MIANG - FONG

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Miang-Fong M I A N G - F O N G M I A N G - F O N G RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPIRITUAL POR CHARLOTTE VON TROELTSCH E SUSANNE SCHWARTZKOPF Um relato sobre a vida do grande Portador da Verdade, que libertou o Tibete das trevas.

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Miang-Fong

M I A N G - F O N G

M I A N G - F O N G

RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPIRITUAL

POR

CHARLOTTE VON TROELTSCH

E

SUSANNE SCHWARTZKOPF

Um relato

sobre a vida

do grande Portador da Verdade,

que libertou o Tibete das trevas.

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M i a n g - F o n g

Relato sobre a vida do grande Portador da Verdade,

que libertou o Tibete das trevas.

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Cumes de montanhas acidentadas, escarpadas, elevando-se altos contra o céu,

pairavam imóveis sobre um vale na região montanhosa, que se estendia indolentemente

entre as rochas. Neve eterna cobria os cumes, precipícios e fendas, transformando-se em

gelo verde-azulado, invulnerável à claridade ofuscante do sol.

Num dos lados do altiplano estavam deitados, recostados nas paredes rochosas,

dois vultos enormes, como se eles próprios fossem parte dessas rochas. Prazeirosamente

esticavam-se no calor do sol e olhavam ora para o céu azul escuro, ora deixavam

deslizar seus olhares sobre o movimento da alegre atividade ao seu redor e, sim, até por

cima deles.

Um rebanho de cabras montanhesas pastava em ambos os lados de um alegre

riacho borbulhante, pastoreado por um menino magro e alto que, sem cessar, tinha que

pular ora para cá, ora para o outro lado, para impedir que animais muito destemidos se

embrenhassem nas escarpas.

No seu zelo não deu atenção aos dois gigantes até que tropeçasse e caísse na mão

aberta de um deles, estendida no solo aquecido. Este o segurou e o sacudiu levemente.

“Não podes prestar atenção ao teu redor, anão?” exclamou ele com uma risada, que

provocou um eco ao redor, como se um trovão rimbombasse.

“Solta-me,” gritou o pequeno, defendendo-se com todas as forças. “Solta-me,

senão a Fu-Fu cairá lá adiante sobre as rochas.”

“E isso seria tão grave assim?” quis saber o gigante. Nisso, porém, ele afrouxou seu

punho de modo que o pequeno prisioneiro pudesse escapar.

Como um raio o menino chegou ao local perigoso ali adiante. Porém, o gigante foi

mais rápido. Erguendo-se um pouco, tinha estendido o comprido braço e segurado a

cabra. Agora estava suspensa sobre a cabeça de seu pequeno pastor, e novamente a

risada do gigante provocou eco na redondeza.

“Ponha imediatamente a Fu–Fu novamente no chão!” exigiu o menino, que se

voltou e veio correndo ofegantemente. Porém, o que ele poderia empreender contra o

gigante risonho?

Aí obteve ajuda inesperada. O segundo gigante despertou de sua sonolência e

imediatamente dirigiu-se categoricamente ao seu companheiro.

“Devolva a cabra ao menino, ele não merece que tu o atormentes, Uru.”

Imediatamente este colocou o animal no chão, que correu com altos saltos para

junto do seu pequeno dono.

“Fu-Fu, malvada,” repreendeu este, abraçando-a quase carinhosamente. “Que

imprudente és sempre!”

E ele apressou-se para, com a cabra resgatada, juntar-se ao rebanho que pastava

alegremente.

Aí lembrou-se de algo importante. Ele voltou-se, olhou para os dois gigantes que o

observavam e exclamou:

“Agradeço-te, ó grande!”

“A quem te referes, anão?” perguntou seu alegre atormentador.

“Ambos somos grandes.”

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“Grande é aquele, que é justo,” foi a resposta inesperada.

O menino queria retirar-se, quando soou a voz poderosa de seu auxiliador:

“Tu me agradas. Venha para cá com os teus protegidos agitados e vamos conversar.

Uru só estava brincando. Ele não pode te fazer mal.”

Prontamente o menino assobiou, reunindo seus animais, bem observando que nas

proximidades dos dois homens gigantes a grama e as ervas cresciam abundantemente.

“O que chamas de justo?” perguntou o gigante, assim que o pequeno pastor estava

sentado comodamente sobre uma de suas pernas, espreitando ao seu redor.

“Justo é, quando a gente sabe bem no seu íntimo, o que deve fazer para viver em

equilíbrio com tudo.”

“Isto eu não entendo,” resmungou Uru, enquanto seu companheiro indagou:

“Quem te disse isso?” “Meu pai.”

“Então chame o teu pai, para que ele nos esclareça isso,” exigiu o gigante. “Isso eu

não posso. Ele não está mais aqui,” foi a resposta do menino. Foi acompanhada de um

suspiro.

“Com quem estás vivendo? A quem pertencem os animais?” quis saber o gigante.

“Agora eles pertencem a Wun, com quem eu também moro. Ele me bate, quando

alguma coisa acontece a uma das cabras.”

“Ele é o teu avô?”

“Eu não sei. Mas o sol quer partir, eu tenho que voltar para casa.” Levantou-se

rapidamente, assobiando chamou os seus animais e, numa trilha estreita, correu com

eles morro abaixo.

Uru levantou-se, seguindo-o com os olhos encosta abaixo.

“Lá embaixo há alguns montículos de toupeira, lá provavelmente seja a morada do

anão,” observou ele.

“É uma criança abençoada. Não o vês? Tu não deves fazer mal a ele,” advertiu seu

companheiro.

No outro dia, novamente o pastor e seu rebanho subiam céleres por sobre os

rochedos. A princípio, o menino queria dirigir seus passos em outra direção, porém

alguma voz dentro dele falou, que isso seria covardia. Também, nunca antes encontrou

os gigantes. Era bem possível que estes tenham ido embora.

Mas não! Lá estavam deitados e olhavam em sua direção. Repetidas vezes teve que

olhar para eles durante a sua escalada. Como essas figuras gigantescas combinavam

com o ambiente montanhoso! Dava a impressão que eles faziam parte dessas escarpas e

píncaros acidentados. Pareciam selvagens e sinistros, enquanto se contemplava somente

seus corpos enormes. Erguendo, porém, os olhos até suas cabeças, então todo o medo

desaparecia. O menino não compreendeu por que tinha sentido medo no dia anterior.

Hoje pareciam-lhe bons e alegres.

Dirigiu-se a eles com saudação sonora, e uma risada trovejante ecoou ao seu

encontro.

“Senta-te perto de nós, anão, “chamou Uru. “Dos teus animais eu vou cuidar bem.”

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Mas somente depois que as cabras céleres começaram a pastar, acompanhadas de

muitas recomendações e carinhos do menino para que ficassem atentas, o pequeno

pastor atendeu ao convite. Um pouco receoso subiu na perna, estendida

hospitaleiramente, e olhou ao redor. O local elevado ofereceu-lhe uma visão mais

ampla, não só sobre as suas protegidas que pastavam espalhadas, mas também por entre

as montanhas.

O que ali viu, paralizou sua respiração. Seria possível que ali estivessem deitados

mais gigantes ainda? Por todo lado ele parecia encontrá-los.

Como se o gigante até então calado, que seu companheiro chamava de Muru,

tivesse compreendido os seus pensamentos, este perguntou:

“Por que te admiras, menino? Não sabias que nós somos em número maior que os

cumes das montanhas?”

“Quando é que vocês chegaram?” retrucou o menino. Uru riu alegremente, Muru,

porém, respondeu sério: “Nós nunca viemos. Nós sempre existimos, desde que as

montahas se encontram aqui.”

“Mas eu nunca vos tinha visto antes,” refletiu o pastor. “Como isso pode ser

possível?”

“A maior parte tu ainda não percebeste, anão,” exclamou Uru impetuosamente. “Os

teus olhos estavam cegos como os dos animaizinhos jovens. Eles se abrem somente aos

poucos”

“Então Wun, o velho lá embaixo, também ainda tem olhos cegos. Ele repreendeu-

me, quando o perguntei a respeito de vocês e disse que eu tinha inventado um conto.

Como se fosse possível inventar figuras desse tipo!” acrescentou o pequeno sorrindo.

“Tu não deves perguntar aos homens quando queres saber de nós.”

“Então eu pergunto a vós, ó grandes.”

“Isto está certo” elogiou Muru sério. “Também, terás resposta. Antes, porém, deves

relatar sobre ti. Como é que te chamam, e o que tu vivenciaste?”

“Wun me chama de Miang e, antes dele, o meu pai assim me chamava. Nós

moramos lá embaixo, desde que eu me lembre. Meu pai, a quem chamavam de o líder,

era maior e mais bonito que os outros. Um dia, ele saiu para espantar as grandes aves

que roubavam as nossas cabras. Então, os homens voltaram sem ele e disseram que a

montanha o tinha retido. Desde então, eu vivo com Wun, que mudou-se para a

choupana de meu pai, que é maior e mais bonita que a dele. Quando eu não obedeço, ele

me bate.”

“Então não gostas de estar com ele?” quis saber Muru.

“Não. Nada mais é bonito desde que meu pai desapareceu.”

“E tua mãe?”

“Eu não sei de nenhuma. Talvez eu não tive nenhuma,” pensativamente o disse o

menino. “Isso é tudo que posso lhes contar,” concluiu. “Agora devem me contar de

vocês.” Muru, porém, começou seu relato com uma pergunta:” Quem confeccionou a

tua sacola, na qual trazes o teu alimento para cá?”

“Eu próprio,” foi a resposta alegre do menino.

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“E quem confeccionou a tua roupa?” E Muru apontou para a peça composta de

peles, que cobria as costas e coxas.

“Nisso Wun me ajudou, antigamente meu pai o fazia.”

“E quem te criou?”

“A mim?” espantou-se Miang. “Eu estou aqui, desde que posso me lembrar.”

“Isso não é muito tempo, anão,” arquejou Uru, enquanto Muru indagou: “E onde

estavas anteriormente?”

Essa pergunta foi além da compreensão de Miang. Feliz que tinha chegado a hora

de levar o rebanho até a fonte, ele se esquivou. Porém, enquanto deixava os animais

beberem e os reunia depois para a volta ao local de pastagem, ele raciocinou. Aquilo,

que finalmente decifrou, comunicou-o a Muru:

“Eu devo ter vindo, como as pequenas cabras, de uma velha.”

“Bem pensado,” elogiou o gigante. “E a mulher veio de uma outra, e assim

retrocede até a primeira. Esta, porém, foi criada.” Muru disse-o com ênfase.

“Isso deve ter feito um Grande,” refletiu Miang, que havia se encostado na perna

do gigante, para poder olhar-lhe no rosto. Com agrado o gigante olhou para o pequeno.

Um brilho havia nas feições inquisidoras.

“Sim, menino, aquele que criou a primeira mulher é o Maior em todo o mundo.

Tudo, o que podes ver, Ele o fez. Também a nós. Muito antes de haverem seres

humanos Ele nos chamou e nos designou guardas das montanhas. Nós somos como uma

parte desse mundo de pedras.”

Ele calou-se. Tinha dificuldade de expressar tudo isso em palavras. No menino,

porém, foi despertada uma grande curiosidade, ele queria saber mais.

“O que aconteceria, se vocês vos afastassem para bem longe desta montanha?”

“Então ela iria despedaçar-se e desmoronar aos poucos.”

“Vocês sempre estão deitados aqui? Isso não é enfadonho?”

Uru começou a rir.

“Anão, pensas por acaso que nós servimos com preguiça ao Altíssimo? Não,

quando vocês anões dormem, nós trabalhamos.”

“Nós melhoramos e construímos e alteramos por ordem superior,” recomeçou

Muru. “Nunca escutaste estrondos nas montanhas, quando as pedras rolam para baixo?”

Miang acenou com a cabeça. Como tudo isso era maravilhoso. Ele caiu em profunda

reflexão, e também os gigantes não disseram mais nada.

Quando o sol começou a declinar, o menino animou-se. Seu dever o chamava.

“Voltarei amanhã, ó gigantes” prometeu. Então deixou-os rapidamente com seu

bando travesso. E voltou todos os dias. Aos poucos formaram-se dentro dele

pensamentos e conceitos firmes. Os gigantes pouco podiam ajudá-lo nisso, porém, de

vez em quando, Muru direcionava com uma palavra o pensamento para um novo

caminho.

Existia um Altíssimo. Este criou tudo, tudo o que vivia, mas também todo o mais.

Isto estava tão firme na alma do menino, como se sempre o soubesse. Se, no entanto,

esse Altíssimo tinha criado tudo, então também tudo a Ele pertencia. Esta foi a segunda

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verdade, que luminosamente surgiu em Miang. Se tudo é Dele, eu também sou Sua

propriedade. E agora lhe veio o derradeiro, que tinha que reconhecer a seguir: sendo eu

Sua propriedade, então tenho que servi-Lo com todas as minhas forças.

“Escuta, Muru,” falou ele certo dia.

“Eu preciso procurar o Altíssimo, para saber como devo serví-Lo. Eu prefiro cuidar

de Suas cabras do que das de Wun, que as tirou de meu pai. Mas onde estão as cabras

Dele, e onde está Ele?”

“Isto não podemos dizer-te, Miang. Tu deves ir mundo afora para encontrar a

resposta.”

Isto era uma novidade que primeiramente tinha que ser examinada a fundo. Mas o

pensamento tinha algo atrativo: ir para longe da limitação destas montanhas, para ver o

que havia além! Encontrar o Altíssimo e entrar no serviço Dele!

Cada dia aumentava seu ardente desejo íntimo, até que Miang apresentou-se numa

manhã aos seus amigos com a decisão firme: “Hoje, quando eu retornar com as cabras,

então quero deixar tudo e ir até o Altíssimo. Eu tenho dito isso a Wun. Ele concordou,

só que – – se eu for, nunca mais poderei voltar. Mas isto eu também não quero.”

“Não será difícil para ti separar-te de tuas cabras?” perguntou Muru

insistentemente, mas surpreendeu-se quando o menino respondeu muito sério: “Isto não

importa quando se quer procurar o Altíssimo e encontrá-Lo.”

Mais tarde, quando ele, como já se acostumara, procurou seu lugar no joelho de

Uru, pediu: “Vocês podem me aconselhar qual o caminho a seguir, para alcançar o meu

alvo o mais rápido possível?”

“Nós podemos te ajudar até a próxima parada do teu caminho, Miang. Mais não

podemos fazer, mas isso deverá realizar-se.”

“Venha hoje à noite novamente para cá, então Uru te alcançará por sobre os vales

até o cume branco lá no outro lado. Com isso te é poupada penosa escalada e um muito

difícil caminho.”

Encontrarás lá, onde serás colocado sobre os pés, uma morada. Nela mora um sábio

muito velho, o qual está destinado para ser teu professor. Entretanto, depende

unicamente de ti, se ele irá aceitar-te. No caso das dificuldades nas montanhas podemos

te ajudar desta vez. Todas as demais tu mesmo tens que vencê-las.”

“Eu poderei fazer isso?” perguntou o menino receoso. A profunda seriedade de seu

amigo gigante abafou um pouco o radioso espírito empreendedor.

“Tu poderás fazê-lo, se nunca perderes de vista o teu alvo, de encontrar o

Altíssimo. Então terás ajuda nas tuas caminhadas.” De noite, Miang estava perante seus

amigos. Estava vestido como sempre. Nada além da sacola de merenda mais recheada

indicava preparativos para a grande caminhada.

“Não tens uma vestimenta melhor, anão?” perguntou Uru amigavelmente.

“Morrerás de frio, pois lá em cima é gelado.”

“Não, não tenho nada melhor,” disse o menino com leve aflição. “Eu pedi a Wun

para me dar uma pele de meu pai, mas ele escarneceu de mim.”

“Por um instante os gigantes se entreolharam, depois Muru acenou

afirmativamente.

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“Deita-te aqui por um curto espaço de tempo,” ordenou ele, “até chegar a hora de

levar-te embora. Durma, Miang, durma.”

Ao pronunciar essas palavras colocou carinhosamente a sua enorme mão sobre o

menino, que aconchegou-se confiantemente e logo adormeceu.

Em seguida, Uru soltou uma enorme massa de pedras e enviou-a com deslizamento

bem calculado até o vale. Com segurança ela alcançou os” montículos de toupeira”, os

quais até então foram a pátria de Miang. Muru, porém, tinha chamado. Um ente

minúsculo, nem da metade do tamanho do menino, encontrou-se à sua frente para

receber sua ordem.

Ele saiu, e não demorou muito, já tinha voltado. Cuidadosamente guiava ele a mais

bela das cabras, Fu-Fu, a travessa. Nas costas trazia uma trouxa com peles. Agora Muru

retirou a mão do rosto do menino e chamou-o.

“Miang, chegou a hora da tua peregrinação. Mas não deverás partir totalmente sem

bagagem. Leva a cabra e as peles como lembrança de teus amigos gigantes, mas

também como prova de como o Altíssimo cuida de todos que entram no serviço Dele.”

Miang, porém, que com grande alegria tinha cumprimentado Fu-Fu, da qual a

despedida lhe tinha parecido muito difícil, deixou a cabra e voltou-se subitamente para o

locutor.

“Muru, é verdade que o Altíssimo torna viável o meu caminho até Ele? Quer Ele

me aceitar como Seu servo, a mim, Miang, que nada de concreto sei Dele?”

E quando Muru acenou seriamente, brotou do menino impressionado:

“Ó Altíssimo, a quem eu sinto e pressinto, deixa-me encontrar o caminho até Ti,

para que eu Te sirva com todo o meu ser e Te agradeça pela Tua bondade não

merecida.”

A despedida foi curta. Uru segurou o menino, ergueu-se e esticou o enorme braço

para longe. Onde as pontas de seus dedos tocaram os rochedos, Miang foi amparado

pela mão de outro gigante.

Depois disso, encontrou-se entre gelo e neve num deserto de montanhas. Os picos

estranhos de rocha olhavam ameaçadoramente para ele, era muito frio.

Tremendo arrepiou-se e quase esqueceu de dirigir o seu agradecimento para o alto.

Aí já estava também Fu-Fu ao seu lado, igualmente tremendo de frio. Miang olhou para

o céu. O amanhecer não ia tardar.

“Espera só, Fu-Fu, até que apareça a roda de fogo, então aqueceremos e poderemos

reconhecer o nosso caminho,” consolou ele a sua companheira e, com isso, também a si

próprio. Encostados bem um no outro esperaram ambos o sol.

E ele veio. Dessa forma Miang ainda não o havia visto, em sua majestade e beleza.

Tudo parecia cor-de-rosa, dourado, até os picos de montanha ameaçadores perderam

todo o seu horror. Por longo tempo permaneceu o menino contemplando, e muitos

pensamentos acordaram no seu íntimo.

Nesse ínterim, Fu-Fu havia procurado por ervas escassas e matado sua fome. De

maneira provocadora colocou-se ao lado de seu pequeno senhor, para que este faça o

mesmo e beba. Então, porém, foi que Miang escutou nitidamente uma voz, dizendo:

“Está na hora de iniciares o caminho. Vá ao encontro da Luz, Miang.” Ao voltar-se

não percebeu ninguém que pudesse ter falado com ele. Mas as palavras ele as tinha

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escutado claramente, isso era suficiente. Dirigiu seus passos sobre neve, gelo e

pedregulho em direção ao sol. Ele encontrou um raio de sol, que se estendeu dourado

trêmulo sobre o deserto como uma fita estreita, e ele resolveu seguí-lo enquanto o

poderia avistar. Tinha que estar cuidadosamente atento aos seus passos. Não estava

acostumado a caminhar nessa altitude. Várias vezes Fu-Fu, que o rodeava celeremente,

o empurrava para longe de algum profundo precipício, no qual seguramente teria caído.

Mais de uma vez escorregou, mas

levantou-se rapidamente. Não deu importância à dor, todos os seus pensamentos

caminhavam em direção ao alvo: encontrar o Altíssimo.

Perto do local, no qual ele agora – encostado à cabra – descansou, encontrava-se

um homem de joelhos. Seu cabelo era de um branco prateado, sua figura curvada.

Segurava as mãos trêmulas apertadas contra o rosto e em voz alta fluíam as palavras de

sua prece:

“Ó Tu, Todo Poderoso! Deixa-me ainda vivenciar poder servir-Te conforme Tu o

prometeste. Teu servo ficou velho, e fraco o seu invólucro terreno. Os dias passam, sem

que o menino abençoado apareça. Não permita que me chamem desta Terra, antes que

eu tenha Te servido verdadeiramente!”

Levantou a cabeça espreitando: Passos aproximaram-se sobre o pedregulho.

“Ó Altissimo, é esta a resposta ao meu pedido?”

Levantou-se o mais rápido que podia e saíu para fora. Os raios do sol brilhavam

claramente, quase claros demais para os seus velhos olhos, acostumados à escuridão.

No meio desse esplendor caminhava um menino, acompanhado por uma cabra. O

sinal prometido! “Ele virá para ti no brilhar do sol, seu alimento, porém, ele trará

consigo, para que não sofram necessidades. Uma cabra célere será, de agora em diante,

a tua companheira.”

Sem percebê-lo, por quase não se destacar de sua morada encaixada nas rochas,

caminhava o menino confiantemente, olhando cuidadosamente para o chão. Levantou

uma vez o olhar para o céu, e todo o brilho do sol espalhava-se sobre o seu rosto.

De repente, a cabra parou e impediu seu companheiro de seguir viagem. Agora,

enfim, ele olhou ao seu redor e percebeu o velho.

Ele irrompeu numa exclamação de alegria. O eremita, entretanto, dominou- se. Ele

não podia dar expressão à sua alegria.

“Quem és tu, forasteiro, que vens a essa solidão a estorvar o sossego de minha

velhice?”

“Sou um menino, chamam-me de Miang. Venho de longe para que tu me fales do

Altíssimo, mestre. Eu quero servir-te, até que eu encontre o Todo Poderoso e possa ser

Seu servo. Peço aceitar a Fu-Fu e a mim com bondade e ensina-me, pois eu sou muito

ignorante.”

Agora estava bem diante do velho e inclinou suplicante sua cabeça. Por um breve

instante a mão direita do ancião pousou sobre a cabeça do menino. Como este era jovem

e pequeno!

“Então entra, Miang. Apertado e escuro está aqui, moro na pobreza, mas posso te

falar do Altíssimo.”

“Fu-Fu também pode se esquentar aqui dentro? Estamos com frio.”

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Estremecendo disse-o o menino, quando entrou na moradia que parecia uma

caverna, da qual emanava calor.

“Ela pode entrar,” concedeu o ancião.

Pouco depois, o mestre e seu hóspede estavam sentados sobre uma cama feita de

peles empilhadas, aos seus pés estava deitada a cabra. O ancião buscou um pão duro e

um cântaro de água quase vazio. Ofereceu ao menino e preparava-se para comer.

Rapidamente Miang abriu sua sacola e colocou um pedaço de carne seca e um pão

mais macio diante do hospedeiro.

“Deixa-me comer o pão duro e pega este, mestre,” pediu ele, enquanto já ia se

servindo. “Tens ainda um outro vasilhame, para que possa dar-te leite de Fu-Fu? Ela

quer te agradecer pelo calor.”

Enquanto ainda perguntava, percebeu uma pequena vasilha, rapidamente a buscou

e encheu-a com o leite morno cheiroso. Avidamente bebia o ancião. Parecia que, com a

bebida não costumeira, uma nova vida corria pelos seus membros.

“Altíssimo, eu Te agradeço!” exclamou radiante. “E também a ti agradeço, menino.

Eu estava tão fraco antes que tu vieste. Este leite me reanimou extraordinariamente.”

“Não irá faltar-te, enquanto Fu-Fu viver,” garantiu Miang, acariciando a cabra.

A seguir, ele teve que relatar e grande foi o espanto do ancião, quando ouviu de

que maneira o menino tinha chegado até ele.

“Podes realmente enxergar os gigantes e conversar com eles?” perguntou.

Miang afirmou entusiasticamente e acrescentou: “Eles me falaram de ti. De que

outra forma poderia ter-te achado?”

“E o que queres fazer, quando tiver-te ensinado tudo o que eu mesmo sei?” O

ancião precisava ter a confirmação daquilo que para ele já tinha se tornado certeza.

“Quando tu tiveres me dito tudo o que necessito saber para encontrar o meu

caminho para o Altíssimo, então eu irei para junto Dele e servirei a Ele, mestre.”

“Então fique comigo.”

