derly Marques]
DATA: Década de 1970 | ANO: 1970 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: Diapositivo, Viragem
DESCRIÇÃO: Gianfrancesco Guarnieri e outros em cenas de “Ratos e Homens”, peça do Teatro de
Arena. NOTAS: Slide integrante da montagem fotográfica "The Joker System/ El Sistema Comodín/ O
Sistema Coringa"
de Derly Marques e Stefan Leslie, com produção da VISUAL Arte/Comunicação de São Paulo. Ver
também fascículo
"O Sistema Coringa" que acompanha os 50 diapositivos. ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Sistema Coringa, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes
cênicas.
Acervo Augusto Boal
Ratos e homens AB.ARHf.007
SÉRIE: Arena | AUTORIA: Não identificada
DATA: 1956 | ANO: 1956 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: Papel; P&b
DESCRIÇÃO: Gianfrancesco Guarnieri, José Serber e Nilo Odalia em cena.
ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas
44
Acervo Augusto Boal
Sistema Coringa AB.ASCf.013
SÉRIE: Arena | AUTORIA: [Derly Marques]
DATA: Década de 1970 | ANO: 1970 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: Diapositivo, Viragem
DESCRIÇÃO: Cenas de “Eles não usam Black-Tie”, com Lélia Abramo, Gianfrancesco Guarnieri e
outros. Primeira peça da fase nacionalista do Teatro de Arena. NOTAS: Slide integrante da montagem fotográfica "The Joker System/ El Sistema Comodín/ O
Sistema Coringa"
de Derly Marques e Stefan Leslie, com produção da VISUAL Arte/Comunicação de São Paulo. Ver
também fascículo
"O Sistema Coringa" que acompanha os 50 diapositivos. ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Sistema Coringa, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes
cênicas
Acervo Augusto Boal
Revolução na América do Sul AB.ARf.001
SÉRIE: Arena | AUTORIA: Não identificada
DATA: 1960 | ANO: 1960 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Flávio Migliaccio em cena de “Revolução na América do Sul”.
NOTAS: Peça escrita por Augusto Boal e dirigida por José Renato no Teatro de Arena de São Paulo.
ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas
45
Acervo Augusto Boal
Opinião AB.AOf.010
SÉRIE: Arena | AUTORIA: Não identificada
DATA: 1964 | ANO: 1964 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti em cena.
ASSUNTOS: Teatro, Show, Música brasileira, Música, Espetáculo musical, Encenação, Artes cênicas
Acervo Augusto Boal
Arena conta Zumbi AB.AZf.023
SÉRIE: Arena | AUTORIA: Derly Marques
DATA: 1965 | ANO: 1965 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Marília Medalha, Anthero de Oliveira, Chant Dessian, Vanya Sant’Anna,
Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat e Lima Duarte (de costas) em cena. NOTAS: Foto possui carimbo do fotógrafo no verso.
ASSUNTOS: Zumbi dos Palmares, Teatro de Arena, Teatro, Heróis nacionais, Espetáculo teatral,
Encenação, Atores, Artes cênicas
46
É preciso entender 64 não apenas como um
choque politico, mas como um choque
psicológico profundo, existencial profundo.
Aquilo muda a vida da gente. Como é possível
que aquilo tenha acontecido, se a gente sabia que
era outra coisa que ia acontecer?
Cacá Diegues.
47
3 MILAGRE NO BRASIL: PARA NÃO ESQUECER DE LEMBRAR
3.1 O estatuto do testemunho
Todas as formas de dominação política dependem da construção humana de
diferenças sociais e culturais entre pessoas e povos, sem diferenças não haveria base para
distinguir aqueles que detêm o poder daqueles que estão sujeitos a isso. As ideias políticas
mais potentes sobre diferença são aquelas que são “naturalizadas” de tal forma que
parecem ser criadas não pelos humanos, mas pela natureza. Tais ideias são
ideologicamente poderosas porque afirmam que, por exemplo, os homens são naturalmente
superiores às mulheres ou que as pessoas brancas são naturalmente superiores às pessoas
negras. Ideias naturalizadas são hegemônicas, na medida em que permeiam diferentes
áreas da cultura.
Na literatura, a fabricação da ficção do outro serviu às necessidades hegemônicas
de construção de impérios, infiltrando-se nos aparelhos dos sistemas educativos, um dos
principais garantes da preservação do (s) sistema (s) no poder. A contrapelo dessa ficção
do outro, a literatura testemunhal é uma narrativa autêntica, contada por uma testemunha
que é movida a narrar pela urgência de uma situação, como enfatiza George Yúdice, em
Testimonio y concientizacion (1992):
“Testimonio” es un termino que se refiere a muchos tipos de discurso, desde la
historia oral y popular (people's history) que procura dar voz a los “sin voz”
hasta textos literarios como las novelas-testimonio de Miguel Barnet y aún obras
de compleja composicion documental como Yo el supremo de Augusto Roa
Bastos. El termino tambien se ha usado para referirse a las cronicas de la
conquista y colonizacion, los relatos vinculados a luchas sociales y militares
como los diarios de campania de Marti, el Che y Fidel (Fornet, 1977) y a textos
documentales que tratan de la vida de individuos de las clases populares
inmersos en luchas de importancia histórica (YÚDICE, 1992, p. 211)20
.
20
“Testemunho” é um termo que se refere a muitos tipos de discurso, da história oral e popular (história das
pessoas), que procura dar voz aos “sem voz”, a textos literários, como os romances-testemunho de Miguel
Barnet e até mesmo obras de composição documental complexa como Yo el supremo, de Augusto Roa
Bastos. O termo também tem sido usado para se referir às crônicas da conquista e da colonização, as histórias
ligadas às lutas sociais e militares, como os jornais Campania de Marti, Che e Fidel (Fornet, 1977) e textos
documentais que tratam da vida de indivíduos das classes populares imersos em lutas de importância
histórica (YÚDICE, 1992, p. 211, livre tradução minha).
48
A testemunha retrata sua própria experiência como resgate de uma memória
coletiva. A verdade denuncia uma situação de exploração e opressão, assim como
estabelece corretamente a história “oficial”. O protagonista que dá testemunho é alguém
que não se concebe como extraordinário, mas sim como uma alegoria de muitos, o povo.
Essa identidade coletiva é revelada no testemunho de Boal. O desejo que motiva esses
relatos não é deixar um registro pessoal, mas documentar a realidade de um povo inteiro.
Há uma exigência, uma urgência de relatar uma situação de barbárie, porque, em primeiro
lugar, a testemunha sente essa necessidade e a sociedade precisa assumir o compromisso
de escutá-la e, em segunda instância – mas não menos importante -, os crimes precisam ser
documentados, para que se preserve a memória.
Assim, a experiência da violência assume, para os estudos literários, a condição de
Literatura de Testemunho, em um primeiro momento ao abarcar as narrativas dos
sobreviventes da Shoah, como Primo Levi, por exemplo. Em relação à história latino-
americana, o testemunho resgata histórias espezinhadas por ditaduras militares. As
histórias de crueldade e opressão, uma vez recontadas, constituem atos de desafio. Por
meio da voz do narrador, as vozes dos mortos e dos mutilados ainda podem ser ouvidas.
Às vezes, as fronteiras entre verdade e ficção podem se tornar turvas. Como Doris
Sommer argumenta, em Rigoberta’s Secret (1991)21
, as fronteiras entre informar e
executar são porosas, mas mesmo quando o contador de histórias vai além do que pode ser
verificado através de outras fontes, a voz da testemunha ainda representa um sentido
generalizado de opressão. Aqui está a política de identidade como um conjunto de
narrativas, uma contra-história que desafia a falsas generalizações na “História”
excludente.
Além disso, Selligman-Silva, em Testemunho da Shoah e literatura (2008),
defende que essa porosidade entre informar e executar encontra também explicação na
carga traumática que a testemunha aciona em sua memória:
Para o sobrevivente a escritura tem o papel duplo que caracteriza o
arquivamento: ela é deposição, inscrição, memória no sentido de recolhimento e
armazenamento de dados, mas é também um ato de separação desta memória.
No ato de escritura o passado é como que passado adiante. Sofre um
21
O artigo de Sommer aborda o testemunho feminino hispânico por meio da análise da obra Me llamo
Rigoberta Menchu y asi me nacio la consciência, publicado em 1983, na qual Rigoberta denuncia a violação
dos direitos humanos pela violência militar na Guatemala e que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1992.
49
desdobramento que eventualmente pode aliviar o peso da carga da memória
traumática (SELLIGMAN-SILVA, 2008, p. 6-7).
Por memória traumática entende-se, no campo da psicanálise, os estudos de
Sigmund Freud, presentes em vários dos seus escritos - dentre eles em algumas seções de
Além do princípio do prazer (2016) que, em 1920, marcou uma mudança decisiva em sua
teoria psicanalítica. Até então, Freud afirmava que toda ação humana é baseada nos
impulsos sexuais (a libido ou Eros) e no princípio do prazer, evitando a dor. Em Além do
Princípio do Prazer, Freud sugeriu que o homem também é governado por uma pulsão
instintiva concorrente: a pulsão de morte (ou Thanatos, o deus grego da morte).
Foram os horrores da Primeira Guerra Mundial que levaram Freud a sustentar que,
dentro de todos nós, reside uma força agressiva, violenta e também autodestrutiva. A vida
e a morte, ele percebeu, são dois lados da mesma moeda e, portanto, sua interação mútua
está no cerne da existência humana. Para apoiar sua teoria, o psicanalista pergunta se
podemos encontrar exemplos de incidentes nos quais a ação humana se move “para além
do princípio do prazer”. Ele identifica quatro casos: jogos infantis, sonhos recorrentes,
autoflagelação e o princípio subjacente da compulsão à repetição (realizar eventos
desagradáveis repetidas vezes).
Como não podia explicar a compulsão à repetição sob a premissa do princípio do
prazer, Freud concluiu, portanto, que devia ser separado dela e especula que a compulsão à
repetição é uma forma ou alivio da pressão originada no trauma, concedendo alívio às
forças autodestrutivas.
De modo semelhante, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, sobreviventes da
Shoah descreveram eventos impregnados de horror. Desde a chegada ao galpão do
despimento, em que ficavam nus, despidos de suas subjetividades, até presenciarem as
mortes de seus semelhantes, esses sobreviventes carregam, em seus corpos e em suas
lembranças, uma dupla experiência de violência: a perda de toda a sua dignidade humana e
a culpa por terem sobrevivido.
Assim, a fixação nesses eventos absurdamente traumáticos exige, paralelamente à
dupla experiência da violência, um desdobramento: o registro das lembranças - para que
tais episódios não se repitam ao longo da história - e a tentativa de, ao registrar, conseguir
algum alívio do trauma.
50
Para além disso, é oportuno destacar que esse tipo de registro por meio da escrita
requer uma elaboração da linguagem bem diferente daquela que se dedica à
transubstanciação proposta pela Poética de Aristóteles, segundo a qual a linguagem é, em
primeira instância, representação. Essa elaboração torna-se necessária na medida em que
o indivíduo se confronta com a dificuldade de dizer o indizível, aquilo que o machucou,
que o feriu, que o traumatizou, de modo que só é possível uma apresentação dessa
experiência por meio de uma linguagem muitas vezes intermitente, perpassada por
momentos de silêncio, por lacunas mnemônicas, mas, de modo algum, destituída de
veracidade.
Então, há que existir um meio pelo qual se pode conceber a linguagem enquanto
contato com o sofrimento e por meio da qual se pode acessar, ainda que com grande
dificuldade, uma cartografia mnemônica de grande valia para o registro de catástrofes, tão
presentes na história da humanidade e, por muitas vezes, relegadas ao esquecimento.
Por essa razão, faz-se indispensável, neste momento, abrir uma reflexão teórica
mais aprofundada acerca dessa instância narrativa que é a de contar a experiência da
violência. Em sua Poética (2011), Aristóteles coloca a teoria da mimese como fundamento
de toda a literatura e apresenta a arte mimética como atividade artística recriadora da
realidade. Destaca a competência do poeta ao narrar não o acontecido, mas o que poderia
acontecer, o possível, a necessidade. A literatura, então, não passa de uma representação,
isto é, de uma recriação do real. Assim, a diferença entre o poeta e o historiador, por
exemplo, não está na forma da obra, mas no que relatam. Por isso, a poesia, segundo ele, é
mais filosófica e de caráter mais elevado, pois permanece no universal. Sob essa
perspectiva, a literatura se ancora no conceito de representação do real, pelo menos até o
século XIX.
Em contrapartida, no Século da Imagem, como ficou conhecido o século XX,
emerge a necessidade de se repensar o caráter universal da poesia ou, nas palavras de João
Camillo Penna, em A experiência da violência (2015), estabelece-se a “crise na arte de
contar a experiência” (2015, p. 113). Desse modo, à ideia de modernidade se associa a
decadência da narrativa da experiência coletiva, tal como Walter Benjamin coloca em O
narrador (1994). Nesse ensaio, Benjamin observa que a narrativa possui origens remotas e
equivale a um tipo de experiência que, na contemporaneidade, é quase impossível. Para
ele, simultaneamente ao surgimento do gênero romance moderno ocorre o declínio da
narrativa.
51
Indo mais além, pontua que a situação na qual se desenvolve o romance é a do
isolamento, ou seja, à proporção que a troca de valores comunitários vai se tornando cada
vez mais escassa, o sujeito, só e silenciosamente, lê: “a origem do romance é o indivíduo
isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes
e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994, p. 201). A narrativa, por
sua vez, é fruto de um trabalho artesanal cuja expressividade advém da matéria-prima da
experiência, tal como o artesão imprime sua marca em sua artesania, arte do conceber e
executar.
Nesse contexto, a figura materializada do narrador benjaminiano pressupõe duas
formas de narrar, representadas pelo “lavrador sedentário” e pelo “marinheiro mercante”:
aquele, porque conta as tradições de sua terra natal e este porque adquire, em suas viagens,
material para relatos sobre outras tradições. Há, então, pelo menos duas lacunas que se
interpõem entre o leitor da narrativa e o do romance. A primeira encontra-se entre o leitor
solitário do romance e aquele que está sempre em companhia do narrador: “quem escuta
uma história está na companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia.
Mas o leitor de um romance é solitário” (BENJAMIN, 1994, p. 213). A segunda diz
respeito ao sentido que o romance pretende alcançar e que, alcançado, marca o tempo de
terminar, ao contrário da contação, que ultrapassa a finitude e conserva viva a tradição:
Com efeito, numa narrativa a pergunta – e o que aconteceu depois? – é
plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode ser um único passo
além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra
fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida (BENJAMIN, 1994,
p. 213).
Em contraponto à lógica aristotélica da representação, a noção benjaminiana do
narrar encontra suporte na figura mitológica de Mnemosyne, deusa das reminiscências e
“mãe” da narrativa e do romance que, ao “pari-los”, o faz de modos diversos: enquanto a
primeira é memória – “consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate”
(BENJAMIN, 1994, p. 211) -, o segundo é rememoração – consagrada a “muitos fatos
difusos” (BENJAMIN, 1994, p. 211).
Volto aqui à “crise na arte de contar”, como já comentei, mencionada por João
Camillo Penna (2015), para que possa apresentar, posteriormente, o narrador Augusto
Boal, pois ignorar o processo histórico seria desconsiderar a função social da memória. Em
outro de seus ensaios, Experiência e pobreza, escrito em 1933, Benjamin defende a tese de
52
que, após a Primeira Guerra Mundial - cujos embates não só revolucionaram as relações de
poder dentro das sociedades como também transformaram normas e atitudes sociais -, os
combatentes retornaram mudos, incapacitados de relatar suas experiências com a guerra.
Longe de cumprir o velho chavão de “qualquer semelhança será mera coincidência”, três
anos após, inicia O narrador basicamente com as mesmas palavras:
No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo
de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o
que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada
tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia
nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de
material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à
escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem
em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num
campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano
(BENJAMIN, 1994, p. 198)22
.
Portanto, é a partir desse silenciamento, dessa impossibilidade de se representar
pela fala os horrores da guerra é que se concretiza a rememoração, o romance, o advento
do livro, em que a memória dá lugar à representação, a experiência individual se sobrepõe
à coletiva, por meio dos tais “fatos difusos” e eis a carência do homem moderno: a pobreza
de experiência socialmente compartilhada. Do avanço tecnológico advém a necessidade de
reinvenção da comunicabilidade, agora técnica porque responde aos anseios do século XX,
mobilizado para o capital. Mais tarde – e mais uma vez -, em O narrador (1994), ele
complementa: “basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo
que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas
também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis”
(BENJAMIN, 1994, p. 198).
22
Cf. em Experiência e pobreza, p. 114: Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado
silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de
guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis
de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela
inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda
fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo,
exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o
frágil e minúsculo corpo humano.
53
Não por acaso, Boal, em sua Estética do Oprimido (2009), faz alusão a Benjamin
quando fala da modernidade enquanto tempo que marca a perda do caráter ritual da arte:
Walter Benjamim (1892-1940), filósofo alemão, no seu ensaio Surl´Oeuvre
d´Art (“Écrits Français”, Ed. Gallimard, 1991), afirma que, através dos tempos,
houve um deslocamento nas formas de apreciação da obra de arte e no seu uso.
Esse deslocamento vai do início da própria arte, quando desempenhava uma
função ritual, até os tempos modernos, quando, graças à multiplicação mecânica,
pode-se expor a mesma obra a um público diverso e heterogêneo, em muitos
lugares e ao mesmo tempo.
[...]
Perde-se o caráter ritual da arte, que, por sua unicidade, se ligava à tradição, à
sua origem, às narrativas que sobre ela eram feitas, fatos reais ou imaginários, à
sua autenticidade, sua história... (BOAL, 2009, p. 41).
Do diálogo com Benjamin surge uma saída: o estatuto político da arte. Se, por um
lado, o poder vigente tem as armas para fazer com que artistas e intelectuais cooperem com
as estratégias de dominação, por outro o pensamento sensível da resistência se coloca em
oposição e oportuniza a criação de conceitos não apropriáveis por esse mecanismo
excludente. Nessa estética concebida por Boal, ele parte de duas teses principais:
(1) O pensamento humano se processa de duas formas complementares – sensivelmente e
simbolicamente -, sendo que o simbólico equivale a pensar apenas por meio de palavras e
o sensível, a pensar, para além das palavras, por meio dos sons e imagens;
(2) Como todas as sociedades são permeadas por confrontações diversas, dentre elas as de
classes, castas, etnias, nações, religiões, por exemplo, não se pode afirmar a existência de
uma estética única. Pelo contrário, há muitas estéticas.
No entanto, a maioria dos sistemas políticos, seja pela arte, pela cultura ou por
todos os outros meios de comunicação, usam da palavra, do som e da imagem para
produzirem uma estética única, que programa os cérebros dos cidadãos à obediência, ao
mimetismo23
e à falta de criatividade. Remetendo-se à Segunda Guerra Mundial e às
ditaduras latino-americanas, diz:
Palavras que, em alemão, sempre foram inocentes, como Endlösung, Selektion e
Anschluss, tiveram seus vários significados reduzidos aos mais tristes pelo uso
que delas fizeram os nazistas. Na Alemanha, hoje, essas palavras devem ser
23
Leia-se aqui uma contraposição de Boal à mimeses aristotélica, o que coaduna com o pensamento de
Benjamin e, consequentemente, com a crise na arte de narrar, conforme já apontei anteriormente.
54
evitadas, tal a carga trágica da qual estão carregadas: “solução final da questão
judaica”, “seleção dos prisioneiros a serem executados” e “anexação da Áustria
pela Alemanha, em 1938”24
. Outra palavra curiosa, fascismo, se encarada de um
ponto de vista histórico e social, remete a Mussolini desde 1922 e, mais
extensamente, aos regimes nazistas da Alemanha hitleriana até o fim da Segunda
Guerra Mundial e da Espanha franquista até mais tarde. Etimologicamente, seu
sentido é mais abrangente: deriva do latim fascio e fascis, que significam feixe,
molho, grupo, ajuntamento (Houaiss, Larousse, Britannica). Podemos, portanto,
apesar das diferenças sociais, falar do fascismo das ditaduras militares da
América Latina dos anos 60 a 80, e do fascismo de nações ultraindustrializadas,
que são, na prática, governadas por feixes, punhados, grupos de dirigentes de
grandes corporações, e não pelos detentores nominais do poder político – estes
são chefes que obedecem (BOAL, 2009, p. 77).
Guerras são caos, ditaduras também e, para Boal, o “caos é ininteligível para nós se
não o analisarmos de todos os meios de que dispomos, não apenas com teorias e palavras.
O Pensamento Sensível é necessário e insubstituível tanto para entendermos as guerras
mundiais como o sorriso de uma criança” (BOAL, 2009, p. 19). Por essa razão, é preciso
transcender o pensamento simbólico e buscar outras formas de comunicação que abarquem
o pensamento sensível, ética de todas as artes. Em outras palavras, tanto para Benjamin
quanto para Boal as artes são politizações das estéticas, não estetizações da política, o
que inclui, principalmente, a não obrigatoriedade de ser a literatura uma forma artística que
só se dá por meio da representação.
Ocorre que não existe uma simples transição entre a estetização da política – seja
tal como o nazi-fascismo europeu ou o neoliberalismo americano – e o estatuto político da
arte. O que ocorre, afinal, é um movimento que vou chamar de revolução intelectual por
parte daqueles que entendem a arte enquanto instrumento de humanização, para mencionar
a Antonio Cândido25
, e reconhecem a importância da narrativa como uma tarefa cujo
elemento fundante é a experiência. Então, de sua origem até seu desdobramento, as
reminiscências – as quais já me referi anteriormente - são permeadas por um processo
histórico, o qual atesta sua origem em comum da rememoração e da memória. Na
24
Segundo Mark Roseman, em Os nazistas e a solução final: a conspiração de Wannsee: do assassinato em
massa ao genocídio (2003), a multietnia e o multiculturalismo eram tradição do império Austro-Húngaro,
porém, na nova sociedade austríaca imperavam antissemitismo e o antijudaísmo, o que dificultava a anterior
coexistência multicultural. Em virtude disso, muitos austríacos de origem germânica, como era Hitler, por
exemplo, passaram a desejar a exclusão dos outros grupos étnicos. Assim, o termo “solução final” se refere
ao ideal nazista de, durante a Segunda Guerra Mundial, banir os judeus de todos os territórios de ocupação
alemã. Esse termo, inclusive, está presente em uma carta na qual o general Reinhard Heydrich pede a
participação do Ministério do Exterior alemão para executarem o plano de extermínio. A partir de então, nos
campos de concentração onde foram colocados os judeus, havia um processo de “seleção” de quando e como
esses judeus seriam executados. 25
O crítico literário Antonio Cândido, em seu texto O direito à literatura, defende que a literatura em nossas
sociedades tem o poder de instruir e educar e, por isso, deve ser um direito de todos os cidadãos.
55
contramão da Poética de Aristóteles, é possível vislumbrar outro paradigma que não o
representacional, qual seja, o paradigma experiencial (PENNA, 2003).
3.2 Ele ia para casa comer milanesas...
Eu tinha acabado de ensaiar Simon Bolívar e estava cansado. Um dos atores
tinha me perguntado:
- Afinal pra que é que a gente fica ensaiando tanto? A censura não vai mesmo
deixar que a gente faça essa peça...
