Michael Martin - Um Mundo sem Deus.rtf

download Michael Martin - Um Mundo sem Deus.rtf

If you can't read please download the document

Transcript of Michael Martin - Um Mundo sem Deus.rtf

1

Organizao

MICHAEL MARTIN

ASSISTENTE CAMBRIDGE DE ATESMO

Traduo

Desidrio Murcho

Universidade Federal de Ouro Preto

ndice

Autores

Prefcio

Glossrio

Introduo geral

Parte IEnquadramento

O Atesmo na Antiguidade

Jan. N. Bremmer

O Atesmo na Histria Moderna

Gavin Hyman

Atesmo: Nmeros e Padres Contemporneos

Phil Zuckerman

Parte IIAlegaes contra o Tesmo

Crticas Testas do Atesmo

William Lane Craig

O Insucesso dos Argumentos Testas Clssicos

Richard M. Gale

Alguns Argumentos Testas Contemporneos

Keith Parsons

Naturalismo e Fisicismo

Evan Fales

Atesmo e Evoluo

Daniel C. Dennett

A Autonomia da tica

David O. Brink

O Argumento do Mal

Andrea M. Weisberger

Argumentos Cosmolgicos Kalam a Favor do Atesmo

Quentin Smith

Argumentos da Impossibilidade

Patrick Grimm

Parte IIIImplicaes

Atesmo e Religio

Michael Martin

Feminismo e Atesmo

Christine Overall

Atesmo e Liberdade Religiosa

Steven G. Gey

Atesmo, A/teologia e a Condio Ps-moderna

John D. Caputo

Teorias Antropolgicas da Religio

Stewart E. Guthrie

Ateus: Um Perfil Psicolgico

Benjamin Beit-Hallahmi

Autores

Obtm-se habitualmente mais informao biogrfica da pgina Web dos seus departamentos ou, caso exista, da pgina pessoal do autor ou na Secular Web.

Benjamin Beit-Hallahmi Professor de Psicologia, Universidade de Haifa, e autor de Prolegomena to the Psychology of Religion (1989) e The Psychology of Religious Behaviour (1997).

Jan N. Bremmer Professor de Histria Geral da Religio e de Cincia Comparativa da Religio, da Universidade de Groningen, Holanda, e autor de Greek Religion (1999) e The Rise and Fall of the Afterlife (2002).

David O. Brink Professor de Filosofia, Universidade da Califrnia de San Diego, e autor de Moral Realism and the Foundations of Ethics (1989) e Perfectionism and the Common Good: Themes in the Philosophy of T. H. Green (2003).

John D. Caputo Professor Thomas J. Watson de Religio e Humanidades, Universidade de Siracusa, e autor de On Religion (2001) e The Weakness of God: A Theology of the Events (2006).

William Lane Craig Professor de Investigao de Filosofia, Escola Talbot de Teologia, e autor de The Kalam Cosmological Argument (1979) e God, Time, and Eternity (2006).

Daniel C. Dennett Director do Centro de Estudos Cognitivos, Professor Universitrio, Professor Austin B. Fletcher de Filosofia, Universidade de Tufts, e autor de A Ideia Perigosa de Darwin (1995) e A Liberdade Evolui (2003).

Evan Fales Professor Associado de Filosofia, Universidade de Iowa, e autor de Causation and Universals (1990) e A Defense of the Given: Studies in Epistemology and Cognitive Theory (1996).

Richard M. Gale Professor Emrito de Filosofia, Universidade de Pittsburgh, e autor de On The Nature and Existence of God (1991) e The Divided Self of William James (1999).

Steven G. Gey Professor David e Deborah Fonvielle e Donald e Janet Hinkle, College of Law, Universidade Estadual da Florida, e autor de Cases and Material on Religion and the State (2001).

Patrick Grim Professor de Filosofia, SUNY de Stony Brook, e autor de The Incomplete Universe (1991) e The Philosophical Computer (com Gary Mar e Paul St. Denis, 1998) e director de The Philosophers Annual.

Stewart E. Guthrie Professor Emrito de Antropologia, Universidade de Fordham, e autor de A Japanese New Religion: Rissho Kosei-Kai in a Mountain Hamlet (1988) e Faces in the Clouds: A New Theory of Religion (1993).

Gavin Hyman Assistente de Estudos Religiosos, Universidade de Lancaster, e autor de The Predicament of Postmodern Theology: Radical Orthodoxy or Nihilist Textualism? (2001) e director de New Directions in Philosophical Theology: Essays in Honour of Don Cupitt (2004).

Michael Martin Professor Emrito de Filosofia, Universidade de Boston, e autor de Atheism: A Philosophical Justification (1990) e The Case Against Christianity (1991).

Christine Overall Professora de Filosofia, Queens University, Kingston, Ontrio, e autora de Thinking Like a Woman: Personal Life and Political Ideas (2001) e Aging, Death and Human Longevity: A Philosophical Inquiry (2003).

Keith Parsons Professor Associado de Filosofia, Universidade de Houston, Clear Lake, e autor de God and the Burden of Proof (1990) e Drawing Out Leviathan (2001).

Quentin Smith Professor de Filosofia, Universidade de Western Michigan, e co-autor de Theism, Atheism, and Big Bang Cosmology (com William Lane Craig, 1993) e Ethical and Religious Thought in Analytic Philosophy of Language (1997).

Andrea M. Weisberger detinha a regncia da Cadeira de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade de Jacksonville e autora de Suffering Belief: Evil and the Anglo-American Defense of Theism (1999) e de vrios artigos em revistas acadmicas de filosofia, religio e cincias.

Phil Zuckerman Professor Associado de Sociologia, Pitzer College, e autor de Strife in the Sanctuary: Religious Schism in a Jewish Community (1999) e de Invitation to the Sociology of Religion (2003).

Prefcio

Foi uma honra organizar o Assistente Cambridge de Atesmo. Foi uma experincia inesquecvel e emocionante ajudar a trazer luz do dia um volume de ensaios originais publicados por uma das grandes editoras universitrias do mundo sobre um dos tpicos mais controversos do planeta. Agradeo a Andy Beck, o meu editor da Cambridge University Press, que me ofereceu a tarefa de organizador e que teve a pacincia e boa vontade para responder s minhas perguntas. Estou em dvida profunda para com os outros dezassete autores deste volume, cujos ensaios fornecem novas ideias sagazes a vrios aspectos do atesmo. Foi um prazer trabalhar com eles.

A minha mulher, Jane Roland Martin, encorajou-me calorosamente e deu-me conselhos sbios. Alm disso, muitos amigos e colegas descrentes apoiaram-me e ajudaram-me. Em particular, gostaria de agradecer ao Dr. Ricki Monnier, amigo e colega que colaborou comigo noutros livros sobre o atesmo, cujo conhecimento enciclopdico de tudo o que respeita ao atesmo foi uma imensa ajuda e inspirao. Agradeo tambm ao Dr. Tyler Wunder pelos seus comentrios ao captulo 6 e Dra. Wiebke Denecke pelos seus comentrios ao captulo 13.

Glossrio

Para definies complementares dos termos que se encontram neste volume, veja-se Robert Audi (org.) Dicionrio de Filosofia de Cambridge (So Paulo: Paulus, 2006) e Bill Cooke (org.), Dictionary of Atheism, Skepticism, and Humanism (Amherst, NY: Prometheus Books, 2005).

Agnosticismo cptico: a rejeio tanto da crena como da descrena em Deus por no haver bons argumentos a favor ou contra tal crena. Cf. agnosticismo do cancelamento.

Agnosticismo do cancelamento: a perspectiva de que os argumentos a favor e contra a crena em Deus so igualmente fortes e se cancelam entre si. Cf. agnosticismo cptico.

Antropomorfismo: a atribuio de caractersticas humanas a Deus.

Apostasia: insatisfao, abandono, afastamento, ruptura ou desfiliao de um grupo religioso.

Argumento a posteriori: um argumento baseado na experincia. Ver tambm argumento teleolgico.

Argumento a priori: um argumento que no se baseia na experincia. Ver tambm argumento da impossibilidade; argumento ontolgico.

Argumento cosmolgico de Leibniz: um argumento atribudo a Leibniz segundo o qual a srie completa de seres contingentes que constituem o universo exige uma causa externa que no contingente mas antes necessria, causa esta que Deus.

Argumento cosmolgico kalam a favor da existncia de Deus: um argumento que sustenta que a explicao mais plausvel para o surgimento do universo Deus t-lo trazido existncia. Cf. argumento cosmolgico de Leibniz.

Argumento cosmolgico kalam a favor do atesmo: um argumento que procura mostrar que de acordo com a mais recente cosmologia cientfica a origem do universo incompatvel com a existncia de Deus. Cf. argumento cosmolgico kalam a favor da existncia de Deus.

Argumento cosmolgico: um argumento que procura dar uma explicao causal da razo pela qual existe um universo.

Argumento da experincia religiosa: um argumento que procura mostrar que a existncia de Deus ou outros seres sobrenaturais fornece a melhor explicao da experincia religiosa. Ver tambm experincia mstica; experincia religiosa.

Argumento da impossibilidade: um argumento a priori contra a existncia de Deus que pretende mostrar que o conceito de Deus inconsistente. Ver tambm argumento dos indexicais; paradoxo da pedra.

Argumento do ajuste perfeito: um argumento teleolgico baseado na alegada improbabilidade de as constantes fsicas do universo serem compatveis com a vida. Ver tambm argumento teleolgico.

Argumento do desgnio: Ver argumento teleolgico.

Argumento do mal: um argumento que pretende mostrar que a existncia do mal ou incompatvel com a existncia de Deus ou a torna improvvel. Ver tambm problema do mal.

Argumento dos indexicais: um tipo de argumento da impossibilidade que sustenta que Deus no pode ter certos conhecimentos expressos em indexicais, apesar de ser alegadamente omnisciente. Ver tambm indexical.

Argumento dos milagres: um argumento que procura mostrar que a existncia de Deus a explicao mais plausvel dos milagres. Ver tambm milagre.

Argumento ontolgico: um argumento a priori que sustenta que a existncia de Deus verdadeira por definio.

Argumento teleolgico: um argumento a favor da existncia de Deus baseado no desgnio e ordem aparentes do universo. Tambm chamado argumento do desgnio. Ver tambm argumento do ajuste perfeito. Cf. argumento cosmolgico.

Atesmo negativo: a ausncia da crena em quaisquer deus ou deuses. Concebido de modo mais restrito, a ausncia de crena no deus testa. Cf. atesmo positivo. Ver tambm positivismo lgico.

Atesmo positivo: descrena em quaisquer deus ou deuses. Concebido de modo mais restrito, a descrena no deus testa. Cf. atesmo negativo.

Autonomia da tica: a perspectiva de que a tica no se baseia na teologia. Cf. teoria dos mandamentos divinos. Ver tambm naturalismo tico.

Clarividncia: o poder de ver objectos ou acontecimentos que no podem ser percepcionados pelos sentidos. Ver tambm fenmenos paranormais.

Concepo anselmiana de Deus: a perspectiva atribuda a S. Anselmo de que Deus um ser tal que nenhum maior pode ser concebido.

Conhecimento por contacto: conhecimento baseado na experincia directa. Cf. conhecimento proposicional.

Conhecimento procedimental: saber fazer algo. Cf. conhecimento por contacto; conhecimento proposicional.

Conhecimento proposicional: conhecimento factual de que algo , foi ou ser. Cf. conhecimento por contacto; conhecimento procedimental.

Cosmologia do Big Bang: uma teoria que sustenta que o universo se originou h aproximadamente quinze mil milhes de anos de uma exploso violenta de uma pequenssima aglomerao de matria de densidade e temperatura extremamente elevadas. Ver tambm argumento cosmolgico kalam a favor do atesmo; argumento cosmolgico kalam a favor da existncia de Deus.

Defesa do livre-arbtrio: a resposta ao argumento do mal de que este resulta do livre-arbtrio, no podendo atribuir-se a Deus a sua responsabilidade. Ver tambm argumento do mal; teodiceia.