Não foi uma concessão alegre sem restrições. O eremita tinha vivido na solidão por

um tempo longo demais, ele não desejava mudar seus hábitos. Contudo, a chegada do

menino não era a realização de suas preces ardentes? Toda vez que se lembrava disso

nos meses seguintes, retomava seus ensinamentos calorosamente, os quais vez por outra

deixava cessar completamente.

Miang não se importava muito com isso. Quando seu mestre estava comunicativo,

absorvia o saber com alegre dedicação para, nos tempo taciturnos, repensá-lo e

retrabalhá-lo no seu íntimo. Perguntas que surgiam eventualmente, ele mesmo deveria

tentar resolvê-las ou deixá-las de lado, para mais tarde. O ancião não gostava de ser

importunado com isso. Ele dava da maneira como brotava dele.

Quando era interrompido em seus pensamentos, ele podia ficar aborrecido e o

silêncio tornava-se pesado. O melhor, nesse caso, era ficar longe dele.

Nesses períodos Miang empreendia caminhadas através das montanhas, à procura

de alimentos. O pão, trazido por pastores que vinham procurar ajuda, era muito escasso,

de modo que nem sempre era suficiente para as poucas necessidades do ancião. Então

Miang imitava sua Fu-Fu: alimentava-se de ervas. De vez em quando ele encontrava

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algum pastor, que procurava animais perdidos. A este podia auxiliar e recebia alguns

alimentos como agradecimento. O alimento era pouco mas, apesar disso, o pequeno se

desenvolvia, pois estava tão absorvido nos novos reconhecimentos, que não percebia

nenhuma escassez.

Assim passou longo espaço de tempo. Os dois eremitas perceberam isso pelo fato

de que Miang tinha que se curvar quando queria entrar na morada. Certo dia, o ancião

disse: “Nada mais posso ensinar-te, menino. Está na hora de procurar outros mestres.

Antes, porém, de deixar-me quero te dizer por que eu te aceitei. Eu sabia pouco sobre o

Altíssimo, quando uma séria fatalidade me empurrou para esta solidão. Mas de coração

eu O agradecia pelo abrigo e pedi a Ele que me mostrasse, como poderia serví-Lo. Aí

escutei uma voz: “Escuta o teu íntimo e aguarde!”

Isso eu fazia por longo, longo tempo. Cada vez mais claro tornava-se em mim o

reconhecimento do Todo Poderoso e de Seu atuar. No início, eu pensava que todo o

saber estava depositado em mim, que eu só precisaria cavar. Então percebi que, à minha

busca, sempre respondia uma voz auxiliadora. A ela devo tudo o que sei e também foi

ela que falou de ti. Quando em mim surgiu a certeza de que na inatividade não está o

verdadeiro servir ao Altíssimo, ela me anunciou a tua chegada. Que tu eras destinado

para ser o servo ativo do Todo Poderoso. Se eu te ensinasse e te mostrasse o caminho,

então o meu dever estaria cumprido. Eu reconhecer-te-ia pelo fato de teres uma cabra

como tua companheira. Também um outro sinal foi me indicado – este seria do tipo

espiritual. Tu vieste, com o sinal na testa, a cabra ao teu lado, e permaneceste comigo.

Esta noite, porém, a voz comunicou-me que chegou o dia de continuares a tua

caminhada. Então, ponha-te a caminho, Miang.”

Em momento nenhum ocorreu ao ouvinte de perguntar, para onde agora deveria

dirigir os seus passos. Seu Senhor Todo Poderoso, que o conduziu até aqui, continuaria

a ajudá-lo.

“Passe bem, mestre,” disse ele diligentemente. “Deixa-me agradecer-te por tudo o

que tens feito por mim. Ah, se pudesse demonstrar-te o meu agradecimento ainda

melhor do que somente com palavras!

“Deixe-me ficar com a cabra. Seu leite me faria falta.”

O ancião o disse rapidamente, sem se dar conta de que com isso tirava de Miang o

seu único amigo. Com a mesma rapidez o menino efetuou a separação. Ele acariciou

Fu-Fu, que, menos célere que antigamente, lhe ficou ainda mais querida na convivência

próxima. Em seguida, partiu.

Penosa foi sua caminhada por sobre pedregulho e escarpas. Certo é que,

entrementes, tinha se acostumado a essa escalada em região inóspita, mas eram sempre

somente trajetos curtos e com a certeza de que poderia voltar e chegar em casa. Agora

peregrinava ao encontro de um destino por ele desconhecido.

Mas por nenhum instante perdeu a alegre confiança de que o Todo Poderoso, que

até agora o tinha ajudado, continuaria a dirigir seus passos.

Certa vez, teve que descansar. Respirando fundo, olhava ao redor. Percebeu aí um

gigante, rente a uma rocha íngreme. Quantas vezes tinha passado por aqui e nunca o

tinha visto. Sem receio foi ao encontro do gigante que estava meio reclinado e

cumprimentou-o. Sua contemplação não fez surgir medo, somente alegre confiança.

“Então,” foi a resposta do gigante, “finalmente os teus olhos se abriram? Inúmeras

vezes passaste por cima de mim e eu poderia ter te segurado.”

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“Então tu sempre estavas aqui como Uru e Muru, e eu não pude te enxergar!”

exclamou Miang entusiasmado.

O gigante o interrompeu:” O que sabes de meus irmãos lá do outro lado? “

“Ah, esses eu conheço bem. Eles foram muito amáveis comigo. Eles me ajudaram

mostrando o caminho que eu devia percorrer. Tu também irás me ajudar, se o Todo

Poderoso assim o quiser?” acrescentou confiantemente.

“Aí não há dúvida. O que o Todo Poderoso quer, isso acontece! Poderá ser bem

provável que eu deva auxiliar-te, ainda não o sei. Eu espero por um menino com uma

cabra.”

Aí Miang reconheceu cheio de felicidade a atuação de seu Senhor.

“Esse sou eu!” exclamou em voz alta.

“O menino eu vejo. Onde está a cabra?”

“Ela ficou com o mestre.”

“Isso eu não compreendo. Conte-me!”

E Miang contou ao ouvinte atento o que a sua curta vida lhe proporcionou até

agora.

“Então tu queres servir ao Altíssimo?” perguntou o gigante seriamente, e quando

Miang confirmava animadamente, ele continuou:

“Eu tenho a incumbência de ajudar-te na tua próxima caminhada. Por hoje, porém,

está muito tarde. Fique comigo. Quando o disco de fogo, que agora se despede de nós,

novamente nos cumprimentar, eu irei te acordar.”

Confiantemente o menino recostou-se nos enormes membros, sob cuja proteção

mal percebeu o vento sensivelmente frio da noite.

“Queres me dizer o que tu sabes do Todo Poderoso?” pediu ele, recebeu, porém, a

resposta inesperada: “Para isso não tenho autorização.”

Quando o gigante notou a decepção de seu companheiro, continuou: “Lembra-te:

quem te contou de nosso Senhor Todo Poderoso: Uru ou Muru?”

“Muru,” exclamou Miang, sem pensar.

“Este era o seu dever. Uru somente devia facilitar a caminhada. Eu, porém, sou

como Uru. Os dons mais elevados me são negados. Creia-me, no reino de nosso Senhor,

tudo está ordenado da maneira mais perfeita. Cada um se encontra exatamente no lugar

que pode preencher. Para mais além ele não deve aspirar. Ele iria negligenciar os seus

deveres.”

Perplexo, o menino refletiu sobre essas palavras, até que adormeceu e se encontrou

sonhando, como lhe parecia.

“Como eu poderei servir-Te?” ouviu-se perguntar. E ouviu imediatamente a

resposta da voz clara, que já conhecia:

“Isto tu saberás quando a tua preparação estiver concluída, não antes. Agora te é

permitido continuar aprendendo. Amanhã serás conduzido a um outro mestre. Aproveita

o tempo com ele, que somente será curto.”

Na total consciência dessa ordem Miang acordou. Houve uma despedida rápida.

Então seu novo amigo o levantou muito cuidadosamente por sobre os picos de rochas e

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desfiladeiros e colocou-o sobre um cume de montanha mais baixa. Aqui não havia

pedregulho. Em toda parte brotava o verde. Mas antes que tivesse tempo suficiente para

olhar ao redor, sentiu-se novamente apanhado por uma mão, que se estendia para ele de

uma distância envolta por neblina. Desta vez seguiu em direção à origem da mão, e logo

Miang encontrou-se no meio da neblina, novamente bem no alto das escarpas. Parecia

que somente devia dar um rápido olhar para a beleza das áreas verdes.

Agora estava novamente diante de um gigante, cujos dedos ainda o seguravam

enquanto falava com ele. Parecia ser maior e mais rústico que os outros três. Nem

perguntou de onde veio e para onde iria, mas ordenou rudemente:” Para lá, é lá que

espera o teu mestre!”

O menino agradeceu e, quando os dedos enormes o soltaram lentamente,

prosseguiu na direção indicada. Sentia frio, apesar de ter confeccionado um traje dos

pelegos de seu pai, que cobria o seu corpo inteiro. No entanto, não precisou ir muito

longe e viu-se defronte de um desfiladeiro, que decaía verticalmente do lugar onde se

encontrava. Na borda desse desfiladeiro estava um homem de média idade que deixava

rolar pedras lá para baixo. Isso ocasionou o ruído inexplicável, que enchia o ar ao redor.

Agora parou e virou a cabeça.

“Tu, vem e me ajuda!” ordenou ele ao menino surpreso.

“Esta pedra é muito pesada.”

Miang aproximou-se de bom grado, e apesar de suas forças serem poucas e não

exercitadas, conseguiu empurrar o bloco de rocha para a profundeza, para a satisfação

do laborioso. Qual seria a finalidade disso? Miang gostaria ter perguntado, mas um

olhar para o rosto pouco amável de seu companheiro fê-lo calar. Trabalharam juntos,

sem falar, até que o sol se encontrasse alto no céu e as forças do menino ameaçavam

faltar.

Aparentemente com desprezo o homem olhou para ele.

“Está na hora que entres a meu serviço. Deves tornar-te um homem e não um

fracote.”

Com isso acenou para que Miang o seguisse. Eles se distanciaram do desfiladeiro e

entraram numa fenda estreita na rocha. Após poucos passos esta se alargava e lá

encontrou uma tenda feita de peles que, com o lado posterior, encostava na rocha. O

interior da tenda estava aquecido.

“O que tu me trazes?” queria saber o homem, ao entrar.

“Somente a mim mesmo,” retrucou Miang timidamente. Foi realmente pouco o que

ele trazia. Suspirou aliviadamente quando o homem lhe disse: “Então deves ganhar tu

mesmo o teu sustento. Eu não dou nada de graça.”

Ao proferir essas palavras, ditas em tom áspero, dirigiu-se ao fundo da tenda, de

onde voltou com alguns pães chatos e uma bebida de leite coalhado. Ordenou que

Miang sentasse num dos dois montes de peles. Então ofereceu-lhe pão e o jarro.

Vorazmente bebeu o menino extenuado, que desde o dia anterior não tinha se

alimentado e sentia falta do leite de Fu-Fu. Quando tinha colocado o jarro vazio no

chão, tentou comer do pão. Nesse momento sobreveio-lhe o cansaço, ele caíu sobre as

peles e adormeceu.

Sorrindo, o homem aparentemente tão duro olhou para o adormecido e,

involuntariamente, os seus pensamentos tornaram-se uma prece:

Page 14: MIANG -  FONG

“Todo Poderoso, eu Te agradeço por me julgares digno de preparar um de Teus

servos. Abençoado é este menino. Não permitas que eu venha a esquecer minha missão

de forjar dele um homem. Não me deixes amolecer!”

Primeiramente deixou o seu hóspede dormir e retornou sozinho ao seu trabalho,

cujo ruído interrompia o silêncio, sem incomodar Miang.

Passado longo espaço de tempo, acordou Miang, fortificado e reanimado. Olhou ao

seu redor. Ali estavam os pães. Também o jarro estava cheio novamente. Como o

homen era amável! Era para ele um sinal de que tinha sido aceito no seu destino

provisório. Comeu e bebeu cheio de gratidão, depois lembrou-se da instrução da voz:

“Aproveita o teu tempo, que será de curta duração.” Por isso, não deveria demorar-se

observando a tenda exótica, deveria voltar rapidamente ao trabalho, que o aproximaria

de seu novo mestre.

Encontrou-o justamente no momento em que tentava movimentar uma pesada

pedra até a borda do desfiladeiro. Rapidamente juntou-se ao trabalho e com estrondo o

pedaço de rocha caiu para o fundo. Involuntariamente Miang debruçou-se, para olhar

para baixo, no entanto, sentiu-se agarrado bruscamente e puxado para trás.

“Curiosidade aqui traz a morte!” exclamou o mestre com voz áspera. E já tinha

soltado uma nova pedra.

Sem proferir palavra nenhuma, Miang pôs as mãos à obra e eles trabalharam, até

que a escuridão os circundou. Só então retornaram para a tenda.

O menino gostou do calor que o acolheu, porém, ainda não era hora para deliciar-se

com ele. O homem, munido com diversos utensílios, saiu novamente da tenda e chamou

Miang para junto dele. Caminharam poucos passos. Sob um ressalto de uma rocha havia

pedras empilhadas, sobre as quais o homem acendeu um fogo.

“Preste bem atenção,” ordenou a Miang. “Amanhã este é o teu serviço”

E o menino admirou-se, como com enorme rapidez pedras eram batidas umas

contra as outras, até que centelhas caissem sobre os gravetos. Quando o fogo estava em

alegres chamas, foi colocada em cima uma armação com quatro pés e, sobre a mesma,

um vasilhame delgado trabalhado em pedra. Continha leite, mas também outros

ingredientes, pois agradáveis odores se espalharam quando a mistura esquentou.

Espontaneamente, o menino tinha cuidado do fogo, agora o homem lhe disse para

deixá-lo apagar-se. Nisso, levantou cuidadosamente o vasilhame e levou-o para a tenda.

Estava fumegando: Miang nunca tinha visto uma coisa tão deliciosa.

“Venha,” foi o breve convite, com que o homem trouxe um pequeno vasilhame, no

qual despejou logo a metade do mingau. Depois, porém, ergueu-se, levantou as mãos e

disse:

“Todo Poderoso, nós Te agradecemos pelo alimento.”

Foram somente poucas palavras e, mesmo assim, pareciam provocar algo

grandioso. Tinham transformado o homem deselegante e pouco amável. Em Miang

brotou uma grande confiança.

“Eu te agradeço, mestre,” disse ele comovido, quando este lhe alcançou o pão e o

mingau.

“Não tens nada a agradecer-me. Esta refeição tu a ganhaste com o teu trabalho. Não

me chama de mestre, eu não o sou.”

Page 15: MIANG -  FONG

“Como é que digo então?”

“Eu me chamo Fong,” foi a breve resposta.

Calados comiam ambos a sua refeição. A seguir, Miang foi mandado para lavar os

poucos utensílios num regato de água cristalina, gelada, que corria perto da tenda por

sobre as rochas.

“Durma,” disse depois.

Com saudade lembrou-se o menino da prece conjunta à noite, que para ele tornou-

se um costume. Parecia que devia rezar sozinho. Será que alguma vez ouviria de Fong

algo sobre o Todo Poderoso?

Então seguiram dias com muito trabalho. Miang aprendeu a conhecer a obrigação

do trabalho regular, e não era de seu agrado. No seu íntimo revoltou-se mais de uma vez

contra isso. Se ao menos soubesse, por que ambos, sob esforço máximo, deixavam rolar

as pedras para o abismo! Julgava que então lhe seria menos penoso.

Os dias passavam sem alegria. Fong falava somente o absolutamente necessário.

Nenhuma palavra de estímulo se fez ouvir. Nenhum gigante estava por perto.

Houve dias, nos quais o menino quase desanimou com o pensamento de que

pudesse estar no caminho errado. Ele realmente estava, mas de modo diferente do que

pensava. Enquanto ele pensava estar abandonado por tudo que o pudesse levar até o

Altíssimo, estava a ponto de abandonar o seu Senhor, porque não compreendia o

caminho Dele.

Tristemente pairavam os olhos de Fong sobre ele, quando gemia em sono inquieto.

Teria ajudado de bom grado, mas Miang deveria ele mesmo passar pela dura vivência.

Não se podia dar a ele ao menos uma indicação? Fong pediu fervorosamente por esta

alma que lhe foi confiada. Então veio resposta, o que devia fazer.

De manhã, quando o menino aprontava-se para ir ao trabalho, Fong virou-se e disse

asperamente: “Sem alegria fazes o teu trabalho. Desista, até que mudes de opinião.”

Miang olhou perplexo para Fong.

“Devo prosseguir a caminhada? Não me queres mais ao teu lado?”

“Tu ficas aqui, até o Altíssimo nos mandar novas ordens,” foi a resposta, que

pouca coragem deu ao menino para continuar a conversa. Não obstante, aprumou-se e

perguntou: “O que devo fazer, se não ajudar a ti com as pedras?”

“Nada.”

Isso era conclusivo. Com barulho de trovão foram lançados no penhasco diversas

pedras em seqüência rápida. Qualquer possibilidade de entender uma palavra estava

cortada.

Por alguns momentos Miang parou indeciso. Não podia entender que estava livre

para poder fazer o que bem entendesse. Em seguida olhou ao redor. Nunca tivera tempo

para fazê-lo. Inóspitas, as rochas miravam de alturas vertiginosas para baixo, fincadas

até as profundezas na neve e gelo. O esplendor do sol pairava luminoso sobre as

mesmas, mas seus raios mostravam ainda mais nitidamente quão acidentadas e rasgadas

elas eram.

Vagarosamente dirigiu-se Miang até um ressalto da rocha, que logo adiante

impedia a visão. Não havia um ser vivo em parte alguma. Se ao menos Fu-Fu estivesse

junto dele! Com esforço infinito alcançou o alvo que havia fixado, ele escalou as

Page 16: MIANG -  FONG

encostas desse ressalto de rocha e obteve, então, uma visão ampla desimpedida.

Montanhas elevaram-se atrás de montanhas, entre elas havia profundos precipícios.

Também ao lado do ressalto, onde se encontrava, abria-se rente um precipício profundo.

O menino teve que desviar-se e fechar os olhos, teve vertigens. Sentou-se e apertou as

mãos contra o rosto. “Todo Poderoso,” gemeu ele e, novamente, “Todo Poderoso.”

Quando pronunciou a palavra sagrada pela segunda vez, emocionou-se. Como o

Altíssimo, que tudo isso criou, devia ser sublime, muito além do nosso entendimento!

Onde poderia morar, onde podia ser encontrado? Pois Miang queria procurá-Lo. Estava

ele no caminho certo até Ele? Não havia perda de tempo inútil com o trabalho pesado

em silêncio?

Sempre de novo os pensamentos voltavam-se para essas duas questões. Não estava

acostumado a encontrar respostas sem qualquer ajuda, mas as perguntas não o largavam,

pois precisavam ser solucionadas.

Ele repensou sua vida até agora: nitidamente palpável foi a condução do seu mais

alto Senhor durante os últimos anos. De modo maravilhoso tinha avançado, também

para aqui.

Também para aqui! A respiração do ser humano, que estava lutando por clareza,

parou, um fino véu caiu! A vontade do Altíssimo também o mandou para cá, isto ele

acreditava firmemente. Como podia desanimar-se a tal ponto?

Com isso também estava solucionada, como lhe parecia, a segunda pergunta. Se

estava aqui por vontade do Altíssimo, então o tempo não poderia ser inútil.

Respirou aliviado. Olhou ao seu redor e percebeu que o sol estava declinando.

Devia apressar-se na volta, se não queria perder a hora de seu compromisso de preparar

a refeição noturna. Mas a descida era bem mais dificultosa que a subida. Estava quase

completamente escuro quando chegou ao local do fogão, onde o fogo já havia se

apagado.

Entrou rapidamente na tenda, onde Fong parecia estar dormindo sobre o seu monte

de peles. Por longo tempo parou, indeciso, depois procurou o seu leito e caiu logo no

sono, apesar de sua fome de roer. Dormiu um sono profundo. Quando, na manhã

seguinte, abriu os olhos, a tenda estava iluminada pelos raios do sol. Ao seu lado, no

chão, estava a sua refeição. Estava sozinho. Pela primeira vez Fong não o havia

chamado. Apressadamente engoliu o pão e o mingau. Quando a primeira fome forte

estava saciada, parecia-lhe ouvir repentinamente a voz de Fong, que naquela vez tinha

dito, que deveria ganhar seu sustento trabalhando. Ontem não tinha feito nada. Hoje

perdeu a hora!

De fora chegou até ele o barulho de enorme trabalho, pedra por pedra rolava para a

profundeza. Miang não se reteve mais. Rapidamente juntou-se ao trabalhador e queria

ajudar. Fong interrompeu seu trabalho somente para dizer: “O trabalho te parece sem

utilidade e sentido. Tu estás livre!”

Novamente estava despedido. Porém, se ontem, após o primeiro espanto, havia

sentido um leve sentimento de alívio, hoje sentia somente tristeza. Fong havia sentido

os seus pensamentos! Fong rejeitava-o. Tinha sido um ajudante descontente e devia ter

sido um agradecido. Envergonhado caminhou riacho acima. Queria ficar nas

proximidades para poder chegar a tempo em casa, mas Fong não deveria poder vê-lo.

O murmurar da água, que alegremente saltitava para o vale, mal sobrepôs-se ao

barulho enorme das pedras. Miang jogou-se sobre o pedregulho e suplicou ao Altissimo

Page 17: MIANG -  FONG

por ajuda, força e iluminação. Dessa forma nunca havia invocado o seu desconhecido

Senhor. Nunca tinha estado tão profundamente convicto, de que seu pedido seria ouvido

e atendido.

Nesse instante caiu novamente uma venda. Depois de ter rezado: “Eu sou o Teu

servo, Altíssimo, mesmo se ainda não conheço o meu serviço, nem sei tampouco, como

e com que posso servir-Te,” veio-lhe a certeza de que também Fong era um servo do

Altíssimo. A mando de seu Senhor ele executava o seu trabalho dia após dia. Contudo,

Miang também foi trazido até ele a Seu mando. Portanto, ele deveria ter considerado

imediatamente essa inútil movimentação de pedras como servir. Em vez disso, tinha

reclamado em seu íntimo. Não era de se admirar que Fong não mais o considerasse

digno de ajudar.

O menino caiu em ardente pranto. Não chorava facilmente, apesar de ser tão jovem

e sensível, mas estas lágrimas provinham de amarga vergonha e arrependimento e

trouxeram consigo sua benção. Quando esgotaram-se, havia surgido algo novo na alma

de Miang, a firme vontade de reparar seu erro. Daqui por diante queria assumir o

trabalho, por mais pesado, sem reclamar, sem questionar.

Perpassou-lhe: Não residia uma parte de sua culpa no constante questionamento

pelo porquê do trabalho? Por acaso, as suas cabras alguma vez perguntaram, por que os

chamava das mais suculentas ervas, para empenhar-se em outro caminho? O que o seu

Senhor deveria pensar de seu futuro servo, que a cada ordem queria antes saber o

motivo? Oh, como estava envergonhado!

Novamente corriam as lágrimas mal acalmadas e lavaram de sua alma o último

vestígio de presunção.

“Quem sou eu, Senhor, que me atrevo cismar a respeito de Tuas ordens?”

Em voz alta o tinha exclamado e não se admirou, quando recebeu resposta:

“És um pequeno homem insensato!” falou uma vozinha clara.

Ele se virou. Sobre uma pedra redonda na água estava sentada uma pequena figura

feminina. Fluentes como a água era seu vestido e seus cabelos. Parecia, às vezes, como

que se dissolvesse na correnteza. Miang olhou admirado para a graciosa criatura. Nunca

em sua vida havia visto algo tão bonito.

“Quem és tu?” perguntou receoso.

“Eu sou a vida dessa água, cada córrego, cada rio tem a sua. Eu pertenço a esta

água, e ela me pertence.”

O menino refletiu sobre a resposta

“Então tu também és uma serva do Altíssimo?” queria saber.

A ente confirmou e riu: “Eu sou o que tu queres ser.”

“Tu percebeste tudo o que eu disse e o que pensei?” indagou Miang.

“Isso não foi difícil saber,” sorriu a ente. “Esperamos todos os dias para que os teus

olhos se abrissem. Tu, porém, precisavas primeiro conhecer-te a ti mesmo, antes que

pudesses ver-nos. Olha ao teu redor!”

E o braço branco como a neve indicou ao redor. Aí Miang viu gigantes deitados, os

quais levantaram as cabeças e acenaram para ele. Mas ele viu ainda mais: em toda parte

movimentavam-se pequenos vultos céleres, trabalhando com afinco.

Page 18: MIANG -  FONG

Júbilo preencheu o há pouco ainda desanimado. Ele não mais estava sozinho.