Eu não acreditava nada em nenhuma “abertura”, como muitos otimistas; desde
1964, desde uma semana depois do golpe e até hoje, tem muita gente que
continua dizendo que o governo vai mudar, que vai redemocratizar o país,
restaurar os direitos do homem, etc. Eu não acreditava que isso fosse possível; na
minha opinião o governo não ia restaurar nada de motu proprio. Mas não queria
de jeito nenhum aceitar a autocensura: não queria facilitar o trabalho deles. Se
quiserem proibir uma peça minha, que proíbam: têm a força do lado deles. Mas
não contem comigo para que me autocensure. Eu não queria fazer como muita
gente que já nem sequer se permitia pensar em certas peças que gostaria de fazer,
só de medo da censura. Por isso, continuávamos ensaiando essa peça sobre o
Libertador de tantos países de Nuestra América, o homem que se auto-intitulou
“O Lavrador do Mar”: tudo o que fez, ficou por fazer, tem que ser feito de
novo... (BOAL, 1979, p. 7).
Boal estava a caminho de casa, pensando nas milanesas que pedira para Cecília
preparar, quando seu percurso foi interceptado e desviado. Assim, ao invés de casa,
cadeia26
:
Ele foi buscar umas chaves enormes (dessas que eu já tinha visto no cinema) e
me levou através de um corredor comprido, cheio de portas gradeadas, de ferro.
No final do corredor, começava outro, menor, com celas individuais. Logo na
primeira ele parou, abriu a porta e me mandou entrar. Entrei. Havia uma cama e
nenhum cobertor, nem lençol, nem travesseiro. Uma pia e uma privada. A janela
ficava lá no alto (BOAL, 1979, p. 16).
Ao invés de milanesas, inapetência:
Hans me ouviu respeitoso, em silêncio, e perguntou depois se eu não queria
outro pão com manteiga. Não, eu não queria, nem sequer quis o primeiro, que
deixei de lado, sem comer. Perguntei a que horas chegaria o comissário e ele me
26
No Anexo VI encontra-se o prontuário de pedido de prisão preventiva de Boal. Esse documento está
disponível no Acervo Público da Cidade de São Paulo, relativo ao Departamento Estadual de Ordem Política
e Social, na pasta DEOPS – Santos.
56
respondeu que só depois do almoço. Se despediu e foi atender outros presos
(BOAL, 1979, p. 20).
Ao invés do carinho da esposa e dos filhos, pau-de-arara e choque elétrico:
De repente senti um estremecimento: meu corpo convulsionado reproduzia o
ataque que eu tinha tido na sala de torturas. Lembro que caí na da cama. Lembrei
da rã e dos movimentos convulsos de suas pernas. Lembro que abriram a porta e
me levaram para fora e me deixaram deitado no chão. Ouvi a voz do crioulo
gordo (esclareço: gordo e reacionário):
- Quem num guenta o rojão, pra que se mete? Se meta não! (BOAL, 1979, p.
75).
Milagre no Brasil é o testemunho de um percurso nem tão longo e muito menos
violento do que o de outros, presos políticos ou não, pelos porões da ditadura. Nem por
isso deixa de representar a força do trauma que impeliu Boal a expor essas vivências,
inicialmente consumido pelo impasse entre o que viveu e a dificuldade de conseguir
organizar elementos da linguagem que dessem conta de expressar, na íntegra, a sua
experiência da violência e, posteriormente, reorganizar esses elementos em uma nova
perspectiva, pois, além de protagonizar a própria dor, ele ainda foi coadjuvante na cena de
dor do outro.
Nesse contexto, entende-se por testemunha – desde a semente lançada por Walter
Benjamin –, na visão de Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a
testemunha (2008), o sujeito que vivenciou a experiência traumática, conhecido como
superstes ou sobrevivente, “aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e,
portanto, pode dar testemunho disso” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Há também o testis, o
que viu, que testemunhou, “que se põe como um terceiro em um processo ou em um litígio
entre dois contendores” (AGAMBEN, 2008, p. 26). Seria o testis a testemunha relacionada
à esfera jurídica e que, por isso, não tem como testemunhar do mesmo modo que o
superstes: “cabe ao sobrevivente precisamente isso: tudo o que leva uma ação humana para
além do direito, o que a subtrai radicalmente ao Processo” (AGAMBEN, 2008, p. 27).
Contudo, se, na cena do superstes, o presente do ato testemunhal prevalece, isso
não significa que a negar a possibilidade do testemunho também enquanto testis. É preciso
ter clareza para compreender que não há como separar radicalmente os dois sentidos do
57
testemunho, assim como não se deve dissociar, de modo rígido, a historiografia da
memória, o que discutirei com mais detalhes posteriormente.
Além disso, as pesquisas de Jeanne Marie Gagnebin, especificamente na obra
Lembrar escrever esquecer (2006), agregam aos estudos sobre o testemunho o conceito de
testemunha solidária. Para ela, existe a testemunha que pode estar fora da relação entre
torturador e torturado, mas que, mesmo assim, compromete-se com a experiência de
violência do outro,
não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão
simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa
retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas
a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006, p.
57).
Assim, faço uma subdivisão da obra na qual mapeei cenas do Boal protagonista e o
coadjuvante, além do Boal solidário, e que nomeio como: Ato I - O incomunicável; Ato II
- O incomunicável comunicável; e Ato III - Eu queria dizer alguma coisa que não fosse
triste.
3.2.1 Ato I - O incomunicável
3.2.1.1 Cena I
Alguém certamente havia caluniado Josef
K., pois uma manhã ele foi detido sem ter
feito mal algum.
Franz Kafka, O processo.
A cela se chamava F-1 (isto é, Fundão, cela nº 1). Da minha janelinha eu podia
ver tudo que acontecia no corredor em frente, gente que entrava ou que saía das
celas grandes. À minha direita estavam as celas pequenas, individuais – mas
essas eu não podia ver: estavam ao lado da minha. No fundo do corredor estava
quase sempre um soldado armado, sentado numa cadeira. Nesse momento ele
veio caminhando na minha direção. Passou diante de uma das janelas e alguém
lhe pediu fogo. Os presos não podiam ter consigo fósforos. O soldado acendeu o
cigarro do preso e continuou caminhando em minha direção. Me deu boa noite
quando chegou perto. Eu perguntei se não podia ficar junto com os outros, numa
outra cela. Respondeu que não. Meu caso não era grave, mas de qualquer
58
maneira eu estava incomunicável, e ia ter que continuar assim até que o
comissário me interrogasse (BOAL, 1979, p. 17).
Há aqui um processo descritivo que me parece fundamental, porque o vejo como
um complemento que possibilita um detalhamento da experiência que, na maioria dos
testemunhos, torna-se uma ação muito difícil, inclusive no decorrer das cenas de maior
carga traumática.
O predomínio dos verbos no pretérito imperfeito do indicativo no início da
descrição aponta para um fato ocorrido no passado, mas que não foi completamente
terminado, expressando, assim, uma ideia de continuidade e de duração no tempo como se,
no presente da enunciação, aquele fato também não tivesse terminado. Por sua vez, o
pretérito perfeito, que permeia o final da exposição, dá o tom de uma verdade passada e
ratifica o testemunho: ele estava incomunicável. O testemunho é antes apresentação que
representação, conforme aponta o desenrolar da cena:
Me lembrei de gente que tinha estado presa dois ou três dias, uma semana, e que
saiu depois, sem o menor problema. Afinal de contas, para mim, seria uma
experiência nova. Mas pensei também em Joseph K., que nunca chegou a saber
de que estava sendo acusado e mesmo assim acabou um dia apunhalado no
coração. Claro: existe uma enorme diferença entre a realidade e o romance.
Claro – pensava eu – a realidade é muito pior (BOAL, 1979, p. 18).
Joseph K. é personagem de O processo, escrito em 1925, pelo tcheco Franz Kafka.
K.,um bancário, certo dia acorda com dois homens em seu quarto que, sem maiores
explicações, apenas o conduzem a esperar para ser atendido pelo inspetor de polícia.
Surpreso, ele entra no quarto de Fräulein Bürstner, com quem dividia a casa, e o que
encontra o deixa intrigado: nada além do inspetor. Nesse momento percebe que está no
meio de uma investigação e ele é o investigado. E a história segue sem que se conheça
quem o teria denunciado às autoridades e o motivo de estar sendo preso. Apesar disso, K.
luta para descobrir do que estava sendo acusado. Sem sucesso, acaba assassinado.
Kafka escreveu O processo após a Primeira Guerra mundial, deflagrada,
basicamente, em virtude das ambições territoriais e de consolidação do capitalismo.
Imperavam os Estados autoritários e as lutas pelo poder tolhiam os direitos individuais,
feriam e culpavam inocentes, como Joseph K. Daí a identificação de Boal com a
personagem kafkiana. Contudo, importa ressalvar a diferença entre realidade e romance
59
colocada por Boal; por isso, preciso retomar Walter Benjamin: ora, se o romance se calca
na possibilidade do que pode vir a ser, a realidade é, sem dúvida, mais dura. Enquanto
Kafka fala por Joseph K., Boal fala por si mesmo. Em uma primeira experiência de
violência, ao se comparar com protagonista kafkiano para, logo em seguida, dissociar-se
dele, Boal se depara com sua própria incomunicabilidade, o que o coloca em uma
situação de impotência, em um primeiro plano, diante de sua prisão e, em um segundo
plano – mas não menos importante – diante da dor do outro, conforme atesta a cena II.
3.2.1.2 Cena II
Aqui é preciso ser mais brechtiano do que
stanilawskiano... Aqui a gente não pode só
sentir, tem que tentar compreender... Tem
que ter muito efeito de distanciamento...
Nada de emoções...
Heleny Telles Ferreira Guariba.
A moça ao lado continuava chamando o “Catarina”. Daí a pouco ele veio à
minha janela e perguntou meu nome. “Boal”, respondi. Ele foi de novo falar com
a moça e logo ouvi a sua voz:
- Augusto?
- É... – disse eu meio surpreso.
- Sou eu, Maria Helena!
Era uma grande amiga minha que já estava presa há mais de um ano, já tinha
estado em várias delegacias e nos quartéis militares, havia sido torturada e quase
morta (BOAL, 1979, p. 20).
Boal, nesta cena, experimenta uma série de outras violências simbólicas, mas
efetivas, sobretudo no que diz respeito a vivenciar as experiências dos seus iguais. Sente-se
mal por não conseguir ver o rosto da amiga e avaliar se ela continuava igual ou se as
torturas haviam modificado seu rosto. Não sabe como postar a voz para que ninguém além
60
dela possa ouvi-lo. Sofre porque, mesmo quase torturada até à morte, Maria Helena27
se
ocupa de aconselhá-lo:
- Ninguém deve confessar nada. Confessar um pouquinho só é pior que não
confessar nada, pra efeito de levar pancada, entende? Tem gente que confessa
um pouquinho só, pensando que assim eles vão parar com a tortura, e entram
pelo maior cano, porque assim é pior, aí é que eles torturam mesmo, porque eles
percebem que batendo mais o cara conta mais coisas. Mas se você não confessa
nada eles pensam que você não tem nada pra confessar, e acabam parando de
torturar (BOAL, 1979, p. 23).
O torturador é aquele que espera, na confissão, uma delação, para que possa
responsabilizar (torturar e matar) mais um. Portanto, não há verdade devida a um
torturador. Pode-se, sim, responder com mentira e violência à violência de um Estado de
exceção, como atesta Vladimir Safatle, em Do uso da violência contra o Estado ilegal
(2010):
Por isso, podemos dizer que o segundo princípio que constitui a tradição de
modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de
todo cidadão é o direito à rebelião. Quando o Estado se transforma em Estado
ilegal, a resistência por todos os meios é um direito. Neste sentido, eliminar o
direito à violência contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar
o fundamento substantivo da democracia (SAFATLE, p. 246).
Sobre isso, interessa pontuar que, em 2008, a ex-presidenta Dilma Roussef, então
Ministra da Casa Civil, quando da audiência da Comissão de Infraestrutura do Senado, ao
ser indagada pelo Senador Agripino Maia sobre ter mentido durante o período da ditadura
civil-militar, responde:
Eu tinha 19 anos, fiquei três anos na cadeia e fui barbaramente torturada,
senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para os seus interrogadores
compromete a vida dos seus iguais e entrega pessoas para serem mortas. Eu me
orgulho muito de ter mentido, senador, porque mentir na tortura não é fácil [...].
Não tenho nenhum compromisso com a ditadura em termos de dizer a verdade.
Eu estava num campo e eles estavam noutro e o que estava em questão era a
minha vida e a de meus companheiros [...]. Não há espaço para a verdade, e é
isso que mata na ditadura. O que mata na ditadura é que não há espaço para a
verdade porque não há espaço para a vida, senador. Porque algumas verdades,
até as mais banais, podem conduzir à morte. É só errarem a mão no seu
interrogatório [...]28
.
27
Em Hamlet e o filho do padeiro fica claro que Maria Helena era, na verdade, Heleny Telles Ferreira
Guariba. 28
Transcrição extraída do Youtube. Ver link: https://www.youtube.com/watch?v=12P7LtbHdqM.
61
Ainda nessa mesma cena, Maria Helena conta sobre Manuela29
, outra amiga de
ambos, que estava também presa ali há um mês. E lhe avisa para não se impressionar,
porque Manuela tinha sido torturada e estava se aproveitando disso para exagerar,
esperando, assim, não ser mais torturada. Porém, algum tempo depois, Boal (1979) relata:
A verdade é que Manuela tinha sido tão torturada que não podia nem ao menos
andar. Mais tarde eu a vi no corredor, ajudada por duas companheiras; senti pena
dela, coitada, e um ódio mortal pela ditadura [...].
No corredor, Manuela reaprendia a andar. Cansava-se facilmente e ficava um
tempo sentada no chão. Era uma moça pequena e frágil. Duas ou três vezes ficou
sentada enquanto suas amigas também descansavam. Na quarta ou quinta vez em
que se sentou no chão estava bem perto da minha janelinha. As duas moças
ficaram conversando com um homem que estava mais distante – uma espécie de
fiscal, ou coisa que o valha, que tomava notas e examinava tudo. No chão,
Manuela falou comigo.
- Dói...
- Te machucaram muito?...
- É...
Perguntou se eu tinha visto a mãe dela ultimamente, e eu disse que sim e contei
todas as novidades que sabia. Ela disse que eu procurasse me manter calmo. Vi
que o homem fazia gestos para as duas moças, mostrando sua desaprovação, e
elas vieram de novo buscar Manuela. Ninguém podia falar comigo: eu estava
incomunicável. Manuela ainda pode se despedir de mim:
- Dói pra burro... (BOAL, 1979, p. 22).
Sem fome e se sentindo cada vez mais impotente em relação à dor do outro, Boal
testemunha mais uma tortura simbólica no momento em que vêm avisar a Maria Helena
que ela seria transportada para outro lugar:
- Capaz que eles queiram me levar de volta pro quartelzinho, pra me fazerem
umas perguntinhas mais...
O quartel a que se referia era um dos lugares mais lúgubres e terríveis de todo
Brasil. Ficava na rua Tutóia. Ali três equipes de oficiais se revezavam torturando
dia e noite, sem qualquer interrupção. Os mais ferozes torturadores, os mais
animalizados, ali praticavam. E como era pequena a distância entre a sala de
tortura e as celas dos presos, estes eram forçados a escutar dia e noite, sem
descanso, os gritos de dor dos companheiros. Às vezes, a pior tortura é ver um
torturado30
. E ali se podia ver – e se era forçado a ver – e ouvir. Vinte quatro
horas por dia (BOAL, 1979, p. 26).
29
Em Hamlet e o filho do padeiro Boal se refere à Manuela como Albertina, sua primeira mulher: “por
fingimento, não deveria me preocupar vendo Albertina, minha primeira mulher, reaprendendo a andar. Mas...
ficasse frio, descansado: ela exagerava na dor, não era tanta” (BOAL, 2000, p. 276). 30
Grifo meu.
62
Além de ter a percepção da tamanha tortura sofrida por Manuela, Boal é violentado
pela possibilidade de Maria Helena estar sendo conduzida não só a mais algumas sessões
de tortura como também por ser torturada em um lugar no qual se é obrigado a partilhar, o
tempo todo, do sofrimento alheio. Dupla experiência de violência, que só se traduz pelo
silêncio:
Nesse momento eu ainda não sabia que minha amiga ia ser assassinada meses
mais tarde. Fiquei comovido do mesmo jeito. E quando ela desapareceu, sem
querer, chorei. Algumas lágrimas caíram das minhas mãos. Limpei os olhos com
os dedos que Maria Helena tinha beijado e sentei na cama. Fiquei pensando.
Pensamentos tão confusos como esse que a gente pensa sem saber direito no que
está pensando. Fiquei assim um tempo.
Durante toda a manhã não aconteceu nada mais.
Existiu um silêncio. Longo silêncio (BOAL, 1979, p. 28).
Segundo Boal (1979), Maria Helena foi solta meses depois e, a seguir, foi
reaprisionada, torturada e morta. Seu corpo despareceu.
Ao se comprometer com a experiência de violência do outro, Boal, além de também
violentado e, naquele momento, silenciado, oferece, posteriormente, em Milagre no Brasil,
o seu testemunho solidário, reestabelecendo um espaço simbólico que, nas palavras de
Gagnebin (2006), pode dar sentido humano ao mundo:
Muitas vezes se fala dos sofrimentos dos presos políticos no Brasil e nunca se
falará o bastante. Mas é igualmente necessário falar do heroísmo com que muitos
desses presos enfrentaram a repressão. Maria Helena foi uma dessas heroínas.
Dela ninguém jamais conseguiu arrancar a menor confissão, a mais
insignificante informação. Nenhum companheiro jamais poderá acusá-la da
menor falta (BOAL, 1979, p. 27).
Retomando a resposta de Dilma Roussef, feliz do país que não precisou desse tipo
de heróis:
Feliz do povo que não tem heróis desse tipo, senador, porque aguentar a tortura é
algo dificílimo, porque todos nós somos muito frágeis, todos nós. Nós somos
humanos, temos dor, e a sedução, a tentação de falar o que ocorreu e dizer a
verdade é muito grande, senador, a dor é insuportável, o senhor não imagina o
quanto é insuportável. Então, eu me orgulho de ter mentido, eu me orgulho
imensamente de ter mentido, porque eu salvei companheiros da mesma tortura e
da morte.
63
3.2.1.3 Cena III
Mas não conseguia deixar de pensar...
Augusto Boal.
No intercurso que antecede essa cena, Boal diz ao soldado que está com vontade de
defecar, mas que na cela não tem papel higiênico. O soldado, então, tira uns papéis do
bolso, lê alguns e lhe entrega três deles. Nesse ínterim, a vontade de Boal já havia passado,
porém não o seu nervosismo e apreensão. Pensamentos recorrentes, circulares, imagens
que o faziam sentir como se estivesse prendendo ali, com ele, as pessoas a quem amava. A
tentativa de dormir fracassa e lhe vem à cabeça a hipótese de que, se conseguisse defecar,
o sono viria. Senta-se no vaso sanitário, mas continua não dando conta de controlar tais
pensamentos. De tão absorto, não percebe o ocorrido:
Estava tão entretido com os meus pensamentos que nem sequer percebi o que
tinha acontecido: foi o cheiro que me avisou que eu já tinha cagado. Limpei o cu
com as três folhinhas do soldado.
Mesmo assim não pude dormir (BOAL, 1979, p. 19).
No ensaio Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção
(1998), Selligman-Silva comenta, a propósito da obra Fragmentos: memórias de uma
infância 1939-1948, do autor Binjamin Wilkomirski, publicado em 1995. O livro alcançou
sucesso imediato, foi traduzido para mais de 12 línguas, adaptado três vezes para o cinema
e uma para o teatro. Foi aclamado tanto pela crítica literária quanto pelos mais importantes
estudiosos da Shoah como mais completo relato sobre o holocausto, em detrimento até das
provas documentais. Entretanto, em 1998, tamanho sucesso se tornou um escândalo da
história da literatura após a revelação de que tanto autor quanto obra eram ficção. Binjamin
Wilkomirski, na verdade, chama-se Bruno Doessekker, não é judeu nem tem origem
judaica e ainda nasceu em 1941.
Apesar disso, Selligman-Silva (1998) defende que, se a ficção de Doessekker é
trágica, mais trágicas foram as condições dos campos de concentração, condições estas que
continuam asseverando a inegável importância do testemunho para a literatura. Portanto,
64
não vejo inconsistência em retomar o momento em que a resenha destaca as várias vezes
nas quais a testemunha, no campo de concentração, sentiu nojo, para lembrar que esse
sentimento serve como reafirmação dos limites do indivíduo:
Os seus limites físicos tornam-se a garantia de uma nova moral. É o corpo
também que serve de suporte para a nova cartografia mnemônica. Não é por
acaso que (proustianamente) o odor tem um papel importante na organização dos
fragmentos de memória (também) para Wilkomirski. Um sentido
tradicionalmente ligado aos instintos mais básicos e posto abaixo do olhar e da
audição ganha agora uma nova dignidade (SELLIGMAN-SILVA, 1998, p. 23).
Analogamente, naquele momento, sem ver ou ouvir ninguém após a saída do
soldado, esses outros sentidos dão lugar ao olfato, que se reconfigura na medida em que o
mau cheiro traduz mais uma experiência violenta: a incomunicabilidade confirmando a
solidão do cárcere.
3.2.1.4 Cena IV
Começa a ser revelada a história das
violências cometidas com o carimbo oficial
e que estão escondidas sob algumas pás de
terra ou impregnadas de teias de aranha.
Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos
a partir de 1964.
Ouvi ruídos no corredor: traziam um homem deitado em uma maca. Quando se
aproximaram, pude ver um rosto duramente golpeado. Era Hélvio que regressava
à sua cela. Tinha sido torturado com toda a crueldade: hematomas e sangue.
Depois me contaram que essa era uma das piores formas de torturar e se
chamava “Quente e Frio”: consistia de dizer ao prisioneiro que ele ia ser posto
em liberdade e lhe davam mesmo o direito de tomar banho, fazer a barba,
arrumar suas coisas. Às vezes, até lhe devolviam os documentos e objetos
pessoais. E, quando já estava no elevador, em vez de ir para a rua era levado
diretamente à sala de torturas para novas sessões. Inconsciente, voltava à sua
cela, onde tinha comemorado sua liberdade com seus amigos. Isso produzia um
impacto terrível sobre a vítima principal e, colateralmente, sobre todos os seus
companheiros. Aliava-se a tortura física à psicológica (BOAL, 1979, p. 33).
65
Arrisco-me a fazer uma analogia: o superstes estaria para o narrador-personagem
assim como o testis estaria para o narrador-observador. Ocorre que, no testemunho,
enquanto experiência de violência - sobretudo a experiência derivada de grandes
catástrofes sociais – , dificilmente o superstes, ainda que observador da experiência do
outro (ou dos outros) dará conta, diante da violência na carne alheia, de ser testis, de
apenas narrar o que observou, de se colocar como um terceiro entre vítima e carrasco, entre
torturado e torturador. É impossível para ele ver o sangue do seu semelhante sem
compartilhar, mesmo que indiretamente, daquela dor. A não ser que não se julgue
semelhante, mas aí já não há experiência, pelo menos não aquela que impulsiona o
testemunho, como é o caso, nessa mesma cena, do Seu Luís cursilhista. Não ouso dar a
minha interpretação da sua fala, ela não abarcaria toda a ignara monstruosidade do que foi
dito, por isso transcrevo:
Seu Luís continuou e chegou perto da minha cela:
- Como é que vai, seu Francisco...?