Desmo: a perspectiva de que Deus criou o mundo e depois no teve mais interaco com ele; tambm uma concepo de Deus baseada na razo e no na revelao. Cf. pantesmo; tesmo.

Devas: os deuses finitos e impermanentes descritos em algumas religies orientais.

Empirismo: a teoria de que todo o conhecimento se baseia na experincia. Cf. racionalismo.

Epicurismo: uma importante escola filosfica helenstica que advogava uma metafsica atomista e uma tica hedonista.

Epistemologia naturalizada: uma abordagem que v os seres humanos como entidades naturais e usa os mtodos da cincia para estudar processos epistemolgicos; por vezes considerada um ramo da cincia cognitiva.

Epistemologia: a teoria do conhecimento.

Experincia mstica: experincia religiosa que transcende a percepo sensorial comum e pretende ser uma experincia directa da realidade ltima.

Experincia religiosa: uma grande diversidade de experincias, como ouvir vozes e ter vises de seres sobrenaturais como Deus, anjos e Satans.

Experincias fora do corpo: a experincia de flutuar desligado do nosso prprio corpo; usado por crentes como indcio de uma alma imaterial.

Fenmenos paranormais: fenmenos como a percepo extra-sensorial, clarividncia e psicocinese, que actualmente no inexplicveis em termos cientficos.

Fisicismo: a afirmao de que as mentes no so distintas da matria e consequentemente no podem existir independentemente dela. Ver tambm materialismo redutivo; teoria da sobrevenincia.

Indexical: um tipo de expresso cujo significado varia com o contexto; e.g., eu, aqui, agora. Ver tambm argumento dos indexicais.

Materialismo eliminatrio: a perspectiva de que apesar das aparncias no h entidades ou processos mentais. Cf. materialismo redutivo.

Materialismo redutivo: a teoria de que os estados e processos mentais so idnticos a estados e processos cerebrais. Cf. materialismo eliminatrio; teoria da sobrevenincia.

Metafsica: a investigao filosfica da natureza, composio e estrutura da realidade ltima.

Milagre: um acontecimento que no explicvel pelas leis da natureza, conhecidas ou desconhecidas. Ver tambm argumento dos milagres.

Modus ponens: a forma argumentativa: Se A, ento B; A; logo, B.

Modus tollens: a forma argumentativa: Se A, ento B; no B; logo, no A.

Naturalismo epistemolgico: a tese de que o sobrenatural est para l do domnio do que podemos saber, rejeitando-se assim a teologia enquanto fonte de conhecimento.

Naturalismo tico: a teoria de que as propriedades ticas das situaes dependem da natureza dessas situaes. Cf. teoria dos mandamentos divinos. Ver tambm autonomia da tica.

Naturalismo: a perspectiva de que tudo o que existe composto de entidades e processos naturais que podem em princpio ser estudados pela cincia.

Navalha de Occam: um princpio metodolgico que advoga a simplicidade na construo terica.

Omnibenevolncia: a propriedade atribuda a Deus de ser totalmente bom.

Omnipotncia: a propriedade atribuda a Deus de ser todo-poderoso.

Omniscincia: a propriedade atribuda a Deus de saber tudo.

Ontologia: ver metafsica.

Pantesmo: a perspectiva de que Deus idntico natureza. Cf. desmo; tesmo.

Paradoxo da pedra: se Deus pode fazer uma pedra que no pode levantar, no todo-poderoso; mas se no pode fazer tal pedra, tambm no todo-poderoso. Ver tambm argumento da impossibilidade.

Politesmo: a perspectiva de que h muitos deuses.

Positivismo lgico: um movimento filosfico na filosofia anglo-americana dos anos trinta e quarenta do sc. XX, que defendia a rejeio da metafsica por ser inverificvel e consequentemente destituda de sentido. Tanto a crena em Deus como a descrena so vistas como destitudas de sentido. Ver tambm metafsica; atesmo negativo.

Ps-modernismo: um conjunto complexo de reaces filosofia moderna e sua aceitao, opondo-se tipicamente ao fundacionalismo, s categorias binrias fixas que descrevam regies rigorosamente separveis e ao essencialismo, afirmando um pluralismo radical e irredutvel.

Problema de utfron: um dilema formulado no dilogo platnico utfron e usado como crtica s ticas baseadas na religio. Ver tambm autonomia da tica; teoria dos mandamentos divinos; voluntarismo.

Problema do mal: o problema da razo pela qual parece haver mal gratuito apesar de Deus ser todo-poderoso e sumamente bom. Ver tambm argumento do mal.

Psicocinese: a capacidade para afectar objectos fsicos sem contacto fsico, usando poderes mentais.

Racionalismo: a teoria de que a razo a fonte primria de conhecimento. Cf. empirismo.

Sofistas: um grupo de professores itinerantes de retrica e filosofia, da Grcia antiga.

Tesmo: crena num deus pessoal omnipotente, omnisciente e sumamente bom que criou o universo, se interessa activamente pelo mundo e deu aos seres humanos uma revelao especial. Cf. desmo.

Teodiceia: uma teoria que procura explicar o problema do mal e responder ao problema do mal. Ver tambm argumento do mal; defesa do livre-arbtrio.

Teoria da sobrevenincia: a teoria de que quando certos estados fsicos se do, tambm se d um certo estado mental. Cf. materialismo eliminatrio; materialismo redutivo.

Teoria do desgnio inteligente: uma teoria que no rejeita completamente a teoria de Darwin mas sustenta que a evoluo precisa de ser explicada em termos do desenvolvimento de um desgnio inteligente.

Teoria dos mandamentos divinos: a teoria de que as proposies ticas se baseiam nos mandamentos de Deus. Cf. autonomia da tica; naturalismo tico. Ver tambm voluntarismo.

Teoria neodarwinista: uma sntese da teoria de Darwin com a teoria gentica.

Verificacionismo: a teoria de que o significado de uma afirmao consiste no seu mtodo(s) de verificao; comummente associado ao positivismo lgico.

Voluntarismo: a perspectiva de que o bem depende da vontade de Deus. Ver tambm problema de utfron.

Introduo geral

O propsito deste volume dar ao leitor comum e aos estudantes avanados uma introduo ao atesmo: a sua histria, contexto social actual, implicaes legais, argumentos que o sustentam, implicaes para a moralidade e relao com outras perspectivas. Esta introduo geral prepara o terreno para os captulos seguintes.

Atesmo, agnosticismo e tesmo

O conceito de atesmo foi desenvolvido historicamente no contexto das religies monotestas ocidentais e ainda tem a sua aplicao mais clara nesta rea. Aplicado, por exemplo, a contextos pr-modernos que no sejam ocidentais, o conceito pode ser enganador. Alm disso, mesmo no contexto moderno ocidental o atesmo tem significado coisas diferentes em funo de diferentes concepes de Deus. Contudo, presume-se neste volume que, se o aplicarmos cuidadosamente fora do seu contexto histrico mais claro, o conceito de atesmo pode ser iluminante para os leitores ocidentais contemporneos.

Se procurarmos atesmo no dicionrio, vemos que est definido como a crena de que Deus no existe. Sem dvida que muitas pessoas entendem o atesmo deste modo. Contudo, no isto que o termo significa se o analisarmos do ponto de vista das suas razes gregas. Em grego, a quer dizer sem ou no e theos quer dizer deus. Gordon Stein, The Meaning of Atheism and Agnosticism, in Gordon Stein (org.), An Anthology of Atheism and Rationalism (Buffalo, NY: Prometheus, 1980), p. 3. Deste ponto de vista, um ateu algum que no tem uma crena em Deus; no tem de ser algum que acredita que Deus no existe. Deve distinguir-se este sentido negativo de atesmo do sentido de atesmo introduzido por Paul Edwards. De acordo com Edwards, um ateu uma pessoa que rejeita a crena em Deus. Esta rejeio pode dar-se porque a pessoa acredita que a afirmao Deus existe falsa, mas pode ser por outras razes. O sentido negativo de atesmo usado aqui mais lato do que a definio de Edwards dado que uma pessoa pode ser ateia segundo a nossa definio se no tiver qualquer crena em Deus, apesar de a ausncia de crena no ser o resultado de rejeio. Veja-se Paul Edwards, Atheism, in Paul Edwards (org.) The Encyclopedia of Philosophy (Nova Iorque: Macmillan and Free Press, 1967), vol. I, p. 175. Todavia, h um significado dicionarstico popular de atesmo de acordo com a qual um ateu no simplesmente algum que no tem qualquer crena na existncia de um deus ou deuses mas antes algum que acredita que no h qualquer deus ou deuses. Este uso dicionarstico do termo no deve ser menosprezado. Para evitar confuses, chamemos-lhe atesmo positivo, reservando o termo atesmo negativo para o tipo de atesmo que deriva das razes gregas originais.

No tentaremos apresentar aqui qualquer definio geral de Deus, Contudo, a definio de Deus proposta por Beardsley e Beardsley tem um mrito considervel. Do seu ponto de vista, para algo ser um deus tem de obedecer a quatro critrios: tem de ter poderes sobrenaturais; no estar sujeito a vrias limitaes naturais dos objectos inanimados, dos organismos sub-humanos e dos seres humanos, no podendo por isso ser includo em qualquer desses grupos; ter um tipo qualquer de vida mental; e ser visto como algo superior aos seres humanos. Veja-se Monroe Beardsley e Elizabeth Beardsley, Philosophical Thinking: An Introduction (Nova Iorque: Harcourt, Brace and World, 1965), pp. 46-50. mas ser til distinguir alguns conceitos diferentes de Deus, presentes nas controvrsias e debates tradicionais sobre a religio. Nos tempos modernos, o tesmo significa geralmente uma crena num deus pessoal que tem um interesse activo no mundo e que deu aos seres humanos uma revelao especial. Compreendido deste modo, o tesmo contrasta com o desmo, a crena num deus que no se baseia na revelao mas antes nos indcios da natureza. Considera-se habitualmente que o deus pressuposto pelos destas est afastado do mundo, e no intimamente envolvido nas suas questes. O tesmo contrasta tambm com o politesmo, a crena em mais de um deus, e com o pantesmo, a crena de que deus idntico natureza.

O atesmo negativo no sentido lato Devo a distino entre os sentidos lato e estrito de atesmo a William L. Rowe, The Problem of Evil and Some Varieties of Atheism, American Philosophical Quarterly 16 (1979): 335341. assim a ausncia de crena em qualquer deus ou deuses, e no apenas a ausncia de crena num deus pessoal testa, e o atesmo negativo no sentido estrito a ausncia de crena num deus testa. O atesmo positivo no sentido lato , por sua vez, a crena de que nenhuns deuses existem, sendo o atesmo positivo no sentido estrito a crena de que o deus testa no existe. Para se poder defender bem o atesmo positivo no sentido estrito preciso cumprir duas tarefas. Primeiro, as razes para acreditar num deus testa tm de ser refutadas; por outras palavras, tem de se estabelecer o atesmo negativo no sentido estrito. Segundo, necessrio dar razes para crer que o deus testa no existe.

No se deve permitir que estas categorias escondam a complexidade e diversidade de posies que os ateus podem defender, pois um dado indivduo pode assumir diferentes posies ateias com respeito a diferentes conceitos de Deus. Assim, uma pessoa pode sustentar que h boas razes para supor que no existem deuses antropomrficos como Zeus, sendo consequentemente um ateu positivo com respeito a Zeus e a outros deuses semelhantes. Contudo, essa pessoa pode, por exemplo, ser apenas um ateu negativo com respeito ao Deus de Paul Tillich. Parece que esta a posio de Kai Nielsen. Ele rejeita um deus inantropomrfico por ser destitudo de sentido e um deus antropomrfico por ser falso. Veja-se, por exemplo, Kai Nielsen, Introduction: How is Atheism to be Characterized? in Karl Nielsen, org., Philosophy and Atheism (Buffalo, NY: Prometheus Press, 1985). Alm disso, as pessoas podem sustentar e muitas vezes sustentam diferentes posies ateias com respeito a diferentes concepes de um deus testa. Por exemplo, uma pessoa pode ser uma ateia positiva com respeito ao deus de Toms de Aquino e apenas uma ateia negativa com respeito ao deus de Santa Teresa.