Sentiu-se incorporado ao grande número dos servos. Levantou-se rapidamente.

“Fique ainda,” pediu a ente.

“Querida ente, eu tenho que ir trabalhar,” afirmou Miang cordialmente.

“Qual é o teu trabalho?”

“Até agora tive que ajudar a soltar pedras e despachá-las para a profundeza,”

Miang quase não se permitia mais tempo para responder a pergunta.

“Que estranho,” disse lentamente a ente encantadora.

“Os gigantes não poderiam fazer isso bem melhor?”

O questionado não pensou nem um instante.

“Bem possível, mas o Altíssimo nos encarregou desse trabalho, então deve ser

necessário que nós o façamos.”

“Então vá ao teu trabalho,” sorriu a graciosa. “E quando te for permitido um

descanso, visite-me e conte-me sobre isso.”

“Vida, eu te agradeço,” exclamou o menino ao distanciar-se aos saltos. Ao seu lado

andavam com passos pequenos duas figurinhas cinzentas como pedra. Confiantemente

olharam para ele, que se sentia grosseiro e enorme ao lado deles.

“Acordaste finalmente, tu meio servo?” perguntou um deles, que portava uma

comprida barba encanecida. “Sabes tu agora algo do que significa servir?”

“Eu ainda sei muito pouco, mas eu o aprenderei.” retrucou Miang confiantemente.

Ele tinha alcançado Fong, que parecia desempenhar tranqüilamente o seu pesado

trabalho. Sem perguntar, Miang começou a trabalhar resolutamente. Ele sabia que não

mais seria mandado embora.

Os dois trabalharam silenciosamente, até o pôr do sol. Se Miang tinha esperado por

alguma palavra de Fong, então estava muito enganado. Seu mestre tinha ficado ainda

mais calado e isso, também, não mudou nos próximos dias. Miang, por sua vez, não

teve coragem para dirigir-se ao calado. Também, o que poderia ter dito? Daquilo que se

passava no seu íntimo, o homem parecia não querer saber nada. De outro assunto o

menino não sabia falar. Mas isso não o afetava mais.

Desde que parou de resmungar sobre a finalidade do trabalho que lhe parecia tão

inútil, concentrou toda a sua atenção sobre o mesmo. Ele viu, cheio de admiração, como

as grandes e pequenas pedras estavam encaixadas no solo. Observou as formas e

descobriu, então, que geralmente possuíam cores completamente diferentes. Algumas

eram brilhantes e reluzentes quando o sol incidia sobre elas, outras brilhavam do seu

interior em vermelho profundo ou azul saturado.

Como isso era belo! Com entusiasmo renovado ele cavou, empurrou, puxou e

arremessou. Somente lamentava que toda essa beleza devia implacavelmente cair no

abismo.

De um dia para outro ele começou a sentir satisfação no trabalho, principalmente

quando pôde observar como as forças de seu corpo aumentavam. Leve ficou para ele o

que antes lhe parecia tão difícil. Um dia, na alegria sobre essa descoberta, afastou

rapidamente as mão de Fong para o lado, quando este quis apanhar um grande e pesado

bloco. Sozinho o tirou do solo, rolou-o até o abismo e deixou-o cair com estrondo.

Page 19: MIANG -  FONG

Aí Fong afastou-se do penhasco. Assustado, Miang virou-se e olhou para ele.

Estava o homem aborrecido pela sua autosuficiência?

Um olhar para as feições de Fong acalmaram-no, e mais, encheram-no de surpresa.

Havia um brilho de grande alegria nelas.

“Nós podemos parar de trabalhar, Miang,” ouviu a voz do homem. Também esta

estava totalmente transformada, muito mais suave do que antes. “O começo daquilo que

tu deverias aprender, está terminado. Vamos agradecer ao Altíssimo.”

Juntos caminharam até o ressalto de rocha, no qual Miang, há pouco tempo, tinha

passado o seu primeiro dia solitário. A subida, hoje, não lhe parecia mais difícil. Com o

coração aliviado caminhava atrás de seu companheiro, olhando alegremente ao redor.

Também a paisagem parecia mudada. Certamente os píncaros rochosos estendiam-

se até o céu, profundos desfiladeiros encontravam-se entre eles, mas a luz do sol

dourado iluminava tudo isso e, para onde dirigia seu olhar, encontrava a mais animada

vida. Como a um velho conhecido os gigantes acenavam para o menino feliz.

Alegremente cercavam-no as pequenas figuras dos homemzinhos cinzentos.

Chegando no topo, Fong levantou os braços para o céu e pronunciou uma curta e

fervorosa prece de gratidão, por ter o Todo Poderoso feito com que esta primeira parte

da formação tivesse tanto êxito.

Depois os dois sentaram no mesmo lugar, onde o menino tinha enfrentado sua

primeira e solitária luta consigo mesmo. E veja: Fong, o silencioso, começou a falar:

“Eu me alegro por ti, Miang. Nestas semanas tens aprendido muito, mais do que tu

mesmo ainda podes pressentir. Em força e habilidade tornaste-te um homem. Fazer isso

de ti era uma parte da minha missão recebida do Altíssimo. Certamente deves servir

futuramente ao nosso elevado Senhor com o espírito, porém, para a vida que deverás

levar, necessitas de um corpo bem treinado. Primeiramente este deveria ser

desenvolvido, antes que eu preenchesse o teu espírito facilmente impressionável com o

saber do Todo Poderoso.”

Os olhos de Miang arregalaram-se admirados.

“Então tu queres me falar do Altíssimo? Tu queres me ensinar?” Júbilo estava

contido em sua voz. Sobre as feições de Fong passou um sorriso, que o embelezou

maravilhosamente.

“Creia-me, Miang, eu ansiava pelo dia de poder fazer isso. Mas primeiro tu devias

ser preparado para isso. Tu tinhas que aprender, a partir de teu íntimo, a cumprir as

ordens do nosso Senhor sem questionar e sem reclamar. Ele não pode aproveitar servos

hesitantes. Depois tinhas que descobrir que o trabalho é uma benção. Deves alegrar-te

com ele!”

“Isto eu aprendi,” assegurou Miang convencido, “e nunca mais o esquecerei!”

“Achas que terias aprendido isso tão bem, se eu apenas o tivesse dito?” indagou

Fong.

O interrogado pensou um pouco, depois disse francamente:

“Acredito que não. Somente quando tive que sentir vergonha de minha inatividade

e indignidade, senti a bênção que se encontra escondida no trabalho.”

Ainda conversaram muito, os dois, aos quais a vontade do Senhor finalmente tinha

soltado as línguas. Somente agora Fong pediu que o aluno narrasse a sua vida até agora.

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Miang o fez com palavras eloqüentes. O longo silêncio tinha reprimido muitas coisas,

fez amadurecer algumas, que agora procuravam expressar-se.

De tempos em tempos Fong levantava a mão. Então o narrador parava, e juntos

admiravam a maravilhosa condução, que tão seguramente guiou os passos de degrau a

degrau.

“Agora também entendo, por que o ancião teve que pedir-me a Fu-Fu,” exclamou

Miang repentinamente todo entusiasmado.

“Certamente, não poderia ser diferente,” afirmou Fong. “Tu tiveste que ser

desligado de tudo o que te atava ao passado, que ainda poderia tornar-te sensível. E

então chegaste até o companheiro rude,” continuou sorrindo. “Foi muito difícil?”

“Eu vi teu rosto na oração de graças, isto me ajudou.”

Miang o disse singelamente; o outro o compreendeu e não continuou a perguntar.

Esse dia eles concluíram em oração conjunta, tinham que agradecer por tal

grandiosidade.

Na manhã seguinte estavam, como de costume, no penhasco. Também hoje pouco

falaram. Pesado demais era o trabalho, mas trocaram um ou outro olhar satisfeito,

alguma exclamação alegre.

Quando o sol estava em seu ápice e seus raios perpendiculares tornaram o enorme

trabalho mais pesado, Fong afastou-se.

“Vamos comer algo e depois procurar a sombra, onde a encontrarmos.”

Foi um dia maravilhoso, ao qual seguiram outros parecidos. Após o trabalho

fatigante começavam os ensinamentos, que ainda acompanhavam Miang durante o sono

onde se tornavam vivências. Quando certa vez falavam que não existia um “por quê” no

servir ao Altíssimo, Miang acenou com a cabeça, convencido.

“Agora eu sei que, com as minhas perguntas primeiramente curiosas e que se

tornaram resmungos, eu teria estragado o meu futuro, se tu não me tivesses afastado do

caminho errado.”

“Quem te disse isso?” queria saber Fong.

“A voz, que às vezes me fala. Recentemente, de noite, ela me falou como eu era

tolo no início, e como estava em perigo de me tornar mau.”

“E tu ainda queres saber por que nós movimentamos as pedras?”

Miang enrubreceu. Gostaria muito dizer não e sentiu perfeitamente que essa

palavra não teria correspondido à verdade. As perguntas pelo motivo ele somente as

tinha deixado de lado.

“Agora posso dizer-te,” animava-o Fong, que deixava vagar seu olhar para longe.

“Está errado se te pedir para que não o faças?” foi a resposta totalmente inesperada do

aluno. “Eu sinto alguma coisa dentro de mim que me diz, que não mereço essa

explicação. Primeiro devo aprender direito a matar também o último “por quê” dentro

de mim.”

Cheio de alegria, Fong abraçou o jovem.

“Tu estás no melhor caminho, Miang. Minha pergunta deveria ser um teste. Foste

aprovado. Com isso, porém, chegou o momento em que deves deixar-me. Nada mais

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posso te ensinar. Deves viver entre os homens e observar sua conduta. Deves colher

experiências para o teu futuro servir.”

Penetrantemente olhou para o companheiro. Viria a manifestar a pergunta: “Em

que consiste esse futuro servir?” Não, nada se expressou nas feições claras, sinceras,

somente o susto pela separação próxima. E, apesar dessa emoção tão natural, dominou-

se. Miang preparou-se para imediatamente iniciar sua caminhada.

Fong teve que sorrir um pouco.

“Não tem tanta pressa assim, meu amigo. Receberemos instrução sobre o que deves

empreender, para onde deves dirigir-te. Isso pode acontecer ainda hoje, ou somente nos

próximos dias. Deixe-nos aproveitar ainda cada hora que estaremos juntos.”

Inicialmente, Miang ainda estava um pouco atordoado por causa da comunicação

repentina, de modo que Fong achou melhor empreender uma caminhada com ele. Nisso,

chegaram até a pedra, sobre a qual havia se mostrado a alegre ninfa da água. Curioso,

Miang olhou para lá e ficou contente, quando a bela figura acenou cumprimentando.

“Eu não tive tempo para vir antes,” exclamou o humano. “Eu sei,” recebeu como

resposta. “Estiveste muito ativo, tão trabalhador, que agora nada mais há a fazer para ti.

Ande pelo mundo afora e, se os homens não te agradarem mais, procure por minhas

irmãs nas águas claras. Leva-lhes lembranças de Hima.” Desapareceu a figura após a

última palavra, mal Miang ainda pôde externar seu agradecimento. Então olhou para

Fong. O que este diria? Um olhar para as feições do mesmo confirmaram a Miang que

seu companheiro tudo havia visto e compreendido.

“Também podes ver os gigantes?” perguntou Miang, feliz. “Certamente, já há

muito são meus bons amigos. No início foi-lhes permitido ajudar-me no trabalho com as

pedras, ao qual também tive que me acostumar primeiro.”

Após longo silêncio pronunciou Miang uma pergunta, a qual já muito tempo o

ocupava: “Sempre soubeste do Altíssimo?”

“Sim,” foi a resposta. “Eu sabia Dele, porém, somente O encontrei aqui nesta

solidão. Meu pai havia me falado Dele, também deixava-me participar da sua oração

diária. Mas creia-me, o que nos é dado sem esforço, àquilo não damos atenção.”

Isso Miang entendeu por experiência própria. Devia, entretanto, refletir mais sobre

essas palavras. Ainda encontrava-se na procura pelo seu Senhor, quando ser-lhe-ia

permitido servir, servir realmente, não somente em ajudar a outrem? E em que iria

consistir o seu servir? O que quer que fosse, estava convicto de que o faria com alegria.

Até esse ponto haviam chegado os seus pensamentos, quando ouviu vozes. Fong

tinha parado, escutando. Seres humanos nesta solidão era algo totalmente incomum.

Mas não lhe pareciam totalmente inesperados, somente curiosidade, não surpresa

desenhava-se no rosto do homem, enquanto Miang sentiu um forte impulso de

esconder-se em algum lugar. As mãos de Fong o seguraram. Juntos olharam para o que

estava chegando.

Dois homens aproximavam-se, trazendo as suas robustas montarias nas rédeas

devido à trilha estreita. Tinham aspecto bem diferente das pessoas que Miang havia

visto antigamente e as quais, como ele, tinham seus corpos cobertos com peles. Estes

dois usavam vestimentas coloridas, o que parecia ao jovem surpreso algo imensamente

suntuoso, causando-lhe, entretanto, um certo desconforto.

Page 22: MIANG -  FONG

Quando avistaram os dois que aguardavam, conduziram seus animais para detrás

de alguns grandes rochedos, acalmando-os com algumas palavras. Então vieram ao

encontro de Fong.

“És tu Fong, príncipe da tribo amarela?” perguntaram em dúvida, porém, com

respeito.

“Eu me chamo Fong,” retrucou o interpelado com dignidade. “O príncipe deixei de

lado, juntamente com as vestimentas.”

“Então, a despeito disso, és aquele que procuramos. A tua tribo necessita do

príncipe. Lá não existe mais ninguém que nos pudesse guiar. Venha conosco. Mais lá

embaixo aguardam as montarias, servos e vestimentas.”

Involuntariamente Fong abanou a cabeça. Com receio inexplicável Miang olhou

para ele. O que ele faria? Era ele realmente um príncipe? Como ele iria decidir-se? Aí

soou a voz de Fong, calma e firme.

“Não por capricho eu vim para esta solidão, mas para procurar o Altíssimo, para

que também o meu povo aprenda a encontrá-Lo. Se chegou o momento de meu retorno,

então quero acompanhá-los.”

Cortando as alegres exclamações dos homens, prosseguiu: “Fiquem aqui essa noite,

então quero procurar perscrutar a vontade do Altíssimo e lhes darei uma resposta

amanhã.”

Ele não havia dito: “Fiquem comigo.” Com espanto viu Miang, como os homens se

curvaram, caminharam calados até seus animais e retornaram pelo caminho pelo qual

chegaram. Somente quando estavam fora do alcance da vista, Fong falou com profundo

suspiro: “Então também nós teremos que voltar para casa, Miang. A hora da decisão

chegou para mim, mas também para ti. Antes de dormir, deixe-nos pedir ao Altíssimo

para que abra meus olhos e ouvidos para perscrutar Suas ordens.”

Foi uma oração maravilhosa, que Fong enviou ao alto para o seu Senhor. Longo

tempo Miang ainda teve que refletir sobre a mesma. Esta oração e toda a silenciosa

atuação de seu companheiro ensinaram-no a compreender melhor o sentido do servir do

que tudo o que até então vivenciara.

Quando acordou na manhã seguinte, diante dele estava Fong, vestido com

vestimentas suntuosas. Ele parecia tão majestoso, que involuntariamente Miang curvou-

se diante dele, como o tinha visto os homens fazerem.

“Levanta-te, Miang, chegou a hora em que eu, a mando do meu Altíssimo Senhor,

devo retornar para junto de meu povo. Se quiseres, isso não precisa ser uma separação

para nós. Me é permitido levar-te, se tu assim o desejares.”

Miang não conseguiu proferir palavra alguma. Suplicando estendeu as mãos.

“Eu separei uma vestimenta para ti, ela será suficiente até que possamos

providenciar uma melhor. Por ora, a época das peles terminou.”

Com agrado olhou para o jovem que, sem pensar muito, vestiu as peças estranhas

para ele e estava diante dele numa beleza inconsciente, singular.

Uma curta oração, uma rápida refeição, depois Fong pediu ao seu companheiro que

deixasse a tenda.

“Vamos ir ao encontro dos homens. Nossos passos para a vida lá embaixo devem

ocorrer voluntariamente.”

Page 23: MIANG -  FONG

Fong instruiu o jovem para colocar em ordem os seus poucos pertences e as peles.

Não levaram nada consigo, mas tudo deveria estar aprovisionado da melhor forma

possível.

Depois caminharam para a vastidão dourada pelos raios do sol e rapidamente

encontraram a trilha que levava para baixo.

À beira de um riacho, que do alto emaranhado de montanhas precipitava-se por

entre as planícies verde-aveludadas, caminhava um belo jovem. Pensativo, mantinha a

cabeça abaixada, não dando atenção aos passarinhos e a outras pequenas figuras que

aqui e acolá dele se aproximavam confiantes.

Parecia não chegar a uma conclusão sobre aquilo que ocupava sua alma.

Suspirando, sentou-se num bloco de granito e não percebeu que a água respingava

justamente nesse local, cobrindo-o de vez em quando com uma golfada de gotas

aperoladas. Agora, porém, algumas alcançaram o seu rosto. Indiferente, as secou e

olhou ao seu redor.

“Então fui novamente para perto da água,” murmurou baixinho. “Parece que algo

me chama. Será que as irmãs de Hima têm uma mensagem para mim? Então vou

chamá-las logo.”

Levantou-se e lançou sua voz por cima do estrondo.

“Vós, irmãs, ouçam-me. Saudações tenho para vós de Hima, a formosa.”

Debruçou-se escutando. Parecia ter ouvido um riso límpido, mas o estrondo das águas o

tragou. Em lugar nenhum conseguiu avistar uma figura. Chamou novamente as mesmas

palavras, outra vez sem êxito.

“Por que elas não vem? Elas me escutam, isso eu sinto. Eu preciso delas.”

Tinha dito isso contrariado, então pensou: “Se eu necessito delas, devo chamar de

maneira diferente. Elas têm razão em não atender a tão tolo chamado. Eu não pedi que

viessem.”

Sorrindo, fez novamente soar sua voz: “Ó, irmãs de Hima, aqui está um homem

solitário que deseja dialogar com vocês. Peço-lhes que apareçam!”

Novo riso mais forte, simultaneamente o jovem sentiu-se envolvido como que por

leves véus. Diante dele, no chuviscar da água, estava uma figura que lhe parecia bem

conhecida.

“Hima!” exclamou alegremente.

“Não Hima,” soou ao seu encontro. “Eu me chamo Hila. Tu chamaste pelas irmãs.

Não sabes tu que em cada água só vive e reina uma de nós? Se quiseres ver mais, tens

que caminhar adiante.”

Foi dito de modo extrovertido. O ser humano ali não conseguia responder nesse

tom brincalhão. “Hila, eu estou solitário,” disse suplicante.

“Isto eu já ouvi uma vez,” riu a ente. “Agora que estou contigo, essa solidão

terminou. Ela também não precisaria existir, se nos teus pensamentos sismadores não te

tivesses absorvido tão inutilmente. Olha ao teu redor: tudo vive e está disposto a ajudar-

te.”

Assim como Hima o tinha feito antes, Hila indicou com o braço estendido ao redor

e os olhos de Miang pareciam abrir-se. Em toda parte viu os pequenos e pequeníssimos

Page 24: MIANG -  FONG

entes, o vale do riacho parecia estar repleto de atividade. Suspirando aliviado, sentou-se

novamente na pedra grande, enquanto a ninfa escolheu um lugar envolto de água para

descansar.

“Tu estás recaindo em erros antigos, Miang,” animou ela o ser humano, que

procurava por palavras. Com isso, porém, ela não conseguia desencadear o fluxo de

suas palavras, ao contrário: ele teve que refletir tão intensamente sobre o sentido de suas

palavras, que esqueceu tudo ao seu redor.

“Erros antigos?” murmurou ele. “Erros antigos?”

Um som surdo, que parecia soar demoradamente de longe, o fez sobressaltar-se.

“O príncipe chama, adeus Hila, eu voltarei.”

“Procura o teu erro,” ecoou da água, mas Miang já tinha se afastado a passos

largos.

Quando, seguindo o som, chegou ao local onde um homem, com toda sua força, fez

soar os sons graves através de um enorme chifre de animal, encontrou-se em meio a

intenso movimento. De todos os lados homens aproximavam-se, cada um tinha deixado

os seus afazeres para ouvir o que o príncipe desejava. Após algum tempo todos

pareciam estar presentes, pois o chifre silenciou, em seu lugar ouvia-se a voz de grande

alcance de um homem, que subiu numa plataforma de pedras empilhadas.

“O príncipe Fong comunica a vós, ó homens, que é necessário combater os animais

predadores que parecem ter-se multiplicado enormemente, causando grande prejuízo

aos nossos rebanhos.”

Um murmúrio surdo perpassava as fileiras dos ouvintes.” Apesar de os nossos

pastores terem recebido a ajuda de uma escolta,” continuou o palestrante, “não lhes é

possível defender-se das pilhagens noturnas. Mas o que ainda é pior, nos chegam

notícias de assaltos aos assentamentos em direção ao nascer do sol, contra os quais as

mulheres e crianças são impotentes.” O murmúrio intensificou-se, exclamações

indignadas fizeram-se ouvir, algumas mãos se ergueram.

“Deve ser prestado auxílio imediato e uma expedição guerreira deve ser

empreendida contra os bandidos”

Subitamente levantaram-se as cabeças dos homens, seus membros se aprumaram:

uma expedição guerreira, isto era uma notícia bem-vinda!

“O príncipe Fong manda convocar-vos, ó homens. Não deveis acompanhá-lo

obrigados, isso deve acontecer voluntariamente. Também não devem participar desse

grupo os anciãos e nem os jovens, pois será um empreendimento sério que exige

valentia. Devem ficar também aqueles cujo cargo assim o exige. Voltem para casa e

decidam quem quer atender ao chamado. Voltem aqui hoje antes do anoitecer.”

O anunciante deixou a plataforma e foi imediatamente circundado pela multidão

excitada. Cada um parecia ter perguntas: “Em que direção seguiria o grupo, se o

príncipe os acompanharia, quem deveria ser considerado jovem e muitas coisas mais.

Inicialmente o homem deu respostas pacientemente, quando a afluência das pessoas

aumentou, ele se desvencilhou.

“Miang, onde está Miang,” gritou ele por sobre as vozes agitadas. “O príncipe

Fong chama-te. Eu te acompanho.” Rapidamente Miang dirigiu-se para perto dele.

Juntos abriram caminho por entre a multidão que se debandava em vários grupos.

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“Achas, Hang, que o príncipe irá levar-me junto”? perguntou excitado. O outro o

olhou, detendo os passos por um momento, e levantou a mão, indeciso.

“Isto ninguém pode prever,” foi sua resposta.

“Se tu fosses um de nossos jovens eu não teria dúvida, mas contigo ele tem algo

especial em mente. No entanto, receberás tua resposta imediatamente,” acrescentou

Hang sorrindo, “lá adiante vejo o príncipe nos aguardando.”

Em frente a uma grande bonita tenda estava Fong, a cujo aspecto totalmente

modificado Miang teve que se acostumar sempre de novo. Não eram somente as suas

pomposas vestimentas que tornaram a sua figura extremamente imponente, também não

somente a expressão de seu semblante, mas pairava uma altivez sobre o seu antigo

companheiro, que parecia excluir qualquer intimidade. Miang sentiu-se incapaz de

aproximar-se de Fong da maneira habitual. Extintos pareciam os últimos dias de

deliciosa amizade na selvagem região montanhosa. Também agora o jovem aproximou-

se com profunda reverência ao que o aguardava e esperou que ele lhe dirigisse a

palavra, mesmo que tudo dentro dele o impelia a falar e perguntar. Se tivesse levantado

o olhar, deveria ter notado o olhar paternal de Fong sobre ele.

“Miang, mandei chamar-te,” iniciou ele, “porque tenho assuntos importantes para

tratar contigo. Como foste informado, eu devo partir amanhã com os meus súditos

contra os animais ferozes.”

Interrompendo-se involuntariamente, notou como o semblante de Miang cobriu-se

com palidez mortal. “O que tens?” exclamou assustado.

“Meu pai também partiu e nunca mais voltou,” respondeu Miang impetuosamente.

“Isso não é motivo de supor que eu também não retorne,” sorriu Fong

amavelmente. “Então ao menos deixe-me acompanhar-te,” irrompeu do jovem.”Mas já

percebo que queres dizer não. Falaste dos teus súditos. Eu sou o estranho que toleras

com bondade, mas do qual tu não necessitas!”