- Meu nome é Augusto... – respondi.
- Eu sei, eu sei. Você pode se chamar pelo nome que quiser, mas aqui seu nome
não tem importância. Pra mim aqui, pelos documentos, você se chama... – e
olhou uns papéis que trazia - ...você se chama, deixa eu ver... Cela F-1, Francisco
de Sousa. Que tal? Gosta do seu novo nome? Não sei quem foi que o batizou...
- Prefiro meu próprio nome.
- É, mas não convém. Enquanto você estiver incomunicável, não convém. Você
já esteve preso antes ou essa é a primeira vez? (BOAL, 1979, p. 34).
Era muito comum, durante a ditadura civil-militar, forjar documentos com nomes
falsos, para que o prisioneiro não pudesse ser encontrado pela família ou para que, sendo
artista, não houvesse mobilização de qualquer natureza pela sua soltura. Mais do que isso,
o Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 (1995) relata que, por
ocasião do golpe, a Doutrina de Segurança Nacional, alegando a defesa do Estado de
Segurança, instaura a censura, para que a maior parte do povo não tivesse acesso a nenhum
tipo de informação. Por outro lado, o governo investia na produção e na operação de
informações que visassem aos seus interesses e os de seus aliados, por meio do Serviço
Nacional de Informações (SNI), criado em junho de 1964. Essa e outras manobras31
31
A expansão do SNI teve como consequência o recrudescimento da repressão política. Foi criada a
Operação Bandeirantes – OBAN, financiada também por multinacionais, como a Ultra, Ford, General Motors
66
garantiam que as autoridades governamentais não fossem responsabilizadas pelas mortes
de muitos desses presos, dados como foragidos pelos órgãos oficiais32
.
Voltando à situação de Hélvio, mais uma vez o Seu Luís é quem tortura:
- Aqui, os primários são tratados muito bem. A única coisa que precisam fazer é
confessar. Confessar tudo. O que você souber vai ter que confessar. É um
conselho de amigo: confesse. E logo você vai dormir na sua casa. Você vai
precisar demonstrar sua cooperação. Você precisa conquistar a confiança do seu
interrogador. O comissário é um homem severo, isso é verdade; mas ele gosta
muito das pessoas que confessam logo na cara. E é lógico: aqui todos confessam,
mais cedo ou mais tarde. Pra que perder o tempo, que é tão precioso? Pra quê?
Pra acabar como esse coitado aí ao lado? Quem não confessa por bem acaba
confessando por mal. Pra que perder tempo? Esse aí ao lado está com a perna
que dá dó, quase se pode ver o osso. Pra quê? Sofrimento inútil... (BOAL, 1979,
p. 34).
Assim, no decorrer de toda a cena, tem-se uma terceira experiência de violência:
uma para o Boal superstes protagonista, ao lidar com a subtração de sua identidade, e outra
para o Boal superstes coadjuvante, ao experienciar a dor de Hélvio. Quando ele diz que a
tortura “Quente e Frio”, além do impacto sobre a vítima, produzia um impacto psicológico
sobre todos os outros companheiros, está se incluindo entre esses companheiros, o que faz
dele também uma vítima. Chocado, Boal ainda relata:
Apareceu o médico da prisão, entrou na cela de Hélvio e seu Luís foi atrás.
Ficaram lá dentro uns 10 ou 15 minutos, depois saíram. Eu estava sentado aos
pés da minha cama, de modo que eles não me viam. Eu ouvia tudo o que diziam.
Seu Luís perguntou se não tinham exagerado um pouco na tortura.
- Não, não... – respondeu o médico – Acontece que torturaram ele de uma forma
errada. Não fizeram um trabalho profissional. Torturaram errado. Penduraram
ele de uma perna só, a direita. Porra, isso não se faz. Está me entendendo:
concentraram todo o peso do rapaz só no joelho direito. O resultado foi esse, é
lógico...
Seu Luís perguntou então muito naturalmente quantos dias teriam que esperar
antes de poder torturarem de novo. Friamente, o médico respondeu:
e outras. A OBAN contava com integrantes do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Política Estadual,
Departamento da Polícia Federal, Polícia Civil, entre outros. Foram tão eficientes seus métodos de combate à
chamada subversão, por meio de torturas e assassinatos, que serviu de modelo para a implantação, em escala
nacional, de organismo oficial – sob a sigla DOI-CODI – Destacamento de Operações e Informações Centro
de Operações de Defesa Interna (ARAÚJO et al, 1995, p. 24). 32
Ainda de acordo com o Dossiê, mesmo diante das mortes consideradas oficiais, ou seja, reconhecidas pelo
governo, muitas famílias, até hoje, não localizaram os restos mortais, pois as vítimas foram enterradas com
identidades falsas.
67
- Não precisa repouso nenhum, não. Se quiserem fazer outra sessão hoje mesmo
à tarde, como não? Só que não podem encostar na perna direita: mas podem
pendurar o rapaz pela esquerda... (BOAL, 1979, p. 35).
Aqui, sim, tem-se o Boal testis, aquele terceiro que testemunhou e que, por isso,
além de deixar para a história o seu mal sofrido, também deixa como legado a denúncia da
omissão do Estado e de seus apoiadores, como comprova, mais uma vez, o Dossiê dos
mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 (1995), segundo o qual o aparato de
repressão política tinha respaldo técnico de muitos Institutos Médicos Legais, que omitiam
as torturas, legalizavam mortes e permitiam a saída de cadáveres como indigentes, mesmo
identificados dentro das prisões33
.
3.2.1.5 Cena V
Enquanto os homens exercem seus podres
poderes...
Caetano Veloso.
O tira parecia ter prazer em tentar me assustar. Continuou contando detalhes
escabrosos de mortos, aleijados, e de gente que ficava louca durante os
interrogatórios.
- Você se lembra do Hélvio? Teve que ser internado na enfermaria. Está entre a
vida e a morte... Isso pode acontecer com qualquer um, até com você. Mas se
você deixar de besteira e confessar de uma vez, pode ser que hoje mesmo você
vá dormir em casa...
Eu estava já com dor de cabeça. Não conseguia pensar em mais nada, nem na
minha casa, nem no meu trabalho, nem na minha cela. Não conseguia ordenar
meus pensamentos. Meus olhos continuavam registrando imagens, mas era como
se elas não penetrassem na minha consciência. Por momentos, eu parecia perder
a consciência e era como se nem mais soubesse onde estava.
[...]
Creio que fiquei ali sentado umas duas horas (BOAL, 1979, p. 44).
Chamo essa cena de interiorização do terror, conforme colocam Marcelo e Maren
Viñar em Exílio e Tortura (1992, p. 164), segundo os quais “o clima de terror generalizado
33
Além disso, no formulário de requisição do laudo da necroscopia, vinha escrita a palavra “subversivo” ou
apenas a letra T, que significava terrorista.
68
e a institucionalização da tortura (...) se traduzem, na subjetividade, como perda do apoio
social necessário ao funcionamento psíquico e com a interiorização do terror”. O relato,
por parte do policial, dos horrores da tortura, dos “detalhes escabrosos”, bem como a
ameaça do “isso pode acontecer com qualquer um, até com você” traduzem uma
experiência de desorganização da relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, para
qual a resposta do indivíduo me parece ser essa sensação de perda de consciência, de não
identificação nem com o lugar nem com o tempo:
Eu estava terrivelmente cansado de tanto me emocionar. A insegurança de cada
minuto, a tristeza de ver tudo o que eu via, se refletia nos meus músculos e eu
me sentia esgotado. Queria dormir. Queria parar de pensar. Não conseguia nem
ao menos pensar coordenadamente. Não juntava dois pensamentos. Às vezes
perdia a noção de onde estava (BOAL, 1979, p. 50).
A interiorização do terror, então, vem acompanhada de toda uma carga traumática.
Essa complexidade que é a descontinuidade de pensamentos, essa impressão de estar fora
de si mesmo, de se perder no espaço e no tempo constitui, assim, uma experiência que
dificulta tanto a elaboração das lembranças quanto a organização de uma linguagem que dê
conta de expressá-las.
3.2.1.6 Cena VI
Faz de conta que não dói...
Augusto Boal.
Nunca me havia ouvido gritar semelhante grito. Nem pude acreditar que era a
minha voz. Em geral, quando uma pessoa quer gritar, prepara o grito. Esse foi o
primeiro grito da minha vida sem nenhuma preparação. Por isso era diferente,
não parecia meu, não se parecia a nenhum grito conhecido (BOAL, 1979, p. 63).
Na literatura de testemunho, o corpo – a dor – é um de seus elementos e cada
vítima tem um modo de lidar com ela. O grito é uma das maneiras de se expressar a dor,
mas o não reconhecimento do próprio grito assinala uma lacuna memorialística típica do
testemunho. Tem-se, a partir desse não reconhecimento, um novo mapa de memória, em
69
que a dor se sobrepõe a qualquer tentativa de a vítima, no presente da narrativa, delimitar
um espaço temporal para a tortura:
Comecei a tremer convulsivamente: sentia a eletricidade em toda parte do corpo,
nos braços, nas pernas, na cabeça, no estômago. Minhas orelhas pareciam
queimar. O choque elétrico não tinha durado muito – talvez uns poucos segundos
– mas os seus efeitos continuavam muito além.
[...]
Que horas seriam? Eu queria saber as horas. Talvez isso pudesse me distrair da
dor. Qualquer coisa me podia distrair da dor. Eu queria pensar em qualquer
coisa, menos na dor (BOAL, 1979, p. 63-64).
Diante da dor, tudo o que o cerca já não faz sentido para além do corpo que sofre.
Tamanha é a consciência embotada, que Boal ri:
Eu não podia acreditar. E isso o que era? Seria possível que eles não
compreendessem? Estavam me torturando e ao mesmo tempo declaravam que a
tortura só existia na propaganda feita no Exterior pelos maus patriotas. A
bestialidade da cena era tão grande que eu não me contive e sorri (BOAL, 1979,
p. 66).
Sobre essa passagem, preciso fazer duas considerações. A primeira se refere ao
paradoxo entre dor e riso, que remete a Freud (1905) em Os chistes e sua relação com o
inconsciente (2017), na qual ele relata o caso de um condenado à morte que, na manhã de
sua execução, diz que a semana está começando otimamente. Essa estranha relação entre
angústia e riso aponta para o quanto o humor pode funcionar como uma cortina que se
fecha por sobre o horror. A segunda, ainda na esteira desse paradoxo, reforça a potência do
testemunho, na medida em que não é possível metaforizar nem a tão grande bestialidade da
cena, muito menos o horror sob o disfarce do riso. É como se essa descrição fosse uma
peça de um outro quebra-cabeça colocada naquele cenário, um alívio cômico na narrativa
presente que permite suportar a sequência trágica:
Desta vez não me lembro nem mais ou menos quanto durou o choque, mas
certamente foi muito mais do que eu podia aguentar, em estado de consciência.
Eu me lembro que o meu corpo saltava pendurado pelos joelhos, como se fosse
uma máquina de quebrar pedras. Lembro do meu grito continuado e das caras
ferozes, ofendidas. Deve ter passado muito tempo. Desmaiei. Não sei se uma ou
70
duas vezes, se muito ou se pouco tempo. Só sei que depois de algum tempo eu
ainda continuava ali, pendurado e que meus dedos pareciam bolas de sangue,
sangue escuro, quase preto.
[...] Enquanto isso, outra rajada de choques elétricos, mais curtos, mais rápidos.
Meus gritos, cada vez mais débeis. Comentaram entre eles que eu já não ia
aguentar mais. A sequência curta dos choques tinha me causado um mal enorme.
Tenho problemas respiratórios e isso, aliado à posição em que estava, quase me
impossibilitava de respirar. Duas ou três vezes perdi a consciência, não me
lembro (BOAL, 1979, p. 67-72).
Lembrar e não lembrar, saber e não saber: são imagens que se alternam e se
desorganizam, tal como o relato. Além disso, entremeando o passado, o verbo no presente
utilizado para se referir aos problemas respiratórios traz à narrativa tamanha vivacidade
que produz no leitor a sensação de participar da cena como se, tal como o protagonista,
estivesse também com dificuldade de respirar. Por isso, julgo necessário mais uma vez
reforçar a importância da narrativa em relação ao romance: essa narrativa dura, dolorida,
só ela dá conta de testemunhar.
Boal, ora coadjuvante, ora protagonista, nos oferece uma parcela, ainda que
pequena, mas não menos importante, do que foram os anos de chumbo no Brasil. Não
houve nada de sublime em Auschwitz, como de sublime nada houve nos cárceres da
ditatura brasileira, daí a coragem para reviver a dor, narrar o inenarrável, confessar o
inconfessável que, aqui, assume uma acepção muito diferente do que os torturadores
entendiam por confissão. No presente do narrar, Boal categoricamente afirma: “quero
deixar bem claro que eu nunca confessei nada” (BOAL, 1979, p. 81).
3.2.2 Ato II – O incomunicável comunicável
3.2.2.1 Cena I
- Esta é a sua nova casa!
- Bom, eu espero que seja só um hotel!
Augusto Boal.
71
Era um motim suicida, sem nenhuma possibilidade de êxito: começaram por
queimar os três ou quatro colchões que os cinquenta ou sessenta presos
utilizavam, enquanto gritavam muito alto e alguns se jogavam com toda a força
contra as grades, numa inútil tentativa de escapar. Esse era o “motim”: puro
desespero. [...] E assim foi: obedientes às ordens dos seus superiores, os
soldados, enfurecidos pelos gritos desesperados dos corrós, munidos de longos
cassetetes tamanho “família”, como eram chamados, entraram no pavilhão dos
presos comuns e desceram a lenha com sanguinário ódio, estúpido ódio. A
quem?
Os cassetetes subiam e desciam, incessantes, e continuavam subindo e descendo,
calando gritos, ferindo rostos, costas, quebrando braços e pernas, sangrando
mãos e costelas.
Quando os soldados receberam ordens de parar, nas celas ficaram caídos mais de
trinta corpos desmaiados. Desses, três estavam mortos (BOAL, 1979, p. 151).
Depois da cela F-1, a cela do incomunicável, Boal é transferido para o presídio
Tiradentes, em São Paulo que, até então, abrigava os presos comuns, também conhecidos
como corrós. A partir do golpe de 64, o Tiradentes passou a abrigar, em um pavilhão
específico, os presos políticos. Agora se, por um lado, estes gozavam de certos
“benefícios”, como celas conjuntas, por outro os corrós sofriam constantes torturas,
quando não eram retirados de suas celas para serem executados. Em solidariedade, os
presos políticos costumavam ser as “vozes” contra tamanha violência, gritando e batendo
nas grades da celas, conforme relatam Alípio Freire, Izaías Alrnada e J. A. de Granville
Ponce em Tiradentes, um presídio da ditadura: Memórias de presos políticos, de 1997.
Quanto a essa cena, uma ponderação, sem a qual não posso dar sequência à
próxima, em que abarcarei, mais uma vez, Boal enquanto testemunha solidária. Cumpre-
me, então, a referência às pesquisas de Penna (2015) sobre o testemunho carcerário
brasileiro sob a perspectiva da experiência da violência biopolítica formulada por Foucault
(1978-1979), em Nascimento da biopolítica (2008).
Para esse filósofo, a partir do século XVII, o Estado, por ser detentor do poder, se
apropria dos processos biológicos, com o objetivo de controlá-los e/ou modificá-los. Como
uma necessidade dessa apropriação surgem os mecanismos reguladores e corretivos, tais
como a norma e a regulamentação. Desse modo, a norma se aplica como mecanismo
disciplinador de um corpo ou de uma população, por meio da regulamentação. Aplicando
esse conceito à realidade carcerária brasileira, Penna levanta a hipótese de que aqui a
prisão seria análoga a um laboratório em que se experiencia a biopolítica enquanto
tratamento da pobreza.
72
De fato, desde massacres como o do Carandiru – conhecido internacionalmente e
relatado por Dráuzio Varella em Estação Carandiru – até o incêndio da cadeia pública de
Ponte Nova, em Minas Gerais – nem tão divulgado, apesar de considerado o terceiro maior
massacre em prisões no Brasil -, esses “laboratórios” podem ser mapeados. No Carandiru,
uma desavença entre dois detentos terminou com 111 mortos, sem chance de se
defenderem:
Passava das três da tarde quando a PM invadiu o pavilhão Nove. O ataque foi
desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu
chance para defesa. Embora tenha sobrado para todos, as baixas mais pesadas
ocorreram no terceiro e no quinto andar. Cerca de trinta minutos depois de
ordenada a invasão, nas galerias cheias de fumaça ouviram-se gritos de “Pára,
pelo amor de Deus! Não é para matar! já chega, acabou! Acabou!” (VARELLA,
1999, p. 288).
Diferente da versão oficial, os relatos dos sobreviventes contaram pelo menos 250
vítimas e, dentre elas, nenhum policial:
No dia 2 de outubro de 1992, morreram 111 homens no pavilhão Nove, segundo
a versão oficial. Os presos afirmam que foram mais de duzentos e cinquenta,
contados os que saíram feridos e nunca retornaram. Nos números oficiais não há
referência a feridos. Não houve mortes entre os policiais militares (VARELLA,
1999, p. 294).
Em Ponte Nova, a briga entre chefes de tráfico terminou com um enorme bolo de
carne carbonizada formado por 25 presos, que morreram abraçados. Depoimentos colhidos
pela CPI Carcerária revelaram que a ameaça do massacre já vinha ocorrendo há muitos
meses, ou seja, aqueles homens já tinham consciência de que poderiam morrer, bem como
já haviam relatado essa possibilidade aos responsáveis pela cadeia.
No Carandiru, atiradores posicionados apontaram suas armas para os fundos ou
para as laterais das celas e 70% dos tiros atingiram cabeças e tórax; em Ponte Nova, uma
carta escrita por Giovani Inês, da cela 8, um dia antes do incêndio que também o matou,
manifesta: “Não sei o que será porque já estou esplodino de raiva qualquer hora pode
73
acontecer uma chacina já que os pessoal não quere nos separa e nem dar bonde”34
. Apenas
nessas duas ocorrências, a omissão do Estado matou pelo menos 275 seres humanos.
Portanto, um olhar mais atento revela que os presos políticos participaram de
episódios presentes na história carcerária brasileira pelo menos desde a época da
escravidão35
: a biopolítica do encarceramento e do genocídio da pobreza.
3.2.2.2 Cena II
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida...
Chico Buarque de Holanda.
Entre suas poucas respostas me disse que vinha do Nordeste e que se chamava
Buda Bóia-Fria, que estava preso fazia mais de dois anos, sem nenhuma
esperança de julgamento. Tinha sido acusado de saquear caminhões de alimentos
e armazéns. Durante a grande seca de 1970, ele e todo o povo da sua cidade,
famintos, vendo que seus filhos morriam de fome apesar de suas enormes
barrigas inchadas (fruto de uma doença), não resistiram e assaltaram alguns
caminhões de mantimentos. As autoridades o acusavam de haver incitado o povo
ao saque. Acusavam-no de ser o líder das desordens, e por isso foi aprisionado
(BOAL, 1979, p. 153).
Era hora do banho de sol na Tiradentes e Boal não quis descer, pois estava gripado.
Ficou na cela junto a um colega que atendia pelo apelido de Buda Bóia-Fria, homem que
despertava sua curiosidade, por ser “de poucas palavras”, inclusive para explicar por que se
34
Depois do incêndio, a carta foi encaminhada pela esposa do detento à vereadora Ana Ferreira, sendo
posteriormente anexada à documentação colhida pelos representantes da CPI Carcerária da Câmara dos
Deputados, que passaram três dias em Ponte Nova para apurar o massacre. Essa e outras informações
encontram-se na redação final do documento de 423 páginas, disponibilizado pelo seguinte endereço
eletrônico: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-
de-inquerito/53a-legislatura-encerradas/cpicarce/notas/NT240807.pdf. 35
Um documento do Programa Lugares da Memória, do Memorial da Resistência de São Paulo, relata que,
inicialmente, o Presídio Tiradentes teve sua estrutura pensada para dois propósitos: depósito de escravos, que
eram colocados no calabouço; e casa de correção, que abrigava aqueles que não correspondiam aos padrões
vigentes, fosse pela prática de crimes ou em virtude de sua classe social, como vadios.
74
chamava Bóia-Fria36
. E ali estava uma personificação bem “Severina”. Interessante
analogia. A obra Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, publicada em 1954,
aborda a precária existência daqueles oprimidos pela seca e pelo desigual sistema sócio-
econômico-político brasileiro. Assim como o retirante Severino, Buda Bóia-Fria é vítima
desse sistema. É interessante notar que tanto a personagem de Cabral quanto Buda, ao se
apresentarem, nomeiam-se pela coletividade, representando todos esses oprimidos:
O meu nome é Severino/não tenho outro de pia/Como há muitos Severinos/que é
santo de romaria/deram então de me chamar/Severino de Maria/como há muitos
Severinos/com mães chamadas Maria/fiquei sendo o da Maria/do finado
Zacarias/mas isso ainda diz pouco/há muitos na freguesia/por causa de um
coronel/que se chamou Zacarias/e que foi o mais antigo/senhor desta
sesmaria/Como então dizer quem fala/ora a Vossas Senhorias? (MELO NETO,
1994, p. 4).
Não sou nada, sou povo (BOAL, 1979, p. 154).
Como então dizer quem fala a “Vossa Senhoria” Augusto?
Em resposta curta e seca:
- Muitos se chamam assim, que nem eu...
- Escuta – [...] – eu sou um ignorante. Não entendo nada de marxismo, nem de
revolução, nem de Partido. Não entendo nada. Por isso estou sempre estudando,
pra poder aprender. Não sou nada: sou povo. Isso sim: conheço o meu povo e sei
o que é a injustiça. Não sei escrever nem falar direito, mas se você quiser saber
qualquer coisa mais, toma [...] (BOAL, 1979, p. 154).
E deu a Boal um recorte de jornal que noticiava um grave acidente, próximo à
cidade de Palmares/PE37
, entre dois caminhões que transportavam trabalhadores dos
engenhos pernambucanos e um caminhão de gasolina. Esses trabalhadores eram os
substitutos de empregados fixos que os latifundiários dispensaram para evitarem
obrigações contratuais. Assim, muitos indivíduos em situação de vulnerabilidade, a
36
Na prisão Tiradentes os presos tinham por hábito se apelidarem com base nos motivos que os levaram à
prisão em características ou de acordo com a função que desempenhavam dentro das celas. 37
Sobre esse episódio, vale a pena questionar o anacronismo histórico que, segundo Schwarz (1978), permeia
o espetáculo Arena conta Zumbi. Pode-se notar, sim, uma analogia entre o período colonial brasileiro e os
períodos que antecedem e sucedem o golpe civil-militar de 1964, afinal, não eram (e são) também escravos
os boias-frias? Derrota não pressupõe ausência de luta nem de heróis.