Contrasta-se muitas vezes o agnosticismo, a posio de nem acreditar nem no acreditar que Deus existe, com o atesmo. Contudo, esta oposio comum entre agnosticismo e atesmo enganadora. verdade que o agnosticismo e o atesmo positivo so incompatveis: se o atesmo for verdadeiro, o agnosticismo falso e conversamente. Mas o agnosticismo compatvel com o atesmo negativo dado que o agnosticismo o implica. Dado que os agnsticos no acreditam em Deus, so por definio ateus negativos. Isto no significa que o atesmo negativo implique o agnosticismo. Um ateu negativo pode acreditar que Deus no existe, mas no tem de o fazer.

Noutra publicao avaliei os argumentos principais a favor do agnosticismo. Michael Martin, Atheism v. Agnosticism, Philosophers Magazine 19 (Vero 2002): 1719; veja-se tambm Michael Martin, On an Argument for Agnosticism, 27 de Agosto de 2001, http://www.infidels.org/library/modern/michael_martin/martinag.html. Aqui, irei explorar o que est em causa entre o atesmo positivo e o agnosticismo. Poder-se-ia pensar que um agnstico cptico quanto existncia de boas razes, ao contrrio do ateu. Contudo, esta no a nica maneira de interpretar a diferena entre estas posies. Um agnstico pode pensar que h boas razes para no acreditar que Deus existe mas tambm acreditar que h razes igualmente boas para acreditar que Deus existe. Estas razes opostas contrabalanar-se-iam entre si, no deixando qualquer razo positiva global para acreditar que existem divindades ou acreditar que no existem.

Chamemos agnosticismo cptico perspectiva de que no h boas razes para acreditar que Deus existe nem boas razes para acreditar que no existe, e agnosticismo do cancelamento perspectiva de que h razes igualmente boas, que se contrabalanam entre si, para acreditar tanto no tesmo quanto no atesmo.

Os argumentos que visam estabelecer quer o atesmo positivo quer o negativo tanto refutam o agnosticismo cptico como o agnosticismo do cancelamento. Mostrar que h justificao para o atesmo negativo arrasa o agnosticismo do cancelamento, pois este pressupe que h boas razes que se cancelam entre si tanto a favor do atesmo quanto a favor do tesmo, ao passo que o atesmo negativo implica que no h boas razes a favor da crena testa. Acresce que os argumentos que mostram que h boas razes a favor da inexistncia de Deus arrasam o agnosticismo cptico dado que esta posio pressupe que no h boas razes nem a favor do atesmo nem a favor do tesmo.

Enquadramento, razes contra o tesmo e implicaes

O atesmo tem uma histria longa e distinta, como o atestam vrios dos captulos de enquadramento deste volume. Em Atesmo na Antiguidade, Jan Bremmer argumenta, por um lado, que os gregos descobriram o atesmo terico, coisa que alguns letrados sustentam ser um dos mais importantes acontecimentos na histria da religio. Por outro lado, sustenta Bremmer, gregos e romanos, pagos e cristos, rapidamente descobriram a vantagem do termo ateu para rotular os oponentes. A inveno do atesmo iria abrir uma nova via de acesso liberdade intelectual, mas permitiu tambm rotular as pessoas de uma maneira nova. Raramente se consegue o progresso sem algum custo. Gavin Hyman, em Atesmo na Histria Moderna, esboa o desenvolvimento do pensamento ateu no mundo ocidental, argumentando que o atesmo e a modernidade esto de tal modo ligados entre si que a modernidade quase parece culminar necessariamente no atesmo. Hyman conclui que podemos ter a certeza de uma coisa: o destino do atesmo parece inevitavelmente ligado ao destino da modernidade. E Paul Zuckerman, em Atesmo: Nmeros e Padres Contemporneos, colige uma imensido de dados sobre o nmero e distribuio de ateus em todo o mundo. Entre outras coisas, mostra que os ateus constituem uma parte significativa da populao mundial, que a descrena tende a estar associada sade social, e que o padro e distribuio de ateus no mundo pem em causa a teoria hoje em dia na moda de que a crena em deuses inata.

Desnecessrio se torna dizer que muitos filsofos contemporneos defenderam o tesmo das crticas ateias. Por exemplo, veja-se Alvin Plantinga, Warranted Christian Belief (Oxford: Oxford University Press, 2000) e God, Freedom and Evil (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1977), e Richard Swinburne, The Coherence of Theism (Oxford: Oxford University Press, 1977) e The Existence of God (Oxford: Oxford University Press, 1979). Neste volume, William Lane Craig, em Crticas Testas do Atesmo, apresenta a posio testa. Os leitores tm de decidir por si se esta defesa do tesmo bem-sucedida ou se o atesmo foi bem defendido pelos argumentos avanados nos outros captulos deste volume. Para mais crticas a Craig veja-se Stan Wallace (org.), Does God Exist? (Burlington, Vt.: Ashgate Publishing, 2003); William Craig Lane e Quentin Smith (orgs.), Theism, Atheism, and Big Bang Cosmology (Oxford: Clarendon, 1993); Erik J. Wielenberg, Values and Virtue in a Godless Universe (Cambridge: Cambridge University Press, 2005); e Jeffrey Jay Lowder, Historical Evidence and the Empty Tomb: A Reply to William Lane Craig, in Robert Price e Jeffrey Jay Lowder (orgs.), The Empty Tomb (Amherst, NY: Prometheus Books, 2005). Veja-se tambm os artigos de crtica a Craig em http://www.infidels.org/library/modern/theism/christianity/craig.html.

Vrios captulos deste livro ajudam tarefa de defender o atesmo negativo. Richard Gale, em O Fracasso dos Argumentos Testas Clssicos apresenta objeces a argumentos clssicos a favor da existncia de Deus, como o argumento ontolgico. Keith Parsons, em Alguns Argumentos Testas Contemporneos, critica os argumentos a favor da existncia de Deus defendidos por dois dos principais filsofos cristos contemporneos: Alvin Plantinga e Richard Swinburne. Daniel Dennett apresenta crticas ao criacionismo e s teorias do desgnio inteligente, duas teorias muitas vezes associadas ao tesmo. Evan Fales, em Naturalismo e Fisicismo levanta objeces ao sobrenaturalismo, do qual o tesmo um caso particular, e David Brink, em A Autonomia da tica, argumenta que a tica independente da crena em Deus, apesar de os testas sustentarem muitas vezes que a tica depende de Deus. Quanto a argumentos contra o tesmo que no foram includos neste volume, veja-se Michael Martin, Atheism: A Philosophical Justification (Philadelphia: Temple University Press, 2004); e Nicholas Everett, The Non Existence of God (Londres: Routledge, 2004); e Richard Gale, On the Nature and Existence of God (Cambridge: Cambridge University Press, 1991).

Outros captulos ajudam tarefa de defender o atesmo positivo. Em O Argumento do Mal, Andrea Weisberger defende o argumento tradicional do mal a tentativa de mostrar que a imensa quantidade de sofrimento no mundo torna a existncia do deus testa falsa ou improvvel. Quentin Smith, em O Argumento Cosmolgico Kalam a favor do Tesmo, sustenta que a cosmologia tem implicaes ateias. Patrick Grimm, em Argumentos da Impossibilidade, procura mostrar que o conceito de Deus inconsistente. Veja-se Michael Martin e Ricki Monnier (orgs.), The Impossibility of God (Amherst, NY: Prometheus Books, 2004). Note-se, contudo, que muitos outros argumentos que ajudam segunda tarefa no so tidos em considerao neste volume. Veja-se Martin, Atheism; Everett, The Non Existence of God. Noutra publicao, por exemplo, Ted Drange defendeu o atesmo positivo procurando mostrar que a imensa quantidade de descrena no mundo torna improvvel a existncia de um deus testa. Theodore Drange, Nonbelief and Evil (Amherst, NY: Prometheus Books, 1998). John Schellenberg J. L. Schellenberg, Pluralism and Probability, Religious Studies 33 (1997): 143159. tentou demonstrar que a existncia de religies intestas torna a existncia de um deus testa improvvel. Alm disso, Schellenberg argumentou que a existncia de descrena razovel em si razo para supor que Deus no existe. J. L. Schellenberg, Hiddenness and Human Reason (taca, NY: Cornell University Press, 1993).

Vrios captulos deste volume extraem algumas das implicaes importantes e estimulantes do atesmo. Este tem sido acusado de ser anti-religioso, mas Michael Martin, em Atesmo e Religio mostra que apesar de o atesmo no ser uma religio, h religies ateias. Christine Overall, em Feminismo e Atesmo conclui que ser feminista exige tambm que seja ateia. Segundo Steve Gey, em Atesmo e a Liberdade Religiosa, a liberdade religiosa dos ateus percorreu um longo caminho desde o tempo em que teorizadores polticos srios podiam argumentar que os ateus deviam ser condenados morte, que se lhes devia negar o direito de testemunhar em tribunal ou que se devia proibi-los de serem eleitos para o parlamento. [] [Mas] os ateus no tero a mesma liberdade religiosa que os religiosos a no ser que o seu governo esteja amplamente secularizado. John Caputo, em Atesmo, A/teologia e a Condio Ps-moderna passa em revista alguns dos importantes desafios que o ps-modernismo levanta ao tesmo e ao atesmo, sustentando que o ps-modernismo se revela afinal um ambiente que tambm no particularmente favorvel ao atesmo, pelo menos se este for uma negao metafsica, ou fixa e decisiva de qualquer outra maneira, de Deus.

Uma parte importante, ainda que no primria, da defesa do atesmo mostrar que a religio pode ser explicada como um fenmeno natural. Stewart Guthrie, em Teorias Antropolgicas da Religio, passa em revista tipos diferentes de explicaes naturalistas da religio e defende uma explicao cognitiva da religio em que o animismo e o antropomorfismo so noes centrais. Finalmente, Benjamin Beit-Hallahmi, em Ateus: Um Retrato Psicolgico, passa em revista os dados psicolgicos e conclui que os ateus tendem a ser mais inteligentes e ter melhor educao do que os crentes; menos autoritrios, menos sugestionveis, menos dogmticos e menos preconceituosos do que os crentes; e mais tolerantes, obedientes lei, compassivos e conscienciosos. Em suma, so bons vizinhos.

Nota bibliogrfica

Para introdues ao atesmo, veja-se Douglas Krueger, What is Atheism? (Amherst, NY: Prometheus Books, 1998), and Julian Baggini, Atheism: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2003). Nas bibliografias e notas dos captulos deste volume encontra-se excelentes referncias bibliografia ateia. Alm disso, encontra-se bibliografias alargadas em Nicholas Everett, The Non Existence of God (Londres: Routledge, 2004); Finngeir Hiorth, Atheism in the World (Oslo, Noruega: Human-Etisk Forbund, 2003), Ethics for Atheists (Mumbia, India: Indian Secular Society, 1998), e Hiorth, Introduction to Atheism (Oslo, Noruega: Human-Etisk Forbund, 2002); e Gordon Stein (org.), The Encyclopedia of Unbelief, Vols. 1 e 2 (Buffalo, NY: Prometheus Books, 1985). Para mais informaes sobre o feminism e o atesmo, veja-se Annie Laurie Gaylord (org.), Women without Supersticion: No God No Masters (Madison, Wis.: Freedom from Religion Foundation, 1997), e Woe to the Women: The Bible Tells me so (Madison, Wis.: Freedom from Religion Foundation, 1981). Alm disso, uma procura no Google na Secular Web (http://www.infidels.org) devolve mais de 700 artigos sobre o atesmo e tpicos relacionados.