Fong tentou em vão interromper os palavras que brotavam. Somente quando o

exaltado parou para respirar, foi-lhe possível dizer com voz firme, amigável: “Estás

num caminho errado, Miang, que levar-te-á ao emaranhado de velhos erros. Eu havia te

escolhido para guiar o povo na minha ausência. Porém, quem não é capaz de controlar-

se a si mesmo, não pode guiar outros.”

Suspirando em silêncio, afastou-se e deixou Miang sozinho, uma presa dos mais

conflitantes sentimentos. Decepção, vergonha, arrependimento clamavam no peito de

Miang. Teve vontade de fugir para a solidão, sentiu-se, porém, preso a este local, do

qual tinha que observar como Lung, um homem mais idoso, prudente, foi chamado pelo

príncipe e provavelmente incumbido com a representação. Depois viu os preparativos

para a caça e a dor de talvez perder Fong sobrepôs-se a todas as outras vozes.

E com esse medo na alma arrastou-se até a sua tenda e jogou-se sobre o seu leito de

peles. Hora após hora passou, ele não o percebeu. Quando olhou ao redor, o breve

crepúsculo já havia chegado e a lua quase cheia enviou a sua luz prateada por sobre a

paisagem.

Agora a reunião certamente já havia começado. Miang assustou-se, entretanto,

consolou-se com o fato de que o príncipe havia recusado a sua participação no grupo.

Assim também era supérfluo nos preparativos. Mas a partida dele, queria e precisava

ver!

Page 26: MIANG -  FONG

Saiu de sua tenda e esgueirou-se até a tenda de seu antigo companheiro. Esperou

por longo tempo, depois, ruídos confusos, vozes, o fungar dos cavalos indicaram o

encerramento da reunião. Agora o príncipe deveria aparecer.

Miang queria tentar obter alguma tarefa para o período da ausência. Se pedisse

humildemente, certamente Fong não recusaria. Mas o que foi isso? O ruído vindo do

local de reunião afastava-se mais e mais. Não havia dúvida, o grupo tinha se formado e

estava partindo a galope!

Aniquilado, Miang ficou parado ao lado da tenda, estremecendo de agitação

interior. Fong havia partido, talvez para nunca mais voltar! Fong novamente o havia

rejeitado! O que havia dito para zangar o nobre? Quando, desesperado, se fez essa

pergunta, ouviu dentro de si o eco de suas próprias palavras tolas e a resposta severa,

repreensiva, do príncipe entremeado à chamada de Hila, como canto de pássaros:

“Procura teu erro!”

Envergonhado esgueirou-se novamente para sua tenda, jogou-se de joelhos diante de seu leito e implorou ao Altíssimo por clareza, para reconhecer seu erro e o seu caminho, por força para finalmente trilhar esse caminho!

Por longo tempo permaneceu absorto, nenhum ruído o atrapalhava, de modo que

finalmente adormeceu. Pareceu-lhe, então, que viu um homem muito jovem num

caminho solitário. Este caminho era estreito, mas de grande beleza em meio a uma

paisagem selvagem com todo tipo de perigos iminentes. Às vezes a subida era íngreme,

então o caminhante parava, como se tivesse dificuldade de respirar, porém, não olhou

para trás. Somente agora Miang percebeu que os olhos do homem estavam fechados.

Mas então era surpreendente que esse jovem conseguia caminhar de modo seguro.

Ainda enquanto Miang considerava isso, viu o caminhante tropeçar, mas antes que esse

pudesse cair, ele foi agarrado de cima por uma mão muito grande, luminosa, que

empurrou-o novamente sobre o caminho seguro. Isso repetiu-se várias vezes. Quando a

mão então novamente quis colocá-lo no caminho certo, o homem abanou a cabeça

negativamente. Ele começou a apalpar as imediações e fez tentativas de trilhar um

caminho diverso do indicado pela mão auxiliadora. Miang ficou impaciente.

“Deixa-te guiar, pois tu mesmo estás cego!” gritou para a figura do sonho. Este,

porém, tinha se demorado muito tempo com a procura. Nisso havia perdido o caminho

até então trilhado, tinha chegado a um declive úmido, coberto de musgo e escorregou

irresistivelmente rumo ao precipício.

Miang acordou com um grito. O que aconteceu? Nitidamente ainda via o jovem

resvalar e deslizar pelo caminho escorregadio em direção ao abismo. Ficou com medo.

Subitamente sabia que era ele o jovem! O Altíssimo não o havia conduzido até agora,

assim como ele o havia visto agora? Ele nunca soube para onde o seu caminho o

conduziria, também não o sabia agora. Só uma coisa estava certa. O Altíssimo o

mandava conduzir com mão firme. Ele só deveria deixar-se conduzir.

Era isso! Agora caiu-lhe a venda dos olhos. “Deixar-se conduzir,” isto ele tinha que

aprender, isto era o mais importante, pois ele não conhecia o caminho até o Altíssimo!

Mas como devia fazer isso, se deixar conduzir? “Não ter vontade própria,” murmurou

uma voz dentro dele. Sim, o que foi que ele queria? O que não havia estado de acordo

com a vontade do Altíssimo?

Então, novamente viu Fong diante de si, Fong, que até agora o havia instruído e

conduzido a mando do Altíssimo. Sim, a mando do Altíssimo! Isto Miang havia

esquecido. Ele mesmo queria decidir, interferir. E agora? Encontrava-se ele realmente já

diante do abismo? Com perigo de precipitar-se?

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Calor percorreu as suas veias. Nenhum passo deveria seguir nesse caminho, que o

levava ao perigo máximo.

“Ó, Todo Poderoso,” irrompeu dele, “quero tornar-me Teu servo, ajuda-me para

que não venha a desviar-me do caminho, que devo trilhar até junto a Ti!”

Não agüentava mais ficar dentro da tenda, correu para o ar livre.

A lua estava no alto do céu, mas a Miang parecia que algo o chamava e o puxava

mais longe para a natureza. Era Hila, que o chamava?

Aqui fora estava claro que nem dia. A luz da lua pairava prateada sobre cada pedra,

cada palhinha de grama. Em pensamentos profundos caminhava Miang meio

inconsciente para diante. De repente, seu pé esbarrou numa pedra saliente. Ele tropeçou,

quase caiu. Levantou o olhar fixado no chão. Então viu algo que até então nunca havia

visto. Uma figura envolta em luz encontrava-se diante dele, sorriu para ele.

Estupefato Miang olhou para o milagre.

“Quem és tu?” balbuciaram seus lábios.

“Teu amigo,” veio cristalina a resposta.

“Meu amigo? Mas eu não te conheço!”

“Realmente não, Miang?” tinia novamente tão cristalino, tão amável até ele.

Então parecia como se um véu se rasgasse diante de seus olhos. Ele olhou nos

olhos da figura e então veio-lhe uma recordação, que ainda não conseguia compreender,

captar.

“Não continua procurando por ora,” ordenou o desconhecido. “Escuta-me, Miang.

Eu sou teu amigo, já lhe disse. O Altíssimo enviou-me para ajudar-te. Diga-me em que

posso te ajudar.”

Fervorosamente irrompeu de Miang: “Ó, Todo Poderoso, eu Te agradeço!

Maravilhosamente escutaste o meu rogo! Eu Te agradeço!”

Então dirigiu-se ao estranho:

“Eu não sei mais o que devo fazer, para me tornar um servo do Altíssimo, e mesmo

assim sei que devo sê-lo!”

“Tu fazes demais!” disse ele, calando-se novamente.

Perplexo, Miang olhou para ele. Não deveria fazer mais nada? Mas Fong não teve

que transportar pedras, a mando do Altíssimo, e ele não teve que ajudá-lo nesse

trabalho, por ordem do Altíssimo?

Parecia que o luminoso lia todos os pensamentos que perpassavam Miang.

“Trabalhar deves, deves movimentar tuas mãos. Muito trabalho te aguarda. Mas

deves fazê-lo como servo, em obediência ao teu Senhor, não rebelar-te e querer saber

melhor.

Ontem Fong quis confiar-te a condução de sua tribo. Tu, porém, só estavas cheio

de medo de que Fong pudesse expor-se ao perigo e nele sucumbir. Procuraste

medrosamente retê-lo, e mesmo assim, era o seu dever de partir e livrar o seu povo da

praga das feras. Não sabias tu que Fong é um servo do Altíssimo e somente atua

conforme as Suas ordens? Considera, opuseste-te ao Altíssimo, não a Fong!”

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Totalmente perplexo escutou Miang essas palavras. Agora a névoa em seu interior,

que tudo tinha encoberto, se afastava. Sentia vergonha.

Miang caiu numa introspecção tão profunda que nem se deu conta que estava

novamente sozinho. A alvorada já se aproximava e ele continuava refletindo absorto.

Inconscientemente prosseguira, encontrando-se repentinamente junto ao pequeno

riacho, onde sabia que estava Hila, a ondina. Perpassou-lhe o pensamento – deveria

chamá-la?

Antes mesmo de chegar a uma decisão, repartiram-se as ondas e o rosto travesso de

Hila apareceu.

“Como é, servo do Altíssimo, encontraste o teu erro?”

“Sim” exclamou Miang alegremente. Um peso enorme lhe foi tirado do coração.

“Eu o vejo,” confirmou Hila, “e fico feliz com isso.”

Ela acenou para ele e, antes que ele conseguisse responder algo, havia

desaparecido. Agora, porém, Miang não mais se deteve ali. Voltou rapidamente,

rogando em silêncio que lhe fosse mostrado o que tinha que fazer. Ainda não havia

alcançado a sua tenda, quando encontrou um mensageiro, que alegremente exclamou:

“Que bom, que te encontro! Trago-te uma mensagem do príncipe Fong. Aqui está

ela.”

Postou-se com as pernas abertas diante de Miang e repetiu devagar e claramente as

palavras, como Fong o tinha encarregado.

“Diga ao meu filho Miang, que não continue inativo em sua tenda. Ele deve ir e

procurar aquele trabalho que está destinado a ele. Quem procura seriamente, esse

encontra.”

“Entendeste a mensagem, jovem?” perguntou o mensageiro, e Miang acenou

afirmativamente. “Então está bem.”

Sem mais uma palavra, o mensageiro deu as costas e prosseguiu seu caminho.

Miang, porém, não sabia bem o que fazer. Onde deveria procurar o seu trabalho? Ele

estava disposto, mas não sabia onde devia começar. Entretanto, o que havia aprendido

esta noite? “Deixar-se conduzir, nada querer sozinho.” Assim ele queria agir.

Silenciosamente rogou ao Altissimo:

“Altíssimo, permita que reconheça o que devo fazer!”

Então, continuou caminhando devagar. Diante de si estava o amplo vale, no qual a

tribo amarela armara as suas tendas. O sol agora já havia nascido e viva atividade via-se

ao redor das tendas. As mulheres assavam pão sobre pedras aquecidas. Crianças as

rodeavam e se deliciavam com o aroma que dali emanava. Muitos dos homens haviam

partido, porém, ainda havia número suficiente. Eles tratavam dos cavalos, e mais

distante, nas verdes encostas, via-se rebanhos de ovelhas com seus pastores.

Miang ponderava, indeciso, para onde deveria dirigir seus passos, quando uma

menininha correu ao seu encontro. Estava tão apressada, que esbarrou nele e ele a

amparou em seus braços.

“Para onde vais com tanta pressa, pequena menina?” perguntou Miang rindo.

Séria, a pequena respondeu, tirando os seus densos cabelos escuros do rosto: “Devo

buscar ajuda, meu pai está doente. Sente dores, queixa-se e geme.”

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“A quem querias pedir ajuda, pequena?” perguntou Miang.

“Husa, a anciã, ela possui ervas curativas. Mas agora deixa-me ir embora.”

E a pequena soltou-se e correu rapidamente até a próxima tenda.

Miang a seguiu com o olhar. A criança era graciosa e muito séria para sua idade.

Não demorou muito e A-na retornou, seguida por uma anciã curvada, que levava uma

sacola na mão. Essa devia ser Husa. Ficando curioso, Miang seguiu as duas até a tenda,

não muito limpa, na qual o pai de A-na estava revirando-se no seu leito, gemendo.

Husa não perdeu muitas palavras. Ordenou A-na a esquentar água. Então preparou

um chá, o qual o homem teve que engolir. Parecia, porém, que também esse chá

medicinal lhe trazia pouco alívio.

Silenciosamente, Miang havia entrado na tenda atrás da anciã. O aspecto aqui não

era bonito. Havia sujeira por todos os lados. Panos sujos estavam no chão, havia louça

com restos de comida e o ar estava abafado e fumacento. Miang quis recuar arrepiado,

mas uma voz dentro dele disse: “Fique!” Então, permaneceu bem quieto e observou

como a anciã debruçou-se sobre o doente, dando-lhe para tomar o chá medicinal. Ele

engulia, mas não parava de gemer. Entretanto, não foi possível determinar o que lhe

faltava. À pergunta da anciã, onde sentia dores, ele respondeu queixoso: “Estão em todo

meu corpo e me beliscam como os diabos de fogo.”

“Diabos de fogo?” perguntou Miang admirado e aproximou-se um pouco. “O que é isso?”

“Ora, os pequenos diabos que vivem no fogo e que comem a madeira,” respondeu

Husa calmamente. Para ela, isso não parecia ser algo fantástico. Miang, porém,

admirou-se, ele não sabia o que era um “diabo”. Por isso continuou perguntando: “E o

que são diabos?”

Medrosamente os dois outros olharam ao redor. “Quieto,” respondeu Husa e pôs o

dedo sobre os lábios. “Isso não se deve falar em voz alta, senão eles vêm e podem nos

prejudicar. Mas vou dizer-te no ouvido, para que possas resguardar-te, jovem

forasteiro.”

E com voz rouca falou baixinho ao seu ouvido: “Diabos são entes maus, eles

tentam destruir as pessoas.”

Miang admirou-se. Ele nunca encontrou tais entes.

“E eles vivem no fogo?” continuou perguntando incrédulo. “Não somente no

fogo,” cochichou a anciã, “estão em toda parte, no ar, na água.”

“Pare!” exclamou Miang, “na água não vive ente ruim, isso eu sei com certeza. Eu

tenho visto a bela figura enteal que vive na vossa água! Ela é Hila, e ela quer bem a nós

seres humanos.”

Agora, a vez de admirarem-se era de Husa e do doente, que com essa novidade

quase esqueceu suas dores. Também A-na, que timidamente tinha ficado no fundo da

tenda, deu um passo para diante. Miang, porém, feliz, sabia de repente: aqui havia o que

fazer para ele.

“Posso sentar-me junto de vós?” perguntou amavelmente, e ambos pediram:

“Sim, senta-te junto de nós e conta-nos dos entes bons das águas.”

Com todo prazer Miang começou a contar o que tinha vivenciado com Hila e

Hima e como o ajudaram e o bem que lhe fizeram, como serviam ao Altíssimo.

Boquiabertos, Hisor, o pai de A-na, e Husa escutavam. Inacreditável era essa notícia e,

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no entanto, o forasteiro falava disso com tanta certeza. E quando descreveu como eram

lindas e alegres as pequenas ninfas, estampava-se alegria nos rostos dos ouvintes.

“Sinto-me mais aliviado, desde que me contaste isso, forasteiro,” disse Hisor.

“Chamem-me Miang, este é o meu nome,” pediu o jovem. “Querem ouvir mais dos

bons entes, que são servos do Altíssimo?”

Com grande alegria Hisor e Husa concordaram. E Miang contou dos enormes

gigantes, de Uru e Muru e de sua fiel ajuda, como o conduziram até o príncipe Fong, e

como são diligentes servindo ao Altíssimo.

O espanto dos ouvintes aumentava. Tudo era novo para eles, nunca haviam

escutado algo igual. Hisor esqueceu-se de suas dores. Quando um raio oblíquo do sol

entrou na tenda, Husa sobressaltou-se.

“Tenho que voltar para casa,” exclamou ela. “Mas tu voltarás, Miang?” pediu ela,

“e continuarás nos narrando?”

Miang prometeu-o com alegria. Aqui, pois, havia encontrado o trabalho que devia

executar. E o mesmo havia sido conduzido até ele, não tinha sido ele que o desejara.

“Eu voltarei amanhã, para ver como vai Hisor,” prometeu. E Husa acrescentou

solicitamente: “E eu trarei novas ervas ainda melhores.”

Pois ela queria estar presente quando Miang contasse.

Já cedo no outro dia, Miang pôs-se a caminho. Mal podia esperar para continuar o

seu trabalho. Hoje o enfermo estava deitado bem quieto no seu leito. Parecia que estava

melhor.

“Como te sentes hoje, Hisor?” perguntou Miang amavelmente. E Hisor ergueu-se o

melhor que pôde e disse, contente:

“Então vieste mesmo, Miang? Como estou contente. Eu receava que te seria

incômodo visitar-me. Não é bonito aqui,” acrescentou lamentando. “Minha mulher

morreu, e A-na ainda é muito pequena para deixar tudo em ordem.”

Sim, isto dava para perceber. Timidamente A-na olhava do canto do fogão para

Miang. Ela se envergonhava e pretendia esforçar-se pondo ordem na tenda, pois ela

também queria muito que o forasteiro viesse e contasse.

“Como é, os diabos do fogo não te beliscaram mais?” perguntou Miang e riu

alegremente.

Este riso espantou o último resto de medo na alma de Hisor, de que talvez ainda um

diabo pudesse estar na proximidade para prejudicá-lo. Respirou como que aliviado e

juntou seu riso ao de Miang. Como isso fazia bem! Ele sentiu como estava melhorando

novamente.

“Quando estás comigo, Miang, então não sinto medo,” disse ele admirado e olhou

para o jovem. Qual seria o motivo disso? Escutaram passos lá fora e apressadamente

entrou Husa, novamente com uma sacola na mão.

“Já estás aqui, Miang?” exclamou contente. “Então quero preparar rapidamente o

chá de ervas, para que passem as dores de Hisor, e depois tu continuas contando, não

é?”

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E assim aconteceu, e resposta seguia à pergunta e nova pergunta seguia à resposta.

Miang não sabia o quanto havia para contar dos gigantes e dos homenzinhos das pedras,

de Hila e Hima. O tempo passou voando.

“Agora deve ser preparada a comida,” disse Husa e, ainda cheia de felicidade sobre

o recém ouvido, tratou de ajudar A-na, que se esforçava a acender um fogo, no simples

local de fogo aberto.

Miang ficou observando, perdido em pensamentos. Como ele era rico, porque o

Altíssimo havia aberto os seus olhos para poder ver os servos fiéis, e dessa riqueza ele

agora queria dar aos seres humanos. Era isso que o Altíssimo agora exigia dele. Dessa

forma ele podia ajudar, servir. Miang estremeceu: Servir? Tornou-se com isso também

um servo do Altíssimo? Como uma corrente de fogo perpassou-lhe esse

reconhecimento. Quase caiu de joelhos, pelo excesso de felicidade, para agradecer ao

Altíssimo.

Soou então a clara voz de criança de A-na: “Vejam, os diabos do fogo!”

O fogo ardia resplandescente e, quando Miang olhou, ele também descobriu os

pequenos entes saltitantes nas chamas. Assustada, A-na queria esconder-se atrás de

Husa, porém, Miang pegou-lhe na mão e puxou a criança para a frente.

“Observe,” disse ele, “como são bonitos! E o que é belo não pode ser mau. Veja,

eles ajudam o fogo para que queime e nos esquente e nos prepare os alimentos! Vamos

escutar, o que nos têm a dizer”.

Como que paralizados, olhavam agora os quatro para as chamas, todos viam as

figuras palpitantes dançando, mas já não sentiam mais medo delas. E a Miang parecia

ouvir um fino tinir vítreo, sons delicados, que se juntaram para formar as seguintes

palavras:

“Também nós servimos ao Altíssimo, nós estamos felizes que isso nos é permitido!

Sirvam vós também!”

Longamente Miang escutava, até que o fogo se extingüiu, depois dirigiu-se aos

demais e contou o que tinha escutado. Surpresa tomou conta dos ouvintes. E Miang não

se cansou em responder todas as perguntas, pois esta vivência causava-lhe também a

maior alegria. Era-lhe permitido servir! Toda a aflição e todas as perguntas e procuras

dentro de si haviam desaparecido; preenchia-lhe uma alegria que fez estremecer o seu

íntimo.

Quando o sol novamente lembrou Husa de suas obrigações, Miang também queria

despedir-se. Mas Hisor pediu: “Fique mais um pouco, Miang, eu também quero contar-

te algo.”

E Miang permaneceu e escutou o relato de Hisor. A esposa de Hisor morreu de

uma febre violenta e deixou-o com A-na sozinho. Desde então ele não estava bem. A-na

somente sabia preparar as comidas mais básicas e tinha dificuldade em exercer as outras

tarefas. E agora, Hisor ainda ficara doente e não podia cuidar de seus animais, das

ovelhas e dos cavalos.

“O que achas, Miang,” perguntou um tanto hesitante, “será que há também entes

bons, que me ajudariam? Eu não posso ir até os teus gigantes para pedir-lhes ajuda, pois

eu nem os encontraria.”

Page 32: MIANG -  FONG

Em suas palavras suplicantes havia um rogo não expresso. E Miang pediu ajuda no

seu íntimo. Ele viu a penúria de Hisor. Tinha muita vontade de ajudá-lo, mas era

homem e aqui só poderia ajudar uma mulher.

“Vamos pedir ao Altíssimo para que te envie ajuda,” disse Miang confiantemente,

e levantou as mãos e rezou fervorosamente: “Altíssimo, Tu vês a penúria de Hisor. A-na

ainda é muito pequena. Ajude-o, ele quer esforçar-se para fazer tudo o que dele exigires.

Os olhos de Hisor estavam fixados nos lábios de Miang durante essa curta prece, e

nas últimas palavras abanou a cabeça, afirmando com veemência. Ele estava disposto a

fazer tudo o que Miang exigiria dele. No dia seguinte, Miang novamente compareceu na

tenda de Hisor, porém, não veio sozinho. Ao seu lado caminhava uma mulher que,

assim que entrou na tenda, começou naturalmente a pôr ordem nas coisas. Hisor

observava boquiaberto este milagre e Miang sorriu. Depois, porém, relatou a Hisor o

que entrementes havia acontecido.

Ontem, quando regressou, encontrou essa mulher em frente à sua tenda, sentada

numa pedra. À sua pergunta de quem ela era, respondeu: “Eu procuro Miang, o servo do

Altíssimo.”

Imensamente surpreendido, Miang escutou essas palavras e perguntou-lhe o que

dele queria. Então a resposta dela foi: “Meu nome é Hirsa. O Altíssimo manda-me em

teu auxílio. Não continue perguntando, mas diga-me o que devo fazer.”

Então Miang contou-lhe, que acabou de pedir ao Altíssimo ajuda para Hisor.

Agora, sua prece foi atendida tão rapidamente, mal podia acreditar. Mas Hirsa falou as

poucas palavras:

“O Altíssimo é sábio.” Com isso, para ela tudo estava dito.

Hirsa ficou agora junto a Hisor, cuidava dele, e suas mãos eram maravilhosamente

leves. Cantando baixinho, pôs ordem em tudo na tenda, limpou-a, preparou a comida e

cuidou de A-na. Cada manhã ela voltava e, ao pôr do sol, desaparecia.

“Para onde sempre vais, Hirsa?” perguntou Hisor certa noite, quando novamente

quis desaparecer, após curto cumprimento.

“Isto não devo dizer-te, Hisor,” foi a resposta. “Mas eu voltarei e cuidarei de ti, até

que novamente encontres uma esposa.”

Tão feliz Hisor nunca havia estado em toda sua vida. Parecia que tinha entrado

claridade em sua tenda, antes tão escura e suja, que agora brilhava de limpa, tão logo

Hirsa chegava. Hisor rejuvenescia a cada dia. Os vizinhos, porém, pergutavam curiosos,

se tinha uma nova esposa.

“Não,” respondeu Hisor seriamente. “Hirsa me ajuda, mas não é minha esposa.”

Hisor gostava de olhar as chamas levantando-se em labaredas e observava os entes

do fogo. Às vezes parecia-lhe que podia ouvir seu canto:

“Nós servimos ao Altíssimo.”

Miang muitas vezes ainda retornara à tenda de Hisor. E logo também juntaram-se

vizinhos, que ouviram falar de que Miang sabia contar tão bem dos muitos entes no

fogo, na água e nas montanhas.

A tribo de pastores do príncipe Fong era um povo rude, endurecidos pela sua vida

nas montanhas. Mas também havia pessoas distintas entre eles, que possuíam grandes

Page 33: MIANG -  FONG

rebanhos e que pagavam aos mais pobres pelo trabalho como pastores. Reinava boa

ordem na tribo amarela, regida há muito tempo pela estirpe de Fong.