75
maioria moradores de periferias, aceitavam trabalhar por salários miseráveis e sem nenhum
amparo legal. Ficavam parados à beira das estradas, esperando serem escolhidos para
subirem nas carrocerias descobertas dos caminhões e transportados até os engenhos, onde
cortavam cerca de três toneladas de cana por semana, trabalhando 12 horas por dia,
sustentados por uma alimentação que consistia, no máximo, em um pouco de feijão preto e
arroz ou farinha de mandioca, frios. Daí o nome boia-fria. Desse acidente resultaram 11
mortos, 15 feridos em estado grave e uma notícia de um jornal mais corajoso em tempos de
ditadura, afinal, quando algum boia-fria ensaiava um protesto, era encarcerado.
Ao término da leitura, Boal olha para Buda, que se limita a dizer: “esse sou eu”
(BOAL, 1979, p. 157).
Interessa notar que, em relação à história de Buda Bóia-Fria, Boal recorre à
transcrição da notícia, afirmando: “transcrevo o que li. É melhor que contá-lo” (BOAL,
1979, p. 155):
Na noite de sexta-feira 7 de dezembro, sessenta pessoas, entre homens, mulheres
e crianças, se acomodavam como podiam em cima da carroceria do caminhão
que os conduzia de volta às suas casas, depois de uma semana de trabalho nos
canaviais queimados da zona do Monte, de Pernambuco. A toda a velocidade, o
chofer do caminhão tentou ultrapassar outro que ia na frente e subitamente se
encontrou com um terceiro caminhão carregado de gasolina. Manobras
desesperadas não impediram a infernal colisão. Os corpos ficaram prisioneiros
entre os ferros retorcidos, ou foram arrojados a vários metros de distância.
Resultado: 11 mortos, 15 feridos em estado grave e todos os restantes com
feridas menores, diversificadas. “Depois do choque”, contou Amaro Ferreira da
Silva, uma das vítimas, “Vi Enemias olhando os mortos caídos na estrada.
Muitos feridos pediam socorro, mas ele deixou tudo e fugiu”. Enemias era o
chofer do caminhão, o “gato” contratado pelos donos do Engenho Jereba para
fazer o transporte dos trabalhadores. Aproximava-se da cidade de Palmares pela
estrada BR 101quando aconteceu o desastre. Palmares fica a 95 quilômetros de
Recife, no sul do Estado de Pernambuco. “Não sei como não se incendiou o
caminhão com os 8 mil litros de combustível que tinha dentro”, disse o chofer do
outro veículo. Os corpos ficaram esparramados em um raio de 50 metros até que
foram recolhidos por outros caminhões que passavam por aí. Os trabalhadores
tinham sido “emprestados” pelo proprietário do Engenho Brejo, Abelardo
Carneiro Leão, ao seu cunhado, dono do Engenho Jereba, Luís Alvinho Soares.
Eles foram reforçar o pessoal nas tarefas de aproveitamento das seis mil
toneladas de cana incendiadas naquela área. Amaro Ferreira da Silva, que
quebrou uma perna com o impacto, levava no bolso 21 cruzeiros
correspondentes a três toneladas de cana que tinha cortado de segunda a sexta-
feira. Como ele, muitos dos seus companheiros recebiam 4 cruzeiros por doze
horas de trabalho, cuja produção alcançava a seiscentos quilos de cana por dia,
arrancadas com a foice. Este não foi o único acidente grave ocorrido em
circunstâncias semelhantes durante esta safra. Por toda parte era a mesma coisa:
Paraná, São Paulo, - a única diferença era que ali se colhia café, em vez de cana.
Oficialmente esses acidentes são causados por falhas humanas, mas as
autoridades se esquecem de que existe uma lei que proíbe o transporte de seres
humanos em caminhões descobertos, especialmente em tão grandes quantidades.
76
Este tipo de transporte se vem institucionalizando na medida em que os
latifundiários preferem não manter empregados fixos, com a finalidade de evitar
as obrigações contratuais daí decorrentes: salários mínimos, 13º salário, férias,
etc. Por isso, empregam os chamados “bóias-frias” que vivem marginados nas
favelas das periferias das cidades. Durante o inverno, em São Paulo, os “bóias-
frias” formam estranhas figuras com lenços abrigando boa parte do rosto e
deixando de fora apenas os olhos e o nariz; já no Nordeste, a indumentária de um
“bóia-fria” se reduz a uma camisa e uma calça, ambos rasgados, e talvez um
chapéu de palha. Os “bóias-frias” ficam parados ao lado das estradas, esperando
o caminhão do “gato”, o emissário do patrão. Este passa, seleciona os mais
fortes, e em menos de meia hora enche seu caminhão com 40 ou sessenta desses
homens, que têm nome porque cada um leva sua panela (ou outro recipiente)
com a comida do dia, fria, que geralmente não é mais do que um pouco de feijão
preto e arroz, e talvez farinha de mandioca, e outras muitas vezes apenas farinha
e água. Essa é sua comida e vem daí seu nome. Quando chega a hora de voltar
para casa, o “gato” os transporta de retorno às suas choças de madeira e zinco.
Os caminhões são sempre velhos e o mais comum é que fiquem horas na estrada,
sendo consertados. É muito frequente que o “bóia-fria” regresse à sua casa na
hora de voltar à estrada para esperar o próximo “gato”. Estes trabalhadores não
são protegidos por nenhuma lei. Ninguém se responsabiliza por eles e ninguém
reconhece manter com eles vínculo algum. Os “bóias-frias” apareceram quando
o governo decidiu promulgar algumas leis “a favor” do trabalhador agrário, mas
o fez de maneira tão demagógica que incentivou os latifundiários a despedir os
trabalhadores que tinham contratado e a utilizar os serviços do intermediário, o
“gato”. Por que têm esse nome? Porque, como gatos, muitas vezes fogem com o
salário dos 40 ou 60 homens que levam ao trabalho. Mas não é preciso fugir com
esse dinheiro, já que o “gato” tem sempre formas próprias de exploração; pelo
serviço de transporte e, além disso, por ter feito a escolha de cada “bóia-fria”, o
“gato” se apropria de uma percentagem que chega a 50% do salário de cada
trabalhador. Além disso, muitas vezes o “gato” é também o proprietário do
armazém da favela. Por isso guarda consigo o dinheiro dos salários e paga em
“vales” de mercadorias, que podem ser descontados apenas no seu armazém. Por
isso, fixa os preços como bem entende. Muitas vezes, liderados por algum
companheiro, mais experimentado ou mais destemido, os camponeses ensaiam
um protesto. Imediatamente o “gato” chama os “bate-pau”. Vem a polícia e
encarcera esses líderes (BOAL, 1979, p. 155-57).
Ao optar pela transcrição, ele acaba por novamente se remeter a Benjamin38
, para
quem a contemporaneidade trouxe consigo uma valorização extrema da experiência
pessoal em detrimento da autenticidade dessa experiência. Porém, de acordo com Penna
(2003), o mundo moderno confirma o diagnóstico benjaminiano, mas, simultaneamente,
também o nega:
Tudo hoje em dia é experiência: dos relatos de vida à circulação obsessiva do
discurso das opiniões, construídas a partir da experiência pessoal, como podemos
verificar, por exemplo, na estrutura da notícia do jornalismo impresso e
televisivo, cada vez mais estruturada não tanto a partir da representação de fatos,
mas de experiências. A notícia é construída pela experiência pessoal do
entrevistado, transformada em discurso da opinião, com a intervenção marginal
38
Experiência e pobreza e O narrador.
77
do jornalista como organizador das múltiplas experiências pessoais (PENNA,
2003, p. 114).
Logo, o testemunho, em suas diversas manifestações, é a primazia das experiências.
Assim, a opção pela transcrição da notícia revela uma transferência do protagonismo da
cena, de Boal para Buda, ao mesmo tempo em que, como leitor e transcritor, Boal não
deixa de ser testemunha de uma experiência de violência biopolítica, a testemunha
solidária, aquela que não vai embora após a narração do outro e que se compromete a
levá-la adiante, aquela que possibilita que o subalterno fale e seja ouvido.
3.2.3 Ato III – Eu queria dizer alguma coisa que não fosse triste
3.2.3.1 Cena final
De volta à cela, conversei com alguns companheiros e lhes contei minha tristeza.
Contei também que nunca ia esquecê-los. E lhes contei que julgava ser meu
dever denunciar tudo que me tinha acontecido e tudo o que tinha acontecido a
eles. Não me lembro quem foi que me sugeriu que eu escrevesse uma peça, mas
lembro que lhes mostrei alguns cadernos em que eu tinha feito anotações de tudo
que via e ouvia, das histórias que me contavam. Parte do texto estava escrito em
outras línguas para dar a impressão de que se tratava de um caderno onde eu
aprendia francês, espanhol, etc. Disseram que provavelmente, quando me
revistassem, apreenderiam esses cadernos.
[...]
Eu queria dizer alguma coisa que não fosse triste, mas só pensava pensamentos
tristes (BOAL, 1979, p. 286).
Na literatura de testemunho da Shoah, é frequente a concepção de que os campos
de concentração sejam a única realidade, de modo que não existe uma possibilidade de
saída: não há outro mundo do lado de fora. De fato não há. Não existe mais mundo do lado
de fora dos cárceres da ditadura brasileira. Milagre no Brasil foi construído pelas
anotações de Boal, anotações estas que antes se inscreveram no corpo, na sua dor e na dor
do outro.
Para além disso, é essencial pontuar que o exílio é também uma experiência de
violência: “me olhava no espelho vazio e todo mundo tinha ido embora – até eu! Difícil
fazer a barba quando não se vê a imagem...” (BOAL, 2000, p. 290). Faz-se importante,
78
ainda, especificar que essa fala não está em Milagre no Brasil, mas sim em Hamlet e o
filho do padeiro – mais conhecido como memórias de Boal. Coloquei-a aqui por duas
razões: em primeiro lugar, para reafirmar que as experiências de violências acompanham o
indivíduo por aonde quer que ele vá. Não há superação. O cárcere, com todas as suas
nuances de horror, estará para sempre dentro daquele que por lá passou. Impossível se
libertar totalmente dele. Para alguns, como Boal e outros intelectuais, essa prisão interior
pode encerrar uma luta com a linguagem e se transpor em testemunho; para outros, que
perdem essa luta, resta continuarem violentados pela pobreza, pela exclusão, pelo
desemprego, trazendo em seus corpos físicos a lembrança da dor e em seus corpos civis a
marca da prisão.
Em segunda instância, porque, assim como a libertação do cárcere é impossível,
impossível também é o retorno após o exílio:
Sempre que chegava a novo país, nova língua, metabolismo, tudo novo, pensava:
um dia, volto pra minha caneca de café, minha, só minha.
Em trânsito – sozinho, com a família ou com meu elenco francês – eu visitava e
achava o Rio estranho; não tinha tempo de ver o que olhava. As pessoas não
eram iguais ao que haviam sido: vozes, timbres, pensamentos, tudo diferente.
Em 86 fiquei morando e me dei conta do impossível. Ninguém volta do exílio,
nunca! Jamais (BOAL, 2000, p. 323).
No final, presos políticos ou corrós se tornam estrangeiros em seus próprios países.
Pouco antes de ser libertado da Tiradentes, Boal teve vontade de comer milanesas.
Mais uma vez, não as comeu.
79
Fotos de Aurora Maria Nascimento Furtado
FONTE: Dossiê Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos
Disponível em:
http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/tag/Aurora%20Maria%20Nascimento%20Furtado
80
Incêndio Cadeia de Ponte Nova/MG
DATA: 23/08/2007
FONTE: Associação dos Servidores do Corpo de Bombeiros e Polícia Militar
81
Suportar o desencontro entre a imaginação e o
fato. Não inventar um outro sistema imaginário
adaptado ao novo fato. “Eu sofro”. É melhor
isso que: “esta paisagem é feia”.
Ruth Klüger, Paisagens da memória.
82
4 HAMLET E O FILHO DO PADEIRO: PARA LEMBRAR DE NÃO ESQUECER
4.1 O estatuto da memória
“Hoje, vejo. Sofro a frágil imagem” (BOAL, 2000, p. 276). Essa constatação está
no capítulo 22 de Hamlet e o filho do padeiro, intitulado Prisão e cadeia: a liberdade de
Prometeu, a partir da qual problematizo a questão do “eu” testemunhal, bem como meu
recorte dos últimos capítulos dessa obra.
Apesar de ter deixado claro que a tese não se limitou a uma abordagem teórica
sobre os gêneros aos quais se filiam os objetos de pesquisa, a saber, Milagre no Brasil e
Hamlet e o filho do padeiro, faz-se necessário, ainda que de modo breve, pontuar em que
medida o “eu” que testemunha uma experiência como objeto (de perseguição, prisão e
tortura) em Milagre no Brasil passa a ser o “eu” que testemunha uma experiência como
sujeito em Hamlet e o filho do padeiro: seria imperativo para a importância do testemunho
essa distinção?
Se retomarmos o conceito de Yúdice sobre testemunha, veremos que não:
El testimonio podria contrastarse ademas con otros tipos de discurso novelistico
o (auto)biografico - exemplum, diario, memorias, relato de conversion,
evangelio, etc.-, pero lo que me parece importante destacar es que en todas estas
formas puede encontrarse cierto grado de modalidad testimonial, imponiendose
algunas veces como en el relato de conversion o en el evangelio, o cediendo
otras veces ante los imperativos genericos de otras formas cuya meta es tipificar
o representar. Mas que nada, el testimonio reconoce la responsabilidad de la
enunciacion, rasgo que le proporciona un caracter muy distinto al de los
discursos hegem6nicos de la modernidad occidental (YÚDICE, 1992, p. 218)39
.
A medida, acredito, está em compreender que não há como separar radicalmente os
dois sentidos do testemunho, assim como não se deve dissociar, de modo rígido, a
historiografia da memória.
39
O testemunho também poderia ser contrastado com outros tipos de discurso romanesco ou (auto)
biográfico - exemplum, diário, memórias, história de conversão, evangelho, etc.-, mas o que eu acho
importante notar é que em todas essas formas pode ser encontrado um certo grau de modalidade testemunhal,
impondo-se às vezes como na história de conversão ou no evangelho, ou cedendo outras vezes ante aos
imperativos genéricos de outras formas cujo objetivo é tipificar ou representar. Mais do que tudo, o
testemunho reconhece a responsabilidade da enunciação, uma característica que lhe confere um caráter muito
diferente dos discursos hegemônicos da modernidade ocidental (YÚDICE, 1992, p. 218, livre tradução
minha).
83
Em um primeiro momento, permito-me fazer, aqui, uma breve exposição acerca
dos dois sentidos do testemunho. Em Milagre no Brasil, a memória acionada pela
testemunha é a da experiência traumática passada do e no corpo que se traduz no presente
da escritura, segundo o qual o componente do relato é estabelecido no presente do escritor,
ainda que com lacunas, próprias da experiência da violência, como se a vítima ainda
estivesse lá.
De outro lado, a memória acionada em Hamlet e o filho do padeiro se ocupa,
simultaneamente, do passado e do presente, porque ele se volta para esse passado no
intuito de recuperar lembranças e, ao mesmo tempo, inscreve-se no seu texto, deixando
claro o tempo presente da sua escrita: “memória e imaginação são inseparáveis siamesas,
não univitelinas: parecem-se com poréns, que pena: uma loira, outra morena! Quem sou
eu pra divorciar quem Deus mandou casar? Ele sabe o que faz, linhas entortadas” (BOAL,
2000, p. 13).
Em segundo lugar, para se pensar nas obras-documentos de Boal, há que se pensar
nessas memórias sem restringi-las à mera historiografia, mas, ao mesmo tempo, sem
dissociá-las. Desse modo, no que diz respeito às memórias da ditadura civil-militar
brasileira, recorro às pesquisas de Renato Franco, em Literatura e catástrofe no Brasil: os
anos 70 (2001), para quem a literatura dessa época foi condicionada por fatores políticos.
A palavra do sobrevivente, então, pode servir como documento para que a historiografia –
campo de investigações científicas que visa, dentre várias pesquisas, esclarecer e registrar
essas experiências de violências – possa dar sua contribuição no que concerne a investigar
e apresentar a catástrofe que foi esse regime no Brasil, como exige a todo tratamento que
se dá a eventos históricos de barbárie.
Assim, as memórias resgatadas em Hamlet e o filho do padeiro, embora se
distanciem temporalmente daquelas resgatadas em Milagre no Brasil, também contribuem
para a reconstrução das cargas de repressão e censura que a memória “oficial” do país fez
questão de apagar. Por conseguinte, historiografia e memória atuam paralelamente.
Portanto, é inegável que, ao recordar, em Hamlet e o filho do padeiro, os eventos que o
impulsionaram a escrever Milagre no Brasil, Boal lança mão de uma narrativa de forte
teor testemunhal. Em nota de rodapé, diz: “carregamos museus em nossa memória: de
cera, históricos e também museus de horror: todas as cenas que descrevo neste capítulo,
todas as imagens, estão arquivadas na minha memória. É fácil consultá-las: basta recordar
84
um nome, um episódio, cor, frase ou palavra, e elas retornam, tão vivas como quando
viveram” (BOAL, 2000, p. 274).
Não são memórias imaginadas. São memórias que, no tempo presente da escritura,
colocam-se como um ponto alto entre história e memória e ressignificam o testemunho.
4.2 Memórias imaginadas?
- Escreva sua biografia – sugeriu Talia Rodgers.
Valeria a pena esculpir esta pessoa? Modelar coerências na pedra impura e
excessiva da minha vida, moldar contornos do homem, supondo-se que tenha
tido sentido a trajetória? Jogar fora “o resto” e descrever o que penso que sou ou
tenha sido?
Biografias dão ideia de missão cumprida. Eu, ao contrário, a cada novo fim,
recomeço. “Caminhante: o caminho não existe – faz-se ao caminhar” – faço
veredas, atalhos. Quero mais. Sou excessivo, demasiado. Seria incômodo falar
de mim: no que faço, importa o feito, não o fazedor.
Talia havia publicado três livros meus –lembrou que, neles, feito e fazedor se
misturam. Para que melhor entendesse meu teatro, seria útil que eu desvelasse
minha vida do meu jeito, não tintim por mais tim, pingos nos is, mas histórias,
fatos e feitos.
Afinal, quem sou? Sirvo pra quê? Instruções de uso – bula. O Teatro do
Oprimido, de onde veio, praonde vai? Está nos quatro ângulos do mundo, mas
onde cresceu criança?
Eu achava imoral: Narciso mirando-se no espelho, belo, querendo-se mirado.
Presunção e água benta. Vaidade. Recusei.
Mesmo dizendo não, comecei a conversar com minhas irmãs, Augusta e Aída, e,
de conversa em conversa, histórias foram voltando à vida.
Comecei a ver a Igreja da Penha pedra, rochedo onde me batizei aos onze anos,
suportando água benta na cabeça, fugindo do sal na boca. Meu pai perdeu a hora
de me batizar bebê e só abriu a brecha no trabalho quando foi padrinho de um
sobrinho: “Batizam-se os dois, fica mais barato o padre.” “Deus há de entender a
demora”, confirmou minha mãe: sabia o que dizia quando falava do Céu e da
Terra.
Foi subindo no meu coração ternura imensa pelas personagens que voltavam a
bailar comigo. Senti cheiro de infância, música de vozes, gosto de pão, manteiga
derretida. Não madalenas proustianas: marias-bentas, barrigas de frade, sonhos,
quindins de Iaiá. Senti ternuras até por mim, vejam só! Nem sei se mereço.
Tomei decisão solene e me disse: “Autobiografia tem que ser póstuma: não
escrevo! Mas, se escrevesse, como seria? Como se escreve biografia?”
Memória é invasora – lembrando-se uma, escura, mil assanhadas querem ser
lembradas, invejosas. É contagiosa: lembrados lembram. Ciumentas, vaidosas:
querem aparecer, estrelas. Memória vagabunda, detalhe, pensa merecer
manchete e foto. Memórias são como nós, iguais.
Eu fugia, espavorido: memórias me acordavam no meio da noite, sacudiam no
fim do dia, soprando no ouvido: “Conta aquela: vão gostar, não duvido...”
85
Procurei compreender, na tela trêmula, a trêmula vida: família, companheiros,
amigos, inimigos – que os tive, mais do merecido!
Procurei contar meu teatro, sua gênese: nada de intimidades. Personagens
importantes passaram de raspão: não denunciei ninguém. Não é meu feitio.
Mudei nomes, pessoas, personagens. Os fatos são verdadeiros, mas não
aconteceram iguais ao meu jeito de contar: estilo existe! Juntei gentes numa só,
poucas dividi em muitas; contei antes o que veio depois e, depois, o que nem
veio... mas podia. Quando os aconteceres são incontestes, aí sim, vai nome e
sobrenome; endereço, fax, telefone; CEP, DNA e CPF; e-mail, impressões
digitais, retratos falados e tudo mais.
Juro dizer verdades, não meço sinceridades: coração grande muito abriga! Não
juro verdade inteira, fria, solene: impossível. Memória e imaginação são
inseparáveis siamesas, não univitelinas: parecem-se com poréns, que pena: uma
loira, outra morena! Quem sou eu pra divorciar quem Deus mandou casar? Ele
sabe o que faz, linhas entortadas.
Espero que vocês gostem e, se perguntarem: “Será verdade?”, saibam: foi. A
vida até agora tem sido como confesso aqui: não sei o que vem por aí (BOAL,
2000, p. 11-13).
A transcrição das duas primeiras páginas que abrem Hamlet e o filho do padeiro
buscam contextualizar, neste capítulo, o local do testemunho, no que se refere à memória.
Em Hamlet e o filho do padeiro, como em Milagre no Brasil, Boal resgata a
descrição da F-1 e de sua incomunicabilidade:
No corredor, portas trancavam celas coletivas, rostos sofridos; espiando dentro,
corpos deitados. No fundo, outra porta dava para um corredor curto ligando
quatro celas para presos solitários. Segurança máxima. Eu não era perigoso; a
cela, sim, feita para prisioneiros imponentes: grades grossas, inventadas para
guerrilheiros medonhos. Fiquei trancado.
Sempre que digo portas, entenda-se de ferro, pesadas, rangendo! Sempre que
digo celas, entenda-se gente amontoada, triste. Sempre que digo triste, entenda-
se tristeza extrema, sensação de morte.
A cela que me hospedou – fiquei só! – estava no ângulo reto: através de
janelinhas – a minha e a do corredor – via o longo caminho; imaginava o curto, à
direita. Tinha dois passos apressados de comprido, menos de dois tímidos de
largura. Pia e latrina, rato no ralo (BOAL, 2000, p. 273-274).
Recorda a violência simbólica, mas efetiva, ao se deparar com Heleny e com
Albertina:
Heleny deu conselhos. Primeiro: não confessar nunca, nada. Nem a mínima reles
confissão de detalhe inconsequente. Lembrou Nelson Rodrigues: mesmo que o
marido surpreenda a mulher nua na cama, o amante ao lado, nu, mesmo flagrada,
deve negar, sempre: foi um mal-entendido. Mesmo nua: mal entendido... Na
86
polícia, igual: negar sempre. Com vantagem: o marido é posto em dúvida mesmo
vendo a nudez da mulher; o torturador, esse, não viu nem sabe nada: suspeita. Se
interroga, é porque outro torturado, não resistindo, denunciou. A história estava
cheia de falsas denúncias... e novos tormentos, verdadeiros.
[...]
O segundo conselho veio com feições brechtianas: Heleny contou que os
torturados exageravam os efeitos da tortura para se livrarem de males maiores.