I. Enquadramento

Jan N. Bremmer

1O Atesmo na Antiguidade

Em 1942, o historiador francs Louis Febvre publicou um estudo de Rabelais que marcou uma poca, no qual fez notar a ausncia de atesmo na idade mdia. Neste captulo, limito tanto quanto possvel as notas bibliografia mais recente e acessvel e a questes relacionadas com o atesmo da antiguidade. Para mais informao sobre os vrios atesmos discutidos, veja-se a bibliografia relevante, que agora facilmente consultvel em Der neue Pauly (Tbingen, 19962003). Febvre explicou esta ausncia como uma espcie de blocage mental. Na vida da sociedade e do indivduo, o cristianismo era de importncia superlativa. Os seus festivais constituam o ritmo do ano; as transies importantes da vida do indivduo nascimento, casamento e morte estavam completamente integradas na vida religiosa, tal como as actividades quotidianas. As igrejas, cujos sinos relembravam ao crente esquecido a sua existncia, dominavam muitas vezes a paisagem. Era simplesmente impossvel conceber o cristianismo fora da sociedade medieval. L. Febvre, Le problme de lincroyance au XVIe sicle: La religion de Rabelais (Paris, 1942), mas note-se tambm P. Dinzelbacher, Etude sur lincroyance lpoque de la foi, Revue des sciences religieuses 73 (1999): 4279.

A investigao posterior mudou parcialmente as concluses de Febvre, K. Thomas, Religion and the Decline of Magic (Harmondsworth, 1973), pp. 198206, faz notar que os cpticos eram muitas vezes os prias e forasteiros da regio. mas as principais permanecem. A antiguidade no era assim to diferente da idade mdia neste aspecto. Os gregos e romanos antigos viviam tambm numa paisagem em que havia templos por todo o lado, os deuses adornavam as suas moedas, o calendrio ia de festival religioso em festival religioso e os ritos religiosos acompanhavam todas as grandes transies da vida. Consequentemente, o atesmo nunca se tornou uma ideologia popular com um apoio identificvel. Tudo o que temos na antiguidade o indivduo excepcional que se atrevia a dar voz sua descrena, ou filsofos corajosos que propunham teorias intelectuais sobre a origem dos deuses sem que, normalmente, pusessem as suas teorias em prtica e sem que rejeitassem completamente as prticas religiosas. Quando se chega a encontrar atesmo habitualmente um atesmo frouxo ou a imputao de atesmo aos outros para os desacreditar.

Ainda que possamos admitir que a humanidade tenha sempre tido os seus cpticos e descrentes, a expresso desse cepticismo e descrena est sujeito a circunstncias histricas. Alguns perodos foram mais favorveis a dissidentes do que outras, e mais tarde pode-se interpretar como atesmo o que antes era tolerado talvez apenas como teorias aceitveis sobre os deuses e a origem da religio. Isto significa que temos de prestar ateno aos diferentes perodos em que o atesmo de certo modo floresceu, ao modo como os gregos e romanos posteriores interpretavam os seus predecessores, e s razes pelas quais as pessoas de uma dada poca imputam o atesmo aos contemporneos que tm opinies religiosas diferentes das suas.

O epicurista Filodemo (ca. 11035 a.C.) classificou os vrios tipos de ateus da antiguidade como se segue:

Os que afirmam que no se sabe se h deuses ou como eles so;Os que afirmam abertamente que no h deuses;Os que o sugerem claramente. P. Herc. 1428 cols. 14, 3215, 8, cf. A. Henrichs, Die Kritik der stoischen Theologie im P. Hercul. 1428, Cronache Ercolanesi 4 (1974): 532 em 25; D. Obbink, Philodemus: On Piety, Vol. 1 (Oxford, 1996), 1 ss.

Apesar de esta classificao ser razoavelmente aceitvel, permanece ao nvel das ideias e negligencia os ateus praticantes. Mais grave no mencionar o atesmo como uma maneira de rotular pessoas para difamar oponentes, sejam religiosos ou filosficos. por isso que no seguimos Filodemo e dividimos os nossos indcios em trs perodos: 1) o perodo clssico, 2) o perodo helenstico, que comeou a classificar pensadores anteriores como ateus e desenvolveu um atesmo frouxo que tentou salvar a existncia dos deuses, e 3) o perodo romano, quando os pagos chamavam atheoi aos cristos, e vice-versa. Dado o seu interesse para a histria do atesmo, concentrar-nos-emos no perodo clssico. Usaremos sempre o termo atesmo algo imprecisamente para classificar aqueles pensadores e pessoas que negavam a existncia de deuses ou apresentavam teorias para explicar a existncia dos deuses. Cf. M. Winiarczyk, Methodisches zum antiken Atheismus, Rheinisches Museum 133 (1900): 115, e Antike Bezeichnungen der Gottlosigkeit und des Atheismus, Rheinisches Museum 135 (1992): 216225.

A inteno no apresentar uma listagem exaustiva de todas as pessoas a que se chamava ateias na antiguidade. Isto j foi muito competentemente feito e no preciso refaz-lo. M. Winiarczyk, Wer galt im Altertum als Atheists? Philologus 128 (1984): 157183, e, com suplementos e adenda, Wer galt im Altertum als Atheists? II, Philologus 136 (1992): 306310. O prprio atesmo foi repetidamente estudado. P. Decharme, La critique des traditions religieuses chez les grecs (Paris, 1904); A. B. Drachman, Atheism in Pagan Antiquity (Gyldendal, 1922); W. Nestle, Atheismus, Reallexicon fr Antike und Christentum, vol. 1 (Stuttgart, 1950), pp. 866870; W. Fahr, Theous nomizein: Zum Problem der Anfge des Atheismus bei den Griechen (Hildescheim e Nova Iorque, 1969); W. K. Guthrie, The Sophists (Cambridge, 1971), pp. 226249; e M. Winiarczyk, Bibliographie zum antiken Atheismus, Elenchos 10 (1989): 103192. Contudo, a publicao recente de novos papiros e novas edies de textos j publicados permitem-nos olhar de uma maneira nova para os antigos indcios gregos e assim esboar uma imagem melhor do que foi possvel na maior parte do sc. XX.

1. O perodo clssico

O atesmo na Grcia tornou-se visvel especialmente em Atenas na segunda metade do sc. V a.C., apesar de o primeiro ateu no ser de Atenas. O primeiro filsofo proeminente que mais tarde foi classificado como ateu foi Protgoras (ca. 490420 a.C.) de Abdera, uma cidade do nordeste da Grcia, na qual nasceu Demcrito (ca. 460400? a.C.), que poderia ter-se tornado ateu mas aparentemente no o fez. Era famoso pelo que provavelmente era a frase de abertura da sua obra intitulada Sobre os Deuses, dado que na antiguidade os ttulos das obras em prosa eram muitas vezes as palavras de abertura: Sobre os deuses no consigo descobrir se existem ou no, ou qual a sua aparncia; pois h muitos obstculos ao conhecimento: a dificuldade do tema e a brevidade da vida humana. Protgoras B 4 Diels/Kranz (DK daqui em diante). Todos os fragmentos so citados a partir das suas edies cannicas. Esta citao torna bvio que Protgoras era agnstico e no ateu, como Ccero, em De natura deorum (I.1.2), e Galeno, em De propriis placitis (2, ed. Boudon-Millot e Pietrobelli), ainda reconheciam. E na verdade, ao longo da sua vida, foi muitssimo respeitado: Pricles, o poltico ateniense principal de meados do sc. V a.C., convidou-o para escrever a constituio da colnia pan-helnica Thurii, no sul de Itlia (Heraclides Pntico, fragmento 150 Wehrli2) e Plato at fez notar no Mnon (91e) que Protgoras gozou de grande reputao toda a sua vida. Contudo, a sua fama rapidamente se deteriorou e ainda no perodo helenstico comearam a aparecer editais de que tinha sido condenado morte e que o seu livro, com as famosas palavras de abertura, tinha sido queimado na praa pblica. Para o desenvolvimento desta lenda, veja-se K. J. Dover, The Greeks and Their Legacy (Oxford, 1988), pp. 142145, 158, e R. Parker, Athenian Religion (Oxford, 1996), p. 207 n. 36. Apesar de estes relatos serem provavelmente fictcios, tornaram-se acusaes de claro atesmo o mais tardar no sc. II, nos escritos do empirista Sexto Emprico (Adversus Mathematicus 9.501, 56) e do epicurista Digenes de Oenoanda (fragmento 16 Smith), que poder ter retirado as suas acusaes do prprio Epicuro. Obbink, Philodemus: On Piety, p. 355.

S nos termos mais gerais possvel explicar o agnosticismo de Protgoras. Pouco se sabe da sua vida e quase nada da sua formao intelectual. Contudo, podemos dizer qualquer coisa sobre o clima intelectual em que cresceu e sobre os pr-requisitos do seu agnosticismo. Protgoras pertencia ao chamado movimento sofista, um termo vago que denota intelectuais crticos, em particular os filsofos da segunda metade do sc. V a.C. Os contemporneos dos sofistas ligavam-nos aos livros, Bremmer, Literacy and the Origins and Limitations of Greek Atheism, in J. Den Boeft e A. Kessels (orgs.), Actus: Studies in Honour of H. L. W. Nelson (Utrecht, 1982), pp. 4356, e J. Mansfeld, Studies in the Historiography of Greek Philosophy (Assen e Maastricht, 1990), p. 305. e isto indica que a literacia uma condio importante para o desenvolvimento da filosofia crtica. A sua importncia para a filosofia torna-se visvel por volta de 500 a.C., quando Protgoras (ca. 560495 a.C.) foi criticado por escrito por Xenfanes (B 7 DK: ca. 570495 a.C.); e Heraclito (B 129 DK: ca. 500 a.C.) at o repreendeu por ter pilhado muitos escritos. Bremmer, Rationalization and Disenchantment in Ancient Greek: Max Weber among the Pythagoreans and Orphics? in R. Buxton (org.), From Myth to Reason? (Oxford, 1999), pp. 7183 na 78.

Os ltimos dois filsofos influentes atacaram tambm ferozmente os deuses antropomrficos de Homero e Hesodo, os poetas gregos autorizados. Xenfanes proclamou at o deus nico, o maior de entre os deuses e os seres humanos (fragmento B 23 DK). Por outras palavras, ele e os seus contemporneos tentaram introduzir novas ideias sobre o divino, em vez de abolir completamente a ideia de divino. A situao comeou a mudar com Anaxgoras (ca. 500428 a.C.), o primeiro filsofo conhecido a estabelecer-se em Atenas, o centro da vida intelectual da Grcia de ento, provavelmente em meados da dcada de 450. De acordo com o Digenes Larcio do sc. III, afirmou que o Sol era uma massa de metal ao rubro (2.7 = fragmento A I DK). Pode parecer que isto no revolucionrio, mas para os atenienses o Sol era um deus, Hlio, e a observao de Anaxgoras retirava ao Sol a sua natureza divina.

Quando fez Anaxgoras esta afirmao? Infelizmente, a sua cronologia no est toda determinada. Para a cronologia de Anaxgoras, veja-se Parker, Athenian Religion, 209; D. Sider, The Fragments of Anaxagoras (Sankt Augustine, 2005), pp. 111. Os indcios que temos apontam em grande parte para os anos em que foi para Atenas, mas h relatos posteriores que o ligam a tentativas de prejudicar Pricles, e falam de um processo legal provocado pela sua impiedade. Veja-se, esp., Eforo FGrH 70 F 196. O problema destes relatos que s na dcada de 420 comearam a aparecer textos que zombam das perspectivas dos filsofos naturalistas. Nos seus Panoptai (fragmento 167 Kassel/Austin), que ter aparecido pouco antes de 423 a.C., o dramaturgo Crtino zomba do filsofo Hpon, mais tarde descrito como mpio por ter declarado que o cu uma cdea. S. Shapiro, Hippon the Atheist: The Surprisingly Intelligent Views of Hippon of Samos, Journal of Ancient Civilisation 14 (1999): 111123; note-se tambm Aristfanes, As Aves 1000f. Em 423 a.C., Aristfanes inclui a ideia em As Nuvens e zomba dos habitantes do Reflexrio (phrontistrion) por abraarem a mesma ideia; Scrates at diz: Caminho no ar e contemplo o Sol. Aristfanes, As Nuvens 225229, 360, 490, 1284. Em 421 a.C., outro comediante, Euplis, associou at Protgoras a estas ideias no seu Bajuladores, fazendo-o pontificar sobre os cus (fragmento 157 Kassel/Austin), e em 414 Aristfanes faz o coro do seu As Aves dizer que as pessoas tm de lhes dar ateno para que possam saber correctamente de ns tudo sobre as coisas nas alturas (690), que no texto parece ligado ao brevemente mencionado Prdico (veja-se mais frente). N. Dunbar, Aristophanes: Birds (Oxford, 1995), 436, que compara Aristfanes, As Nuvens 360 e o cristo Epifnio, Contra Herticos 3.21.