O tempo em que Fong estivera ausente chegou ao fim. Certa tarde ecoaram

cornetas e via-se o grupo de cavaleiros retornarem para o amplo vale, e Fong na

dianteira. Grande júbilo recebeu os que retornaram. Todos saíram apressadamente das

tendas e aglomeraram-se para cumprimentar alegremente os caçadores. Tinham feito

muitas presas, notava-se isso pela grande quantidade de peles que traziam. Isso

provocou nova alegria, sabendo-se que a caça teve êxito e que a praga fora eliminada.

Também Miang havia saído de sua tenda e aguardava a chegada do grupo. Esperou,

porém, até que se aproximassem. Então foi ao encontro de Fong e cumprimentou-o. Um

curto olhar do príncipe tangeu-o.

“Eu te aguardo em minha tenda.”

Este foi o cumprimento de Fong e Miang curvou-se levemente em sinal de sua

disposição. Fong mal havia se sentado no seu leito de repouso, quando Miang solicitou

ser recebido. Ele não podia aguardar, queria apresentar-se ao príncipe e relatar-lhe o que

entrementes havia vivenciado. Ele esperava que Fong iria questioná-lo a respeito, mas

nada disso aconteceu. Fong indicou um lugar ao seu lado e falou sucintamente: “Tenho

que falar-te.”

Miang olhou para ele na expectativa. Não se atreveu a perguntar.

“O Altíssimo deu-me uma missão para ti, Miang,” disse Fong, e bondade vibrou

em suas palavras, o que emocionou Miang profundamente.

“Tu deves ir agora até uma outra tribo, amiga nossa, e levar ao príncipe de lá uma

mensagem minha. A tribo, chama-se a tribo dos Waringis, mora além da longa cadeia

de montanhas, no sul. Ainda não deves ter ouvido falar dela. São pessoas boas, mas

rudes e ignorantes e é vontade do Altíssimo, que leves a elas o saber Dele e de Sua sábia

condução. Tu, entrementes, já começaste a servir ao Altíssimo,” acrescentou Fong,

sorrindo.

Miang queria levantar-se bruscamente para expressar a sua alegria. Um olhar de

Fong , porém, o deteve. Não, não queria recair em seu velho erro da impetuosidade. Por

isso dominou-se e somente disse: “Eu obedecerei. Quando posso partir?”

Fong olhou com agrado para o jovem, que visivelmente tinha se modificado para

melhor durante a ausência de Fong. Tinha se tornado mais seguro e mais calmo. Agora

ele poderia começar com a sua nova e mais ampla missão.

“Amanhã cedo estará à tua espera um acompanhante, que te mostrará o caminho

até os Waringis,” disse Fong brevemente.

Com isso Miang estava dispensado. Com nenhuma palavra conseguira perguntar

pelo sucesso da caçada. Agora, também não tinha mais importância para ele, estava

ocupado demais com a nova missão. O Altíssimo o enviava com uma missão, era-lhe

permitido serví-Lo, podia dar de sua riqueza! Como isso era grandioso! Novamente

Miang, pensativo, dirigiu seus passos até a floresta próxima e, novamente, seu guia

luminoso estava diante dele, no mesmo lugar, e olhou sorrindo para ele.

“Como é, Miang,” disse ele,” agora te é permitido começar a servir, depois que

reconheceste o teu erro e te esforças em corrigí-lo. Sentes-te feliz?”

Page 34: MIANG -  FONG

Miang somente acenou afirmativamente, seu coração estava repleto demais para

responder.

“Porém, deixa-te prevenir mais uma vez, Miang,” continuou o luminoso. “Nunca

aja de acordo com a tua própria maneira de pensar, peça sempre conselho e auxílio ao

Altíssimo, assim tornar-te-ás um verdadeiro servo.”

Depois dessas palavras a figura luminosa desapareceu da vista de Miang. Por muito

tempo continuou caminhando, colocou seus pensamentos em ordem, suplicou por

auxílio para sua grande missão, agradeceu e, finalmente, voltou alegre e feliz.

Cedo no dia seguinte – recém o sol aparecia atrás das montanhas no leste – Miang

escutou um leve sinal de guizo em frente a sua tenda.

Quando saiu, encontrou ali dois cavalos ricamente encilhados, um carregado com

provisões, o outro sem cavaleiro. Sobre um terceiro estava um homem, que olhava para

Miang com expectativa.

“És tu o meu guia até os Waringis?” perguntou Miang, e o homem confirmou.

“Sim, o príncipe Fong o ordenou. Podemos partir”.

“Não devo despedir-me de Fong?” perguntou Miang, mas seu acompanhante

negou.

“O príncipe não está disponível agora, encontra-se numa reunião. Devemos partir

sem demora.”

Para Miang não havia mais nada a fazer a não ser obedecer. Irrompia um lindo dia,

dourado levantou-se o sol e uma manhã de outono tão clara, como somente as

montanhas podem presentear, preencheu o coração de Miang com grande alegria. Os

dois dirigiram seus passos para o sul. Tudo aqui era estranho para Miang, como era

estranho para ele ainda toda a região, a vida entre tanta gente. Os dois viajantes

avançavam pela manhã, fresca de orvalho, adentro. Parecia a Miang como se nunca

tivesse vivenciado ainda um dia tão lindo. Será que era por isso que se sentia tão leve e

o seu coração batia tão contente? Ainda não sabia o que o esperava entre a tribo

desconhecida, sabia somente que se dirigia para lá a mando do Altíssimo, e isso era a

sua felicidade e a sua alegria.

Seu companheiro era de poucas palavras. Aparentemente não devia falar sobre os

Warringis. Assim também Miang se calava e podia, desse modo, apreciar melhor a

beleza da região, que percorriam. Tinham subido consideravelmente, mas isso não

afetava as fortes montarias. Avançavam dispostas, hora após hora, sem mostrar cansaço.

Perto do meio-dia repousaram na sombra embaixo de uma rocha saliente, pois aqui nas

alturas o sol ainda queimava forte. Depois, o caminho começou a descer em direção a

um vale montanhoso. Pradarias verdes, com grandes blocos de pedra espalhados,

estendiam-se frente aos olhos de Miang. O verde saturado lhe fazia bem, apesar de aqui

estar tudo ermo e despovoado. Em parte alguma um ser humano, nenhum animal, além

de alguns grandes pássaros, que aos gritos levantaram vôo quando os cavaleiros se

aproximaram.

Ainda mais descia o caminho, ele seguia agora através de um desfiladeiro

selvagem, no qual a água despencava e espumava. A espuma respingava no rosto de

Miang, ele porém riu alegremente. Tudo era novo para ele, tudo lhe parecia maravilhoso

e lindo. No desfiladeiro era escuro e os cavaleiros tiveram que cuidar muito para que os

animais não escorregassem no chão molhado. Repentinamente Miang soltou um grito.

Tinham alcançado a extremidade inferior do desfiladeiro e diante deles estendia-se, na

Page 35: MIANG -  FONG

luz do sol poente que tudo dourava, um largo vale fértil. Parecia tranqüilo, pequenas

nuvens de fumaça, provenientes das moradias, revelavam que aqui moravam seres

humanos. Também, diante das tendas havia pequenas fogueiras, crianças corriam ao

redor, alguns adultos aqueciam suas mãos frias junto ao fogo, pois a noite caía

rapidamente e o frio já era outonal.

“São esses os Waringis?” perguntou Miang ao seu companheiro e indicou para a

linda paisagem.

“Não,” respondeu este e sorriu. Ele sentia o desejo impetuoso de Miang para

alcançar seu destino. “Não, dos Waringis ainda estamos muito distantes. Esta gente

pertence ainda à tribo amarela. Venha, vamos cavalgar até lá para pedir um pernoite.”

De início, uma decepção queria tomar conta de Miang, mas ele dominou-se.

Também não podia ser diferente, pois estavam somente um dia de cavalgada distante da

gente de Fong.

“Quanto tempo deveremos cavalgar até os Waringis?” dirigiu-se perguntando ao

seu companheiro.

“São sete dias de cavalgada,” foi a resposta dele e, com isso, Miang teve que

satisfazer-se.

Assim que se identificaram como enviados do príncipe Fong, os pastores os

receberam com prazer e ofereceram-lhes hospedagem para a noite. E um sono profundo

reanimou Miang, de modo que, na manhã seguinte, acordou com forças renovadas.

Novamente o sol brilhava, e uma alegre luminosidade pairava sobre a paisagem. Miang mal podia esperar até que mais uma vez subissem nas suas montarias e despediram-se com saudações alegres de seus gentis hospedeiros. E assim continuava, dia após dia. Quase todos os dias atravessavam mais outra cordilheira, que aqui, uma atrás da outra, cortavam a paisagem como estreitas fileiras. Sempre de novo, os cumes alegravam Miang, pois

proporcionavam uma visão mais ampla. De noite, assim que o sol se punha, os viajantes repousavam. Algumas vezes ainda encontraram abrigo junto a pastores, às vezes, porém, tiveram que pernoitar ao relento, num local protegido.

Aos poucos, Kapu, assim se chamava o acompanhante de Miang, ficou mais

comunicativo, somente a respeito dos Waringis calava-se persistentemente. Finalmente,

na manhã do sétimo dia, abria-se novamente um belo e largo vale diante dos olhos de

Miang e ele avistou um grande número de tendas brancas, que se agrupavam ao redor de

uma tenda maior.

“Aqui vivem os Waringis!” disse Kapu e indicou com o dedo para a pequena

cidade de tendas aos seus pés. Afinal, chegaram ao fim de sua viagem! Era para Miang

uma necessidade agradecer ao Altíssimo antes de seguir viagem, ao encontro de sua

missão. Sem se importar com Kapu, ajoelhou-se e orou em voz alta: “Altíssimo, eu Te

agradeço! Agora posso servir-Te. Quero fazer tudo o que de mim, Teu servo Miang,

exigires.”

Quando se levantou, as feições de Miang expressavam alegria.

“Vamos agora até os Waringis, Kapu,” disse ele.

Os dois cavaleiros aproximaram-se da cidade de tendas. Mensageiros, que os

tinham avistado de longe, já haviam anunciado a sua chegada.. Assim, já eram

esperados em frente às tendas. Um cavaleiro veio galopando ao seu encontro e parou-os.

“A quem procurais?” foi a pergunta.

“Eu procuro o príncipe dos Waringis,” respondeu Miang com dignidade.

“Eu tenho uma mensagem para ele do príncipe Fong, da tribo amarela.”

Page 36: MIANG -  FONG

“Esperem aqui!” ordenou o Waringi e voltou para as tendas.

Não demorou muito, ele retornou e acompanhou os dois emissários até a espaçosa

tenda central. Atentamente Miang olhou ao seu redor. As tendas eram construídas de

modo diferente das da tribo amarela e armadas e dispostas de modo diferente. Eram

maiores e mais ricamente ornamentadas, também a ornamenação das armas dos homens

parecia mais rica.

“O príncipe Hador pede para entrar,” disse o Waringi que os acompanhara e abriu a

cortina que cobria a entrada da tenda. Miang entrou sozinho, Kapu permaneceu fora.

Uma figura masculina alta, esbelta, não muito jovem estava à sua frente. Educadamente

Miang inclinou-se diante do príncipe Hador e falou:

“Príncipe, eu sou o emissário de uma mensagem do príncipe Fong. Ele me entregou

esta bolsa para ti.”

A seguir, Miang tirou do bolso de sua vestimenta uma bolsa de couro, bordada com

filetes de couro colorido. Kapu havia-lhe entregue de manhã com a ordem de entregá-la

somente ao príncipe dos Waringis. Hador recebeu a bolsa e observou-a

minuciosamente. Parecia que o exame resultou satisfatório.

“Sim, ela é de Fong, sua marca está aqui,” disse ele. “Permita que eu abra a bolsa.”

Sem esperar o consentimento de Miang soltou a atadura de couro verde e abriu a

bolsa. Uma exclamação de surpresa escapou-lhe: a bolsa estava vazia! O que isso

deveria significar? Olhou para Miang interrogativamente. Este teve um pressentimento,

não, uma certeza, e ele a expressou:

“Escuta, príncipe Hador,” disse Miang, e olhou-o firmemente ao pronunciar as

palavras, “Fong envia-te esta bolsa vazia como presente, para que ela venha a encher-se

aqui com dádivas da sabedoria.”

“Isso eu não compreendo,” exclamou Hador um tanto impaciente. “Explica-te mais

detalhadamete, emissário de Fong!”

“Eu o quero explicar-te,” retrucou Miang, “se quiseres me dar ouvidos com

paciência.”

A curiosidade de Hador estava despertada. Ele indicou para um assento e sentou-se

ao lado. E Miang começou: “Príncipe, tu sabes que a tribo amarela vive feliz e satisfeita

sob a sábia condução de Fong.”

“Sim, isso é verdade,” interrompeu Hador, e havia algo de pesaroso na sua voz, o

que não passou desapercebido de Miang.

“Também a tua tribo poderia alegrar-se da mesma prosperidade,” continuou

sondando cuidadosamente.

Ansioso, Hador olhou para o interlocutor, e Miang continuou: “Fong está disposto

a comunicar-te o segredo de seus sucessos.” Excitado, Hador saltou do seu assento.

“O que dizes, emissário de meu amigo Fong? Continue falando! Trazes-me o

segredo bem guardado? Recompensarei ricamente a ti e a Fong. Estamos sofrendo

muito com assaltos de ladrões de tribos selvagens nômades, de modo que nunca

podemos viver em paz. Sabes tu um meio de mantê-los afastados de nós?”

“Sim,” disse Miang firmemente. “Existe uma proteção, que é mais eficaz do que as

melhores e mais fortes armas, e essa proteção eu posso trazer-vos.”

Page 37: MIANG -  FONG

Novamente levantou-se Hador e percorreu a tenda a passos largos. “Eu tenho que

chamar os meus conselheiros,” exclamou ele e queria bater palmas, como sinal para os

criados. Miang, porém, levantou a mão, contestando.

“Assim não, príncipe,” advertiu ele. “Somente para os teus ouvidos é destinada a

mensagem que eu te trago. Somente quando tomares conhecimento da mesma, esta

poderá chegar aos ouvidos de teus conselheiros.”

Hador deu-se por satisfeito. “Então continua relatando,” pediu ele.

E agora, Miang começou a falar: “Saiba, príncipe, que existe Um que é maior e mais forte do que todos os seres humanos, nas mãos do Qual se concentra todo o poder.”

“Onde está esse poderoso? exclamou Hador com insistência. “Eu quero procurá-lo

e pedir Sua proteção e Seu auxílio.”

“Isto tu podes fazer,” respondeu Miang alegremente.

E agora ele começou a instruir Hador no saber do Altíssimo. Sempre mais queria

saber Hador, aberta estava sua alma, que já há muito, insatisfeita, tinha procurado o

verdadeiro saber. Como um campo arado para semeadura, assim a sua alma estava

diante de Miang e, a ele, ao pequeno servo do Altíssimo, era permitido espalhar a

preciosa semeadura sobre o mesmo! Grande alegria preenchia Miang e ele deu com

mãos cheias. Finalmente calou-se. Hador estava sentado, perdido em pensamentos

profundos. Neste momento, abriu-se a entrada da tenda, um homem entrou, curvou-se e

falou:

“Príncipe, chegaram emissários que desejam falar-te.”

“Então temos que terminar por hoje,” disse Hador lastimando.

“Mas volte amanhã de manhã e continue me relatando.”

Isso Miang prometeu de bom grado. Então o príncipe mandou o servo conduzí-lo a

uma tenda e tratá-lo da melhor maneira possível como hóspede da tribo.

Muito feliz sobre o início de sua atividade, Miang passou o resto do dia a observar os Waringis. Eles o agradaram bastante. Estavam vestidos com mais simplicidade que o povo de Fong, muitas vezes estavam sujos e maltrapilhos. Pareciam não dar muito valor à sua aparência, enquanto que Hador estava ricamente vestido.

Novamente, na manhã seguinte, o príncipe Hador mandou chamar Miang para

junto dele. A aparência de Hador estava diferente, notava-se um profundo vivenciar

interior. Estava mais calmo e tranqüilo, a agitação, que o inquietara ontem, havia

desaparecido. Calmos, sim, comedidos, eram seus movimentos. Novamente pediu a

Miang que se sentasse.

“Temos tempo,” iniciou ele. “Os mensageiros, que ontem nos interromperam, estão

despachados. Uma tribo vizinha, os Aulas, pedem ajuda contra os ladrões e

saqueadores. Um bando de cavaleiros selvagens assaltaram os Aulas de noite e, como

estavam em maioria, conseguiram roubar os seus rebanhos. Agora eles pedem ajuda. O

inverno está para chegar e, com ele, a fome entrará nas tendas dos Aulas. O que

devemos fazer, Miang? Aconselha-me.”

Já no início da narrativa Miang tinha pedido auxílio. Agora sabia qual o conselho

que deveria dar.

“Acolham os Aulas aqui convosco,” disse Miang pausadamente, como se pesasse cada uma de suas palavras. “Assim vós aumentais a vossa força. Se ajudares os Aulas durante o inverno, eles serão gratos a vós e vos ajudarão quando um dia estiverdes em perigo.”

Hador refletiu. “Teu conselho é bom, amigo,” disse finalmente.

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“Eu farei o que me aconselhas. Achas que o Altissimo estará de acordo se assim

agirmos? Pois eu quero fazer o que Ele aprovaria,” acrescentou meio constrangido.

Miang, porém, alegrou-se. A semeadura da verdade já havia brotado no coração de

Hador. Agora ele podia continuar.

E novamente os dois homens estiveram reunidos por longo tempo. Miang contava e

instruía, Hador absorvia ansiosamente todos os ensinamentos do mais jovem.

Horas se passaram, os dois não perceberam o decorrer do tempo. Um laço da mais

íntima confiança teceu-se entre ambos nessas ricas horas e ligou-os doravante por fiel

amizade. E a quem Hador chamava de amigo, este podia confiar na sua fidelidade e

prestatividade. Por fim, Hador terminou a conversa..

“Temos que parar,” disse lamentando. “Tenho ainda outros negócios. Mas volte

amanhã sem falta, Miang. Então vamos refletir sobre a maneira de como poderemos

transmitir a nova do Altíssimo para toda a tribo.”

E assim aconteceu. Dia após dia conversavam e deliberavam sobre como poderiam levar a verdade do Altíssimo às pessoas simples. Até agora, a tribo não conhecia um ser superior, ao qual ele adorava e orava. As almas ainda não estavam acordadas, mas não eram más, não estavam corrompidas.

“Que tal, se primeiramente reuníssemos todos os homens e eu contaria algo sobre

os “entes bons”?” perguntou Miang.

Isso também parecia o melhor a Hador. Assim, a noite foi destinada para isso.

Agrupados ao redor de uma grande fogueira, Miang falava ao rude povo de cavaleiros, e

descobriu-se que muitos deles podiam ver os servos do Altíssimo nas montanhas. Aí

tornou-se fácil para Miang, de encontrar o início. De bom grado ouviram-no os homens,

pois Miang possuía sobremaneira o dom da narrativa. Gostariam de ter ficado ainda

mais. E Miang prometeu voltar na noite seguinte, para continuar narrando.

Assim aconteceu por algum tempo, até que Miang pôde começar a falar aos homens do Altíssimo, de quem todos estes “entes bons” eram servos. Os Waringis não conheciam o medo de entes” maus”, eles acreditavam que conseguiriam saber lidar com tudo, se o enfrentassem sem medo. Miang encontrou muitos corações abertos também entre as pessoas simples e viu brotar a semeadura que lhe foi permitido semear. Agora toda noite era encerrada com um agradecimento ao Altíssimo e cada manhã iniciada com um pedido por auxílio e orientação.

Miang tentava esclarecer aos homens que eles não somente deviam obediência ao

príncipe Hador, mas antes de tudo ao Altíssimo, pois todos eram criaturas Dele, que os

criou. E isso eles entendiam bem, somente indagaram: “O que Ele nos ordena? Não

conhecemos a Sua vontade”.

Agora podia ser dado o segundo passo. Miang explicou, que o príncipe esforçava-

se por esclarecer-lhes a vontade do Altíssimo e que ele queria proceder segundo a

mesma. Eles somente precisariam seguir às suas instruções. Inicialmente deveriam,

durante o inverno, abrigar os Aulas, que estavam em dificuldades.

Aí, no entanto, houve fisionomias insatisfeitas, pois isso representava escassez de alimentos para todos. Miang, porém, esclareceu: “Como seria, se vós estivésseis nessas dificuldades? O que vós diríeis se os Aulas simplesmente vos rejeitassem levianamente?”

Desse ponto de vista o assunto já parecia ser diferente e quando Miang ainda

anunciou: “O Altíssimo vos recompensará, se vós auxiliardes os Aulas,” a maioria deles

deu-se por satisfeita.

A tribo dos Waringis despertava sempre mais no saber do Altíssimo e com bem

outros olhos os homens olhavam para o seu príncipe, que se tornara um servo do

Altíssimo. Seus olhos brilhavam e seus passos tornaram-se ainda mais firmes, as

palavras que proferia, mais determinadas.

Page 39: MIANG -  FONG

Os Aulas foram acolhidos e sustentados pelos Waringis durante o inverno. Não demorou muito e mostrou-se, que bons frutos essa ajuda abnegada trouxera. Pois no final do inverno, quadrilhas de ladrões empreenderam novamente assaltos aos rebanhos da tribo, que pastavam em região mais afastada. Como a tribo dispunha agora de

homens suficientes, sempre puderam se defender e não houve prejuízo maior.

Na primavera, depois de celebrarem votos de amizade permanente, os Aulas

partiram para pastagens mais afastadas para criar novos rebanhos. Continuaram, porém,

em ligação constante com os Waringis, os quais prometeram-lhes sua ajuda, caso a

necessitassem.

A missão de Miang junto aos Waringis estava terminada. Certa noite aproximou-se dele o luminoso e ordenou-lhe que retornasse para Fong, pois este necessitava dele. Miang estava de acordo. Mais uma vez estava ele sentado na tenda de Hador, que lamentava a sua partida. Miang, porém, prometeu: “Se necessitares conselho e auxílio, ó principe, envie um mensageiro para o príncipe Fong. Ele o ajudará.”

A despedida foi calorosa, porém curta, como é costume entre homens. Hador deu a

Miang um acompanhamento, que o conduziu em segurança de volta sobre as

montanhas.

Já apareciam os prenúncios da primavera. Os ventos sopravam mais amenos, um

verde tenro cobria as encostas e, aqui e acolá, brotava da terra o cálice colorido de uma

flor.

Miang sentia seu coração tão leve, tão feliz! Ele sabia que tinha cumprido sua

missão e, mais uma vez, agradeceu ao Altíssimo do fundo de seu coração que lhe foi

permitido cumprí-la. O olhar de Fong pairou com agrado sobre Miang, quando este

retornava. Estava mais másculo e mais amadurecido, sua postura mais determinada e

mesmo assim discreta.

“Vejo que tens aprendido alguma coisa com os Waringis,” com essas palavras

cumprimentou Fong seu antigo aluno e protegido. Nenhuma palavra de elogio sobre o

trabalho executado passou pelos seus lábios, mas isso Miang também não esperava.

Tinha somente o único desejo: ser incumbido de uma nova missão. Também não

demorou muito até que Fong o chamasse novamente.

“O Altíssimo está satisfeito com seu servo Miang,” assim iniciou a conversa, para a

qual havia mandado chamar Miang. “Porém, isso foi somente o começo de tuas

atividades. Grandes missões ainda te esperam, Miang, diante das quais a instrução dos

Waringis era somente uma pequena preparação. Mais profundamente deves penetrar

agora no saber sobre o Altíssimo, a Sua vontade e os Seus mandamentos. Para isso

necessitarás de um outro mestre, Miang, eu não posso te ensinar mais nada de novo.

Mas o Altíssimo sabe para onde quer te mandar, para poderes continuar a aprender e

amadurecer. Depois volte para cá, também aqui ainda tens missões a cumprir junto ao

meu povo, onde já começaste a ensinar. O Altíssimo mandará mostrar-te o teu

caminho.”

Miang, totalmente realizado com essa notícia, voltou para sua tenda. Ele sabia que

não devia preocupar-se, não pensar sobre o próximo passo de seu caminho. O Altíssimo

mandava guiá-lo com mão forte, ele somente devia deixar-se conduzir, então tudo daria

certo, então tudo aconteceria conforme desejado de cima, pelo Altíssimo. Novamente

Miang teve que aprender a dominar sua impaciência, seu ímpeto juvenil, pois passaram-

se dias, antes que foram-lhe transmitidos detalhes sobre sua nova missão.