Stanislaskianos, simulavam com perfeição pequenas dores que exibiam,
magnificadas.
[...]
Isso me ajudou a suportar a visão de Albertina, reaprendendo a caminhada.
Pensei que fosse melodramática encenação: atriz, apesar do over-acting, sincera.
Soube, depois, que não: Heleny queria me poupar a dor de ver de verdade,
naquele lugar. Hoje, vejo. Sofro a frágil imagem (BOAL, 2000, p. 276).
Interioriza o terror:
Quiseram me assustar descrevendo torturas. Tupac-Amaru, guerrilheiro indígena
peruano, foi amarrado pelos espanhóis a quatro cavalos; um estampido
afugentou os animais, em quatro direções: Tupac-Amaru morreu estraçalhado.
No Brasil usavam-se jeeps. Cadeira do dragão era de alumínio: o prisioneiro
sentado nu, amarrado; punha-se fogo embaixo. O calor insuportável, o
prisioneiro podia-se levantar, encaixando a cabeça em capacete eletrificado...
Escolhia entre o choque elétrico na cabeça e fogo em pernas e nádegas. A
Psicodélica fazia-se em um quarto pouco maior que um elevador, paredes
cobertas de espelhos: alto-falantes tocavam diferentes ritmos na mais alta
potência, luzes de todas as cores se acendiam e apagavam. Depois de minutos, o
corpo do prisioneiro saltava, sem comando; estrebuchava, sem controle. Pelo
resto de sua vida ouviria sons, olhos cegos (BOAL, 2000, p. 278).
Rememora a tortura, o riso e mais tortura:
No começo, a dor é apenas suportável. Depois, não: sofre-se demais. Os dedos
incham, bolas roxas do sangue que não circula. Gritos ressoam no silêncio
sólido. Gritos de dor, medo, promessas de morte.
Eram demais as punhaladas da dor. Quis ganhar tempo, perguntei de que me
acusavam. Não sabiam: as equipes que torturavam não eram as mesmas que
prendiam – a cada qual, sua especialidade mortífera; pertencente às duas, apenas
o barbudo. Olhou a lista de acusações graves. A primeira dizia que eu difamava
o Brasil quando viajava ao exterior. Perguntei como difamaria. Lendo na lista,
disse que eu difamava a pátria porque afirmava, no estrangeiro, que no Brasil
existia tortura.
Impossível não rir, mesmo pendurado.
O reostato aumentou a carga. Secou meu riso magro.
[...]
Depois de uma ou duas horas – foram séculos, pendurado – me desceram do
engenho, joelhos desencaixados, respiração explosiva.
87
“Amanhã tem mais. Aqui todo mundo confessa: cedo ou... tarde demais, na cova
rasa – aqui não tem caixão... nem compaixão...”
Não dormi. Sequelas ficam, corpo e alma. Imagens resistem na retina, jamais se
apagam! Vozes gritam nos ouvidos, jamais se calam (BOAL, 2000, p. 278-279).
Todos esses episódios, tudo o que representou para Boal a catástrofe que foi o
golpe e o impulsionou a escrever Milagre no Brasil está (re)contado em Hamlet e o filho
do padeiro. É preciso, portanto, abrir espaço para voltar o olhar a essas memórias sob a
perspectiva do local do testemunho. Em relação a isso, duas menções não podem deixar
de ser comentadas: Kafka e milanesas.
4.2.1 Sobre Kafka e milanesas
Efetivamente, a trajetória pelo Fundão e pela Tiradentes se inicia no capítulo 22,
mas há, por várias passagens do livro, algum tipo de menção a essa época. Duas delas
merecem especial atenção: Kafka e milanesas.
A primeira ideia veio simples: O processo, de Kafka, revelava o que, no Brasil,
acontecia. K. acorda de manhã, como havíamos acordado no 1º de abril de 1964,
e descobre em seu quarto dois policiais que vieram intimá-lo: está sendo acusado
por alguém (não se sabe quem), de alguma coisa (não se sabe o quê), e será
julgado (não se sabe quando), em algum tribunal (não se sabe onde) (BOAL,
2000, p. 223).
Mil novecentos e sessenta e oito – ano dos estudantes! -, clímax da luta pela
liberdade de expressão. Foi o último ano de relativa claridade antes da escuridão
que tomou conta do país inteiro a partir do Ato nº5, que instituiu oficialmente o
fascismo no país, trazendo leis como a famosa Lei Secreta: nas acusações
oficiais, publicava-se o número e não o conteúdo das leis que teriam sido
infringidas pelo réu, o que permitia à ditadura acusar e condenar quem quer que
fosse, alegando infração à lei, à qual nem os advogados tinham acesso.
Condenados sem saberem por que: Joseph K., Franz Kafka (BOAL, 2000, p.
253).
Se voltarmos a Milagre no Brasil, uma referência a K. está logo no início do seu
testemunho:
Pensei que talvez eu estivesse exagerando, que talvez meu caso fosse mesmo
sem a menor importância, como diziam todos. Pra que me preocupar? Me
88
lembrei de gente que tinha estado presa dois ou três dias, uma semana, e que saiu
depois, sem o menor problema. Afinal de contas, para mim, seria uma
experiência nova. Mas pensei também em Joseph K., que nunca chegou a saber
de que estava sendo acusado e mesmo assim acabou um dia apunhalado no
coração. Claro: existia uma enorme diferença entre a realidade e o romance.
Claro – pensava eu – a realidade é muito pior. No Brasil mata-se muito, mas as
autoridades sempre dão uma explicação qualquer: às vezes mentem: o
prisioneiro tentou escapar, armou-se um tiroteio, morreram os prisioneiros. No
romance de Kafka o protagonista morre sem saber por quê; no Brasil, os mortos
morrem porque, de uma forma ou de outra, lutaram honradamente contra a
ditadura e em favor do povo (BOAL, 1979, p. 18-19).
Quanto a isso, as pesquisas de Selligman-Silva (2010, p. 17) apontam a constante
alusão a Kafka na literatura sobre a Shoah. Ora, se o testemunho sobre a Shoah é “uma
literatura que explora os ‘limites’ da humanidade e a metamorfose do ser humano”, o
processo de desumanização que se dá no cárcere é análogo a essa metamorfose: quem
sobrevive a quaisquer violências impostas por regimes totalitários não será mais o mesmo.
Nesse ponto, insisto na retomada do sistema trágico-coercitivo de Aristóteles, cunhado por
Boal, na medida em que, para que se produza uma violência totalitária, é preciso acionar
qualquer “razão” que transgrida um ethos social definido, também conhecido como razão
do Estado.
As milanesas, por sua vez, presentes no capítulo inicial de Milagre no Brasil,
metaforizam a prisão40
:
Minha mulher me telefonou e disse que tinha milanesas pro jantar. Eu estava
com fome e minha casa ficava a poucos quarteirões do teatro. Chovia muito.
Pensei que era melhor comer um sanduíche no bar em frente, o “Redondo”,
porque tinha que assistir ao espetáculo noturno e talvez não valesse a pena ir em
casa, só pelas milanesas. Mas fui. Queria comer milanesas.
[...]
Pensava lindos planos (na imaginação são mais fáceis de fazer), ia escapando da
chuva que não parava de cair, me encostando contra as paredes dos edifícios,
quando de repente senti que me agarravam as mãos e diante de mim apareceu um
sujeito que vinha me seguindo sem que eu percebesse.
[...]
- Eu vou buscar o carro. Não tenta bancar o espertinho que a gente te mete uma
bala por dentro da cara (BOAL, 1979, p. 8-9).
Mais que isso, metaforizam a ruptura de um movimento de resistência do teatro ao
golpe, estabelecido, sobretudo, em 1968:
40
O primeiro capítulo tem como título Eu ia para casa comer milanesas, não comi.
89
Ia pensando pelo caminho na próxima viagem do meu elenco à Europa.
Tínhamos sido convidados a participar do Festival Mundial de Teatro de Nancy,
França e, além de Bolivar, íamos apresentar também Zumbi e uma experiência
chamada “teatro-jornal”. Formas e técnicas muito simples, para transformar
notícias de jornais em cenas teatrais, a fim de permitir que qualquer pessoa possa
fazer teatro, reconquistando essa arte para o povo. Todo o elenco estava
encantado com essa perspectiva – a viagem duraria mais ou menos dois meses.
Viajar, para nós, era uma forma de respirar um pouco. Desde o dia 13 de
dezembro de 1968, data do “golpe dentro do golpe”, quando o país entrou em
estado de sítio, quando começaram a se formar os famigerados “esquadrões da
morte” e outros organismos de repressão, de torturas e de assassinatos, desde
então também o teatro sofreu as consequências do neofascismo caboclo. O
lamentável era que, depois das viagens, tínhamos que voltar outra vez e
continuar fazendo teatro nessas condições tão terríveis. Mas eu tinha o hábito de
Scarlett O’Hara de deixar para resolver amanhã os problemas de amanhã e de
deixar para a volta os problemas da volta e, no meu caminho em direção às
milanesas, pensava exclusivamente em tudo que podia fazer nos outros países.
Pensava em regressar pela América Latina, parando em todos os países onde
pudéssemos apresentar nossos espetáculos, e estabelecer contactos mais
permanentes com os nossos colegas desses países, rompendo o bloqueio cultural
que o imperialismo estabelece entre nós (BOAL, 1979, p. 8).
Também em seu capítulo final, lá estão elas, pré-cheirando à liberdade e ao
testemunho:
Na hora do almoço senti vontade de comer milanesas. Não sei porque. Tive
vontade. Talvez porque nessa mesma noite, talvez, talvez, sempre talvez, eu
finalmente pudesse voltar para casa. Meu advogado tinha me dito que era quase
certo. Tantas outras vezes tinha sido quase certo. Mas desta vez eu estava com
mais esperanças, quase com certeza. Quase. Apesar do quase e, mesmo assim,
comecei a olhar cada companheiro e a me despedir mentalmente de cada um.
[...]
De volta à cela, conversei com alguns companheiros e lhes contei minha tristeza.
Contei também que nunca ia esquecê-los. E lhes contei também que eu julgava
ser meu dever denunciar tudo o que me tinha acontecido e tudo o que tinha
acontecido a eles (BOAL, 1979, p. 284-286).
Em Hamlet e o filho do padeiro, as milanesas acionam as memórias iniciais do
testemunho:
Acabado o ensaio, Cecília me telefonou. As milanesas estavam cheirosas. Fui
pisando em ruas molhadas. Na Amaral Gurgel – fazia escuro e chovia – três
homens armados saíram de um fusca. Dois, reconheci: interioranos que nunca
tinham ouvido falar de Eurípedes. Torcendo meu braço, perguntaram se ia ser
necessário me algemar ou se eu iria por bem (BOAL, 2000, p. 272).
Iam me soltar: eu pré-cheirava milanesas. Não querendo assumir
responsabilidades, o sub-chefete barbado telefonou ao superchefão drogado:
90
feliz, mandou que me hospedassem por uma noite. Queria falar comigo. Eu quis
telefonar. Não! Afinal... uma noite só... raciocínio embrutecido do brutamontes
(BOAL, 2000, p. 273).
Fechava os olhos, explodiam na memória rostos de Cecília e Fabián, mulher e
filho, assustados. Abria os olhos arregalados: não queria vê-los na cela estreita,
vê-los presos, sequer imaginá-los – abria os olhos para que se fossem! Onde
estariam? Não queria vê-los prisioneiros, sequer na memória enjaulada. Fechava
os olhos, voltavam, Fabián, Cecília. Sobressaltado, levantava as pálpebras com
os dedos: via paredes sujas e eles desapareciam. Se piscava, voltavam: queria vê-
los voando, distantes, longe de grades, paredes, limites. Em segurança (BOAL,
2000, p. 274).
Boal queria comer milanesas. Não as comeu. Infelizmente, suas memórias ficaram
enjauladas por longos 24 anos, isto é, entre 1985 e 2009 – ano da sua morte -, no que se
referiu ao resgate dos espaços de memória relativos ao pós-64. Fato é que o ato jurídico de
recorrer à força legal para tratar do resgate à memória veio justamente ao final do ano de
2009, quando foi publicado o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, que
previa a criação da chamada Comissão Nacional da Verdade (CNV), demanda social de
reparo que já havia sido reconhecida pela Constituição da República do Brasil de 1988 (art.
8º, ADTC, BRASIL, 1988).
Por meio de um grupo composto por diversos conhecedores do período, muitos até
engajados profissionalmente em tutelar reparos para os danos sofridos pelas vítimas diretas
da ditadura, iniciou-se um trabalho de busca pela reconstrução dessa fase histórica, visto
que
no contexto da passagem do cinquentenário do golpe de Estado que destituiu o
governo constitucional do presidente João Goulart, a CNV atuou com a
convicção de que o esclarecimento circunstanciado dos casos de detenção ilegal,
tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, bem como a
identificação de sua autoria e dos locais e instituições relacionados à prática
dessas graves violações de direitos humanos, constitui dever elementar da
solidariedade social e imperativo da decência, reclamados pela dignidade do país
(BRASIL, 2014,p.21).
O resultado dos trabalhos da Comissão da Verdade passou a integrar o Arquivo
Nacional e a fazer parte do Projeto Memórias Reveladas que “foi institucionalizado pela
Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional com a
finalidade de reunir informações sobre os fatos da história política recente do País”
(BRASIL, 2009).
91
Fica claro, então, que essa ação foi possível porque foram reunidas vítimas e
solidários a elas. Logo, fica evidente, também, que, assim como o testemunho jurídico, o
testemunho artístico-literário está a serviço de possibilitar a construção de um novo cenário
político, essencial não só para as vítimas de experiências-limite, como também para as
sociedades que foram impactadas por regimes ditatoriais.
No entanto, o Brasil não fez muito mais que isso para que os vitimados pelas piores
formas de tortura e perseguição - em que a ideologia era punida e a liberdade, segregada e
velada, insidiosamente, mascarada sob o disfarce de proteção de fins do Estado –
pudessem trilhar esse caminho testemunhal. Politicamente, não houve a abertura de um
caminho para a História que, quando percorrido, torna possível considerar o testemunho
também como documento histórico, permitindo identificar um entrecruzamento de
memória e experiência histórica. Até porque, segundo José Carlos Moreira da Silva Filho,
em Memória e reconciliação nacional: o impasse da anistia na inacabada transição
democrática brasileira (2011, p. 282), a “ausência de uma adequada transição política
contribui para que a democracia não se desenvolva, para que ela fique isolada em um
discurso democrático ao qual corresponde, em verdade, uma prática autoritária”. E vai
mais além, quando afirma que a caracterização da anistia, no Brasil – no que tange ao
processo de transição relacionado à última ditadura -, tem sido dissociada da memória e,
em virtude disso, troca-se o reconhecimento pelo esquecimento.
A exemplo, por ocasião do golpe de 2016, mais precisamente durante a votação
pelo impeachment de Dilma Rousseff, o deputado Jair Bolsonaro, ao se manifestar em
sessão pública, fundamenta assim o seu voto: “pela memória do coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra41
, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças
Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”
(WENTZEL; DELLA BARBA, 2016).
Em um país onde esse tipo de discurso, no qual nenhuma violação ou apologia às
atrocidades ocorridas ganham a devida coerção social - como evidencia a homenagem
prestada -, onde a elite prega a corrupção do Estado, substitui os militares pelo Judiciário e
41
O relatório da CNV revela que o citado Carlos Alberto Ustra foi coronel do Exército. Comandante do
Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II
Exército de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Foi instrutor da Escola Nacional de Informações em 1974 e,
do final desse ano a novembro de 1977, serviu no Centro de Informações do Exército (CIE), em Brasília,
tendo atuado na seção de informações do e chefiado a seção de operações. No período em que esteve à frente
do DOI-CODI do II Exército ocorreram ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados por ação de
agentes dessa unidade militar, em São Paulo (BRASIL, 2014, p.859).
92
decide que é preciso “virar essa página da história”, torna-se complexo considerar esses
atos como afronta às vítimas da ditadura, seus familiares e de toda a sociedade livre.
Selligman-Silva (2010) chama a atenção para o fato de que a literatura testemunhal
brasileira em relação ao regime civil-militar é ainda muito pequena, se comparada com a
de outros países da América Latina. Ele cita alguns testemunhos como o de Alípio Freire
sobre o presídio Tiradentes42
. Cita também o projeto coordenado por Marcelo Ridenti e
Zilda Márcia Gricoli, com a contribuição da pesquisadora Janaína Teles, que entrevistou
ex-combatentes do regime civil-militar43
. Demonstra, ainda, que autores como Antonio
Callado, Paulo Francis, Carlos Sussekind e Renato Pompeu, em suas obras, abordaram o
enfrentamento da violência e de sua representação.
Apesar de o Brasil não ter feito muito mais que a CNV em relação aos vitimados
pelo regime civil-militar, Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro lançam luz aos
passos que desaguaram nessa Comissão: Boal ia para casa comer milanesas, Cecília as
dizia cheirosas. Não comeu. Preso, pensou em Kafka, Joseph K., aquele que foi acusado de
não se sabe o quê e morto sem saber o porquê. Torturado, não confessou nem verdades
nem mentiras, desenhou Torquemada. Exilado, escreveu Milagre no Brasil: “Dirigi, na
NYU, Torquemada – espiões na plateia; na Saint Clement’s, a Feira latino-americana de
opinião – diplomatas espionando. Escrevi um romance, Milagre no Brasil – milagre o
povo continuar vivo, apesar do governo” (BOAL, 2000, p. 290). Em nota de rodapé,
confessa: “Neste, contei tudo o que os espiões procuravam, mas nenhum deles leu o livro”
(idem, p. 290). Em suas memórias, recupera K. e milanesas; estrangeiro para si mesmo,
oferece o testemunho sobre os impactos do exílio e do impossível retorno.
4.3 Estrangeiro para si mesmo
Antes da sentença final, o juiz me concedeu o direito de viajar e me juntar ao
elenco. Minha presença em Nancy44
daria a impressão de magnanimidade: a
ditadura precisava mostrar cara menos sórdida.
Assinei documento prometendo voltar terminado o Festival e estar presente no
tribunal na hora da sentença. O funcionário que me fez assinar a promessa de
42
FREIRE, Alípio. Tiradentes, um presídio da ditadura. São Paulo: Scipione, 1997. 43
TELES, Janaína de Almeida, RIDENTI, Marcelo; IOKOI, Zilda Márcia Gricoli. (orgs.). Intolerância e
Resistência: Testemunhos da repressão política no Brasil (1964-1985). São Paulo: FFLCH/USP, 2010. 44
Festival Internacional de Teatro Universitário de Nancy, França.
93
retorno avisou: “Não prendemos ninguém segunda vez: matamos! Não volte
nunca. Nesta linha: assine! Prometa voltar”45
.
Foi o único conselho da ditadura que segui a risca: só voltei em dezembro de
1979, meses depois da Anistia (BOAL, 2000, p. 282).
O exílio foi, para Boal e outros tantos perseguidos políticos, garantia de
sobrevivência. No entanto, se, para alguns, esse exílio foi uma escolha de não habitar um
país sob ditadura, para Boal significou banimento, sob ameaça de morte. Em 1998, a Casa
Militar da República entregou a ele um relatório no qual o serviço secreto da ditatura, após
investigações, o considerou oficialmente banido:
Em 1998, obrigada por lei federal, a Casa Militar da Presidência da República
me entregou a relação de todas as informações que o serviço secreto da ditadura
tinha colecionado a meu respeito: aí se lê que a ditadura me considerou
oficialmente banido – não apenas exilado: banido. Proibido de regressar ao
território nacional! Banido: proibido de voltar à casa. Banido: desterrado,
extirpado! (BOAL, 2000, p. 282).
Edward Said, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003), aponta que a
origem do exílio está na antiga prática do banimento. Usualmente, há mecanismos
jurídicos que corroboram para expatriar aqueles que, de algum modo, colocam em xeque
uma nova ordem instaurada, sobretudo quando existe um projeto político. Este foi o caso
do Brasil. A exemplo disso, no extrato de prontuário, parte do dossiê sobre Boal, datado de
15/10/75, dentre várias acusações, consta que ele foi indiciado, em 1965, por ter
contribuído com o CPC-UNE, apoiando e seguindo o processo de aliciamento ideológico,
baseado na luta de classe e visando à mudança da ordem política e social. Consta também
que, durante todo o tempo em que esteve residindo no exterior, vinha desenvolvendo
constante campanha difamatória contra o Brasil, escrevendo peças teatrais, fazendo
entrevistas, proferindo conferências, participando de reuniões subversivas, na América
Latina e na Europa, abordando aspectos negativos da política e do sistema judiciário
brasileiro, bem como e denunciando torturas praticadas em presos46
.
45
Boal foi absolvido nesse julgamento. A sentença, que se encontra no Anexo VII, dá provas da absolvição,
mas, como se pode notar, em atitude própria da ditadura civil-militar, ele foi ameaçado de morte e essa
ameaça jamais estaria registrada na sentença. 46
Cf. em Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), do Ministério da Justiça do Brasil. A parte
do dossiê que traz essas e outras acusações encontra-se no Anexo VIII.
94
O primeiro país a receber Boal foi a Argentina, como também foi sua experiência
de violência pós-banimento:
Sensação estranha: a cidade não precisava de mim! Se não existisse, eu não faria
falta. Na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima. Em Buenos Aires,
nenhuma. Me sentia invisível. Me olhava no espelho vazio e todo mundo tinha
ido embora – até eu! Difícil fazer a barba quando não se vê a imagem... (BOAL,
2000, p. 289-290).
Fato é que o degredo implica em que o degredado rompa com suas referências e
impõe a ele uma violenta experiência de “desenraizamento”, conforme descreve Denise
Rollemberg, em Exílio. Refazendo identidades (1999):
A derrota de um projeto político e pessoal, o estranhamento em relação a outros
países e culturas, as dificuldades de adaptação às novas sociedades, que muitas
vezes os infantilizavam, o não-reconhecimento nos novos papéis disponíveis,
tudo isto subvertia a imagem que os exilados tinham de si mesmos,
desencadeando crises de identidade. Em diversas situações cotidianas, foi
possível ver a manifestação destas crises: na batalha pelos documentos ou na
recusa em obtê-los; no trabalho e no estudo; na militância política ou no seu
abandono; nas atividades culturais e artísticas; na vida familiar e afetiva
(ROLLEMBERG, 1999, p. 40).
A história do cotidiano no exílio implica em uma desordem identitária, em uma
constante busca por redefinir e reconstruir essa identidade. Dentre todo esse
estranhamento, o primeiro momento na Argentina como exilado trouxe para Boal o não
reconhecimento do seu papel naquele lugar, tanto que, em nota de rodapé, acrescenta: “a
personalidade do exilado corre sério risco de desintegração – é preciso que eu faça falta
para saber quem sou: sou a falta que faço. Se não faço falta, não sou! É o pior que pode
acontecer a alguém: tornar-se anônimo para si mesmo!” (BOAL, 2000, p. 289).
Por outro lado, Rollemberg (1999) defende que status social era um elemento que
diferenciava os exilados, pois, enquanto alguns foram reconhecidos enquanto pessoas
públicas e, por isso, recebiam convites para continuarem a desenvolver seus ofícios
interrompidos no Brasil, outros se viram com necessidade de atuar em profissões diferentes
daquelas para as quais eram qualificados. No caso de Boal, é inegável que ele pertencesse
ao primeiro grupo, porém julgo oportuno registrar que, ainda assim, o seu trânsito pelos
países nos quais temporariamente habitou não deixou de ser violento:
95
Não conseguia me integrar em uma cultura que não era minha – só o vinho.