Mas no eram apenas os comediantes que escarneciam da nova filosofia. O tragedigrafo Eurpides tambm contribuiu para o ressentimento geral ao fazer o coro de uma pea desconhecida recitar: quem, ao ver isto, no ensina de antemo que a sua alma considerada um deus, e no afasta para longe as velhacas intrujices dos que falam dos cus, cujas lnguas loucas se arremessam arbitrariamente ao que oculto, destitudos de compreenso. Eurpides, fragmento 913 Kannicht, trad. Parker, Athenian Religion, 209, adaptado luz do novo texto revisto de Kannicht. esta conexo entre atesmo e especulao sobre a natureza dos cus que tambm vem superfcie na Apologia de Plato (18bc), em que Scrates diz que os seus acusadores afirmam o seguinte:

H um homem sbio chamado Scrates que tem teorias sobre os cus e que investigou tudo sob a Terra, e que pode fazer o mais fraco argumento derrotar o mais forte. So estas pessoas, senhores do jri, os que disseminam estes rumores, que so os meus perigosos acusadores, porque quem os ouve supe que quem investiga tais questes tem de ser um ateu. Plato, Apologia 18bc, ver tambm Apologia 26d e Leis 967a.

Este testemunho de um dos primeiros dilogos de Plato de muito valor, pois mostra que os contemporneos de Scrates ligavam j a especulao sobre os cus ao atesmo.

Com o sofista Prdico de Keos (ca. 465395 a.C.) temos uma situao diferente. Infelizmente, quase nada se sabe do ttulo, contedo e mbito do trabalho no qual exps as suas perspectivas. O melhor candidato talvez os seus Horai, ou estaes do ano personificadas, A. Henrichs, The Sophists and Hellenistic Religion: Prodicus as the Spiritual Father of the Isis Aretologies, Harvard Studies in Classical Philology 88 (1984): 139158. que devem ter aparecido por volta de 420 a.C., pois a teoria de Prdico foi parodiada em As Aves de Aristfanes, de 414 a.C., e Eurpides faz-lhe uma aluso em As Bacantes, de 406 a.C. Eurpides, As Bacantes 274285, onde o vidente Tirsias aclama Demtria e Dionsio como os inventores respectivos do po e do vinho; cf. Henrichs, Two Doxographical Notes: Democritus and Prodicus on Religion, Harvard Studies in Classical Philology 79 (1975): 93123 em 110 n. 64. Apesar de Prdico ser tambm um desses filsofos com a reputao de especular sobre os cus (ver acima), esta no era a razo principal da sua fama. De facto, as suas ideias eram muito mais radicais pois, segundo Filodemo, Prdico defendia que os deuses da crena popular no existem, e as pessoas no sabem disso, mas o homem primitivo, [por admirao, deifica] os frutos da Terra e praticamente tudo o que contribuiu para a sua existncia. O carcter muitssimo estilizado da linguagem sugere que esta passagem reflecte de perto as prprias palavras de Prdico. Philodemos, PHerc. 1428, fragmento 19, trad. Henrichs; cf. Henrichs, Two Doxographical Notes, 107115, cuja interpretao adopto aqui, incluindo as suas novas ideias sobre a traduo no seu The Atheism of Prodicus, Cronache Ercolanesi 6 (1976): 1521. Mas o que queria Prdico dizer efectivamente?

Uma ateno renovada aos papiros fragmentrios que so a nossa melhor fonte das ideias de Prdico mostrou que este autor props uma teoria em duas fases da origem do politesmo. Primeiro, o homem primitivo comeou a chamar deuses aos elementos da natureza dos quais mais dependia, como o Sol e a Lua, os rios e as frutas. Subsequentemente, aqueles seres humanos que foram os principais benfeitores enquanto inventores do uso apropriado dos frutos da Terra, nomeadamente o po e o vinho, Demtria e Dionsio, foram tambm apelidados de deuses e prestaram-lhes culto. Evidentemente, para Prdico houve um tempo sem deuses, apesar de o homem j estar presente.

A comparao com outras teorias culturais do seu tempo sugere que Prdico localizou o princpio da religio na agricultura. Ora, o advento de Demtria e Dionsio com as suas ddivas do po e do vinho fazia parte da mitologia tica. Na verdade, Atenas orgulhava-se de ter dado a agricultura ao mundo grego. F. Graf, Eleusis und die orphische Dichtung Athens in vorhellenistischer Zeit (Berlin, 1974), pp. 2239, e Parker, Athenian Religion, p. 99. Prdico pode muito bem ter ouvido dizer isso na sua ilha de Keos, que era facilmente acessvel a partir de tica, mas pode tambm ter sido influenciado pelas suas estadas frequentes em Atenas, onde no esqueceu os seus prprios interesses enquanto era embaixador da sua ilha. O facto de ter sido presente ao Conclio de Atenas e de os ter impressionado com a sua eloquncia quase garante definitivamente que preparou muito bem a sua defesa, estudando a mitologia tica. Plato, Crtilo 384b, Hpias Maior 282c.

Alm de Prdico, os nicos outros intelectuais do sc. V em cujas obras se pode encontrar afirmaes claramente ateias so Eurpides e Crtias. Infelizmente, os indcios biogrficos antigos a favor do atesmo de Eurpides baseiam-se primariamente em inferncias com base na sua poesia, que foram elaboradas, muitas vezes com alguma malcia, por autores do sc. IV e sculos posteriores. Mesmo a tradio do julgamento de Eurpides por atesmo provavelmente derivada da comdia ou inventada por analogia com o julgamento de Scrates. Para os textos, veja-se R. Kannicht, Tragicorum graecorum fragmenta, vol. 5.1 (Gttingen, 2004), T 98100, 166c, 170-171ab. Por outro lado, estas inferncias tinham alguma base. A. Dihle, Das Satyrspiel Sysyphus, Hermes 105 (1977): 2842 em 33, e M. R. Lefkowitz, Was Euripides an Atheist? Studi Italiani di Filologia Classica 3, n. 5 (1987): 149166, e Impiety and Atheism in Euripides Dramas, Classical Quarterly 39 (1989): 7082. No fim, contudo, s h uma passagem com um contedo claramente ateu, que vale a pena citar completamente. Num fragmento que foi transmitido na era crist na Belerofonte, uma tragdia que foi provavelmente levada cena por volta de 430 a.C., o prprio Belerofonte afirma logo no incio:

Algum afirma haver realmente deuses nos cus? No os h, no os h, se um homem se dispuser a no confiar tolamente no raciocnio antiquado. Considerem as coisas por vocs mesmos, no baseiem a vossa opinio em palavras minhas. Por mim, afirmo que a tirania mata muitssimos homens e priva-os das suas possesses; e que os tiranos violam os seus juramentos para pilhar cidades, e ao faz-lo so mais prsperos sob os cus do que homens que vivem de dia para dia em reverncia plcida. Tenho tambm conhecimento de cidades pequenas que honram os deuses que so subjugadas pelas cidades maiores, e mais mpias, porque so derrotadas por um exrcito maior. Penso que se um homem fosse preguioso e rezasse aos deuses e no ganhasse a sua vida com as suas mos, irias [h aqui uma lacuna no texto] fortalecer a religio e a m fortuna. Eurpides, fragmento 286 Kannicht, trad. Collard, ligeiramente adaptada. A ltima linha do fragmento pode no lhe pertencer originalmente. Para a data, veja-se C. Collard et al., Euripides: Selected Fragmentary Plays, vol. I (Warminster, 1995), p. 101.

Esta uma expresso radical de um sentimento que se encontra mais vezes em Eurpides: que os irreligiosos prosperam, enquanto os pios sofrem. Eurpides, Hiplito 1102 ss., Srios, fragmento 684 Kannicht. Consequentemente, os deuses no tm poder e a religio imaginria. Tal postura radical deve ser o tipo de coisa que motivava o escrnio de Aristfanes, Aristfanes, Thesmophoriazusai 448452, As Rs 888894. mas no final da pea a ordem tradicional restabelecida e a declarao ateia de Belerofonte mais do que contrabalanada pelo seu destino desgraado. Por outras palavras, a afirmao a expresso de uma personagem da pea, e no a opinio do prprio dramaturgo. C. Riedweg, The Atheistic Fragment from Euripides Bellerophontes (286 N), Illinois Classical Studies 15 (1990): 3953.

Poder haver uma segunda passagem, mas a sua autoria muitssimo debatida. Costumava ser atribuda ao sofista Crtias (ca. 450403 a.C.), um dos membros mais inescrupulosos dos Trinta Tiranos, um grupo de aristocratas que tomaram o poder no fim da Guerra do Peloponeso e que ficou na memria pelo seu reino de terror. Como tal, o tom cnico da pea parece ajustar-se perfeitamente imagem que o seu autor tem na tradio historiogrfica. Por outro lado, Crtias s mencionado uma vez como autor desta passagem, ao passo que Eurpides mencionado duas vezes. De facto, vrios estudos recentes argumentaram persuasivamente que no de modo algum adequado ao gnero dramtico da stira que uma personagem desenvolva neste ponto, pela primeira vez, uma teoria muitssimo provocativa, ao invs de a parodiar, como de facto parece acontecer aqui tanto mais porque a passagem no reflecte a opinio de apenas um filsofo mas de vrios. Alm disso, uma personagem que procura persuadir algum de que um crime sem testemunhas permanecer sem castigo adequa-se muito melhor a uma pea satrica do que a uma tragdia. Por fim, a passagem contm vrias palavras que s ocorrem na obra de Eurpides. Consequentemente, a passagem poderia ter pertencido ao Ssifo (415 a.C.) de Eurpides, ou ento, o que talvez mais atraente, ao seu Autlico A (data desconhecida). Veja-se a discusso pormenorizada de N. Pechstein, Euripides satyrographos (Estugarda e Leipzig, 1998), pp. 289343; note-se tambm M. Davies, Sisyphus and the Invention of Religion, Bulletin of the Institute of Classical Studies 36 (1989): 1632; M. C. Santoro, Sisifo e il presunto ateismo di Crizia, Orpheus 15 (1994) 41929, e Il fr. 19 Snell del Sisifo di Crizia come testimonianza della concezione socratica del divino: Crizia accusatore di Socrate? Elenchos 18 (1997): 25776; R. Krumeich et al., Das griechische Satyrspiel (Darmstadt, 1999), pp. 55261 (texto, comentrio e traduo alem de N. Pechstein). Contudo, a recente edio crtica dos fragmentos de Eurpides no aceitou estes argumentos, atribuindo o fragmento uma vez mais a Crtias. Veja-se Kannicht, Tragicorum graecorum fragmenta, 2.658f. Isto provavelmente correcto, dado que a nova edio de Sobre a Piedade, de Filodemo (519541), mostra que Epicuro j tinha concludo que o que o prprio Crtias tinha afirmado dos deuses tornava impossvel que estes, tal como so geralmente concebidos, existam; de facto, as linhas 539540 e 11851217 de Sobre a Piedade exibem vestgios da concepo de Ssifo. Por outras palavras, a reputao de Crtias como ateu anterior aos bigrafos helenistas. Obbink, Philodemus: On Piety, p. 355. Dado o seu interesse para a histria do atesmo, cito a passagem completa:

Houve um tempo em que a vida dos seres humanos era desordenada, semelhante dos animais e regida pela fora, no havendo recompensa para o virtuoso nem castigo para o perverso. Depois penso que os seres humanos decidiram estabelecer as leis como castigos de modo a que a Justia (Dik) pudesse governar [lacuna] mantendo o Crime e a Violncia (Hybris) como escravos. E s castigavam quem continuasse a fazer o mal. Ento, dado que as leis restringiam os actos de violncia aberta, os homens continuaram a comet-los em segredo; ento, penso, um homem sbio e esperto inventou para os mortais o medo dos deuses, de modo a dissuadir os perversos, quando agem ou dizem ou pensam algo em segredo. Assim, desta fonte explicou ele o divino: h uma divindade (daimn) que tem uma vida incorruptvel, vendo e ouvindo com a sua mente, mantendo o seu pensamento e ateno em todas as coisas, possuidor de uma natureza divina. Ele ouve tudo o que se diz entre os mortais e consegue ver tudo o que se faz. Se algum planear o mal em silncio, isto no escapar aos deuses. Pois eles [lacuna] tm conhecimento. Com estas palavras, ele explicava a parte mais agradvel dos seus ensinamentos e escondia a verdade com uma lenda falsa. Afirmou que os deuses habitam l onde ele colocando-os l pode assustar mais os seres humanos, l onde, como ele sabe, os mortais ficam com medo e preocupados com as suas vidas miserveis; isto , l no cimo das alturas, onde observam os relmpagos e as aterrorizadoras deflagraes da trovoada e os cus estrelados, a linda e magnificamente decorada construo do Tempo, o sbio arteso. L tambm onde a brilhante massa do Sol jornadeia e a chuva lquida cai para a Terra. [4 linhas interpoladas] Foi assim, penso, que algum persuadiu pela primeira vez os mortais a acreditar que h uma linhagem de deuses. Crtias, TGrF 43 F 19I, trad. Ch. Kahn, Greek Religion and Philosophy in the Sisyphus Fragment, Phronesis 42 (1997): 24762 at 24748, adaptada luz da traduo e comentrio de Pechstein (nota 32).

Nesta longa passagem, que muito provavelmente foi pronunciada por Ssifo, o grego mais esperto da mitologia, vemos a primeira ocorrncia da teoria de que a religio (aqui: os deuses) foi inventada para assegurar o bom comportamento dos seres humanos. nico no seu tempo, mas dificilmente se imagina um dramaturgo a apresentar tal teoria numa pea que tem por objectivo o entretenimento da sua audincia se esta no a conhecesse j. Ora, claro que vrios aspectos desta passagem tinham de ser comuns entre a audincia. Primeiro, a imagem de uma situao semelhante dos animais no comeo da humanidade era um topos recorrente em descries e pardias da situao primeva nos contemporneos de Eurpides. Veja-se o mais recente Pechstein, Euripides satyrographos, p. 323f. Segundo, a oposio entre o assentimento pblico s leis e a liberdade privada irrestrita encontra paralelo na obra do sofista contemporneo Antfon, que afirmou ser a justia da maior vantagem para um homem se ele considerasse as leis magnficas, na presena de testemunhas, mas considerasse a natureza igualmente magnfica na sua ausncia (F 44(a), I, 1323 Pendrick). Terceiro, Demcrito declara (A 75 DK) que quem inventou a religio se apoiava no medo humano dos fenmenos celestes e, quarto, Prdico tinha tambm defendido uma teoria em duas fases do desenvolvimento da religio (ver acima). Contudo, a teoria exposta nesta passagem vai mais longe e mais cnica do que qualquer outra das propostas presentes nos textos que chegaram at ns.

A pea de Crtias (ou de Eurpides) ilustra bem uma mudana gradual de atitude relativamente aos deuses em Atenas nas ltimas dcadas do sc. V. O pior estava para vir. Em 415 os atenienses fizeram uma grande expedio Siclia para conquistar Siracusa, e as nossas fontes permitem-nos observar a atitude nervosa da populao daquele tempo. Para a attitude, veja-se tambm Bremmer, Prophets, Seers, and Politics in Greece, Israel, and Early Modern Europe, Numen 40 (1993): 15083 em 170. Foi neste momento precrio que a confidencialidade fortemente guardada dos Mistrios de Elusis ficou duas vezes em perigo. Uma manh, pouco antes de chegar a hora de a frota ateniense partir para a Siclia, descobriu-se que tinham sido mutiladas quase todas as imagens do deus Hermes que estavam em espaos pblicos. Os que foram denunciados foram tambm acusados de terem profanado os Mistrios de Elusis. Parker, Athenian Religion, 206; F. Graf, Der Mysterienprozess, in L. Burckhardt e J. von Ungern-Sternberg (orgs.), Grosse prozesse im antiken Athen (Munique, 2000), pp. 114127. Ao passo que os mutiladores tinham parodiado os Mistrios (se foram realmente eles que o fizeram) privadamente, Digoras, um cidado da ilha de Melos, por volta da mesma altura, zombava dos Mistrios abertamente depois de os atenienses terem maltratado a sua ilha natal. Como persuasivamente argumentado por C. Auffarth, Aufnahme und Zurckweisung Neuer Gtter im sptklassischen Athen: Religion gegen die Krise, Religion in der Krise? in W. Eder (org.), Die athenische Demokratie im 4. Jahrhundert v. Chr. (Stuttgart, 1995), pp. 337365; F. E. Romer, Atheism, Impiety and the Limos Melios in Aristophanes Birds, American Journal of Philology 115 (1994): 351365, e Diagoras the Melian (Diod. Sic. 13.6.7), Classical Weekly 89 (199596): 393401. Consequentemente, Mubashshir, um rabe do sc. XI, cujo relato directa ou indirectamente parece derivar do ateniense erudito Apolodro (ca. 180120 a.C.), faz notar o seguinte:

Quando ele [viz., Dhiyaghuras al-mariq, ou Digoras o hertico, ou apstata] persistiu na sua hipocrisia [ou dissimulao], na sua descrena e no seu atesmo, o governante, os homens sbios [ou filsofos, hukama] e lderes de tica intentaram mat-lo. O governante Kharias o arconte [Khariyus al-Arkun (415414)] ps a sua cabea a prmio [literalmente: gastou dinheiro, badhal] e ordenou que se proclamasse entre o povo: Aquele que capturar Digoras de Melos [Maylun] e o matar ter como recompensa uma avultada quantia [badra, tradicionalmente uma mala de couro contendo mil ou dez mil dirhans]. Mubashshir in F. Rosenthal, Greek Philosophy in the Arab World (London, 1990), ch. I., p. 33 (= Orientalia 6, 1937, 33), trad. Gert Jan van Gelder, a quem agradeo pelos comentrios e nova traduo da passagem; note-se tambm Melanthius FGrH 326 F3; Craterus FGrH 342 F16. Para a data, veja-se Diodorus Siculus 13.6,7 e, independentemente, Mubashshir.

Este um relato bastante exacto dos acontecimentos, dado que os atenienses tinham prometido um talento de prata a qualquer pessoa que matasse Digoras, e dois a quem o apanhasse vivo. Ora, Digoras j escarnecido na comdia de Hermipo, Moirai (fragmento 43 Kassell-Austin), que foi escrita antes de 430. Em As Nuvens (830), de Aristfanes, Scrates apelidado de o meliano por sustentar perspectivas ateias. Isto tem de querer dizer que Digoras vivia em segurana em Atenas desde h muitos anos apesar das suas perspectivas irreligiosas um facto que tambm transparece no relatrio rabe. Contudo, a atitude escarnecedora de Digoras foi longe de mais e Epicuro j o menciona, juntamente com Crtias e Prdico, como os arqui-ateus. Obbinks, Philodemus: On Piety, p. 525. Nesse papel, Digoras continuaria com m fama por toda a antiguidade. Para Digoras, veja-se o mais recente M. Winiarczyk, Diagorae Melii et Theodori Cyrenaei reliquiae (Leipzig, 1981), a ler com o seu Ergnzungen zu Diagoras und Theodoros, Philologus 133 (1989): 151152; Bremmer, Religious Secrets and Secrecy in Classical Greece, in H. Kippenberg e G. Stroumsa (orgs.), Secrecy and Concealment (Leiden, 1995), pp. 6178; Parker, Athenian Religion, p. 208; Obbink, Philodemus: On Piety, pp. 525526; e J. Hordern, Philodemus and the Poems of Diagoras, Zeitschrift fr Papyrologie und Epigraphik 136 (2001): 3338. As recentes tentativas para fazer Digoras o autor dos papiros de Derveni levadas a cabo por R. Janko (The Physicist as Hierophant: Aristophanes, Socrates and the Authorship of the Derveni Papyrus, Zeitschrift fr Papyrologie und Epigraphik 118 (1997): 6194, e The Derveni Papyrus (Diagoras of Melos, Apopyrgizontes logoi?): A New Translation, Classical Philology 96 (2001): 132) so refutadas por G. Betegh, The Derveni Papyrus: Cosmology, Theology, and Interpretation (Cambridge, 2004), pp. 373380.

Mais famoso do que Digoras, se bem que menos pelo seu atesmo, foi Scrates (469399 a.C.). evidente a partir da imagem de Scrates que Aristfanes apresenta em As Nuvens que j naquele tempo o primeiro era visto mais ou menos como ateu; isto tambm sugerido pela sua associao frequente a Eurpedes na comdia. Aristfanes, As Rs 1491, fragmento 392 Kassel/Austin; Telecleides, fragmentos 4142 Kassel/Austin. No portanto completamente surpreendente que em 399 a.C. os atenienses tenham acusado Scrates como se segue: Scrates culpado de no reconhecer os deuses que a cidade reconhece e de introduzir poderes novos (daimonia). tambm culpado de corromper a juventude. Favorinus in Diogenes Laertius 2.40, trad. Parker; note-se tambm Xenfanes, Memorabilia 1.1.1, Apologia 10; Plato, Apologia 24b8-c1, utfron 3b; Obbink, Philodemus: On Piety, pp. 16961697. O julgamento de Scrates levanta ainda muitas questes, mas certo que para muitos atenienses Scrates se tinha aproximado demasiado daqueles que punham em causa os deuses tradicionais. Para a acusao e processo, veja-se Parker, Athenian Religion, pp. 199207, e P. Millett, TheTrial of Socrates Revisited, European Review of History 12 (2005): 2362.

S cerca de uma dcada depois da morte de Scrates, em Plato (ca. 429347), comeamos a encontrar a palavra grega atheos, que originalmente era usada com o significado de sem deuses, abandonado pelos deuses, denotando intelectuais que negavam os deuses da cidade ou qualquer forma de divindade. Este significado particular pode claro ser ligeiramente mais antigo, mas a sua data coincide com a nossa impresso do clima intelectual das ltimas dcadas do sculo V. Plato, Apologia 26c, Leis 12.967a, cf. Henrichs, Atheism of Prodicus, p. 20. A crtica cada vez mais intensa aos deuses por parte de filsofos e poetas tinha desgastado as crenas tradicionais nos deuses, e alguns intelectuais tiravam a consequncia inevitvel. Contudo, a fora combinada da crena tradicional e o influente tesmo de Plato tornaram os verdadeiros ateus um fenmeno raro no mundo grego.

2. O perodo helenstico

A morte de Scrates foi o fim de uma era. A maior parte dos filsofos compreenderam a deixa e foram cuidadosos ao expor as suas perspectivas. Houve excepes ocasionais, como Teodoro de Cirene (ca. 340250 a.C.), que mencionado sobretudo com Digoras como o ateu por excelncia. Contudo, os nossos indcios baseiam-se sobretudo em historietas e difcil reconstruir a sua teologia. M. Winiarczyk, Theodoros ho atheos, Philologus 125 (1981): 6494, Diagorae Melii et Theodori Cyrenaei, e Ergnzungen; G. Giannantoni, Socraticorum reliquiae, 3 vols. (Roma, 198385), vol. 1, pp. 301315, vol. 3, pp. 173176.