Novamente Fong mandou chamá-lo e indagou: “Como é, Miang, como estás? Já

sabes, o que o Altíssimo exige de ti?”

Miang não o sabia. Começou a sentir vergonha, mas Fong não deixou chegar a

isso.

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“O Altíssimo me deu a incumbência de equipar-te para uma longa caminhada,”

disse Fong solenemente. “Tua caminhada será longa, pois servirá para que continues

amadurecendo no reconhecimento da grandeza do Altíssimo e no reconhecimento

daquilo, do que um servo do Altíssimo necessita para tornar-se realmente útil. Deves

aprender agora a abrir teu olho interior e teu ouvido interior, Miang, e é isso que o

Altíssimo exige te ti antes de tudo. Para isso é necessário que aprendas o silêncio, pois

quem quer assimilar mensagens das alturas, não pode expressar suas próprias palavras

em voz alta. Do contrário iriam sobrepor-se às finas vozes dos mensageiros luminosos,

que querem aproximar-se de ti. “Entendeste o que eu disse, Miang?”

Clara e abertamente Miang olhou nos olhos de Fong. “Sim,” disse ele, “eu compreendo e agradeço ao Altíssimo, que quer honrar-me com Sua bênção.” Fong estava satisfeito.

“Então apronta-te para partires amanhã, Miang,” acrescentou ainda. “Deverás

caminhar a pé, pois necessitarás de cada hora de tua caminhada para o teu

desenvolvimento. Leva tanta provisão quanta puderes carregar, sem te pesar muito, e,

depois, confie no auxílio do Altíssimo, que mandará conduzir-te.”

Uma emoção mais branda quis se apoderar de Fong, quando viu Miang diante de

si, ainda tão jovem, tão intocado pela vida. Porém, sabia que não poderia amolecer.

Assim dispensou Miang com breves palavras.

“Venha me ver mais uma vez amanhã cedo, talvez tenha mais uma mensagem para

ti,” foram suas últimas palavras.

Nessa noite Miang não conseguiu dormir muito. Imagens apareciam diante de seus

olhos interiores, uma seguia a outra, ele não conseguia retê-las. Seres humanos,

montanhas, animais desfilaram diante dele, percebia trajes e sons estranhos. Ele sabia

que isso estava ligado à sua missão, isso lhe bastava. No dia seguinte, ao nascer do sol,

encontrava-se Miang, pronto para a viagem, diante do príncipe Fong. Abençoando este

colocou sua mão direita sobre a cabeça de Miang.

“Siga, Miang, meu filho, para onde o Altíssimo mandar conduzir-te. Teu caminho

segue para sudeste. Tornaremos a nos ver novamente. Leve a minha bênção contigo.”

Profundamente comovido despediu-se Miang de seu velho professor. Ainda não

sabia para onde o levariam os seus passos, sabia somente que o Altíssimo mandaria

mostrar-lhe o caminho, Nele depositou toda sua confiança. E não foi decepcionado.

Quando Miang deixou a tenda de Fong, estava diante dele o seu amigo luminoso e

indicou com a mão para o caminho estreito que levava através do amplo vale até as

colinas distantes, atrás das quais encontrava-se o alvo de Miang.

“Dirija os teus passos para lá, Miang,” disse o luminoso. “Terás ajuda assim que a

necessitares.”

Alegre e fortificado caminhava Miang, distanciando-se da tribo amarela, de seu

protetor, ao encontro de um futuro desconhecido. Mas sentia alegria, nada mais que

grande alegria e feliz expectativa. Parecia a Miang, que não estava indo sozinho para o

desconhecido. Tinha a impressão de sentir leves passos ao seu lado, que agilizavam os

seus, e caminhava alegremente, ora refletindo profundamente, ora expressando palavras

alegres de agradecimento ao Altíssimo.

O caminho estreito serpenteava por entre colinas e paredes rochosas. Sempre de

novo parecia ter chegado ao fim e sempre aparecia de novo diante dos olhos de Miang

após uma curva. Perto do meio-dia esquentou, e Miang resolveu descansar um pouco.

Comeu algo de suas provisões trazidas, depois deitou-se numa encosta ensolarada e

Page 41: MIANG -  FONG

fechou os olhos. Parecia-lhe então como se ouvisse finas vozes murmurando ao seu

redor. Algumas perguntaram: “Como é que esse homem vem até o nosso reino?” E

outras responderam: “Quieto, ele foi enviado. Nós devemos ajudá-lo.” Miang não ouviu

mais nada, pois tinha adormecido. Quando acordou, sentiu frio, pois havia surgido um

vento fresco e já era de tardezinha. Assim, continuou sua caminhada. Tudo era solidão

ao seu redor, silencioso e sem vozes humanas até que, ao entardecer, encontrou

pastores, que permitiram que ele se esquentasse junto à sua fogueira . Admirados

olhavam para o estranho viandante, que era tão diferente deles. Eles acharam que

deviam advertí-lo.

“Forasteiro,” iniciou pausadamente um homem de mais idade, “cuida-te dos

assaltantes que perambulam por esta região. É um bando especialmente perigoso, pois

tem um chefe que não recua diante de nada.”

Miang não mostrou medo. “O Altíssimo irá proteger-me,” disse confiantemente.

Os pastores olharam-no admirados.

“Este deve ser um príncipe muito poderoso, que te protege,” recomeçou o porta-

voz. “Onde ele mora? Nós podemos ir até ele?”

Ali estava novamente o feliz sinal para Miang, de que ele podia dar de seu tesouro

do saber. E o fez de muito bom grado. Calados escutaram os seus ouvintes e não

interromperam sua narrativa com nenhuma palavra. Quando Miang silenciou,

continuaram em silêncio. Inacreditável

parecia-lhes essa nova.

“Quando vos encontrardes alguma vez em perigo, então chamem por Ele!” disse

Miang.

“Poderão vivenciar o Seu poder.”

Caiu a noite. Os homens enrolaram-se em cobertores quentes e deitaram-se para

dormir junto ao fogo que ia se apagando lentamente. Uma lua minguante pálida estava

no céu. Miang demorou a adormecer. Olhava para o céu escuro da noite e o seu interior

procurava Aquele cujo servo lhe foi permito ser. Invisível era o Altíssimo, isto Miang

sabia. Ele era muito elevado para o olho humano, para a razão humana. Mas, não seria

possível ver um pouco de Sua magnificência, de Sua luz? Pois, que ao redor Dele devia

estar a luz, sim, que Ele mesmo seria a luz, isso Miang sabia em seu íntimo.

Sempre quando escutava assim o seu íntimo, começava a surgir um algo dentro dele, que ele não podia segurar, não podia agarrar. Quando queria examiná-lo melhor, desfazia-se diante de seus olhos.

“Isto não é tua tarefa agora, Miang,” murmurou novamente uma fina voz no seu

íntimo, que já escutara uma vez. “Mais tarde também ser-te-á concedido aquilo por que

anseias. Mas somente quando tiveres cumprido tudo para o que o Altíssimo te necessita.

Não continua procurando agora.”

A voz calou-se e profunda paz envolveu a alma de Miang. Sobre asas macias veio

o sono e carregou-o junto. Levou-o até a altura para onde a sua alma havia ansiado

inconscientemente. Acordou na manhã seguinte fortalecido e alegre. Estava sozinho. Os

pastores haviam partido com seus animais. Mas tinham deixado um pão e um queijo ao

seu lado. Dessa forma quiseram agradecer a ele. Animado, mordeu o duro pão e comeu

o queijo gostoso. Um riacho na proximidade saciou sua sede.

“Assim Tu me deste para comer, Altíssimo, eu Te agradeço!” falou satisfeito e

preparava-se para partir. Nesse instante levantou-se à distância uma nuvem de poeira,

Page 42: MIANG -  FONG

ouvia-se o tropel de cavalos e gritos agudos. Miang esperou calmamente pelo que estava

por vir. Ele sabia que nada iria lhe acontecer, que não fosse da vontade do Altíssimo.

Com grande gritaria veio um bando de cavaleiros selvagens ao seu encontro.

Rodearam-no e desceram de seus cavalos. Um dos bandidos, aparentemente seu líder,

dirigiu-se a ele aos berros: “Quem és tu e de onde vens?”

Calmamente Miang respondeu:

“Sou um peregrino e venho do noroeste.”

“Para onde vais?” quis saber o ladrão.

“Para lá para onde serei enviado,” foi a resposta, que novamente não satisfez o

líder.

“Quem te envia?” foi a próxima pergunta, à qual Miang respondeu com toda a

calma: “Meu Senhor.”

“E quem é o teu senhor?”

Com estalo o chicote de couro batia nas altas botas, bem próximo a Miang.

“O Altíssimo,” foi a breve resposta de Miang.

Ao ouvirem esta resposta todos caíram em altas gargalhadas.

Miang, porém, permaneceu bem calmo.

“Tu até pareces como se tivesses um senhor elevado, rapaz,” riu o líder

ironicamente, que bem viu que não havia nada para roubar de Miang. “Levem-no

convosco.”

Rapidamente ataram os pulsos de Miang com tiras de couro e ele não se defendeu.

Um cavaleiro colocou-o na garupa de seu cavalo e, por bem ou por mal, Miang teve que

acompanhá-los. Não tinha a menor idéia do que iria acontecer com ele, contudo

confiava firmemente na proteção do Altíssimo.

Em galope desenfreado galopava o bando todo, que parecia conhecer aqui cada

palmo do chão. Voavam praticamente sobre o chão plano, depois desviaram para um

desfiladeiro estreito, que aparentemente levava somente a um amontoado de rochas e

deram, então, uma volta fechada ao redor de uma rocha saliente.

Admirado, Miang avistou um amplo vale, onde pastavam grandes rebanhos. Aqui e

acolá havia tendas sujas. Uma delas que, um pouco maior e originalmente mais

ornamentada, parecia ser a tenda do líder. Ao menos ele desapareceu nela e não mais

voltou.

Miang foi levado a uma tenda mais afastada e lá pôde sentar-se. Soltaram-lhe as

algemas e não mais se importaram com ele. Pelo visto, consideravam-no insignificante

demais, para dedicarem-se mais a ele. Pensativo, Miang observou os seus arredores.

Aqui estava ainda pior do que na tenda de Hisor. Isso, porém, não o oprimiu muito. Ele

sabia que aqui tinha que cumprir uma missão, e somente isso importava.

“Toma!” gritou uma voz rude e grossas mãos de homem alcançaram um pedaço de

carne e um pouco de pão para Miang.

Miang levantou o olhar. Apesar do embrutecimento exterior, havia algo de bondoso

nos olhos da selvagem figura.

Page 43: MIANG -  FONG

“Eu te agradeço, amigo,” disse Miang. O outro abanou a cabeça.“Eu não sou teu

amigo, mas deves estar com fome. Permaneça aqui, até que sejas chamado.”

Com isso deixou a tenda, e Miang ficou entregue a si próprio. Seus pensamentos

peregrinavam para longe, procuravam Fong. O que este diria se pudesse vê-lo aqui,

neste ambiente, como prisioneiro, entre ladrões? Miang teve que rir

levemente.Assim Fong certamente não havia imaginado a sua caminhada!

Nesse instante abriu-se rapidamente a entrada da tenda, o “amigo” involutário de Miang apareceu novamente e ordenou que o acompanhasse. Miang chamou pouca atenção enquanto passavam por entre as fileiras de tendas. Certamente ocorria freqüentemente que presos fossem trazidos para obter dinheiro de resgate.

Miang encontrava-se novamente diante do líder, que ainda segurava o chicote de

couro na mão direita. Ele examinou Miang minuciosamente, parecia, porém, não poder

chegar a uma conclusão sobre a sua pessoa.

“Qual é a finalidade de tua viagem?” perguntou repentinamente.

Miang hesitou por um momento. O que deveria dizer a esse homem? Ele não o

compreenderia. Aí pareceu como que a resposta lhe fosse colocada na ponta da língua e

sem refletir, Miang deu a resposta: “Eu procuro pessoas.”

“Tu procuras pessoas?” repetiu o líder admirado.

“E como queres encontrá-las aqui nas montanhas? E por que as procuras?”

“Eu as procuro para trazer-lhes tesouros.”

Avidamente brilharam os olhos do ladrão. Miang não tinha a aparência de alguém

que carregasse tesouros consigo, falava, porém, tão firmemente, que o ladrão o intimou:

“Entrega-me os teus tesouros!”

“Isso eu não posso,” foi a resposta de Miang.

“E por que não?” irritou-se o outro.

“Porque são visíveis somente a pessoas com mãos limpas.”

Miang o disse solenemente.

Perplexo, o ladrão olhou-o fixamente e a seguir involuntariamente para suas mãos

imundas.

“Isto eu não compreendo,” disse ele.

“Não, isto tu não podes compreender, pois as tuas mãos não estão limpas. Sujaste-

as com roubo e furto.”

Destemido, Miang proferiu essas palavras graves, o ladrão parecia não se

incomodar com isso.

“Eu gosto dessa vida,” disse impassível. “Eu estou bem, nós buscamos aquilo que

precisamos.”

“E tornam outras pessoas pobres e infelizes,” prosseguiu Miang. “E se viesse uma

tribo ainda mais forte e despojasse a tua tribo da mesma maneira? Como seria isso?”

“Pah,” disse o ladrão e cuspiu desdenhosamente no chão,

“não existe ninguém que seja mais forte do que eu.”

“Estás enganado,” disse Miang e ergueu-se. “Sim, existe alguém mais forte do que

tu, diante do qual tu não és mais do que um grão de areia sob seus pés!”

Page 44: MIANG -  FONG

Surpreso, o ladrão encarou Miang.

“Nunca encontrei ninguem mais poderoso do que eu,” tentava convencer Miang,

mas este não podia calar.

“Tão verdadeiro como o sol se encontra no céu, tão certo existe Um, que é Senhor

sobre nós todos, ao qual todos nós devemos obedecer! Quem se rebela contra Ele, a este

Ele poderá destruir!”

Havia algo na postura e nas palavras de Miang, que não deixava de impressionar

também este coração endurecido. Ele abaixou o olhar diante dos olhos brilhantes de

Miang e disse quase tímido:” E tu conheces este grande Senhor?”

“Sim, eu O conheço e sou Seu servo, não, Seu emissário! Ele enviou-me até aqui,

para advertir-te! Afasta-te do teu erro, senão acabarás mal!”

O ladrão pulou do assento e levantou o chicote. “O que te atreves, forasteiro? Eu

vou te mostrar que ninguém manda em mim!”

O chicote baixou zunindo, mas Miang desviou habilmente e o braço do ladrão caiu

para o lado. Ele mesmo não sabia o que lhe acontecia.

“Tu não podes me fazer mal, se o meu Senhor não o permitir”, disse Miang

calmamente.

O ladrão quis avançar sobre ele, mas o seu pé enroscou-se no tapete que estava

estendido no chão, e ele tombou pesadamente. Parecia que estava ferido, pois não

levantou logo. Miang ajudou-o a se erguer. Constatou-se, então, que não podia firmar o

pé direito no chão, devia estar fraturado .

“Reconheces agora o poder do meu Senhor?” perguntou Miang.

O ladrão olhou fixamente para ele, coisa igual nunca havia vivenciado.

“O que queres dizer com isso?” balbuciou ele. Não era capaz de formular um

pensamento claro. Miang logo aproveitou a ocasião.

“Eu quero dizer que o Senhor poderoso, de quem eu falei e que é o meu Senhor,

mostrou a ti que Ele me protege,” disse.

O ladrão não sabia o que responder. Miang, porém, prosseguiu:

“Se tivesse sido a vontade do Altíssimo, então Ele também poderia ter te matado.

No entanto, não é Sua intenção matar pessoas.

Ele quer melhorá-las, torná-las pessoas melhores, às quais é permitido viver nesta

Terra em alegria e felicidade. Podes entender isso?”

Estupidamente o ladrão olhou para Miang. Tudo aconteceu muito rapidamente, ele

não conseguia assimilar as palavras de Miang. Miang percebeu, que primeiramente

deveria ajudar de outra forma. Ele chamou por auxílio e alguns homens levantaram o

seu líder e colocam-no sobre um leito de peles macias e cobertores, rapidamente

preparado. Ele gemia de dor.

“Chamem o médico!” ordenou Miang aos homens perplexos. “O pé está fraturado,

algo deve ser providenciado imediatamente.”

Um dos homens saiu e, após instantes, voltou com um ancião de barba grisalha, que cuidadosamente examinou o pé e depois, com habilidade, endireitou o osso fraturado. O enfermo soltou um grito de dor, mas silenciou em seguida. O pé foi entalado com um sarrafo de madeira e depois enfaixado. Até então tudo estava em ordem. O que deveria acontecer agora? Por longo tempo Huda, o líder, não poderia subir num cavalo. Quem deveria liderar a tribo

Page 45: MIANG -  FONG

em seu lugar? Olhares interrogativos dirigiam-se ao enfermo, este no entanto parecia não estar disposto a dar uma resposta.

“Deixem-me sozinho com este aí!” ordenou e indicou com o dedo indicador preto-

marrom para Miang.

Os outros obedeceram, mesmo que visivelmente contrariados. O respeito por Huda

não parecia ser demasiado. Miang porém ficou calado, ele podia esperar. Por longo

tempo houve silêncio na tenda, até que Huda finalmente decidiu quebrá-lo e dar início à

conversa.

“O que disseste há pouco de um grande Senhor?” indagou.

“Como O chamaste?”

Miang alegrou-se sobre esta pergunta, e respondeu solicitamente.

“Seu nome é “o Altíssimo,” porque Ele é mais elevado e mais sublime do que

todos os príncipes da Terra. A Ele eu sirvo e Ele te mostrou, como Ele pode proteger os

Seus servos. Estás agora deitado aqui sem forças no teu leito, incapaz de levantar-te e a

dar um passo sequer. Sentes agora o Seu poder?”

Huda silenciou novamente. Longo tempo considerou sobre a pergunta de Miang.

Depois disse inesperadamente: “Então eu também quero ser Seu servo!”

“Tu acreditas que então estarias também protegido de todos os perigos, e dessa

proteção também gostarias de assegurar-te?”

Huda acenou. Isso parecia ser muito simples. Se existia Um mais forte do que ele,

o rude ladrão, então o melhor seria tornar-se servo desse mais forte. Miang leu os seus

pensamentos na testa.

“Acreditas tu, que ao Altíssimo interessam servos, que Dele somente desejam

exigir algo? O que tu dás a Ele para que Ele te proteja?”

Isso era algo totalmente novo para Huda, que até agora sempre somente tinha

exigido e tomado, nunca dado alguma coisa.

“Se devo alguma coisa a Ele, então diga-me o que devo pagar,” disse ele, e com

isso novamente tudo parecia esclarecido. Uma proteção tão forte resultaria para ele

também em tesouros maiores, portanto, ele bem que poderia prometer em ceder algo

dos mesmos.

Mas Miang novamente deu uma resposta bem inesperada.

“O Altíssimo não quer tesouros de seus servos, exige algo diferente do que um

pagamento em troca!”

“E isso seria?” perguntou Huda ansiosamente.

“Ele exige deles obediência e fidelidade” disse Miang enfaticamente. Obediência e

fidelidade – estes eram conceitos do quais Huda não havia tomado conhecimento em

toda a sua vida.

“Mas o que Ele ordena?” perguntou desconfiado.

Certamente era de ponderar se devia colocar-se sob a proteção desse poderoso. Mas

a dor no seu pé lembrou-o novamente do acontecido.

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“Ele ordena que os homens devem ajudar-se mutuamente e não prejudicar-se

reciprocamente. Ele ordena a paz e não o roubo! Pois todas as pessoas são Suas

criaturas, também tu, Huda! E eles devem viver em paz e ajudar-se mutuamente.”

Isso não era do agrado de Huda. Onde ficaria então a sua vantagem? Mas queria continuar ouvindo.

“Conte-me mais do Altíssimo,” pediu ele e, de muito bom grado, fez Miang o que

lhe foi solicitado. Ele descreveu Deus como o Altíssimo, que tudo criou e a quem tudo

pertencia. Ele falou de seus servos, dos gigantes e dos pequenos na montanha e no vale,

na água e no fogo, e Huda escutou, sem perguntar. Seus olhos sempre mais se

arregalavam e, como numa criança, estavam fixos nos lábios de Miang.

“Por hoje chega,” disse Miang finalmente. “Deves descansar agora. Amanhã

voltarei a narrar-te.”

Huda concordou, tinham sido muitas as novidades, e não demorou muito e ele

estava dormindo sossegadamente no seu leito.

Porém, no lado de fora havia visível agitação entre os seus súditos. Os homens

discutiam gesticulando muito. Provavelmente brigavam para decidir quem agora iria

liderar no lugar de Huda. Um homem de aparência rude subiu numa pedra alta e gritou

para a multidão:

“Sigam-me, eu sei um local onde se encontra pastagem gorda e onde poderemos

ficar em segurança, até que tivermos espreitado para onde devemos nos dirigir para

nossa próxima pilhagem.”

Alguns gritaram aplaudindo, muitos porém, distanciaram-se dele, o impaciente

devolveu-lhes a razão. Eles queriam aguardar o que Huda iria determinar. No dia

seguinte, quando Miang saiu de sua tenda, viu que uma parte do bando havia partido e

que uma parte das tendas tinha sido desarmada. Isso lhe convinha, deveria ter

permanecido a parte melhor. E assim era. Os insatisfeitos, os quais eram insaciáveis nos

roubos, cuja mente estava dirigida à pilhagem e destruição, tinham partido. Os outros

queriam aguardar até que o pé de Huda tivesse sarado.

O pé fraturado obrigou Huda a ficar involuntariamente ocioso, o que não havia

conhecido em toda sua vida. Dentro dele surgiram pensamentos que até então sempre

tinha dispersado. Quadros surgiram diante de seus olhos interiores, os quais não gostava

de ver, mas que não o deixavam em paz: homens e mulheres se lamentando, gritos de

crianças que foram empurradas para trás a chicote, animais berrando sendo conduzidos

para longe, não importando se muitos morressem no caminho, vilarejos queimando.

Não eram quadros bonitos que Huda teve que rever, pois sempre via a si mesmo no

centro do poder destruidor como sendo o maior culpado.

Certamente, eles tinham acumulado riquezas. Porém, isso os tornou felizes?

Sempre havia briga e discussão e, se Huda não governasse com punho de ferro, sempre

de novo haveria de sentir revolta ao seu redor. Isso ele agora percebia nitidamente e não

ficou surpreso quando foi informado de que aproximadamente um terço dos homens

havia se desligado dele e o deixado. Não sentiu desgosto por isso. Sim, algo como asco

de sua vida de até agora queria surgir dentro dele. Aí lembrou-se de Miang e mandou

chamá-lo.

Com a fisionomia alegre, Miang entrou na tenda, na qual Huda, sem poder mexer-

se, estava deitado em seu leito. Miang notou que na alma desse homem travaram-se

lutas e, cuidadosamente, interveio e procurou conduzir Huda ao completo

reconhecimento de suas más ações. Aos poucos obteve êxito, pois a alma de Huda

Page 47: MIANG -  FONG

sentiu uma leve ânsia por algo melhor. Dia após dia encontrava-se Miang sentado ao

lado do leito de Huda e revolvia cada vez mais o solo de sua alma. E chegou o momento

em que Huda irrompeu em lágrimas, lágrimas de arrependimento sobre si mesmo. Aí

Miang soube que tinha vencido, e agradeceu ao Altíssimo de todo coração.

“Tu me deste força, Altíssimo, eu Te agradeço!”

E somente agora o saber do Altíssimo pôde encontrar solo fértil em Huda. No dia

em que novamente conseguiu firmar o seu pé no chão e tentar os primeiros passos, este,

que estava diante de Miang, era um homem diferente do que havia sido ainda poucas

semanas atrás.

“O que deve acontecer agora?” perguntou preocupado.

E Miang respondeu: “Agora deves reparar o que erraste, para que o Altíssimo

possa perdoar-te.”

Isso era o mais amargo para Huda, encarar os seus e ter que confessar a sua culpa.

Mas Miang estava ao seu lado, ele o apoiou e o efeito foi totalmente surpreendente.

Entre aqueles, que continuaram fiéis a Huda, havia muitos que estavam cansados da

vida selvagem, da constante inquietação. Eles estavam satisfeitos em tornar-se

sedentários e de levar uma vida pacífica.. Mas onde eles seriam tolerados? Em toda

parte eram temidos, todos fugiam deles e ninguém haveria de querê-los em sua

vizinhança.

“Vós deveis ir até eles e devolver o gado roubado,” exigiu Miang, “então eles

ficarão convencidos de que a vossa intenção é séria.”