Tinha amigos, família, falava a língua. Faltava o quê? Eu me sentia dissolver.
Areias movediças não me tragavam: dificultavam a caminhada.
Voltar pra minha casa, caneca de café – o desejo crescia, gigante. Olhava o céu e
não encontrava minhas estrelas. As que havia, não eram minhas. Não era aquela
a minha lua. Não era o mar aquele rio.
Trânsito. Tirava os sapatos em outro chão, a cada noite. Quando caíam, o
estrondo me enlouquecia47
(BOAL, 2000, p. 294).
Não deixou, também, de fragmentar, em certa medida, sua identidade:
Dirigi Torquemada. Não acreditava no que me havia acontecido. Precisava vê-lo
acontecer fora de mim, em cena, para que me pudesse ver, separar-me de mim.
Eu e a palavra, eu e o ator. Só assim me entenderia.
Não me bastava espelho nem memória: precisava me ver em alguém que me
roubasse o nome, o Augusto Boal que eu pensava ser, que trazia colado ao rosto,
às mãos, ao peito. Já não sabia quem era eu ou tinha sido48
. Queria ouvir
palavras que pronunciei na tortura. Voz empostada de ator bem treinado
reproduzindo gritos roucos. Ver-me, longe de mim (BOAL, 2000, p. 294).
Dividido, tenta reunir seus fragmentos para se ver de longe, coletivo, e escreve
Murro em ponta de faca49
:
Em Portugal, outra vez me senti por demais sozinho – escrevi peça em que me
via de longe: Murro em ponta de faca. Olhava distante, na bruma. Sentia o vento
e o frio da viagem sem fim. Peça circular, nela não sou ninguém: sou todos, sou
a que se mata e sou os sobreviventes.
Escrevi o Murro em Lisboa, quando exilados se suicidavam. Tribo de solitários,
tão juntos, iguais: tão sós! (BOAL, 2000, p. 295).
Em trânsito, vislumbrou a morte:
Mãos quentes apertavam minha mão: no dia seguinte, frias. Quando se
esfriariam as minhas? Mortos davam exemplo! Incentivos: pra que viver?
Acabou, não acabou? Então melhor acabar de vez!
[...]
Pensei morte. Visitei locais suicidas. Lembrei defuntos queridos. Mortes
esperadas e mortes prematuras. Mortes dolorosas e mortes acidentais. Causa
47
Grifo meu. 48 Grifo meu. 49
A peça expõe a experiência de um grupo de exilados brasileiros em seu percurso pelo Chile, Argentina e
França.
96
natural e causa bala. A caveira mexicana, ao lado dessa vertigem, é mimo
(BOAL, 2000, p. 296).
Se o exílio tem estreita relação com o desenraizamento, com a desestabilização e
com a solidão, a anistia, no Brasil, funcionou tão apenas como sequelas do degredo. A Lei
nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anistia, decreta, em seu artigo
1º, que
é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo
com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e
aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao
poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares
e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares (BRASIL, 1979).
O que se observa nessa lei é que torturadores e torturados foram colocados no
mesmo patamar. Na medida em que se fala de crimes políticos, cabe questionar: o crime
político do golpe de 64, que prendeu, torturou, baniu e matou tem o mesmo peso e a
mesma medida para aqueles que estabeleceram resistência a esse golpe, para aqueles que
foram presos, torturados, banidos e mortos?
A Lei da Anistia foi tão somente mais uma manobra política que proporcionou a
um regime autoritário decadente uma via para controlar um processo de transição que o
protegesse de responder pela violação dos direitos humanos e que viabilizasse o retorno ao
poder, por meio da “democracia”, das mesmas pessoas que dele fizeram parte.
Ao abrir espaço para esse retorno ao poder, permitiu que o país permaneça
encarcerando a pobreza, que a justiça continue sendo seletiva, que os discursos de
violência e segregação sejam banalizados, que os pobres sejam responsabilizados pela sua
própria miséria e que o golpe de 2016, legitimado por uma elite colonizada, conseguisse
“exilar” um governo que se propôs a reduzir privilégios. Pela figura de um general de
toga50
, desenha-se uma aberta perseguição política, batizada de Operação Lava Jato, que
50
Marcos Cesar Danhoni Neves, professor titular da Universidade Estadual de Maringá, em artigo escrito
para a Revista Fórum, intitulado Moro, laços de família e o “ground zero” da destruição da justiça e da
esquerda no Brasil, afirma que a cólera de Sérgio Moro contra as esquerdas, Lula e o PT é promessa de
família e descreve sua formação como um “verniz conservador”, advindo do seu pai, Dalton Moro, que, em
1980, posicionou-se contra a abertura política. Neves também conta que, entre 1995 e 2000, Sérgio Moro
97
relativiza a interpretação dos textos legais, inclusive da Constituição, e criminaliza a
igualdade social.
A Lei da Anistia proporcionou, também - ao tentar evitar o debate público
necessário sobre tamanha barbárie -, que muitos dos violentados ou suas famílias ficassem
excluídos das narrativas, dos testemunhos sobre esse passado. Para além, estabeleceu
ligação intrínseca com a impossibilidade do retorno: se exílio é meia morte, como prisão é
meia vida, o retorno é impossível:
Carmen51
, jamais voltaremos, eu, você, nós dois, jamais reencontraremos cães
vagando sem rumo, sem nós, legítimos proprietários de ilusões perdidas e cães
desenxabidos: nossos morros mais íntimos nunca existiram, nem cachorros
amados, mais queridos. Nós os inventamos com nossos desejos. Você voltou
para Hollywood sem saber que o Rio nem te via: o que você buscava só existia
em você. O meu Rio, em mim (BOAL, 2000, p. 325).
O primeiro espetáculo de Boal depois do exílio foi O corsário do rei, que se
ambienta em 1711 e trata das aventuras de Duguay-Trouin, pirata francês que, julgando ser
perda de tempo e dinheiro suas meras operações de pirataria, solicita e obtém a autorização
do rei da França para invadir o Rio de Janeiro, com o objetivo de ocupá-lo para,
posteriormente, vendê-lo aos brasileiros e portugueses. Os governantes, então, pagam
resgate com açúcar, ouro e demais pedras preciosas. Diante da agilidade com a qual o
resgate foi pago, Duguay-Trouin questiona a generosidade portuguesa e recebe a resposta
de que são os negros brasileiros, escravos, que pagaram essa conta. A peça, portanto,
satiriza e denuncia a exploração capitalista, a tradição escravocrata e a corrupção do
mercado, disfarçada de corrupção do Estado.
O espetáculo suscitou críticas negativas, dentre elas um debate organizado pelo
Jornal do Brasil e publicado com o título Ninguém gostou. Parece52
. Esse artigo dizia
basicamente o seguinte:
defende o prefeito de Maringá, Jairo Gianotto, do PSDB, da acusação de subtração de dinheiro público. Em
parceria com o advogado Irivaldo Joaquim de Souza – que advogava, à época, para a família Barros, hoje
representada no governo golpista pelo Ministro da Saúde, Ricardo Barros – Moro consegue um habeas
corpus que evita a prisão do prefeito e depõe favoravelmente a Gianotto, determinando sua absolvição. 51
Referência à Carmen Miranda quando, em seu retorno dos EUA ao Brasil, cantou “voltei para o morro”. 52
O artigo na íntegra encontra-se no Anexo IX.
98
Muito ruim, ingênua, uma porcaria. Os convidados para o debate da peça O
Corsário do Rei, dirigida por Augusto Boal, chegaram à mesma conclusão.
Ninguém gostou. A atriz Lilia Cabral a estudante de teatro Isabella Dauzacker, o
diretor teatral Aderbal Junior, a figurinista e cenógrafa Biza Vianna, o ator
Ricardo Petraglia e o músico Edino Krieger, coordenados pelo crítico de teatro
do B-Especial Macksen Luiz, lembraram que Boal é um exilado cultural, e
trouxe para o Brasil uma proposta de espetáculo muito defasada em relação ao
momento em que vive o país (JORNAL DO BRASIL, CADERNO B-
ESPECIAL, 1985, p. 4).
Antes de me adiantar à discussão sobre o exílio cultural de Boal, mencionado nesse
debate, é importante pontuar, ainda que brevemente, que o cenário sociopolítico e cultural
brasileiro, na década de 80 - a chamada época de transição para a democracia -, colocou
em ação as estratégias que o regime ditatorial já havia traçado para o âmbito político - qual
seja, uma transição que garantisse a permanência da elite dominante no poder político e
econômico -, bem como para o contexto cultural, no que se refere ao incentivo do
desenvolvimento do capital privado ou mesmo operando pela mediação do Estado. Se, por
um lado, viu-se, a partir da década de 70, o renascimento dos movimentos sociais, como o
sindicalismo e o estabelecimento do Partido dos Trabalhadores (PT), enquanto um esforço
de se contrapor à hegemonia política e cultural, por outro, o que se observou foi a
concretização de uma aliança entre capitalismo e indústria cultural (RIDENTI, 2000).
A consequência dessa aliança é a implantação do chamado “mercado teatral” em
São Paulo e no Rio de Janeiro, a partir de 1980, conforme aponta Sílvia Fernandes em A
encenação (2013):
Especialmente no Rio de Janeiro, predominam carreiras individuais associadas à
fama produzida pela Rede Globo de Televisão, que cria e destrói celebridades no
ritmo de estreia de suas telenovelas. O ator volta a ser motor de um tipo de
espetáculo que se aproxima do “estrelismo pré-moderno” [...] (FERNANDES,
2013, p. 335).
Esse período fica conhecido como a “década do diretor”, em que o individualismo
na concepção dos espetáculos ocupa o lugar do trabalho coletivo. Observa-se, assim, o que
Ridenti (2003) chamou de integração contraditória dos artistas e intelectuais que
vivenciaram os anos de chumbo à cultura política que se estabeleceu a partir dos anos 70 e
se consolidou nos anos 80.
99
A estigmatização de Boal como exilado cultural encontra explicação no fato de
que, mesmo diante da anistia, que possibilitou o retorno dos exilados, a política brasileira
não escapou ao controle da elite remanescente dos projetos políticos que se
comprometeram com a ditadura. Ainda que, naquele momento, o Brasil assistisse à
fundação de um partido como o PT, que congregou trabalhadores rurais e urbanos e que
passou a representar uma demanda pela igualdade social, a ideia do populismo persistiu.
No entanto, para o exilado, a chamada “abertura política” projetou a idealização do retorno
a uma sociedade que já não compactuava com o regime que o expulsou, agravando,
segundo Rollemberg (1999), o impacto da chegada e infligindo uma necessidade de rever a
si mesmo e ao país. O corsário do rei foi, para Boal, também o seu primeiro impacto:
A crítica desancou, era normal. Não tão normal que dissessem que eu, depois de
tanto exílio, não estava em sintonia com a realidade carioca, onde se
apresentavam bulevares franceses e alcoólicas comédias norte-americanas
escritas por autores que jamais haviam estado sintonizados com o que quer que
fosse e nem sabiam se o Brasil ficava em Buenos Aires ou vice-versa. No Rio,
ouvi o argumento ouvido em outros países: “Você é estrangeiro, não pode nos
entender.” Estrangeiro em minha casa. Não: simplesmente era eu! Não tenho
porque ser igual! Igual a quem? Alguém é igual? Não somos sequer iguais a nós
mesmos (BOAL, 2000, p. 326).
É interessante notar a continuidade do pacto firmado pelas elites para defender seus
interesses econômicos: em 1930, ao perder o poder político para Getúlio Vargas, a elite
paulistana articulou e pensou um poder ideológico que condicionasse o poder político a
agir de acordo com suas regras. Em 1964, esse mesmo poder ideológico mitigou o efeito
do princípio da soberania popular, tornando suspeitas quaisquer lideranças advindas dessa
classe. Como consequência, o setor cultural passa a ser submetido à lógica mercantil, logo,
a presença cultural da esquerda foi se diluindo:
O pleno desenvolvimento do capitalismo no Brasil tenderia a inviabilizar
quaisquer atividades grupais que pudessem embasar socialmente uma arte
subversiva, numa era de ocupação quase completa do espaço cultural pela lógica
mercantil, dificultando a produção e a invenção estéticas assentadas nas
experiências de grupos (RIDENTI, 2006, p. 7).
Como reflexo dessa conjuntura política, o cenário cultural que Boal encontra é um
cenário já esvaziado do projeto político-cultural de um teatro de identidade nacional,
embasado no estatuto político da arte.
100
Para aquele cenário, o Corsário, de fato, foi um grande elefante branco:
Seduzido pelas facilidades – e pela Moral Sindical: era urgente empregar o maior
número de atores, tempos de crise! – eu me senti Ingrid Bergman em
Hollywood. “Se eu pedisse um elefante cor-de-rosa, vivo e pulando corda, no dia
seguinte me dariam dúzias de elefantes coloridos, a escolher”, disse ela.
O elefante que me foi dado era branco (BOAL, 2000, p. 326).
No Rio de Janeiro, sob o governo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro – ambos tão
expoentes da esquerda perseguida e exilada quanto Boal – desenhava-se uma
contraposição da elite ao fomento estatal à cultura. A ideia de cultura já se encontrava
burocratizada e mercadológica. É possível constatar, então, que o elefante branco chamado
O corsário do rei concretizou, para Boal, uma impossibilidade de retorno que já havia
marcado nele, de modo indelével, uma fratura que se deu a partir do golpe civil-militar de
64: a perda do Arena, não só no que diz respeito aos projetos políticos contra o sistema
capitalista transnacional, mas também no que se refere à vasta produção intelectual do
grupo, conforme aponta Cecília Thumin Boal:
[...] a meu ver, o que mais doeu nele em relação à volta do exílio foi a perda do
Arena, porque eles se dedicaram muito. Quando o Boal assumiu o Arena, ele
havia voltado de um curso com o Gassner, propôs seminários de dramaturgia,
todo mundo escrevia, tinha que escrever. Isso criou uma leva de autores como
nunca o Brasil teve, foi uma reviravolta na dramaturgia brasileira. Não se tem
hoje na dramaturgia brasileira peças tão bem “costuradas” como as daquela
época. Hoje temos grupos, como [...] o Galpão, como a Companhia do Latão, do
Sérgio Carvalho, mas a quantidade de trabalhos como o Arena não tem hoje.
Podem até dizer que o contexto é diferente, mas eu estava relendo Revolução na
América do Sul e novamente me encantando com essa peça tão bem estruturada.
Em suas memórias, Boal relembra que, ao finalizar o curso de Engenharia Química
– desejo de seu pai – ganhou a oportunidade de se especializar, durante um ano, no
exterior. Escolheu a Columbia University, ao descobrir que John Gassner53
estaria lá
oferecendo um curso de Playwriting. Foi para ficar um ano e o estendeu a dois. De sua
experiência com Gassner, trouxe para o Arena cursos e seminário de dramaturgia, nos
quais muito se debatia e muito se incentivava a escrever: “Guarnieri e Vianninha
53
John Gassner, expoente da scholarship e da crítica norte-americana, foi professor de Dramaturgia na
Universidade de Columbia, na Yale Drama School e no Laboratório Dramático de Piscator, além de editor,
dramaturgista do Theatre Guild e encenador de peças. Escreveu, dentre outros estudos, os livros Masters of
the drama, volumes 1 e 2, publicados no Brasil como Mestres do drama pela Editora Perspectiva.
101
escreviam muito – estimulavam os outros” (BOAL, 2000, p. 148). Sob a direção de Boal,
textos de vários autores brasileiros foram encenados pelo Arena, como Chapetuba Futebol
Clube (1958), de Vianninha; A Farsa da Esposa Perfeita (1959), de Edy Lima; Gente
como a gente (1959), de Roberto Freire; Fogo Frio (1960), de Benedito Ruy Barbosa;
Pintado de Alegre (1961), de Flavio Migliaccio; e O Testamento do Cangaceiro (1971), de
Chico de Assis, para citar alguns54
.
Após o Corsário, Boal dirigiu Fernanda Montenegro em Fedra, de Racine; fez,
com Maitê Proença, La malasangre, de Griselda Gambaro; dirigiu O encontro marcado, de
Fernando Sabino, com estudantes e em horário alternativo. Cansou-se:
Em 88 dirigi Fernando Sabino, Encontro marcado, com estudantes, horário
alternativo. O espetáculo era bom, sabe? Quem viu, gostou... sabe?
Cansei. Atores precisavam ganhar a vida em TV e cinema – teatro pouco paga.
Acontecia ficarmos esperando para ensaiar e tendo que desistir porque as
gravações atrasavam, filmagens distantes.
Fiquei onze anos sem dirigir no Rio, além das curtas peças do meu Centro de
Teatro do Oprimido (BOAL, 2000, p. 327).
O banimento causa uma ruptura com as referências – políticas, ideológicas,
profissionais – do país de origem e torna o exílio uma lacuna. O retorno, por sua vez, não
preenche esse intervalo e o exilado, mesmo depois de voltar, ainda traz consigo um
conflito entre o passado que viveu e o presente que o recebe. Tenta retomar, no presente,
aquele ponto da vida que foi forçado a deixar para trás e, ao se dar conta da
impossibilidade dessa retomada, depara-se com a sensação de ser um expatriado dentro de
sua própria pátria.
Em 1986, Boal foi convidado por Darcy Ribeiro – à época, Secretário de Estado,
Ciência, Cultura e Tecnologia do governo de Leonel Brizola – para participar do projeto
Fábrica de Teatro Popular, cujo objetivo era desconstruir o elitismo da educação pública,
propondo um modelo educacional pautado na formação crítica e emancipatória, com vistas
a combater as desigualdades sociais. A ideia era formar animadores culturais que atuassem
como multiplicadores do Teatro do Oprimido, por meio dos jogos, exercícios e técnicas, de
modo a levarem uma inovadora proposta de ensino-aprendizagem para os espaços formais
54
A atuação de Boal como escritor, coescritor e diretor está disponibilizada pelo Acervo Digital da Funarte,
no Projeto Brasil Memória das Artes (Cf. em
http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/augusto-boal/a-atuacao-de-boal-no-teatro-de-arena/)
102
de educação55
. Em parceria com Cecília Thumin Boal e Rosa Luíza Marques, diretora dos
Teatreros Ambulantes de Puerto Rico, dirige 35 animadores culturais, que passaram por
seminários de dramaturgia, laboratórios de interpretação e ateliês de cenografia.
Entretanto, em 1987, Brizola perde as eleições e Moreira Franco, eleito governador,
interrompeu o projeto, o que abalou intensamente o trabalho do Centro de Teatro do
Oprimido do Rio (CTO-Rio). Diante de um panorama político que encerrava a atuação da
esquerda no governo do Rio de Janeiro, Boal procura o PT, oferece apoio nas eleições de
1992 e recebe o convite para se candidatar a vereador. Com a certeza de que não venceria,
aceitou. E venceu.
A partir de então, exilou-se, durante quatro anos, do teatro profissional; conheceu,
segundo ele, a arena sangrenta da Câmara dos Vereadores e aprendeu que lá era o lugar
onde se brigava por apetites pessoais ou corporativos, nunca pelo povo. Mas criou dezenas
de grupos – de camponeses sem terra a operários sindicalizados – e com eles exercitou o
TO. As necessidades desses grupos eram discutidas e levadas à Câmara em forma de
projetos de lei. De 30 projetos, 13 se tornaram leis municipais.
Apesar disso, ao término de seu mandato, Boal assiste à consolidação da indústria
cultural e de uma política que visa inserir o Brasil no contexto da globalização econômica.
Excluído da grande mídia, forte aliada de parte da elite política que sustentou a ditadura,
experimenta, até o ano de sua morte, em 2009, o que Adorno, em Minima Moralia:
Reflexões a partir da vida lesada (2008), propõe como uma teoria do exílio moderno,
segundo a qual o testemunho/memória das barbáries impostas pelos Estados-Nação trazem
como consequência não se sentir em casa na própria casa, conforme comprova o
prefácio de Aqui ninguém é burro – Graças e desgraças da vida carioca (1996)56
, em que
Boal relata a sua indignação contra uma lei, aprovada pela maioria da Câmara, que
isentava companhias privadas do pagamento dos devidos impostos. Coube a ele, então,
tomar para si sua condição de exilado e fazer dela um meio de continuar o seu ofício:
colocar-se fora de casa, para exercer o pensamento crítico.
55
Em relação a esse projeto, há um texto bastante esclarecedor, intitulado A Fábrica de Teatro Popular e sua
atualidade em tempos de retrocesso – 30 anos depois, disponível no blog do Instituto Augusto Boal, sob o
seguinte endereço eletrônico: https://institutoaugustoboal.org/tag/fabrica-de-teatro-popular/. 56
Livro que conta sua experiência como vereador, uma compilação do que ele chamou de seus
“pronunciamentos-desabafos”.
103
Acervo Augusto Boal
Torquemada AB.ETf.BUA.011
SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Não identificada
DATA: [1972] | ANO: 1972 | LOCAL: [Buenos Aires (Argentina)]
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Cena de tortura em montagem de “Torquemada”.
NOTAS: Peça de autoria de Augusto Boal, montada possivelmente em Buenos Aires ou Bogotá.
ASSUNTOS: Tortura, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas
Acervo Augusto Boal
Torquemada AB.ETf.BER.001
SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Não identificada
DATA: 1973-1974 | ANO: 1973 | LOCAL: Berlim (Alemanha)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, Cor
DESCRIÇÃO: Representação do pau-de-arara durante montagem de “Torquemada” em Berlim.
ASSUNTOS: Tortura, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes cênicas
104
Acervo Augusto Boal
Murro em ponta de faca AB.EMPFf.019
SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Não identificada
DATA: 1978 | ANO: 1978 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Bethy Caruso, Othon Bastos e Martha Overbeck (ao fundo) em cena.
NOTAS: Peça de Augusto Boal, escrita durante seu exílio em Paris e encenada pela Companhia de
Teatro Othon Bastos sob direção de Paulo José.
Estreia realizada no Teatro TAIB no dia 4 de outubro de 1978, com elenco: Renato Borghi (Paulo),
Francisco Milani (Doutor), Martha Overbeck (Marga), Bethy Caruso (Foguinho), Othon Bastos
(Barra) e Thaia Perez (Maria). ASSUNTOS: Teatro Brasileiro, Teatro, Exílio político, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes
cênicas
105
Acervo Augusto Boal
O corsário do rei AB.ECRf.002
SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Xico Lima
DATA: 1985 | ANO: 1985 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Ivan Senna, Lucinha Lins e Marco Nan ini em cena da peça “O corsário
do rei”, realizada no Teatro João Caetano. NOTAS: Texto e direção de Augusto Boal com músicas de Edu Lobo e Chico Buarque.
Foto possui carimbo do fotógrafo no verso. ASSUNTOS: Teatro Brasileiro, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes
cênicas
Acervo Augusto Boal
O corsário do rei AB.ECRf.014
SÉRIE: Exílio | AUTORIA: Xico Lima
DATA: 1985 | ANO: 1985 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, P&b
DESCRIÇÃO: Elenco em cena da peça “O corsário do rei”, realizada no Teatro João
Caetano. NOTAS: Texto e direção de Augusto Boal com músicas de Edu Lobo e Chico Buarque.