H dois desenvolvimentos dignos de nota no perodo helenstico. Primeiro, comeamos a encontrar uma listagem de ateus num index atheorum. O exemplo mais antigo de Epicuro (341270 a.C.), no livro XII do seu Sobre a Natureza, que deve ter sido redigido por volta de 300 a.C. D. Obbink, The Atheism of Epicurus, Greek, Roman, and Byzantine Studies 30 (1989): 187223; Obbink, Philodemus: On Piety, pp. 14, 1417. A crtica de Epicuro a Protgoras, Prdico, Crtias e possivelmente Digoras como doidos furiosos foi provavelmente includa no contexto de saber como comearam os homens a acreditar em deuses e a vener-los. O prprio Epicuro no era ateu, mas os filsofos posteriores, provavelmente os esticos, atacaram as premissas do seu sistema fsico, inferiram que os deuses no tinham qualquer lugar necessrio no seu sistema, e rotularam-no ditosamente de ateu. Ccero, De natura deorum 1.123, cf. Obbink, Philodemus: On Piety, p. 352. Depois de Epicuro, no fim do sc. II a.C., o cptico acadmico Clitmaco alargou a lista, no seu tratado Acerca do Atesmo. M. Winiarczyk, Der erste Atheistenkatalog des Kleitomachos, Philologus 120 (1976): 3246, e Bibliographie, p. 185f. Clitmaco era um partidrio do representante mais importante da academia cptica, Carnades (ca. 214128 a.C.), que provavelmente alegara que Epicuro no queria realmente dizer o que tinha dito sobre os deuses. Obbink, Atheism of Epicurus, pp. 218220. Por sua vez, Clitmaco foi seguido por Ccero, no seu De Natura Deorum (I.1.63), Pseudo-Acio (ca. 50100 d.C.), D. Runia, Atheists in Atius: Text, Translation and Comments on De placitis 1, 7, 110, Mnemosyne 4, n. 49 (1996): 542576. Note-se que o nome Acio s mais tarde foi associado a este tratado; cf. Bremmer, Atius, Arius Didymus and the Transmission of Doxography, Mnemosyne 4, n. 51 (1998): 154160. e, l para o fim do sc. II d.C., por Sexto Emprico (Adversus Mathematicos 9.5058).

O segundo desenvolvimento foi o sucesso imediato da teoria de Prdico sobre os deuses; veja-se o seu reflexo depois de Eurpides (ver acima) em poetas e historiadores posteriores. Contudo, o seu seguidor mais famoso viveu bastante mais tarde. Henrichs, The Sophists and Hellenistic Religion, pp. 148152. No primeiro quartel do sc. III a.C., o alexandrino Evmero escreveu o Registo Sagrado, no qual transformou a sucesso hesidica de rano, Cronos e Zeus numa dinastia de reis mortais que habitaram uma ilha fictcia chamada Pancaia. M. Winiarczyk, Ennius Euhemerus sive Sacra historia, Rheinisches Museum 137 (1994): 274291, e Euhemeros von Messene: Leben, Werk und Nachwirkung (Munique e Leipzig, 2002), e A. Baumgarten, Euhemerus Eternal Gods or How Not to Be Embarrassed by Greek Mythology, in Classical Studies in Honor of David Sohlberg (Ramat Gan, 1996), pp. 91103. O objectivo de Evmero era manter os deuses mas apresent-los de um modo que as pessoas sofisticadas pudessem acreditar. S nos restam alguns fragmentos, Veja-se M. Winiarczyk, Euhemeri Messenii Reliquiae (Stuttgart, 1991). mas Sexto Emprico parece resumir a sua obra ao dizer que os deuses tradicionais foram mortais importantes e consequentemente foram deificados pelos seus contemporneos e considerados deuses. Sexto Emprico, Adversus mathematicos 9.51, trad. Henrichs. Evmero teve bastante sucesso em Roma, onde o poeta neo (239169 a.C.) traduziu a sua obra por volta de 200 a.C. em prosa latina, talvez para dar origem a um clima espiritual favorvel deificao de Cipio Africano, o vencedor de Cartago e Anbal. neo no fez uma traduo literal; expandiu um pouco o original e explicou os nomes gregos ao seu pblico romano, junto do qual o seu trabalho acabou por ter grande sucesso, tendo sido lido por Varro (116127 a.C.) e Ccero, e acabando por dar munies aos cristos.

No devemos deixar que as listas cada vez maiores de ateus ocultem o facto de que, na realidade histrica, nenhuns ateus praticantes so mencionados nas nossas fontes deste perodo. Nos primeiros dois sculos da nossa era, o atesmo tinha-se tornado principalmente um rtulo para usar contra oponentes filosficos, mas no para levar muito a srio. Mesmo os judeus sabiam entrar no jogo e reprovaram os egpcios pelo seu atesmo. Filo, Legatio ad Gaium 25. Em meados do sc. II a.C. torna-se visvel um novo desenvolvimento. Em A Vida de Alexandre de Abonouteico, a biografia de um dirigente religioso que fundou um novo culto em Abonouteico, uma pequena cidade em Ponto, na sia Menor, Luciano, o satrico malicioso, menciona que Alexandre tinha excludo do seu culto o ateu, o cristo e o epicurista (25, 38). As consequncias graves deste tipo de atitude tornam-se visveis em Esmirna. No Martrio de Policarpo, que provavelmente data de cerca de 160 d.C., um membro de um grupo de mrtires cristos, o jovem Germnico, puxou o animal que devia mat-lo, talvez um leopardo, para cima de si. Reagindo a isso, a multido gritou: Fora com estes ateus. Vo buscar Policarpo! o velho bispo dos cristos (3.2). Quando policarpo foi apanhado e interrogado pelo governador romano, este tentou salv-lo e disse-lhe: Abjura. Diz Fora com os ateus!. Policarpo olhou para a multido, mostrou-lhes o punho e disse: Fora com os ateus! (9.2). Policarpo no foi o nico mrtir confrontado com a acusao. Quando, em 177 d.C., um grupo de mrtires foi executado em Lyon, um deles, o jovem Vcio Epagato, pediu uma audincia ao perfeito para poder explicar que os cristos eram inocentes de atesmo e impiedade. Eusbio, Historia ecclesiastica 5.1.910.

A acusao de atesmo devia ser muito generalizada, pois os apologistas cristos davam muitas vezes o seu melhor para refutar a acusao. Aristides 4; Atengoras 35, 10; Mincio Felix 8.2, 15ss.; Clemente de Alexandria, Stromata 7.1.1.4; E. Fascher, Der Vorwurf der Gottlosigkeit in der Auseinandersetzung bei Juden, Griechen und Christen, in O. Betz et al. (orgs.), Abraham unser Vater: Juden und Christen im Gesprch ber die Bibel (Leiden, 1963), pp. 78105; N. Brox, Zum Vorwurf des Atheismus gegen die Alte Kirche, Trierer Theologische Zeitschrift 75 (1966): 274282; P. F. Beatrice, Laccusation dathisme contre les chrtiens, in M. Narcy e Rebillard (orgs.), Hellnisme et christianisme (Villeneuve dAscq, 2004), pp. 133152. Ainda valioso A. von Harnack, Der Vorwurf des Atheismus in den drei ersten Jahrhunderten (Leipzig, 1905). Por volta de finais do sc. II d.C., Taciano (Oratio ad Graecos 27.1) menciona mesmo que os pagos chamavam aos cristos atheotatous, os mais ateus! S Justino na Apologia (1.6), redigida por volta de 154155 d.C., nos diz quem fez a acusao. Foi o cnico Creceno, que teria tambm sido o responsvel pelo seu martrio. Justino admite que os cristos eram realmente ateus no que respeita sua atitude perante os deuses pagos. de facto difcil ver como os pagos poderiam ter pensado de outro modo, dado que os cristos no tinham templos ou esttuas de divindades e no faziam sacrifcios. Aos olhos do filsofo pago Celso (ca. 180), citado por Orgenes (184254) no seu Contra Celsum (7.62: redigido ca. 249), isto tornava os cristos comparveis a outros povos incivilizados que tambm no tinham deuses, como os brbaros Citas ou os nmadas Lbios. A acusao foi longeva e continuava viva at ao sc. IV. Eusbio, Praeparatio evangelica 1.2.24, 3.13.4; Arnbio 1.26.3; Atansio, Contra gentiles 1 e De incarnatione Verbi 1.2. Dificilmente surpreendente que os judeus fossem vtimas das mesmas acusaes, apesar de terem um templo. Flvio Jos, Contra Apionem II.65, 79, 148. Contudo, a sua posio isolada tornava-os tambm vulnerveis, e Juliano o Apstata (Contra Galileos 43) afirmou mesmo que os cristos tinham herdado o atesmo dos judeus.

3. O perodo cristo

Os cristos no demoraram a chamar a si a possibilidade de rotular os oponentes, pois Justiniano j chamava aos companheiros cristos de quem discordava ateu[s] e herticos mpios. Justiniano, Dialogus contra Tryphonem 80.3 Marcovich. Contudo, demoraram algum tempo a adoptar uma estratgia para refutar a acusao de atesmo. No Apologeticus (24) de cerca de 200 d.C., Tertuliano (ca. 160240) tentou refutar a acusao argumentando que os deuses pagos no eram realmente deuses mas demnios. Consequentemente, os cristos no poderiam ser realmente ateus! Alguns cristos agora tentavam at virar as coisas ao contrrio. Orgenes acusou os pagos de um politesmo ateu ou de um atesmo politesta. Origen, Exhortatio ad martyrium 5, 32 e Contra Celsum 1.1, 3.73. Clemente de Alexandria (ca. 150215) foi at mais longe e afirmou que o verdadeiro ateu era quem no acreditava em Deus ou na sua Providncia, Clemente de Alexandria, Stromata 5.1.6.1, 6.1.1.1, e 15.122.3, 7.1.1.1, e 9.54.34; Protrepticus 2.23.1. sendo Epicuro o seu exemplo principal. Surpreendentemente, tentou reabilitar os ateus cannicos, como Digoras, Evmero e Teodoro, afirmando que estes tinham pelo menos reconhecido a tolice das ideias pags. Clemente, Protrepticus 2.24.2.

tempo de terminar. O nosso exame mostrou que a antiguidade importante para a histria do atesmo em pelo menos trs aspectos. Primeiro, os gregos descobriram o atesmo terico, que pode ser visto como um dos mais importantes acontecimentos na histria da religio. W. Burkert, Greek Religion (Oxford, 1985), p. 315. Segundo, os gregos inventaram o termo atheos, que os romanos adoptaram como atheus, o que deu origem s palavras ateu e atesmo nos primrdios dos tempos modernos. Terceiro, gregos e romanos, pagos e cristos, depressa descobriram a vantagem do termo ateu como meio de rotular os oponentes. A inveno do atesmo iria abrir uma nova via de liberdade intelectual, mas permitiu tambm dar um novo rtulo aos inimigos. O progresso raramente chega sem um preo.

Gavin Hyman

2O Atesmo na Histria Moderna

Em Outubro de 1632 a pequena cidade de Loudun, no corao da Frana, foi agitada pela crena de que as freiras do convento ursulino da cidade estavam possudas por demnios. Nos meses e anos seguintes, medida que os gritos e guinchos das desafortunadas freiras se tornavam mais fortes e as contores dos seus corpos mais obscenas, Loudun tornou-se clebre medida que um cortejo de padres, mdicos, polticos e turistas vinham testemunhar por si o extraordinrio espectculo. A possesso no foi de curta durao e a execuo do suposto feiticeiro, o proco Urbain Grandier, no trouxe o fim que algumas pessoas esperavam. O exorcismo de padres e as diligncias de mdicos tinham pouco efeito e no parecia haver esperana de redeno at o Santo Padre Jean-Joseph Surin ter chegado a Loudun em Dezembro de 1634. Em poucos meses, a madre superiora, Jeanne des Anges, livrou-se dos seus demnios, apesar de se ter anunciado que o ltimo demnio s saiu em 1637.