Huda pediu a Miang para que ainda permanecesse por algum tempo a fim de ajudá-

los a iniciar uma vida nova. Miang concordou com prazer, pois bem sabia que ainda não

podia abandoná-los à própria sorte. A sua vontade ainda era muito fraca, ainda não se

adaptaram à nova vida que queriam começar e, sobretudo, ainda não haviam encontrado

um local onde pudessem permanecer.

Na manhã seguinte, um emissário, que havia sido enviado, trouxe a notícia de que a

somente dois dias de viagem a tribo dos Aulas havia se estabelecido, a qual eles tinham

pilhado no verão passado. Esta era a melhor oportunidade para um novo começo! Miang

sugeriu que ele mesmo, com alguns emissários, queria ir até os Aulas, oferecendo-lhes

total indenização e tentar uma aliança duradoura, que viria proporcionar uma

sobrevivência a ambas as tribos.

Agradecida, a tribo aceitou esta oferta e, já na manhã seguinte, Miang partiu,

acompanhado por aproximadamente uma dúzia de homens mais velhos, em direção aos

Aulas. Tudo decorreu conforme desejado. Inicialmente, os Aulas não queriam confiar

nos assaltantes e em suas promessas, porém, quando Miang responsabilizou-se pela

veracidade de suas palavras, oferecendo-lhes completa indenização, declararam-se

dispostos a ajudar os antigos ladrões a iniciar uma nova vida. Prometeram auxiliar-se

mutuamente, caso uma ou a outra tribo passasse por necessidades.

Miang permaneceu ainda por algum tempo junto aos ladrões que agora se tornaram

sérios, ensinava e instruía no saber do Altíssimo e prometeu, quando teve que despedir-

se, voltar futuramente para visitá-los. Ele devia agora reiniciar sua caminhada,

ignorando para onde ela o levaria. Ao seu querer próprio já há tempo havia renunciado.

Sentia-se feliz em poder deixar-se conduzir. Qual seria agora o seu próximo destino?

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Uma voz sedutora o chamava para longe. Ele sabia que ainda tinha muito a

aprender antes que se tornasse totalmente aquilo que era a íntima aspiração ardente da

sua alma fogosa. Em noites solitárias, cada vez mais intensamente, brotava no seu

íntimo uma lembrança de uma promessa, que o prendia e que devia cumprir. Teciam-se

fortes laços invisíveis do ser humano Miang para mundos superiores, dos quais vinha a

sua força e a sua condução. Percebia-o com gratidão, mesmo que somente o reconhecia

inconscientemente.

Passaram-se dias, sem que Miang encontrasse ser humano algum. A sua provisão,

recebida dos pastores, estava acabando. Então, de tardezinha, quando tinha novamente

escalado um desfiladeiro, tendo ao seu redor a solidão, seu pé bateu contra um

monumento de pedras empilhadas. Pontiagudo, destacava-se do céu noturno. Se não

tivesse batido nele, não o teria percebido. Agora seu olhar se fixava nele e o examinou

cuidadosamente. Não parecia ter sido construído por mãos de gigantes, para isso era

pequeno demais e também diferente. Expressava ser feito por mãos humanas e com

pensamentos humanos.

Mas como poderiam existir seres humanos nessa solidão? Miang olhou ao seu

redor. Não se ouvia nenhum som além do murmurar de uma pequena fonte, que

procurava seu caminho montanha abaixo, entre pedras e penachos escassos de capim e

musgo. Avistou, então, uma fenda na rocha. Parecia haver uma luz no seu interior, que

brilhava para fora.

Sem refletir, Miang entrou e encontrou-se, após alguns passos tateantes através de

um corredor estreito, numa espaçosa caverna na rocha, que recebia farta iluminação

através de uma abertura no meio do teto. De pé, diante de si, Miang viu um ancião com

os braços levantados em oração e com os olhos fechados. Silenciosamente moviam-se

os seus lábios. Miang não ousou adiantar-se. Esperou até que o espírito do eremita

pareceu ter se voltado novamente ao seu ambiente terreno. Abriu os olhos, e

contemplou Miang sem qualquer sinal de admiração. Parecia que o esteve aguardando,

pois examinava-o longa e perspicazmente com olhos claros e perscrutadores, que

pareciam penetrar até o fundo da alma de Miang. A seguir, indicou para um assento de

pedra e começou a falar:

“Tu foste anunciado a mim, aluno. Devo instruir-te no que eu te posso ensinar.

Começaremos.”

E sem mais, começou a anunciar para Miang o Deus único, sublime, sábio e

onipotente, diante de cujo poder e força a Terra estremece, as rochas despencam e as

estrelas escurecem, que pode ceifar seres humanos com a foice de sua ira, quando

trilham caminhos errados, maus. Porém, cujo amor paira também, qual um sol todo

poderoso, sobre a vida humana, perpassando-a e aquecendo-a, desabrochando-a, quando

submetem-se à Sua mão.

Sem respirar, escutava Miang. Ainda por muito tempo, depois de o sábio ter

silenciado, veio-lhe de suas palavras uma força como nunca antes tinha sentido e

parecia como se cada uma de suas palavras continuasse a viver dentro dele, se

enraizasse e começasse a florescer e carregar frutos. No silêncio, que doravante sempre

sucedia longamente às instruções do sábio, provinham para Miang os frutos mais

maduros do reconhecimento.

Por longo tempo Miang viveu externamente uma vida tranqüila, interiormente,

porém, uma vida muito ativa junto a Huang, o eremita na caverna de rocha do

Karakorum. Bem-aventurados foram esses meses para ele. Parecia como se Huang

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retirasse um véu atrás do outro de seus olhos espirituais e como se irradiasse por detrás,

sempre mais luminosa, mais clara e mais grandiosa, a magnificiência do Altíssimo.

Correntes de força fluíam até ele nas noites silenciosas, enquanto estava deitado imóvel

sobre seu leito e abrindo o seu interior, para não perder sequer uma gota da bênção, que

queria revelar-se a ele. E no silêncio dessas noites claras crescia, ignorada por ele, a sua

força interior. Ele reunia forças para o futuro, riquezas eternas, que aumentavam no

silêncio, produziam frutos e fazendo brotar novas riquezas.

Miang tinha se acostumado totalmente ao silêncio. Escutava a sabedoria de Huang,

raras vezes fazia uma pergunta. Pois sabia: se ele levasse, o que ainda não estava

claramente reconhecido, no silêncio de seu interior para o alto, então lhe afluía logo

total clareza de todos os lados, e não havia necessidade de novas perguntas. Dessa

forma aprendeu, em si próprio, a bênção e o poder do silêncio. Para toda a sua vida isso

foi de grande, até decisiva importância. Do silêncio pofundo, pacífico e tão

imensamente vigoroso em sua alma, brotava reconhecimento sobre reconhecimento,

saber sobre saber. Também este aprendizado passou mais rapidamente do que ele o

desejava. Certa noite, aproximou-se novamente seu amigo luminoso do seu leito e

ordenou-lhe a deixar Huang.

“Ele te ensinou o que sabia, sua missão em relação a ti terminou. Agora ele pode

regressar aos eternos jardins celestiais e de lá continuar servindo com alegria.”

Assim falou o luminoso emissário de Deus, e Miang tinha que submeter-se a essa

decisão. Sem perguntar, sem lamentação, somente cheio do agradecimento mais

profundo, despediu-se de Huang, que lhe tinha ficado tão caro e que não reencontraria

nesta vida. Abençoando, o ancião colocou as mãos sobre sua cabeça.

“Siga o teu caminho, Miang, servo abençoado do Altíssimo. Traga aos seres

humanos, que anseiam por isso, o saber que trazes dentro de ti. Ajuda-os em sua

fraqueza a encontrar o caminho certo.”

“Agradeço ao venerável pai por toda a bondade que me tem demonstrado,” foi tudo

o que Miang conseguia responder.

Com isso despediu-se, para nunca mais voltar a este lugar. Uma vez mais

contemplou o monumento eregido por Huang diante de sua caverna, para chamar a

atenção de Miang. A seguir, firmou corajosamente seu cajado no chão rochoso e

começou a descer em direção ao sul, até um novo país, novos seres humanos, cujo

idioma talvez não mais pudesse compreender. No entanto, sempre encontraria o mesmo

medo, a mesma ignorância e a mesma miséria apática em suas almas. Alegremente

caminhou nesta bela manhã, disposto a servir e a ajudar.

Miang tinha alcançado uma nova etapa de sua vida, isso ele sentia nitidamente.

Qual um botão de uma flor, que rompe os seus invólucros protetores, estava seu espírito

prestes a desabrochar completamente. Os ensinamentos do sábio Huang foram o sol da

primavera, que fez com que os invólucros se rompessem. Miang nunca havia se sentido

tão leve como agora, quando descia as encostas íngremes da cordilheira, em direção ao

sul. Novamente a vida estendia-se diante dele como um enigma não solucionado. O que

este reservar-lhe-ia para o futuro?

Desta vez, não tardou muito até encontrar seres humanos. Eram pastores outra vez,

porém, vestidos de modo diferente dos até agora conhecidos, e seu idioma já se

diferenciava do da tribo amarela e dos Waringis. Os sons soavam mais suavemente,

porém ainda era possível uma boa comunicação. Amavelmente ofereceram a Miang

pão, leite talhado de égua e queijo e, agradecido, ele aceitou o alimento. Teve

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dificuldade de conversar com as amáveis pessoas por longo tempo. Estava

demasiadamente desacostumado de falar. Mas eles também não o exigiam,

respeitosamente observavam o jovem, cujos olhos claros testemunhavam o espírito

incandescente no seu íntimo. Eles o percebiam, sem mais tecer pensamentos a respeito.

Mais e mais desceu Miang cordilheira abaixo, ao encontro de novas vivências. Ele

não questionava, não cismava, seguia a voz do seu íntimo, que ainda continuava

indicando para o sul. Aos poucos, as encostas se tornavam mais formosas, cobriam-se

de arbustos floridos. As montanhas ficavam mais baixas, em compensação, o capim era

mais suculento e abundante, os rebanhos mais numerosos. Satisfeitas pareciam as

pessoas que moravam aqui, em povoados fixos, com casas com telhados planos, que se

acomodavam, de preferência, nas fendas da cordilheira. Ainda mais estranhos soaram as

palavras de seu idioma ao ouvido de Miang, mas inconscientemente acostumava-se aos

novos sons e não teve dificuldade de se fazer entender. Solicitamente as pessoas

ofereciam provisões ao viajante calado, quando chegava a eles silenciosamente. Através

desse caminhar em silêncio, Miang absorveu muitas coisas em sua alma. Eram

vivências totalmente novas, as quais ainda não conseguia expressar em palavras, mas

que mais tarde lhe seriam de grande valia.

Certo dia, ao entardecer, chegou a uma povoação maior, na qual havia grande

agitação. Muita gente estava aglomerada e discutiam aos gritos. Apontavam em direção

ao oeste, Miang não conseguiu compreender o motivo dessa agitação. Calado, ficou

parado nas proximidades da aglomeração de pessoas. Nesse instante, uma mulher com

uma criança no colo distanciou-se da multidão. Soluçando fortemente, ela ia passando

por Miang, sem o perceber. Aí, seguindo a um sentimento irresistível, ele colocou sua

mão direita levemente sobre o braço dela, e algo tão dominador estava nesse movimento

calmo, que a mulher involuntariamente parou, levantando seu olhar cheio de lágrimas

para Miang.

“Qual é a tua dor, irmã?” perguntou Miang, e seu olhar tranqüilo pousou qual

bálsamo sobre sua alma.

Soluçando, a mulher respondeu: “Eles querem me tirar o meu filho, dizem que era

impuro e traria desgraça a todos nós. Mas eu não o entrego, certamente que não. Prefiro

que me matem!”

“Acalma-te,” disse Miang com voz sonora. “Ninguém pode tirar-te o teu filho, que

o Altíssimo te deu de presente, para que faças dele um ser humano.”

Ao ouvir essas palavras, a mulher começou a soluçar mais fortemente e a criança,

um menino de aproximadamente três anos, que até então havia escondido seu rosto no

pescoço da mãe, virou-se para Miang. Este assustou-se profundamete, pois nos olhos da

criança estava o olhar indomado de uma fera. Nunca havia visto algo semelhante.

“O que há com teu filho?” perguntou suavemente e a mulher relatou:

“Hun-fu era uma criança querida, sempre calma, até há pouco. Ele obedecia de

bom grado e era a minha única alegria, pois sou viúva. Meu marido despencou nas

rochas e ficou lá embaixo destroçado, quando quis salvar um animal perdido. A partir

daquele dia Hun-fu modificou-se. Ficou doente de susto, pois presenciou quando

trouxeram o cadáver despedaçado de seu pai para casa. Ele caiu em convulsões e,

quando acordou, mordia e arranhava a quem queria aproximar-se dele. Os outros dizem,

agora, que um espírito mau entrou nele, e que sua alma havia seguido o pai para o reino

intermediário. Eu, porém, amo meu filho e não quero perdê-lo.”

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E afetuosamente apertou o menino em seus braços. Este, no entanto, ficou inquieto.

Parecia como se não suportasse a proximidade de Miang. Ele quis se desvenciliar da

mãe e bateu nela, quando esta não quis soltá-lo. Miang, entretanto, viu algo que ainda

nunca havia visto antes. Ele viu a alma tímida e medrosa da criança, mal animada pela

vida, empurrada para o lado por uma sombra escura, que deitou em cima dela e a

privava da respiração. E a sombra escura golpeava em sua direção e gritava-lhe palavras

más e ignominiosas, das quais a mãe se assustava.

“Deixe-nos ir,” pediu ela, mas Miang abanou a cabeça.

“Eu quero ajudar a ti e ao teu filho,” disse ele e, fixando bem a criança, obrigou a

sombra escura a dobrar-se diante de sua vontade. Reunindo toda a força de sua alma,

Miang levantou os braços e rogou:

“Altíssimo, olha do alto para nós! Veja esta pobre criança, à qual se aproximou o

demônio! Livra-a de sua carga.”

Fervorosamente rezava Miang, e como fascinados escutavam as pessoas

circundantes que haviam se aproximado. E quando Miang rezava, o espírito mau dentro

do menino gritava e queria defender-se. Miang, porém, colocou sua mão sobre a cabeça

do menino. Força do alto atravessava-o ardentemente e transmitia-se à criança. Com um

grito de raiva o trevoso soltou a sua vítima e a criança caiu, sem sentidos, nos braços da

mãe.

“Ele irá curar-se,” disse Miang com voz sonante e tão grande era a força que partia

dele, que ninguém se atreveu a contestar.

“Deixa dormir o teu filho por longo tempo,” disse à mãe. “Depois ele será te

presentado de novo. Mas depois protege-o de tudo o que é mau, para que este não torne

a apoderar-se dele.

Profundamente emocionada, a mulher afastou-se em direção à sua casa. De Miang,

no entanto, aproximou-se um homen e perguntou: “Forasteiro, quem és tu? E o que

fazes aqui em nosso povoado?”

Miang dirigiu seu olhar claro para o interrogador.

“Tu também necessitas de ajuda, porque assim me perguntas?

“Certamente, deves ser um sábio, pois adivinhas os meus pensamentos,” respondeu

o homem, admirado. “Em casa está a minha esposa, doente há semanas, não reconhece

ninguém e recusa todo tipo de alimento. Ninguém conseguiu ajudá-la. Permitas-me de

pedir a tua ajuda?”

Confiança estava nas palavras do pedinte e Miang soube que aqui aparecia uma

nova oportunidade para atuar. Solicitamente acompanhou o homem que seguia feliz na

sua frente, até uma choupana pobre, localizada um pouco afastada. No seu interior

estava abafado. O ar no ambiente revelava a presença de uma pessoa muito doente.

Miang aproximou-se. Inquieta, remexia-se uma mulher, relativamente jovem, em seu

leito. Seus lábios murmuravam palavras incompreensíveis. Silenciosamente o homem

chegou perto dela e dirigiu-lhe a palavra. Ela parecia não ouví-lo. O olhar de seus olhos

arregalados era vago. Parecia que enxergava algo a grande distância, do que seu olhar

não conseguia desvencilhar-se e que preenchia-a de terror.

Miang recolheu o seu íntimo em prece fervorosa. Depois pegou uma das mãos

irrequietas na sua e segurou-a com calma. Imediatamente sossegaram-se os movimentos

estremecedores do corpo, feliz o homem constatou-o. Mal ousava respirar. Fixamente

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fitava Miang. O que ele faria agora? Miang fechou os olhos, enquanto segurava a mão

da mulher na sua. Silenciosamente pedia força para poder ajudar essa alma e livrá-la de

seu sofrimento.Quadros surgiram diante dos olhos internos de Miang. Ele via a mulher,

como moça jovem vivaz, no círculo de seus irmãos. Ela parecia ser uma das mais

alegres. Ele a via no próprio lar, ao lado de seu esposo, feliz e satisfeita. Então uma

sombra apoderou-se dela. Ela a agarrava. Com um grito ela caiu e uma mão escura

apertava a sua garganta, mal podia respirar.

Miang voltou-se para o homem: “O que aconteceu no dia em que a tua mulher

adoeceu?” perguntou severamente.

O homem ficou constrangido.

“Eu não me lembro mais, já faz muito tempo, senhor.”

“Lembra-te, caso contrário tua mulher morrerá,” exigiu Miang.

O homem começou a tremer. Abaixou os olhos. Minutos passaram, o silêncio

tornou-se opressivo. Gemendo a doente virava-se de um lado para o outro.

“Fala!” ordenou Miang novamente. “Olha para ela, o corpo não vai agüentar por

muito tempo.”

Hesitante, o homem contou: “Ó grande sábio, que tudo vês, eu quero contar-te o

que também pesa no meu coração desde aquele dia infausto e o que ainda não confiei a

ninguém.

Hu-na, minha mulher, esteve cedo no templo, para levar uma oferenda. Ela queria

rogar novamente para que nos fosse presenteado um filho, pois ainda estamos sem

filhos e essa amargura tivemos que engolir diariamente. Era nosso maior desejo e,

muitas vezes, já fizemos oferendas para isso, sempre em vão.

“Devemos fazer uma oferenda maior,” disse Hu-na para mim. “Não é suficiente

que eu leve frutas e flores para lá. Deve ser alguma coisa viva, se quisermos ser

presenteados com um filho vivo.” Mas de onde iríamos tirar um sacrifício? Somos

pobres, como vês, ó sábio, e possuímos somente o necessário. Hu-na, porém, não

sossegava. Dia e noite torturava-me com o desejo, de ter que fazer um sacrifício de algo

vivo. E finalmente prometi de conseguir um. Furtivamente entrei na propriedade do

meu vizinho e roubei uma ovelha e levei-a para minha esposa. Ela ficou muito feliz e,

juntos, a levamos até o templo, para sacrificá-la. O sacerdote matou-a e nos prometeu

que o nosso desejo seria realizado. Porém, esperamos em vão, e Hu-na continuava sem

filhos. Como uma doença isso roeu a sua alma. Onde avistava mães com crianças

pequenas, ela tinha que desviar os olhos. Ela começou a invejar outras mulheres mais

felizes, pela sua sorte. Dia e noite não pensou em outra coisa além de que maneira

poderia conseguir um filho.

“E então veio o dia infeliz, “o homem hesitou, como se não pudesse continuar. Mas

Miang não tirou os olhos dele.

“Minha mulher havia me deixado, ela não tinha agüentado mais. Quando acordei,

seu leito estava vazio. Pressenti algo de ruim. Rapidamente a procurei em todo lugar,

mas não pude encontrar uma pista dela. Fui até a frente da casa, mas lá também não

encontrei nada que pudesse indicar para onde poderia ter-se dirigido. Aí me lembrei

que, ultimamente, olhara muitas vezes para a encosta íngreme, ao lado do nosso vale e

muitas vezes mencionara: “Quem lá se jogasse dos altos rochedos, este encontraria a sua

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paz.” Aí eu soube onde deveria procurá-la e corrí atrás dela. Ela já estava muito longe e

eu tive que me esforçar ao máximo para aproximar-me dela.

Sem fôlego eu subia, reunindo todas as forças e, quando o caminho estreito

dobrava num bloco de rocha, vi minha mulher diante de mim, como ela corria, sem se

virar, sempre mais para o alto, como se um poder invisível a impelisse para o cume

mais elevado.

Pressionando firmemente contra si, levava ela uma trouxa. Eu não podia

reconhecer o que era que ela estava levando. Quando, porém, cheguei mais perto, ouvi

um leve choro que saia da trouxa, e eu me assustei muito. Tive que parar um momento

para respirar fundo e esse momento foi suficiente para torná-la novamente inalcançável.

Como que se não sentisse cansaço, tontura, subia ela sem parar até a borda saliente de

um alto rochedo e, de lá, jogou a trouxa para baixo. Depois debruçou-se para olhar atrás

dela.

Me deu arrepios. Juntei minhas últimas forças e conseguí agarrá-la ainda na manga,

quando ela estava prestes a também jogar-se para baixo. Parecia como se agora todas as

forças a tivessem abandonado, ela caiu em meus braços e eu a puxei para longe da

borda perigosa.

“Hu-na, o que fizeste?” exclamei sacudindo-a.

Então ela despertou como de um sonho.

“A criança!” gritou ela. “Eu tinha que sacrificar uma criança, para que os deuses

me dessem uma!”

“De onde tiraste a criança?” perguntei horrorizado.

E, olhando-me, ela respondeu:

“Ninguém me viu, entrei bem silenciosamente e tirei a criança de Fu-sa. Ela ainda

tem muitas crianças, não lhe fará falta.”

Sacudí-a novamente com força e gritei horrorizado:

“E tu jogaste a pobre criança no abismo? Não escutaste o seu choro?”

“Escuta!” disse Hu-na e, no silêncio ao redor, ouvimos claramente um choro

lamentoso vindo lá de baixo. Soava miseravelmente abandonado e Hu-na tremia no

corpo todo, quando o escutou. “Os deuses não aceitaram o sacrifício!” murmurou ela e

depois caiu desmaiada aos meus pés.

Eu a levantei e a levei para casa. Não podia cuidar da criança, senão Hu-na teria

morrido, e não havia caminho do alto para o abismo, no qual a trouxa havia caído. Com

grande esforço consegui levá-la para casa, mas desde então ela está deitada aqui como a

vês, ó sábio. Eu te rogo, agora que sabes da verdade, ajuda-a, ajuda a pobre Hu-na!”

Profundamente abalado, Miang escutava o relato sobre o estravio dessa alma

humana. Como uma maldição paralizante pesava sobre ela a grave culpa e não a

deixava restabelecer-se. O que podia ser feito aqui? Ele sentiu que a mulher ficava mais

calma quando a tocava com a mão, quando a colocou na sua testa quente. Por longo

tempo a deixou aí e refletia sobre o relatado. Assim os seres humanos se enredam em

culpa e não conseguem livrar-se dessa rede sozinhos. Novamente gemeu a enferma. Ela

abriu os olhos e, pela primeira vez, havia neles algo como um reconhecimento.

Miang curvou-se sobre ela.

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“Hu-na,” disse ele, e sua voz soante parecia encher todo o ambiente, “Hu-na,

arrependes-te daquilo que fizeste?”

Assustada, a mulher levantou o braço em defesa. Miang porém, não cedeu e

obrigou o olhar dela para o seu.

“Tu roubaste um filho de uma mãe, no delírio de que seu sacrifício pudesse te

ajudar! Não sabes que com isso te sobrecarregaste com uma grave culpa? Veja a mãe

que chora pelo seu filho perdido e isso deveria ajudar-te a obter uma criança? Com isso

barraste o caminho da alma que queria aproximar-se de ti. Ela agora não pode chegar

até ti, a tua culpa se interpôs entre vós duas.”

Hu-na irrompeu num choro compulsivo. Parecia que, com isso, dissolvia-se a

convulsão, que há tanto tempo a dominava.

“O que devo fazer?” lamentou-se ela.

“Corrija o teu erro,” disse Miang.

“Isso eu não posso,” lamentou Hu-na novamente, e seu choro aumentou.

“Sempre pode-se corrigir alguma coisa,” consolou Miang.

“Eu vou ajudar-te para isso, porém, antes de tudo, peça perdão ao Altíssimo, o

Qual tu zangaste com a tua má ação.”

Agora, Hu-na estava disposta a tudo e Miang podia semear os primeiros grãos de

um melhor reconhecimento na alma perturbada da pobre mulher. Depois dirigiu-se ao

homem.

“Trata-a bem, para que ela possa recuperar suas forças,” ordenou ele. “Então eu

voltarei e continuarei ajudando.”