Foto possui carimbo do fotógrafo no verso. ASSUNTOS: Teatro Brasileiro, Teatro, Espetáculo teatral, Encenação, Atores, Artes
cênicas
106
Acervo Augusto Boal
Fedra AB.RFf.002
SÉRIE: Retorno ao Brasil | AUTORIA: Claudia Ferreira
DATA: 1986 | ANO: 1986 | LOCAL: Rio de Janeiro (RJ)
TIPO DOCUMENTAL: Fotografia | CARACTERÍSTICAS: PAPEL, COR
DESCRIÇÃO: Fernanda Montenegro em cena de Fedra, peça realizada no Teatro de
Arena do Rio de Janeiro. NOTAS: Foto possui etiqueta da fotógrafa no verso.
ASSUNTOS: Teatro de Arena, Teatro, Espetáculo t eatral, Encenação, Atores, Artes
cênicas
107
[...] eles não apenas preferem esquecer esse
passado, apagá-lo da memória e da história,
como também alguns se orgulham de ter
torturado com técnicas que não deixavam marcas
nos corpos das vítimas. O que eles não deixaram
escrito no corpo dessas pessoas foi, no entanto,
escrito a ferro e fogo na carne da sociedade.
Márcio Selligman-Silva, Reflexões sobra a
memória, a história e o esquecimento.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu sonho era esse: um dia, eu volto para minha casa, para o meu país, para a
minha caneca, para a minha cama, para os meus chinelos. Só que, quando você
fica pensando que vai voltar para o Brasil que você deixou, quando você volta, o
Brasil já não é o mesmo que você deixou [...] (BOAL, 2009).
A escolha por Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro sob a perspectiva do
testemunho e da memória permitiu identificar um entrecruzamento entre memória e
experiência histórica, em que a questão crucial não se limita aos gêneros aos quais esses
duas obras se filiam, mas sim à práxis: ao analisar a trajetória do artista Boal e suas
experiências de violências, a discussão encontra solo firme no terreno da História e coloca
Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro como obras fundamentais para a
depuração de um movimento estético-político.
Além disso, as posições teórico-políticas de Boal revelam-no um artista capaz de
autoexame, desde a época do Arena, em um momento no qual poucos exercem essa
autocrítica. Em 17 de outubro de 2006, ele preparou um discurso para comemorar a
reeleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Nele, conclama o povo brasileiro a não
repetir os erros do passado político que derrocaram a esquerda:
Nunca mais os erros de 64: nunca mais a divisão.
Como cada um de nós é uma unicidade, é natural que, mesmo quando pensamos
a mesma coisa, pensemos essa mesma coisa de forma diferente. Cada gêmeo,
cada família, cada torcedor de um mesmo time, cada membro de uma mesma
associação antifascista, cada militante de cada partido político de esquerda, por
mais que tenha, com os demais, um sólido denominador comum, pensa de forma
diferente a mesma coisa igual. Isso é maravilhoso, é assim que se avança:
cotejando opiniões, dialogando entre companheiros, manifestando dúvidas e
hesitações.
Mas tem um porém: vezes há em que o combate se dualiza e o mundo se divide
em duas metades: não existe terceira metade, não existe a terceira margem do
rio. É lá ou cá. É este esse momento: ou cá ou lá!
Em 1964, a esquerda se dividiu em ALN, PC do B, Var-Palmares, MR8, PCR e
outros: um mais à esquerda, outro menos à esquerda; um, um pouco mais ou
menos à esquerda, outro menos ou mais; uma esquerda assustada, timorata e
temerosa, outra, afoita, destemida e corajuda. Eram tantas divisões e
dissidências, dissidências das divisões e divisões das dissidências, divisões das
divisões e dissidências das dissidências, que, nós, que éramos a maioria, que
éramos todos contra a ditadura mas estávamos divididos, nós fomos vencidos.
Todos. Perdemos para uma ditadura sólida, que também
tinha nuances, inimizades, conflitos econômicos, mas eram todos ditadores.
109
Perdemos e pagamos caro a derrota – no espírito e no corpo. Pagamos caro
BOAL, 2006, s/p).
Hoje o país continua pagando caro: assim como em 1968, ano do golpe dentro do
golpe, em 2014 o Brasil assiste deflagrar a Operação Lava Jato. No grande teatro da
política brasileira, a Lava Jato encena o combate à corrupção, enquanto a elite empresarial
se mobiliza, mais uma vez, para entregar os recursos públicos nacionais ao capital
internacional. Por meio de um golpe institucional – o impeachment da presidente Dilma
Rousseff, em 2016 -, essa elite forja um anseio popular de anticorrupção.
De outro lado, o PT, partido que representou o renascimento dos movimentos
sociais, não rompeu com a hegemonia do capital financeiro e ainda se aliou ao capital
exportador. Ao não superar a dependência clientelista do governo em relação ao “mercado
partidário”, o PT também não enfrentou a temática da corrupção como uma estratégia da
direita para criminalizá-lo, permitindo que os grandes meios de comunicação regidos por
essa direita manipulassem a opinião pública e desenhassem um perfil corrupto de toda a
esquerda.
Assim, uma vez mais, resguardadas as devidas diferenças, a história se repete: de
um lado, tem-se, no Brasil, uma direita que não realiza a autocrítica, até porque dela não
precisa, já que a mesma resistência à autocrítica da esquerda petista desarticulou todo um
projeto de efetiva democratização do país, de menos desigualdades sociais e de uma arte
política. Do mesmo modo que o PCB acreditou na possibilidade de conciliação com o
poder hegemônico e, com isso, desarmou-se ideológica e politicamente, o PT perpetuou
essa tradição conciliatória que culminou em mais um golpe dentro de outro golpe, em
2018, com a prisão do ex-presidente Lula.
Pensar no resgate dessas memórias de prisão, tortura e banimento, levando em
conta o seu teor testemunhal, é uma maneira de colocar o passado vivo no presente, pois,
no Brasil, os impactos causados pela ditadura civil-militar, ao invés de se constituírem
como patrimônio vivo, ao contrário, são considerados traumas superados, uma vez que a
anistia oficializou a cumplicidade do sistema judiciário em relação a esses crimes. É,
também, um modo de não permitir que esse passado seja apagado da memória e da
história. É, ainda, um exercício que abre espaço para refletir por que a arte de resistência
tornou-se, hoje, um legado memorialístico destituído do projeto político que a motivou. E é
pertinente e atual para se discutir a importância da emancipação frente às violências, sejam
110
físicas ou simbólicas, bem como para lançar luz, quem sabe, a futuras pesquisas que
possam avançar nas mediações necessárias para problematizar as coincidências entre os
sucessivos golpes políticos desferidos contra a sociedade brasileira, conforme apontei no
início desta tese.
A esse respeito, gostaria de ressaltar, também, a pertinência e a atualidade de
Revolução na América do Sul para o cenário político de hoje. O operário José da Silva não
tomou conhecimento efetivo do que significava a revolução política. Nunca questionou,
por exemplo, o aumento abusivo da sua carga de trabalho, cultivava a crença de que os
deputados lhe proporcionariam comida e emprego e se alienava dos conchavos políticos.
Ao final da peça, véspera de eleição, José vota e, depois de muito sentir fome, vai almoçar.
Na esperança de poder comer todos os dias, resolve até comer uma sobremesa:
Já se ouviu falar em mulher de duas cabeças, em homem de quatro patas, mas
homem do povo que almoça, isto é completamente inverossímil [...]
O homem do povo também vai comer uma sobremesa. Graças às eleições!
(BOAL, 1986, p. 112-113).
Mas não come. Morre engasgado com a marmelada.
A morte de José da Silva, também conhecido como “povo”, demonstra a
intencional ironia do título da peça. Não houve revolução. O que houve foi um golpe, que
ainda culpabilizou o povo por cometer o “erro” de morrer de barriga vazia. A morte é
senão uma metáfora. O que houve foi um apagamento de memória.
Portanto, se Walter Benjamin já adiantou, em 1936, que, contra a estetização da
política, deve-se responder com a politização da estética, é essencial que a literatura seja
despida da lógica aristotélica de forma artística estritamente representacional para
reconhecer a sua importância enquanto uma arte que também produz narrativas cujo
elemento fundante é experiencial;
Quero escrever peças, encenar, dar testemunho, falar do que sei, sinto e sonho. O
Teatro do Oprimido, que pretende libertar o artista que existe em cada um de
nós, me libertou a mim para que eu possa sentir o que sinto, sem remorsos; falar
de mim, sem vaidade (se possível...); dar meu testemunho, veraz (BOAL, 2000,
p. 330).
111
Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro deixam claro que o testemunho
deve ser entendido como um componente da literatura que dá vez e voz ao discurso da
memória e amplia as possibilidades de se resgatar um passado político-social violento para
repensar um presente não menos violento. Em suma, essas duas obras não só podem como
devem ser lidas como testemunhos/memórias de uma barbárie, segundo o desejo do
próprio Boal (2000, p. 338): “é preciso brigar contra a rendição fatalista que se alastra
como se não houvesse opção. Escrevendo – palavras! – faço minúscula parte, faço um
passo. Não é tímido, embora curto. Quem tiver perna mais longa dê maiores passos”.
112
REFERÊNCIAS
Filmografia
UTOPIA e barbárie. Direção: Sílvio Tendler. Produção: Ana Rosa Tendler. Roteiro: Silvio
Tendler. Fotografia: André Carvalheira. Trilha Sonora: Caíque Botkay, Bnegão, Marcelo
Yuka, Cabruêra. Rio de Janeiro: Caliban Produções Cinematográficas, 2010. 1 DVD (120
min.), NTSC, color.
Textos literários
BOAL, Augusto. Milagre no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
BOAL, Augusto. Revolução na América do Sul. In: BOAL, Augusto. Teatro de Augusto
Boal. São Paulo: Hucitec, 1986. p. 17-117.
BOAL, Augusto. Aqui ninguém é burro – graças e desgraças da vida carioca. Rio de
Janeiro: Revan, 1996.
BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro:
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APÊNDICE A – ENTREVISTA COM CECÍLIA THUMIN BOAL
Mariana De-Lazzari Gomes: Cecília, minha pesquisa de doutorado parte do princípio de
que Boal, por causa da experiência de violência com a ditadura, desenvolveu um método
teatral único – o Teatro do Oprimido -, bem como uma extensa obra teórica acerca desse
fazer teatral e que é muito mais reconhecida internacionalmente do que no Brasil,
sobretudo no âmbito acadêmico. Mais que isso, a produção artística de Boal se alarga para
além do TO, ainda que seja para justificá-lo ou explicá-lo. Dentre essa produção, destaco
Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro, em que fiz um recorte dos capítulos que
abrangem a prisão, a tortura, o exílio e o retorno de Boal ao Brasil. Em ambas as obras, o
fio condutor da análise foram as experiências de violências, pois acredito que contribuirá
para reconstituição de parte da nossa história, o tempo do Estado de Exceção após o golpe
civil-militar de 1964, e que têm a dizer muito mais que a historiografia chamada de
“oficial”. Então, minha pesquisa propõe que há uma dimensão da obra de Boal que, mesmo
não sendo estritamente dramática, se articula com sua dramaturgia e com seus
posicionamentos teóricos. Acredito que Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro
ocupam lugar de destaque, são obras emblemáticas, que evidenciam a política, mas que, de
modo algum, se dissociam nem de suas peças nem de sua teoria do teatro.
Cecília Thumin Boal: Concordo. Pode perguntar, Mariana. Se eu souber responder, fico
muito feliz em poder ajudar.
M. D. G: Este breve relato sobre a minha questão central de pesquisa é só para
contextualizar a entrevista, que visa focar na dimensão política que permeia a estética do
Boal, sobretudo no que se refere ao golpe civil-militar brasileiro de 64. Você me autoriza
gravar esse telefonema?
C. T. B: Sim. Depois você transcreve e, se quiser, no final de julho estarei em Belo
Horizonte. Se não for difícil para você, podemos nos encontrar lá e conversamos mais.
Pode perguntar.
M. D. G: Dentre diversas pesquisas sobre o Boal, principalmente aquelas que englobam
sua atuação durante a vigência da ditadura civil-militar brasileira, há informações que
120
dizem respeito ao fato de alguns artistas participarem da resistência ao golpe, ajudando
financeiramente algumas organizações ou emprestando suas residências ou espaços nos
teatros para encontros dessas militâncias, à época, consideradas clandestinas. Como se
dava a participação do Boal nessa resistência?
C. T. B: O Boal cedia a nossa casa para encontros dos militantes, em reuniões que,
muitas das vezes, varavam madrugada adentro. Ele era militante da ALN, isso está na
biografia do Marighella. Como viajava muito por causa do teatro, o Boal era um tipo de
apoio para a ALN, porque podia levar mensagens para outros militantes fora do Brasil.
M. D. G: Por ocasião da série de espetáculos Arena conta..., as críticas em relação à Arena
conta Zumbi e Arena conta Tiradentes ficaram polarizadas: de um lado, havia quem
dissesse que Boal não estava fazendo teatro político; de outro, estavam aqueles que viam
em Zumbi um início de apelo à luta armada – já que o Boal era simpatizante a uma
organização que apoiava essa luta - que, posteriormente, se concretizou em Tiradentes...
C. T. B: Vejo Zumbi e Tiradentes mais como um resgate de heróis. O Boal acreditava que,
naquele momento, o Brasil precisava de heróis. O Roberto Schwarz, o Anatol Rosenfeld
criticaram essas peças e, em certa medida, tinham razão, porque o público desses
espetáculos era mais da classe média, eram estudantes. Embora eles tenham viajado e se
apresentado para as classes mais populares, em cima de caminhões, as peças não tiveram
uma entrada tão significativa em meio às grandes massas. Mas, mesmo assim, o Boal via a
necessidade de o povo brasileiro ter heróis. Tem uma professora muito boa da UFRJ, a
Priscila Matsunaga, que falou sobre isso em uma exposição que fizemos sobre o Boal. Ela
falou sobre esse desejo do Boal de resgatar heróis.
M. D. G: Em setembro de 1970, o Arena apresentou seu primeiro espetáculo de Teatro-
jornal. No início do ano seguinte, Boal foi sequestrado por agentes da ditadura,
encaminhado ao DOPS e submetido a sessões de tortura. Posteriormente, foi transferido
para o presídio Tiradentes, onde permaneceu por quase dois meses. Para justificar a prisão,
foi alegado que Boal cometeu crimes previstos pela Lei de Segurança Nacional, porque
fazia parte de uma organização “subversiva”. De acordo com as investigações, ele teria se
encontrado com militantes da ALN em Paris para transmitir recados da organização, bem
como negociado armamentos com representantes norte-coreanos...
121
C. T. B: É verdade, mas o Boal não confessou nada. Ele até fala sobre isso em um dos
livros, acho que no Hamlet...
M. D. G: e em Milagre no Brasil também...
C. T. B: ... e olha, é isso mesmo que sua tese tem que reforçar, porque isso é muito pouco
falado. Imagina uma pessoa ser sequestrada no meio da rua e ficar presa sem que sua
família soubesse onde estava. A família saía daqui do Rio para São Paulo, procurava e
nas delegacias diziam que não havia ninguém com o nome de Augusto Boal. Mesmo que
ele não tenha ficado muito tempo preso, isso é uma violência muito grande, estar sozinho,
ser torturado...
M. D. G: E testemunhar a tortura de outros companheiros, como a Heleny Guariba...
C. T. B: A Heleny foi pior ainda, porque ela foi morta.
M. D. G: As experiências de violências acompanham o indivíduo por aonde quer que ele
vá. A prisão estará para sempre dentro daquele que por lá passou. Impossível se libertar
totalmente dela. Podemos dizer que, assim como a libertação do cárcere é impossível,
impossível também é o retorno após o exílio? Porque Em Hamlet e o filho do padeiro Boal
diz: “em 86 fiquei morando e me dei conta do impossível. Ninguém volta do exílio, nunca!
Jamais”.
C. T. B: Dois meses de prisão é um tempo relativamente curto, mas não menos violento. O
Boal não confessou nada, por isso foi solto, mas precisou se exilar. Agora, em relação ao
exílio, o Boal sempre foi um otimista. Mesmo sentindo falta do Brasil, ele acreditava que o
Teatro do Oprimido poderia ser disseminado, porque, se o Arena não atingiu, como
desejava, o público nessa proposta de resistência, de mudança, o Teatro do Oprimido iria
continuar esse legado. O Boal era daqueles que fazia de um limão uma limonada, e uma
limonada muito linda. Então, a meu ver, o que mais doeu nele em relação à volta do exílio
foi a perda do Arena, porque eles se dedicaram muito. Quando o Boal assumiu o Arena,
ele havia voltado de um curso com o Grassner, propôs seminários de dramaturgia, todo
mundo escrevia, tinha que escrever. Isso criou uma leva de autores como nunca o Brasil
teve, foi uma reviravolta na dramaturgia brasileira. Não se tem hoje na dramaturgia
brasileira peças tão bem “costuradas” como as daquela época. Hoje temos grupos, como
o seu aí, o Galpão, como a Companhia do Latão, do Sérgio Carvalho, mas a quantidade
de trabalhos como o Arena não tem hoje. Podem até dizer que o contexto é diferente, mas
122
eu estava relendo Revolução na América do Sul e novamente me encantando com essa
peça tão bem estruturada.
M. D. G: Mas, resguardadas as devidas diferenças de contexto, a peça me parece ainda
muito atual para o Brasil de hoje...
C. T. B: Sem dúvida. Inclusive estamos pensando em montá-la nas ruas do Rio de Janeiro
neste ano de eleições, para apoiarmos o candidato que escolhermos, se ele quiser, é claro,
porque no Brasil tudo ainda continua muito difícil. Meu filho, Julián, trabalha com o
Teatro do Oprimido nos movimentos sociais, como os do Sem Terra, por exemplo. Se você
quiser, posso te colocar em contato com ele. Mas fora isso, só vejo o Teatro do Oprimido
trabalhar para um público realmente necessitado de mudanças na Índia, em que eles
fazem um trabalho muito efetivo, andam por estradas de terra, para chegar nas
comunidades mais excluídas e ajudar as mulheres indianas, que ainda são muito
subjugadas e violentadas. O Boal queria muito mais.
C. T. B: Tem mais alguma coisa que você queira perguntar, Mariana? Porque meu
horário está meio apertado, mas, como disse, podemos nos falar novamente ou nos
encontramos em Belo Horizonte...
M. D. G: Só tenho a agradecer em meu nome e em nome do meu orientador, o professor
Luís Alberto, da UFRJ. Acredito que ter a oportunidade de falar com uma fonte tão
fidedigna [rs] irá contribuir muito para a qualidade da minha pesquisa.
C. T. B: Estou às ordens, é só me mandar mensagem e podemos marcar outra conversa.
Também vou enviar a você o contato do Julián. Boa tarde.
M. D. G: Mais uma vez, obrigada pela disposição em me atender. Tenha uma boa tarde.
BOAL, Cecília Thumin. Cecília Thumin Boal: entrevista [mai. 2018]. Entrevistador:
Mariana De-Lazzari Gomes. Ponte Nova/MG, 2018. 1 arquivo mp3 (22m 12s). Entrevista
concedida à tese de doutorado Milagre no Brasil e Hamlet e o filho do padeiro: memória,
testemunho e a literatura de Augusto Boal.
123
ANEXO I – QUE PENSA VOCÊ DA ARTE DE ESQUERDA?
Que pensa você da arte de esquerda?
Augusto Boal
Programa da peça I Feira Paulista de Opinião
(5 de junho de 1968)
(TRANSCRITO DE UMA CÓPIA MIMEOGRAFADA DO ACERVO AUGUSTO
BOAL. O ORIGINAL APRESENTA 54 PÁGINAS, S/D)
Os reacionários procuram sempre, a qualquer pretexto, dividir a esquerda. A luta
que deve ser conduzida contra eles é ás vezes, por eles conduzida no seio da própria
esquerda. Por isso, nós – festivos sérios ou sizudos – devemos nos precaver. Nós que,
em diferentes graus desejamos modificações radicais na arte e na sociedade, devemos
evitar que diferenças táticas de cada grupo artístico se transformam numa estratégia
global suicida. O que os reacionários desejam é ver a esquerda transformada em saco de
gatos; desejam que a esquerda se derrote a si mesma. Contra isso devemos todos reagir:
temos o dever de impedi-lo.
Porém, a pretexto de não dividir, não temos também o direito de calar nossas
divergências. Pelo contrário: as diferentes tendências da nossa arte atual serão melhor
entendidas através do cotejo de metas e processos. Isto é necessário, principalmente
neste momento em que toda a arte de esquerda enfrenta a necessidade de recolar os seus
processos e suas metas. O choque entre as diversas tendências não deve significar
predominância final de nenhuma, já que todas devem ser superadas, pois foram também
superadas as circunstâncias políticas que as determinaram, cada uma no seu momento.
Dentro da esquerda, portanto, toda discussão será válida sempre que sirva para
apressar a derrota da reação. E que isto fique bem claro: a palavra “reação” não deve ser
entendida como uma entidade abstrata, irreal, puro conceito, mas, ao contrário, uma
entidade concreta, bem organizada e eficaz. “Reação” é o atual governo oligarca,
americanófilo, pauperizador do povo e desnacionalizador das riquezas do país; “reação”
são as suas forças repressivas, caçadoras de bruxas, e todos os seus departamentos,
independentemente de farda ou traje civil; é o SNT, o INC, é a censura federal, estadual
ou municipal e todas as suas delegacias; são os critérios de subvenções e proibições; e
são também todos os artistas de teatro, cine ou TV que se esquecem de que a tarefa de
todo cidadão, através da arte ou de qualquer outra ferramenta, é a de libertar o Brasil do
seu atual estado de país economicamente ocupado e derrotar o invasor, o “inimigo do
gênero humano”, segundo a formulação precisa de um pensador latino-americano
recentemente assassinado.
Assim, antes que a esquerda artística se agrida a si mesma deve procurar destruir
todas as manifestações direitistas. E o primeiro passo para isso é a discussão aberta e
ampla dos nossos principais temas. Isto, a direita não poderá jamais fazer, dado que a
sua característica principal é a hipocrisia.
O REPERTÓRIO E O MERCADO
124
O repertório de obras de arte atualmente servido ao público está deteriorado.
Grande é o número de artistas que finge ignorar este fato: esta ignorância, verdadeira ou
fingida, é crime. Em teatro, são criminosos os elencos cuja preocupação principal consiste
em quitandeiramente ganhar seus cobres servindo aos apetites mais rasteiros das plateias
tranquilas; são criminosos todos aqueles que servilmente ficam atentos à ultima moda
parisiense, ao último lançamento londrino – isto é, aqueles que renunciam a sua cidadania
artística brasileira e se transformam em repetidores da arte alheia; são criminosos aqueles
que apresenta, sempre e apenas as visões róseas do mundo através dos universos feéricos
das peças de boulevard, ou do psicologismo anglo-saxônico que tende a reduzir os mais
graves problemas sociais e políticos a desajustes neuróticos de uns poucos cidadãos.