No seu estudo alargado deste episdio singular, o historiador francs Michel de Certeau no to incauto a ponto de explicar definitivamente estes acontecimentos (nem provisoriamente). Mas interpreta-os como, entre outras coisas, um sintoma de um trauma o que se poderia descrever como o trauma do nascimento da modernidade. Afirma que a crise diablica (da qual a possesso de Loudun foi apenas um caso) no apenas um objecto de curiosidade histrica. o confronto (um entre outros, apesar de mais visvel) de uma sociedade com as certezas que est a perder e com as que est a tentar adquirir. Michel de Certeau, The Possession at Loudun, trad. Michael B. Smith (Chicago: University of Chicago Press, 2000), p. 2. Uma das certezas que esta sociedade est a perder o tesmo, e de Certeau v na possesso uma expresso indirecta de ansiedade e medo reprimidos perante a dvida e a blasfmia. Essa dvida estava a tornar-se ento uma caracterstica comum da sociedade, emergindo o atesmo como um fenmeno reconhecido, de um modo que um sculo antes era indito. Ibid., p. 101. Aparentemente, o atesmo uma caracterstica ou sintoma da modernidade que est traumaticamente a nascer. Poder-se-ia dizer que se o tesmo uma das certezas que esta sociedade est a perder, ento o atesmo uma dessas certezas que est a tentar adquirir. Nesta acepo, o atesmo um aspecto inevitvel da modernidade; o atesmo e a modernidade parecem inextrincavelmente ligados. Um dos objectivos deste captulo examinar a natureza precisa desta ligao. Mas antes de o fazer, necessrio dar alguma ateno a questes de definio.

Disputas sobre o que constitui o moderno ou a modernidade tm sido longas e tortuosas, e no provvel que uma qualquer definio receba aceitao universal. O que parece razoavelmente incontroverso, contudo, dizer que a velha compreenso de moderno, que o tornava praticamente sinnimo com contemporneo, foi eliminado a favor de uma compreenso do moderno como um modo de pensar ou sensibilidade particulares, tendo algumas caractersticas distintivas. Veja-se Jean-Franois Lyotard, The Lyotard Reader, org. Andrew Benjamin (Oxford: Basil Blackwell, 1989), p. 314. Que caractersticas afinal so estas algo que varia entre esferas de pensamento ou actividade. Consequentemente, a procura de uma definio omniabrangente do moderno que faa justia s muitas e diversificadas compreenses da modernidade na arte, arquitectura, literatura, filosofia, msica, poltica e economia (para nomear apenas algumas) pareceria malfadado desde o incio. Qualquer caracterizao abrangente do moderno ser em consequncia inevitavelmente inadequada. Com isto em mente, contudo, caracterizei alhures provisoriamente o moderno como um desejo de um domnio omniabarcante da realidade por meios racionais e/ou cientficos. Gavin Hyman, The Predicament of Postmodern Theology: Radical Orthodoxy or Nihilist Textualism? (Louisville: Westminster John Knox Press, 2001), p. 11. Apesar de no fazer de modo algum justia s diferenas subtis que muitas pessoas pensam correctamente serem essenciais para compreender o moderno em vrias esferas do pensamento, esta caracterizao pelo menos no enganadora quanto ao desejo dominante da sensibilidade moderna. um desejo que se torna evidente e cada vez mais dominante a partir do sc. XVI e que permanece forte at cerca de meados do sc. XX, quando comeam a insinuar-se sinais de uma crise na autoconfiana da modernidade. Esta compreenso do moderno ser aprimorada e delimitada ao longo deste captulo, mas serve como uma indicao provisria do que tenho aqui em mente com o moderno.

O significado de atesmo s ligeiramente menos contencioso. primeira vista, pareceria mais directo, pois o termo pode ser definido (com menos limitaes do que as necessrias para o termo moderno) como a crena de que Deus no existe. Mas imediatamente vemos que, como o termo ps-modernismo, o prprio termo atesmo posiciona o fenmeno como relacional. [O tesmo], enquanto aquilo do qual [o atesmo] se liberta permanece inscrito na prpria palavra com a qual [os ateus] descrevem o [seu] distanciamento relativo [ao tesmo]. Andreas Huyssen, Mapping the Postmodern, New German Critique 33 (1984): 10. Substitui os termos modernismo e ps-modernismo pelos termos tesmo e atesmo. Consequentemente, a nossa compreenso do atesmo s pode ser directa e sem ambiguidade se a nossa definio de tesmo for directa e sem ambiguidade. Pois o atesmo define-se em termos do que est a negar. Daqui segue-se que se as definies e modos de compreender Deus mudarem e variarem, tambm as nossas definies e modos de compreender o atesmo iro mudar e variar. Isto significa complementarmente que existiro tantas variedades de atesmo quantas as variedades de tesmo. Veja-se Denys Turner, How to Be an Atheist: Inaugural Lecture Delivered at the University of Cambridge (Cambridge: Cambridge University Press, 2002). Pois o atesmo ser sempre uma rejeio, negao ou recusa de uma forma particular de tesmo. Como veremos, isto mais do que apenas uma questo de nomenclatura e definio; as implicaes tm um alcance potencialmente muito maior. Pois h quem argumente que o atesmo moderno depende de uma forma de tesmo peculiarmente moderna e inovadora, que em muitos aspectos muito diferente do tesmo anteriormente prevalecente. Se isto for assim, levanta algumas questes importantes. Ser que a concepo de atesmo distintamente moderna que emergiu no incio do perodo moderno foi uma distoro to grande do tesmo pr-moderno que se tornou insusceptvel de ser objecto de crena e tornou o atesmo inevitvel? Alm disso, se este mesmo atesmo foi uma reaco contra esta forma especfica de tesmo, que implicaes tem este atesmo no que respeita a uma forma imoderna (pr-moderna) de tesmo, se que as tem? Estas so questes a que me dedicarei em muito maior profundidade posteriormente neste captulo. Mas primeiro preciso examinar o fenmeno do atesmo tal como surgiu na histria moderna.

1. O aparecer do atesmo na histria moderna

Se, como sugeri e comummente aceite, o atesmo e a modernidade tm mais do que uma relao de coincidncia, seria talvez de esperar que o atesmo se tivesse manifestado mais cedo. Na verdade, emerge explicitamente e sem disfarces relativamente tarde. Certamente que o prprio termo surge no preciso momento em que os filsofos e os historiadores da cultura situam o nascimento da modernidade. Michael J. Buckley encontra o seu primeiro uso na Inglaterra no erudito de cultura grega Sir John Cheke, numa traduo de 1540 de Sobre a Superstio, de Plutarco, mas o atesmo aqui concebido como uma negao da interveno da providncia divina e no uma negao da existncia de Deus. Michael J. Buckley, At the Origins of Modern Atheism (New Haven: Yale University Press, 1987), pp. 910. De facto, neste perodo, tanto na Inglaterra como em Frana, o termo atesmo denotava habitualmente heresia e no uma negao sem rodeios do tesmo. medida que a Europa Ocidental fez a sua transio traumtica para a modernidade, contudo, o significado do termo transmutou-se muito rapidamente para algo que nos mais familiar. Michel de Certeau comenta que em Frana, no incio do sc. XVII, o atesmo tornou-se o centro no apenas de todo um corpo de literatura, mas tambm de medidas polticas, sentenas judiciais e precaues sociais contra os ateus: Os ateus que comearam por ocupar o centro da polmica eram os herticos de todas as igrejas, os crentes inconformistas e outros que tais. Mas rapidamente a controvrsia passou a centrar-se na existncia de Deus. Por volta de 1630, [s]urgem grupos de libertinos, eruditos e cpticos; desaparecero por volta de 1655 [] antes de reaparecerem por volta de 1680. O atesmo, de que nunca se falava um sculo antes, tornou-se um facto reconhecido. De Certeau, Possession at Loudun, p. 101. De Certeau comenta tambm que este fenmeno no se restringe aos letrados, encontrando-se antes em todos os nveis da sociedade.

Mas se h espritos em Inglaterra e em Frana, no incio da modernidade, que comeam a ser afectados e invadidos por dvidas, o termo atesmo usado mais maneira de acusao, um termo insultuoso. Como termo de autodefinio, uma declarao da nossa prpria crena (ou ausncia dela), no aparece at meados do sc. XVIII, quando a encontramos entre intelectuais parisienses, particularmente Denis Diderot, que largamente reconhecido como o primeiro filsofo ateu explcito e assumido. Como escreve Buckley, em muitos aspectos, Diderot o primeiro dos ateus, no apenas cronologicamente, mas tambm como primeiro e principal defensor e influncia. Buckley, Origins of Modern Atheism, p. 249. Diderot afirmava levar a fsica matemtica de Descartes e a mecnica universal de Newton s suas concluses lgicas. Libertou a primeira do que considerava a sua metafsica injustificada, e a ltima de uma nsia de apontar para l de si para princpios imecnicos. Ao faz-lo, apresentou a formulao inicial mas definitiva do atesmo: o princpio de tudo a natureza criadora, a matria na sua auto-actividade, produzindo eternamente toda a mudana e todo o desgnio. Ibid., p. 250. A importncia de Diderot repousa tambm no facto de no poder ser posto de parte por ser um esprito malevolente ou frvolo. Pelo contrrio, o atesmo de Diderot era uma consequncia da sua integridade intelectual e uma procura desinteressada da verdade. Alm disso, Diderot chegou s suas concluses ateias levando mais longe e intensificando as ideias sagazes de Descartes e Newton os prprios pensadores de que os cristos dependiam enquanto defensores modernos da f.

Mas o reconhecimento explcito do atesmo, por parte de Diderot, propagou-se lentamente. As conotaes negativas da palavra usada como termo insultuoso persistiam ainda em pleno sc. XIX, e vieram a associar-se cada vez mais com a imoralidade e o desregramento, dois dos grandes medos da mentalidade daquele sculo. Isto levou quem no se sentia capaz de subscrever o tesmo ortodoxo a introduzir termos novos para se definirem a si mesmos, que lhes permitissem no ser contaminados pelo estigma do atesmo. George Jacob Holyoke, por exemplo, preferia descrever-se como secularista, sendo a sua preocupao principal a necessidade de evitar ser considerado moralmente suspeito. Ibid., p. 10. Mas houve tambm outros factores na procura intesta de um novo termo. Thomas Huxley, por exemplo, no gostava de atesmo por ser demasiado dogmtico; afirmava algo de definitivo sobre a inexistncia de Deus, a favor da qual Huxley pensava haver poucos indcios. Alm disso, parece que se associava cada vez mais o atesmo com a poltica revolucionria de extrema-esquerda, o que manchava ainda mais o termo na sociedade requintada. Adrian Desmond, Huxley: The Devils Disciple (Londres: Michael Joseph, 1994), p. 373: O servio cientfico pblico de Huxley precisava da sua prpria bandeira de brocado. O atesmo estava fora de questo, por no haver qualquer refutao de Deus; e em qualquer caso era uma bandeira vermelha republicana, uma arma poltica para esmagar a base espiritual do privilgio. Estas preocupaes conduziram Huxley e os seus companheiros a introduzir um novo termo, agnosticismo, sugerindo que o termo no representava um novo credo, mas um desconhecimento metafsico. Ibid., pp. 374375. Daqui em diante, o agnosticismo iria rivalizar com o atesmo como disposio intelectual alternativa para quem se sentia incapaz de professar uma crena no tesmo. Na verdade, Adrian Desmond chega at a afirmar que medida que o eixo social mudou no final do perodo vitoriano, o agnosticismo ia-se tornando a nova f do Ocidente. Adrian Desmond sugere que o novo termo tinha muitas vantagens: Mudou a nfase para o mtodo cientfico e para as suas limitaes sensuais [] Ele apresentava o agnosticismo no como um credo rival, mas como um mtodo de inves