São criminosos os fabricantes irresponsáveis de comedietas idiotas que, segundo
a publicidade, “até parecem italianas”. Estes são criminosos e não são artistas porque
arte é sempre manifestação sensorial da verdade e não estará dizendo a verdade o artista
que constantemente ignore a guerra de genocídio do Vietnã, ignore o lento assassinato
pela forme de milhões de brasileiros no Norte, no Sul, no Centro, no Nordeste e no
Centroeste – Estas são verdades nacionais e humanas que nenhuma mensagem
presidencial, por mais esperta que seja, fará esquecer.
Por que são tantos os grupos teatrais que se dedicam ao teatro apodrecido, ao
teatro de mentira, corruptor? Tirante os pulhas por convicção, existem também os pulhas
por comodismo. Os primeiros acreditam na conquista do mercado, ainda que para isso
seja necessário produzir “sob medida” para o rápido consumo. Se o mercado consome
cocaína, escreva-se a la Tenessee Williams... O mercado é o demiurgo da arte – este
lugar comum já foi destruído por Roberto Schwarz (teoria e prática, nº 2) onde observa
que entre o artista e consumidor, numa sociedade capitalista, insere-se o mediador
capital, o mediado-patrocinador. O dinheiro, este sim, é o verdadeiro demiurgo do gosto
artístico posto em prática.
O mercado consumidor de teatro é, em última análise, o fator determinante do
conteúdo e da forma da obra de arte, da arte-mercadoria. E esse mercado, nos principais
centros urbanos do país, é formado pela alta classe médica, e daí para cima. O povo e a
sua temática estão aprioristicamente excluídos. Este fato grave tem deformado a
perspectiva criadora da maioria dos nossos artistas, que se atrelam aos desejos mais
imediatos da “corte burguesa” da qual se tornam servis palhaços, praticando um teatro
de classe, isto é, um teatro da classe proprietária, da classe opressora. A consequência
lógica é uma arte de opressão.
Assim, o primeiro dever da esquerda é o de incluir o povo como interlocutor do
diálogo teatral. E, quando falo povo, mais uma vez falo concretamente; “povo” é aquela
gente de pouca carne e osso que vive nos bairros e trabalha nas fábricas, são aqueles
homens que lavram a terra e produzem alimentos, e são aqueles que desejam trabalhar e
não encontram emprego. Nenhum destes frequenta os teatros das cinelândias e, portanto,
é necessário fazer com que o teatro frequente os circos, as praças públicas, os estádios,
os ad(...) descampados em cima de caminhões. A exclusão sistemática dessas plateias
fará mudar o conteúdo e a forma do teatro brasileiro. Não basta que o Teatro de Arena
de São Paulo, e outros poucos elencos se disponham a fazê-lo, como tem sempre feito: é
necessário que toda a esquerda o faça, e que o faça constantemente.
125
Este não é um trabalho fácil. Antigamente os Centros Populares de Cultura
realizavam tarefas admiráveis no setor artístico e cultural: espetáculos, conferências,
cursos, corais, alfabetização, cinema, etc. Os reacionários, porém, escandalizaram-se
como fato de que também o povo gostava de teatro, gostava de aprender a ler, etc. Os
CPCs foram liquidados e os responsáveis por esse crime continuam no bem bom.
O teatro é demasiadamente bom para o povo e justamente por isso todos os
governos excluem, cuidadosamente, a verdadeira popularização do teatro dos seus
planos de auxílio. Em geral, dá-se dinheiro para que os preços Caim de 7 para 3
cruzeiros – as chamadas temporadas populares são apenas uma das muitas mistificações
governamentais. São tão hipócritas como as quinzenas populares promovidas por
boutiques de artigos importados. Rouba- se ao povo até mesmo o uso da palavra
“popular”. E o máximo que se tem conseguido fazer é incluir estudantes nas plateias:
está é uma condição necessária para se vitalizar o teatro, mas não é suficiente. Se um
teatro propõe a transformação da sociedade deve propô-lo a quem possa transformá-la:
ao contrário será hipocrisia ou gigolagem.
O BERRO
No dia 1º de abril de 1964 o teatro brasileiro foi violentado – e com ele toda a
nação. Os tanques tomaram o poder. Alguns setores na atividade nacional rapidamente se
acomodaram à nova situação de força. O teatro, por sorte, e durante algum tempo, reagiu
unânime e energicamente à ditadura camufada. A violência militar foi respondida com a
violência artística: “Opinião”, “Eletra”, “Andorra”, “Tartufo”, Arena conta zumbi”, e
muitas outras peças procuravam agredir a mentira triunfante. Variava a força, o estilo, o
gênero, mas a essência era a mesma exortação, o mesmo berro: esta era a única arma de
que dispunha o teatro. As forças populares estavam desarmadas e não puderam assim,
com arte apenas, vencer as metralhadoras
Depois de algum tempo a esquerda teatral pareceu cansar-se e quebrou-se sua
homogeneidade. Uma parte guinou de vez para a direita e surgia uma tendência
francamente adesista: diante da opção de continuar ou desistir, houve gente que preferiu
compor-se. O Grupo Decisão, por exemplo, tinha apresentado uma valente versão de
“Eletra”. Depois desapareceu para surgir modificado na versão acovardada de “Boa
tarde Excelência”, que a terra lhe seja pesada.
Os teatros que, bem ou mal, continuaram, dividiram-se em três linhas principais.
No último ato essas três tendências ficaram bem marcadas, nítidas e evidentes. As três
devem agora ser superadas. Isto deve ser feito não através da luta das três tendências
entre si, mas sim através da luta desse conjunto contra o teatro burguês.
NEO-REALISMO
A primeira linha do atual teatro de esquerda é constituída por peças e espetáculos
cujo principal objetivo é mostrar a realidade como ela é; peças que analizam a vida dos
camponeses, dos operários, dos homens, procurando sempre o máximo de veracidade na
apresentação exterior de locais, hábitos, costumes, linguagem, e interior de psicologia.
Este neo-realismo, tem no
126
momento em Plínio Marcos o seu principal cultor. Foi neste gênero também que se
iniciaram em dramaturgia alguns dos nossos melhores dramaturgos, como Guarnieri,
Vianna Filho, Jorge Andrade, Roberto Freire e outros.
O realismo enfrenta, de início um obstáculo principal: o diálogo não pode
transcender nunca o nível de consciência do personagem; e este nada dirá ou fará que
não possa ser feito ou dito na realidade desse próprio personagem. E, como na maioria
dos casos, os camponeses, operários ou lumpens retratados não tem verdadeira
consciência dos seus problemas – daí resulta que os espectadores ficam empaticamente
ligados a personagens que ignoram a verdadeira situação e os verdadeiros meios de
superá-la. Essas peças, portanto, tendem a transmitir apenas mensagens de
desesperos, perplexidades, dores. Anatol Rosenfeld ressaltou que este tipo de peça
tende a criar uma espécie de “empatia filantrópica”: o espectador, por assistir a miséria
alheia, julga-se absolvido do crime de ser ele também responsável por essa miséria. E
isto porque o espectador chega a sentir vicariamente a miséria alheia: o espectador
também sofre terríveis dores morais, embora comodamente refestelado numa
poltrona.
Espetáculos deste tipo correm o risco de realizarem a mesa tarefa de caridade
em geral e da esmola em particular: a mesmo é preço da culpa.
Porém igualmente certo que o dramaturgo pode criar personagens mais
conscientes, ou personagens cuja conduta possa ser classificada de “exemplar”. Isto
muitas vezes já aconteceu, como, por exemplo, ocorre em “Eles não usam Black-tie”, de
Guarnieri, onde o protagonista Otávio se comporta como proletário absolutamente
consciente dos problemas de sua classe.
Na dramaturgia brasileira, porém, esta não é a regra. Mas não se pode, por outro
lado, esquecer que o realismo cumpriu e cumpre tarefa de extrema importância ao
retratar a vida brasileira, ainda que esta importância seja mais documental do que
combativa. E nos dias que correm, o teatro brasileiro carece de combatividade.
SEMPRE DE PÉ
A segunda tendência é caracterizada, especialmente, pelo recente repertório de
Arena e, em especial pelo gênero “Zumbi”. É a tendência exortativa. Utiliza uma fábula
do gênero “lobo e cordeiro”, brancos e pretos, senhores feudais (grileiros) e vassalos
(posseiros), etc., e através dessa fábula se esquematiza a realidade nacional, indicando-se
os meios hábeis para a derrubada da ditadura, a instauração de uma nova justiça, e outras
coisas lindas e oportunas. Insta-se a plateia a derrubar a opressão e até aí nada mal; o
pior, no entanto, é que via de regra essas mesmas plateias são os verdadeiros esteios
dessa mesma opressão. Espetáculos desses tipo, ao enfrentarem plateias desse tipo,
defrontam-se com a surdez. O teatro “sempre de pé”, só tem validade no convívio
popular.
A exortação, os processos maniqueístas, as caracterizações de “grosso modo” as
simplificações analíticas gigantescas, foram também constantes nos espetáculos dos
CPCs. Esta é a linguagem do teatro popular. A verdade não era nunca tergiversada –
apenas a sua apresentação era simplificada.
A técnica maniqueísta é absolutamente indispensável a este tipo de espetáculo.
Os repetidos ataques ao maniqueísmo partem sempre de visões
127
direitistas que sejam, a qualquer preço, instituir a possibilidade de uma terceira posição,
da neutralidade, da isenção, da equidistância, ou de qualquer outro conceito mistificador.
Na verdade, sabemos que existe o bem e o mal, a revolução e a reação, a esquerda e a
direita, os explorados e os exploradores. Quando a direita pede “menos” maniqueísmo,
está na verdade pedindo que se apresente no palco também o lado bom dos maus e o
lado mau dos bons – pede que se mostre personagens que sejam bons “e” maus, da direta
“e” da esquerda, revolucionários-reacionários, a favor “mas” muito antes pelo contrário.
Pede que se mostre que os ricos também sofrem e que “the best things of life are free”
como diz a canção (adivinha), americana. Pedem que se mostre que todos os homens são
iguais quando nós pretendemos repetir pela milionésima vez que o ser social condiciona
o pensamento social. Pede que se afirme que, já que todos os homens são
simultaneamente bons e maus, devemos todos entrar para o rearmamento moral e
começar a nossa purificação simultaneamente: torturados e torturadores devem
simultaneamente purificar seus espíritos antes de cada sessão de tortura.
Que isto fique bem claro: a linha “sempre de pé”, suas técnicas específicas, o
maniqueísmo e a exortação – tudo isto é válido, atuante e funcional, politicamente
correto, para frente, etc.; etc., etc,. etc. Ninguém deve ter pudor de exaltar o povo, como
parece acontecer com certa esquerda envergonhada. O fato de Castro Alves ser um
poetinha apenas na base do mais ou menos não anula a validade de versos libertários.
Mas, igualmente, não se deve nunca esquecer que o verdadeiro interlocutor deste tipo de
teatro é o povo, e o local escolhido para o diálogo deve ser a praça.
CHACRINHA E DERCY DE SAPATO BRANCO
A terceira linha é o tropicalismo chacriniano-dercinesco-neo-romântico. Seus
principais teóricos e práticos não foram até o momento capazes de equacionar com
mínima precisão as metas deste modismo. Por esse motivo muita gente entrou para o
“movimento” e fala em seu nome e fica-se sem saber quem é responsável por quais
declarações. E estas vão desde afirmações dúbias do gênero “nada com mais eficácia
política do que a arte pela arte” ou “a arte solta e livre poderá vir a ser a coisa mais
eficaz do mundo”, passando por afirmações grosseiras do tipo “o espectador reage como
indivíduo e não como classe” (fazendo supor que as classes independem dos homens e
os homens das classes), até proclamações verdadeiramente canalhas do tipo “tudo é
tropicalismo: o corpo de Guevara morto ou uma barata voando para trás de uma
geladeira suja” (O Estado de São Paulo, reportagem “tropicalismo não convence”,
30/04/68). O primeiro tipo de afirmação só pode partir de quem nunca fez teatro para o
povo, na rua, e portanto, prisioneiro de sua plateia burguesa, vicifera. Mas ao mesmo
tempo resvala perigosamente para o reacionarismo quando (sem perceber que seus
interlocutores são apenas e tão somente a burguesia) pede ao teatro burguês que incite a
plateia burguesa a tomar iniciativas individuais... Ora, isto é precisamente o que a
burguesia tem feito desde o aparecimento da virtú até Hitler, Mr. Napalm e LBJ. Mr. and
Mrs. São incondicionais e ardorosos defensores da iniciativa individual, ultrapessoal e
privada.
O tropicalismo, dado que pretende ser tudo e pois não é nada, apesar de seu
caráter dúbio teve pelo menos a virtude de fazer com que o teatro
128
Oficina deixasse de ser um museu de si mesmo, carregando eternamente seus pequenos
burgueses a quatro num quarto, de fazer surgir a pouco explorada invenções do
portunhol, e teve sobretudo a vantagem de propor a discussão, ainda que em bases
anárquicas.
Ainda assim, por mais multifário que seja o movimento, algumas coordenadas
são comuns a quase todos os chiquites bacanos – e justamente estas características são
retrógradas e anti-povo:
1. o tropicalismo é neo-romântico - todo ressurgimento do romantismo baseia-se no
ataque às aparências da sociedade, agride a usura desumana (o que faz supor a
usura humanizada), agride os burgueses pederastas (excluindo os garanhões) e as
burguesas lésbicas (excluindo as bem-aventuradas). Agride o predicado e não o
sujeito.
2. o tropicalismo é homeopático - pretende destruir a cafonice endossando a
cafonice, pretende criticar Chacrinha participando de seus programas de
auditório. Porém a participação de um tropicalista num programa do Chacrinha
obedece a todas as coordenadas do programa e não às do tropicalista - isto é, o
cantor acata docilmente as regras do jogo do programa sem, em nenhum
momento, modificá-las: veste-se à maneira do programa, canta as músicas mais
indicadas para este tipo de auditório dopado e, finalmente, se essa platéia já está
habituada a ganhar repolhos, o cantor, mais sutilmente, atira-lhe bananas.
3. o tropicalismo é inarticulado - justamente porque ataca as aparências e não a
essência da sociedade, e, justamente porque essas aparências são efêmeras e
transitórias, o tropicalismo não se consegue coordenar em nenhum sistema -
apenas xinga a cor do camaleão. Seus defensores conseguem apenas alegar vagos
desejos de "espinafrar", desejos de elatarem em “abismos vertiginosos” ou mais
moderadamente declaram que "não há nada a declarar".
4. o tropicalismo é tímido e gentil - pretende “épater”, mas consegue apenas
“enchanter les bourgeois”. Quando um ou outro cantor se veste de roupão
colorido, isso me parece falta de audácia. Eu vou começar a acreditar um pouco
mais nesse movimento quando um tropicalista tiver a coragem de fazer o que
Baudelaire já fazia no século passado: andava com cabelos pintados de verde
com uma tartaruga colorida atada por uma fitinha cor-de-rosa. No dia em que um
deles fizer coisa parecida é capaz até de dar uma boa dor de cabeça a algum
policial... (Será sem dúvida uma contribuição para a revolução brasileira...)...
5. o tropicalismo é importado - desde o desenvolvimentismo de JK, quando
apareceu o cinema novo, a bossa nova e a nova dramaturgia brasileira, o Brasil
não importava arte. Agora, em cinema, é comum assistir a filmes dirigidos por
Vincent Minelli (ou quase) para a MGM, coisas do gênero “Garota de Ipanema”;
em teatro, assiste-se à avalancha inglesa misturada com a crueldade provinciana,
copiada de Grotowsky Living Theatre, em música, depois do iê-iê-iê vemos a
maioria dos nossos cantores procurando fantasias e até Roberto Carlos, que já
era símbolo
129
acabado da mais burra alienação, voltou da Europa com os óculos e os bigodes de
John Lennon.
Estas são as características do tropicalismo – de todas, a pior, é a ausência de
lucidez. E esta ausência permite que qualquer um fale em nome de todos, chegando
mesmo a aberrações do tipo da reportagem citada. Ora, Che Guevara significa, a um
só tempo, um exemplo de luta e um método de conduzir essa luta. Se alguém afirma
que o corpo do Che é tão tropical como uma barata voando estará apenas revelando o
seu próprio caráter cafageste e reacionário. Mas como dentro do tropicalismo
ninguém define sua própria posição, qualquer imbecil de vista cura, ao balbuciar
cretinices como essa, pretende falar em nome de todo o conjunto de hawaianos – e
estará efetivamente falando até o momento em que algum tropicalista trace os
limites do estilo que adotou.
Esta terceira tendência do teatro brasileiro atual é a mais caótica e é, também,
aquela que, tendo sua origem na esquerda mais se aproxima da direita. Sabemos que
os seus principais integrantes não renunciaram à condição de artistas protavozes do
povo. Mas não ignoramos, também o perigo que corre todo e qualquer movimento
que teme definições.
E AGORA?
Por estas vias tem-se manifestado a esquerda. Os transitórios possuidores
dos canhões abriram seu jogo. Os políticos que ainda não caíram dos seus
respectivos galhos estão compostos com os que mantém o dedo no gatilho. Nenhuma
perspectiva de diálogo se abre, principalmente porque não existe língua comum. As
classes são compartimentos estanques – nunca o foram tanto. Os reacionários
simplificaram seu jogo: todas as aparências de democracia foram desmitificadas por
eles próprios. Sabe-se agora como é fácil para os opressores viverem na legalidade,
defenderem a legalidade, já que são eles próprios os fabricantes da legalidade. Não
Foi o povo que fabricou atos institucionais e leis complementares. Além do arbítrio
de fabricar leis, decretos e outros dispositivos, como se tal não bastasse, decidiu o
governo ser mais sutil e resolver seus problemas estudantis e operários com as patas
dos cavalos, os cassetetes e as balas. Maniqueísta foi a ditadura. Contra lea e contra
os seus métodos deve maniqueísticamente levantar-se a arte de esquerda no Brasil. É
preciso mostrar a necessidade de transformar a atual sociedade; é necessário mostrar
a possibilidade dessa mudança e os meios de mudá-la. E isto deve ser mostrado a
quem pode fazê-lo. Basta de vriticar as plateias de sábado – deve-se agora buscar o
povo.
Os caminhos atuais da esquerda revelaram-se becos diante do
maniqueísmo governamental. Já nada vale autoflagelar-se realisticamente, exortar
plateias ausentes ou vestir-se de arco-iris e cantar chiquita bacana e outras bananas.
Necessário agora, é dizer a verdade como é.
E como dizê-la? E mais: como sabê-la? Nenhum de nós, como artista,
reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social. Conseguimos
fotografar nossa realidade, conseguimos premonitoriamente vislumbrar seu futuro,
mas não conseguimos surpreendê-la no seu
130
movimento. Isto nós não conseguimos sozinhos, mas talvez possamos lográ-lo em
conjunto. É necessário pesquisar nossa realidade segundo ângulos e perspectivas diversas:
aí estará seu movimento. Nós, dramaturgos, compositores, poetas, caricaturistas,
fotógrafos devemos ser simultaneamente testemunhas e parte integrante dessa realidade.
Seremos testemunhas na medida em que observamos a realidade e parte integrante na
medida em que formos observados. Está é a ideia da Iª Feria Paulista de Opinião.
O Teatro de Arena de São Paulo sabe ser necessária a superação da
atualrealidade artística: o simples conhecimento verdadeiro dessa realidade estará criando
uma nova realidade. Será um passo muito simples, mas será um passo no sentido certo, no
único sentido, pois o único sentido é a verdade. E a verdade será a Feira.
P.S. – Nós distinguimos, mas a direita não;
São Paulo, 5 de junho (URGENTE) – Elementos A Censura Federal efetuou 84
cortes no texto da “Feira Paulista de Opinião” que consta de 63 páginas. A Policia
Maritma cercou por duas vezes o teatro para impedir a realização do espetáculo.
São Paulo, 18 de Julho (URGENTE) – Elementos não identificados invadiram e
depredara o Teatro Galpão onde vem sendo representada a peça “Roda Viva” de Chico
Buarque de HOllanda julgada atentória à moral e à propriedade privada.
São Paulo, 4 de Agosto (URGENTE) – Interpretes das peças de Pínio Marcos,
DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA e NAVALHA NA CARNE foram
ameaçados de morte por cartas anônimas deixadas à porta dos respectivos teatros.
No restante do documento:
1. Enquanto seu lobo não vem (Caetano Veloso)
2. O Líder (Lauro Cesar Muniz)
3. A tua estória contada (Braulio Pedroso)
4. ME. E. E.U BRASIL BRASILEIRO (Ary Toledo)
5. Animália (Gianfrancesco Guarnieri)
6. Espiral (Sergio Ricardo)
7. A Receita (Jorge Andrade)
8. Verde que te quero verde (Plínio Marcos)
9. Miserere (Gilberto Gil)
Documento incompleto.
Acervo Augusto Boal
SÉRIE: Censura | AUTORIA: Auguto Boal | DATA: jun. 1968 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel
DESCRIÇÃO: Manifesto público contra a censura da peça Roda Viva, de Chico Buarque.
ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Censura, Manifesto.
131
ANEXO II – A CLASSE TEATRAL CONTRA O PALAVRÃO
Acervo Augusto Boal
SÉRIE: Censura | AUTORIA: Plínio Marcos, José Celso Martinez Correa e Augusto Boal | DATA: jun. 1968
| LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel
DESCRIÇÃO: Manifesto público contra a censura da peça Roda Viva, de Chico Buarque.
ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Censura, Manifesto.
132
ANEXO III – VIVEMOS UM TEMPO DE GUERRA
Acervo Augusto Boal
SÉRIE: Arena | AUTORIA: Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri | DATA: s/d | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel
DESCRIÇÃO: Manifesto sobre ao espetáculo Arena conta Zumbi.
ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Ditadura, Dramaturgia.
133
ANEXO IV – TÉCNICAS DE TEATRO JORNAL
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135
136
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Acervo Augusto Boal
SÉRIE: Censura | AUTORIA: Augusto Boal | DATA: 1971 | LOCAL: São Paulo (SP)
TIPO DOCUMENTAL: Textual | CARACTERÍSTICAS: Papel
DESCRIÇÃO: Último capítulo do livro Categorias do teatro popular..
ASSUNTOS: Teatro brasileiro, Censura, Teatro jornal.
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ANEXO V – INFORMAÇÕES: HELENY GUARIBA
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140
141
142
Disponível em: Acervo Público da Cidade de São Paulo. Departamento Estadual de Ordem Política e Social.
Pasta DEOPS – Santos.
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ANEXO VI - PRONTUÁRIO DE PEDIDO DE PRISÃO PREVENTIVA DE BOAL
144
145
Disponível em: Acervo Público da Cidade de São Paulo. Departamento Estadual de Ordem Política e Social.
Pasta DEOPS – Santos.
146
ANEXO VII – SENTENÇA DE ABSOLVIÇÃO: AUGUSTO BOAL
147
Disponível em: Sistema de Informação do Arquivo Nacional (SIAN) do Ministério da Justiça. Pasta BR
DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.78114293 - augusto pinto boal – Dossiê.
148
ANEXO VIII – EXTRATO DE PRONTUÁRIO: AUGUSTO BOAL
149
Disponível em: Sistema de Informação do Arquivo Nacional (SIAN) do Ministério da Justiça. Pasta BR BR
DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.75086952 - augusto pinto boal – Dossiê.
150
ANEXO IX – NINGUÉM GOSTOU. PARECE.
Jornal do Brasil. Caderno B/Especial, de 29 de setembro de 1985. Disponível em:
https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19850929&printsec=frontpage&hl=pt-BR.