O homem queria agradecer efusivamente, mas Miang recusou. Ele tinha que

respirar ar puro, nada mais o segurava aqui. Ele saiu da tenda e respirou fundo. Sentiu-

se melhor aqui fora ao ar livre e, involuntariamente, dirigiu seus passos para fora do

pequeno povoado. Logo havia deixado as choupanas para trás. Encontrava-se num

caminho que o levava através de arbustos floridos de média altura. Respirava fundo o

perfume das flores. Como era refrescante depois do ar abafado no quarto da enferma.

De repente, veio ao seu encontro um estranho cortejo. Homens vieram com um tipo

de maca. Nela parecia haver um doente. Ele estava coberto, não se podia ver o que

estava escondido embaixo da coberta. Miang parou e quis deixar passar os carregadores,

mas um impulso inexplicável fez com que perguntasse o que estavam carregando aqui.

Solícitos, os carregadores colocaram a maca no chão e secaram o suor de suas testas.

Um pequeno intervalo pareceu-lhes bem-vindo.

“Estamos levando Hung para o sacerdote, ele está velho e sua alma está disposta a

entrar no reino intermediário,” responderam.

“Posso vê-lo?” pediu Miang, e os carregadores levantaram a coberta.

Miang viu um rosto de ancião no qual estavam estampados os vestígios de uma

idade avançada. O homem estava deitado tranqüilamente, sua respiração era leve.

Miang já queria prosseguir, mas teve que fazer mais uma pergunta:

“Para onde o levais, homens?”

“Ao templo, para o sacerdote, para que esse possa rezar suas preces e ajudá-lo a

encontrar o caminho,” responderam naturalmente.

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“Para o reino intermediário?” perguntou Miang. “E o que ele vai fazer lá?”

“Lá ele aguarda até que haja novamente um corpo, no qual ele possa morar. O seu

corpo atual ficou muito velho.”

“E assim vós sempre voltareis em um corpo novo?” perguntou Miang. “Podeis

escolhê-lo?”

“Isto nós não sabemos,” foi a resposta dos carregadores e, com isso, levantaram a

maca e queriam seguir caminho. Ao levantar a maca, porém, algo moveu-se na

extremidade inferior da maca, a coberta deslocou-se e Miang viu que ali havia mais uma

pessoa, uma criança pequena, que o mirava com seus olhos grandes.

“Quem é essa criança?” perguntou ele e mais uma vez os carregadores deram

informação.

“Hung encontrou-a nos arbustos há algumas semanas. Estava chorando e ele

escutou seus lamentos. Então subiu e apanhou-a. Ele quer entregá-la ao sacerdote.”

Miang estremeceu. Poderia ser essa a criança que foi atirada por Hu-na, e seria

possível um salvamento tão maravilhoso? Pediu que os homens descrevessem o local

onde Huang a havia encontrado. Não havia dúvidas, aqui ocorreu um milagre e a alma

de Hu-na estava libertada da culpa mais grave.

“Entreguem a criança a mim,” disse ele aos homens admirados. “Eu sei a quem

pertence e eu vou levá-la até sua mãe.”

Eles concordaram e assim Miang acolheu a leve carga e levou-a de coração feliz

até a choupana de Hu-na.

Lá, ele não era esperado. Tanto maior foi a surpresa quando ele retornou tão

depressa e, quando colocou a criança nos braços de Hu-na, as lágrimas correram

abundantemente e carregaram consigo a última teimosia, a última perturbação.

“Agora podes reparar o teu erro, Hu-na,” disse Miang muito feliz. “Devolva a

criança à mãe e peça-lhe perdão.”

“Desaparecerá com isso o obstáculo entre mim e a alma que quer vir?” perguntou

Hu-na receosa.

Miang confirmou. “Se te arrependeres sinceramente do teu delito e prometeres

nunca mais fazer tal coisa, então tudo pode ficar bem. Agora o teu marido deve chamar

a mãe da criança, pois tu estás muito fraca para ir até ela.”

E assim aconteceu. Fu-sa apertou seu filho nos braços e, na alegria de tê-lo de

volta, esqueceu de sentir raiva de Hu-na. Miang, porém, pôde mostrar às pessoas, agora

novamente felizes, que maravilhoso auxílio havia salvo a criança e de quem partiu essa

ajuda. Ele encontrou corações abertos, pois o sofrimento, assim como a alegria, os havia

amolecido.

Miang teve que prometer que voltaria e contaria mais do Altíssimo. A missão de

Miang nessa localidade parecia terminada, somente uma coisa ainda o ocupava muito: a

crença da volta do “reino intermediário”. Ele pediu ao seu amigo luminoso clareza sobre

estas questões e ela também foi lhe dada.

Foi lhe permitido ver o caminho seguido pela alma de Hung, que estava partindo,

quando esta pôde deixar seu corpo. Não podia afastar-se muito de seu invólucro antigo.

Muitos fios resistentes, densos, ainda a deixavam presa a ele, pois os olhos da alma

estavam direcionados para a Terra e para o retorno à Terra. Finalmente, ficaram mais

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fracos e caíram, secos, pois a alma começou a observar o seu novo ambiente. Um

grande número de figuras e formas a cercavam. De início, não conseguia orientar-se.

Esse, portanto, deveria ser o “reino intermediário”! Porém, se era apenas um” reino

intermediário”, situado entre dois reinos, dos quais um deveria ser a Terra, onde então

estava o segundo?

Quando Miang chegou a essa ponderação, abriu-se uma fenda no “céu”que cobria o

reino intermediário, e ele avistou, muito distante desse mundo, uma luz brilhante e

maravilhosos jardins, nos quais seres humanos felizes estavam atuando diligentemente.

O coração de Miang jubilava. Esses luminosos jardins pareciam-lhe familiares, eles

deveriam ser o destino de muitas almas humanas que vagavam e procuravam no reino

intermediário, sem saber o que realmente lhes fazia falta.

“Olhem para cima!” tentou Miang gritar para elas, mas ninguém o escutava. Qual

formigas, que entram em seu formigueiro e dele saem novamente, assim pareciam a

Miang as numerosas almas, que lá se detinham sem poderem prosseguir. De tempos em

tempos desaparecia uma alma e Miang podia ver como ela retornava à Terra e lá

iniciava uma nova vida. Mas o que adiantava a nova vida, se ela não levasse a novos

reconhecimentos? Deveria continuar um constante perambular entre a Terra e o reino

intermediário? Qual seria o sentido disso?

Tristeza queria apoderar-se de Miang, sobre a inutilidade de tal vida humana, mas

depois ponderou: “Para isso o Altíssimo enviou-me para os seres humanos, para que eu

lhes mostre para onde deve levar a sua caminhada, que não devem ficar retidos no reino

intermediário, mas caminhar, ascendendo para os jardins eternos.”

Cinzento e turvo parecia tudo no reino do meio, nas alturas, porém, havia luz clara,

beleza e alegria. Quem chegasse lá em cima, este certamente não precisaria retornar à

Terra, este teria encontrado sua meta e poderia ser um servo do Altíssimo em felicidade

e alegria. Miang estava agradecido pelo novo saber. Agora poderia ajudar aos homens

ainda melhor, poderia advertí-los, para que não se prendessem à Terra, e mostrar-lhes o

caminho para os jardins celestes.

Animado, retomou novamente a sua caminhada, que o levava ainda mais para o

sul. O solo tornava-se cada vez mais fértil, a colheita era mais abundante, as árvores

estavam carregadas de frutos doces. Que seres humanos felizes deviam morar neste

paraíso! Ao passar, Miang os observava mais atentamente. Estavam vestidos mais

ricamente e mais bonitos, portavam a cabeça mais erguida do que os pobres pastores no

alto das montanhas e suas moradiam demonstravam riqueza. Entretanto, eram eles

também mais felizes? Com toda essa beleza que os cercava, deveria pairar sobre eles

um brilho como o do sol. Mas nada disso se via. Ao contrário, aborrecidos olhavam por

sobre todo esse esplendor que parecia não alegrá-los. Qual seria o motivo?

Miang aproximou-se de um pequeno templo, para o qual afluíam pessoas com

grinaldas de flores nos cabelos e nas mãos. Entrou junto com elas. O ambiente era

despojado e feio. Somente no fundo alguns degraus conduziam para um pedestal,

entronado por uma imagem horrível. Era, em traços grosseiros, uma espécie de figura

feminina, pintada toscamente. Diante dessa figura as pessoas colocavam suas flores,

ajoelhavam-se e murmuravam algumas palavras, que deveriam ser uma oração. Depois

levantavam-se com fisionomias impassíveis e deixavam novamente o templo. Miang

assustou-se profundamente. Isto seria um templo, um local de adoração? Como isso era

possível? Para ele seria impossível orar neste ambiente. Sufocante era a opressão de

muitas figuras grotescas, que estavam penduradas nas paredes e que também se

prendiam nas pessoas presentes no templo.

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Agora descobriu, atrás do ídolo, uma figura que lhe passara despercebida na turva

penumbra do templo. Estava aí, imóvel, com os braços levantados. Parecia que toda

vida tinha se evadido dela. Cheias de veneração, olhavam as pessoas para essa figura

petrificada. Parecia-lhes algo magnífico, poder” rezar” dessa forma. Miang, porém, viu

que a alma desse homem estava tão enrijecida quanto o seu corpo, que não havia mais

vida nela e ele se horrorizou. O que poderia ser feito aqui?

Miang não conseguia desviar seu olhar dessa figura petrificada e parecia que o seu

olhar ia perpassando a armadura dessa alma sem vida. O sacerdote começou a

movimentar-se e, contrariado, voltou-se para Miang, deixou cair os braços e atravessou-

o, por sua vez, com seu olhar. Era uma luta entre alma e alma, na qual o sacerdote foi

vencido. Ele baixou os olhos e, aborrecido, deixou o templo por uma entrada na parede

dos fundos.

Um homem aproximou-se de Miang.

“Tu foste mais forte do que o sacerdote!” sussurou para Miang e indicou com a

cabeça para o templo.

Miang estava um pouco desconcertado.

“O que queres dizer com isso, amigo?” perguntou ele, para ganhar tempo.

“Ora, tu o expulsaste, tua força era maior. Isto ainda ninguém havia conseguido.

Posso acompanhar-te por um trecho?”

Miang olhou o homem mais detalhadamente. Havia uma súplica em seus olhos,

que exortou Miang a concordar. O homem conduziu-o, através de ruelas mais calmas,

até uma casa situada num jardim grande.

“Entre em minha casa!” convidou a Miang e este obedeceu. Ele ainda não sabia o

que o aguardava aqui, mas parecia-lhe correto aceitar o convite. Sentaram-se num

aposento fresco, sombreado e, hesitante, o acompanhante de Miang começou a falar:

“Eu te observava hoje no templo, ó forasteiro! Tu parecias ser diferente das pessoas

daqui, diferente, principalmente, do sacerdote e tu não tinhas medo dele. Eu gostei

disso, pois eu também não posso curvar-me diante do que os sacerdotes exigem de nós.

E, principalmente, eles não conseguem me dar respostas às minhas perguntas.”

O homem fez uma pausa. Ele não sabia como fazer com que Miang percebesse

qual era a sua ansiedade íntima. Miang, no entanto, viu o espírito atado que lutava para

libertar-se e um desejo fervoroso de assistí-lo acordou logo em seu íntimo.

“O que te oprime, amigo?” perguntou cordialmente, e parece que essas palavras

soltaram a língua do outro. Ele externou a ansiedade de seu coração com as palavras:

“Todos os dias eu vou ao templo, procuro rezar, trago minhas oferendas e cada dia

volto com o coração vazio. O sacerdote está mudo, não me dá respostas, muda é a

divindade – – será que não há ninguém que possa me dar respostas? Eu sou somente um

pequeno homem, eu não posso ajudar a mim mesmo, eu necessito de alguém mais forte

para me conduzir. Mas onde está esse mais forte? Por toda a minha vida eu o procurei,

mas ninguém pôde mostrá-lo. Agora vieste tu hoje e foste mais forte que o sacerdote, eu

bem o ví. Agora te peço: ajuda-me!”

Essas palavras continham um pedido tão suplicante, que Miang soube: aqui ele

poderia abrir o tesouro de seu saber e dar com mãos cheias.

Ansioso, Ma-tschi assimilava cada uma de suas palavras, não se cansava de escutar

e profunda alegria o preenchia. Seus olhos brilhavam, tinha vontade de abraçar Miang.

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Algo, porém, o reteve. Apesar de sua juventude, pairava uma nobreza sobre Miang, que

excluía qualquer intimidade. Por longo tempo os dois conversaram e cada vez mais

leve, mais feliz, ficou o coração de Ma-tschi. Ele pediu a Miang para permanecer alguns

dias com ele, pois ainda queria convidar amigos para que se deixassem instruir por

Miang.

“Eles sentem o mesmo que eu,” disse Ma-tschi, esclarecendo, e Miang ficou

satisfeito.

Ma-tschi era um comerciante abastado. Pela primeira vez em sua vida, Miang

gozava do conforto e da comodidade de um lar rico.

Todos os ambientes eram ricamente ornamentados com tapetes macios e tecidos de

seda e vasos preciosos. Beleza cercava-o nesta casa e ele alegrou-se com isso, sem que

surgisse nele o desejo de querer possuir algo disso. Também, o que ele, em sua

caminhada, poderia fazer com essas coisas belas, mas incômodas? Ao tentar imaginá-lo,

Miang teve que sorrir. Não, quanto menos ele possuísse, tanto melhor seria para ele,

mais desimpedido ele poderia entregar-se à sua missão.

Era uma noite de outono quente e úmida, em que Miang, Ma-tschi e alguns de seus

amigos estavam reunidos na sala à meia luz. Servos tinham aceso um lampião suspenso,

de cujas janelas de papel colorido a luz transparecia tenuamente.

Ma-tschi foi o primeiro a falar: “Amigos,” disse ele, “vejam aqui o sábio, do qual

vos relatei. Ele está disposto a ensinar-vos. Escutem as suas palavras.”

Todos os olhares dirigiram-se para Miang, que ainda refletia em silêncio. Novamente surgiram imagens diante de sua alma. Ele viu diante de si uma montanha alta, íngreme, em cujo pico brilhava uma luz clara. Espalhava seus raios por sobre todas as encostas até ao vale lá embaixo, onde não se via nenhuma outra luz. Muitas pessoas caminhavam lá embaixo sem rumo. Alguns dirigiam seu olhar interrogativo para o alto, porém, a luz parecia-lhes

muito alta e muito distante para que pudessem alcançá-la. Então apareceram, de cavernas escuras no lado da montanha, figuras com longos trajes. Carregavam figuras esculpidas diante de si e colocaram-nas sobre pequenas elevações no vale e chamavam as pessoas para junto de si.

“Aproximai-vos,” ouvia-se de sua boca, “ajoelhai-vos e adorai!”

E agitavam incensórios nas mãos, dos quais elevava-se densa fumaça cinzenta, que

se deitava, entorpecedora, sobre coração e mente das pessoas. Neste atordoamento,

muitas ficavam paradas e obedeciam ao que lhes era ordenado e as figuras nas

vestimentas longas acendiam pequenas lamparinas e gritavam: “Vejam a luz, a grande

luz!”

No entanto, mal iluminava o ambiente próximo às imagens esculpidas e, poucos

passos adiante, tudo permanecia no escuro. O coração de Miang estremeceu. Assim

acontecia aqui nesta Terra, com estes seres humanos! Eles quase nada sabiam da luz

clara, forte e pura no pico da alta montanha, porque fixavam seus olhos somente na

Terra e abriam seus ouvidos somente às palavras dos sacerdotes da caverna. Agora

Miang sabia o que tinha a fazer e a falar.

“Queridos amigos,” começou, e muita bondade estava contida no tom de suas

palavras. “Todos vós sabeis que estais numa caminhada nesta vida. A caminhada já

começou com o vosso nascimento e não está terminada com a vossa morte, pois,

quando a vossa alma deixa o corpo terreno, ela ainda não alcançou a sua meta e ela não

encontra paz nem sossego até tê-la alcançado.”

Os homens escutavam atentos, familiares lhes soavam essas palavras.

“Vejam este aposento,” continuou Miang. “Lá fora é noite, tudo está no escuro e

vós vos esforçais para espalhar um pouco de claridade ao redor de vós, para que não

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precisais permanecer no escuro. Mas olhai, como é fraca a vossa luz! Mal ilumina

suficientemente este ambiente para que se possa distinguir todos os objetos.

Porém, sendo dia e brilhando o sol, podeis enxergar claramente, não somente cada

objeto, mas também a sua cor até o mínimo detalhe. Tudo ao redor de vós começa

novamente a viver o que antes parecia cercar-vos sem vida. Não é assim?”

Tiveram que concordar com ele, e um homem mais jovem, com vivacidade em sua

expressão, exclamou: “Está tão escuro no nosso interior, porque não temos um sol que

nos ilumine!”

“No entanto, existe um sol grande, poderoso, luminoso, que pode tornar o vosso

interior claro como o dia, desde que vós o deixeis entrar!” continuou Miang radiante. E

ele descreveu-lhes a imagem que há pouco lhe foi mostrada. “A grande e clara luz ainda

está em cima de nós, ela brilha e irradia para o espaço e ilumina tudo, como o faz o sol

no céu. Porém, se escondermo-nos em cavernas escuras ou baixamos o olhar

constantemente para o solo, então não podemos vê-la e ela não nos pode tornar alegres.”

Isto todos compreenderam e Miang continuou a contar-lhes de Deus, o Altíssimo, o

Qual, como um grande sol, brilha sobre tudo o que é criado. “Para Ele vós deveis orar,

Ele pode ajudar-vos!” exclamou Miang entusiasmado, “não para a figura repugnante no

templo, confeccionada por homens!”

“Foi Ele que te fez tão forte?” queriam saber os homens, aos quais Ma-tschi tinha

contado sua vivência no templo.

“Sim!” confessou Miang. “Somente Dele recebi a força e também vós a podeis

receber, se a pedirdes a Ele.”

Miang encontrou um solo já preparado nos corações desses homens. Somente

faltara ainda a mão do semeador, que deitasse as sementes douradas no solo. A

semeadura logo brotou e cresceu. Foi um trabalhar e atuar alegre para Miang, mas não

devia ficar assim por muito tempo. Pois devido ao seu esclarecimento contraiu a

inimizade dos sacerdotes, que temiam perder sua influência sobre as pessoas. Ma-tschi e

seus amigos pertenciam aos mais ilustres habitantes da cidade, e eles não guardaram

segredo sobre aquilo que vivenciavam. Dessa forma propagou-se rapidamente a notícia

do grande sábio e sempre mais pessoas afluíam para ele. Como que acordando de um

pesadelo, assim se sentiam as pessoas, quando Miang anunciava Deus. Bem no fundo

essas almas ainda não enrijecidas traziam uma saudade, não, um saber do Ser altíssimo,

que era o Senhor de todos eles. Um profundo alívio foi sentido por esses seres humanos

e os seus templos sombrios, com as horríveis imagens de ídolos, não os atraíam mais.

Esvaziavam-se e os sacerdotes espumavam de raiva.

Eles deliberaram entre si e chegaram à conclusão de que Miang devia ser

eliminado, como perigo para a fé e para o seu poder sobre as pessoas. Um sacerdote

fanático, o mesmo que não resistiu à força espiritual de Miang, foi escolhido para

assassinar Miang. O seu paradeiro era conhecido. Devia acontecer numa noite sem luar.

Mas o Altíssimo mandou advertir o seu servo. Quando o assassino entrou

silenciosamente pela janela, o leito estava vazio e, decepcionado, teve que voltar. Um

pensamento surgiu nele: será que o Deus dele era realmente tão forte que Ele o

protegia? Mas logo rejeitou esse pensamento. Isso não podia ser verdade! Ele deveria

repetir sua tentativa num outro dia, então certamente teria mais sorte.

Aquele, que ele procurava e pretendia matar, já havia sido retirado de seu poder.

Miang caminhava já sobre novos caminhos, ao encontro de novas missões. Antes de

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partir, procurou alertar Ma-tschi, para que fielmente continuasse firme na verdade agora

encontrada. Auxílio ele receberia para que pudesse penetrar cada vez mais

profundamente, pudesse reconhecer cada vez mais. Com pesar no coração, despediu-se

Ma-tschi de Miang. Com ele, via desaparecer algo que nunca mais encontraria e

vivenciaria. Mas conformou-se sem reclamar, pois sabia que podia dirigir-se, a qualquer

momento, para onde estava o maior poder: ao Altíssimo. Muitos pensamentos

ocupavam Miang, quando novamente caminhava solitário e sozinho pela estrada. O que

seria das pessoas em cujos corações foi-lhe possível acender um raio da verdade? Eram

fracas e muitas lutas teriam pela frente. Poderiam elas resistir? Mas Miang também

sabia, que isso não era mais tarefa dele. Ele havia feito o que devia. O que disso

resultaria, sobre isso ele não tinha que decidir. Assim, alegremente levantou novamente

o olhar e observou mais atentamente a paisagem que atravessava. Chegou agora a uma

terra totalmente plana. Grandes búfalos da água puxavam baixas carretas, carregadas

com a colheita das lavouras. Os homens trabalhavam ativamente nas lavouras de arroz,

um sol forte brilhava sobre eles. Sua pele era marrom-escura e o suor corria-lhes pelas

faces. Pesado era esse trabalho, mas trazia também alimento para um longo período.

O sol queimava agora tão inclemente, que Miang procurou um local onde poderia

encontrar alguma sombra. Viu, então, à beira do caminho uma árvore frutífera com

grande copa e, aliviado, sentou-se embaixo dela. Ela protegia-o dos ardentes raios do

sol. De cansaço, seus olhos iam-se fechando, mas foi assustado por uma voz rouca, que

a ele dirigia insultos. Não deveria ter descansado aqui? Ele levantou o olhar e viu um

rosto vermelho de raiva. Não conseguiu entender as palavras que o agricultor seminu a

ele dirigia, mas compreendeu que ele não lhe permitia ficar aqui e, sem proferir palavra

alguma, cansado, levantou-se novamente para continuar a caminhada.

Nesse momento veio correndo uma pequena menina, pegou-o pela mão e puxou-o

para que a acompanhasse. Cheia de compaixão, ela presenciara o que havia acontecido e

conduziu o forasteiro até uma casa próxima e convidou-o a sentar-se num banco à

sombra da casa. A seguir, correu celeremente para o interior da casa e voltou com um

copo com leite fresco e ofereceu-o a Miang, sorrindo gentilmente. Agradecido, Miang

aceitou e matou sua sede. Quando, porém, quis levantar-se novamente e seguir a

caminhada, a pequena não o consentiu. Ela fê-lo sentar-se novamente no banco e

exclamou: “Não vá embora, forasteiro! Oha vai chamar a mãe.” Com isso desapareceu

novamente na casa. Miang contentou-se, pois o calor o havia cansado muito. Também

não demorou muito e apareceu uma mulher jovem, que tinha o mesmo sorriso amável

da filha e deu a entender a Miang, que poderia permanecer ali.

“Quando meu marido voltar do trabalho, irá fazer-te muitas perguntas,” disse

alegremente. “Tu pareces ter vindo de longe e, certamente, terás muito a narrar.”

Miang agora já estava acostumado que pessoas o retivessem em seu caminho e

assim concordou a permanecer até de noite.

As horas passaram rapidamente e Oha, a pequena, pulava alegremente de um lado

para outro entre ele e a mãe, trouxe-lhe flores, mostrou-lhe pedras coloridas e

conversava sem parar. Quando o sol começava a desaparecer, o agricultor voltou todo

empoeirado e suado. Atrás dele veio seu companheiro, o fiel búfalo, que puxava a sua

carreta e já conhecia sozinho o caminho para a estrebaria.

Surpreso, viu o forasteiro sentado em frente à casa, mas sua mulher esclareceu tudo

e ele se deu por satisfeito. Ele gostava de conversar de tardezinha após o trabalho e,

quando apareceu a lua., todos estavam sentados sossegadamente no banco da casa e

desfrutavam da paz ao seu redor. Miang contou, que havia sido rudemente afugentado,

Page 61: MIANG -  FONG

quando quis descansar durante o meio-dia embaixo de uma grande árvore e a pequena o

confirmou, exclamando: “Era Mi, o velho mau, que não queria que ele ficasse ali!

“Por que ele não quis que eu descansasse embaixo de sua árvore?” perguntou

Miang, que não conseguia entender.

“Porque ele não dá nada a ninguém, nem a sombra de suas árvores!” exclamou o

agricultor.

“Mas ele não perde nada com isso.” perguntou Miang mais uma vez espantado.

“Ele está de tal modo possesso pela avareza, que até gostaria de ele mesmo não

comer e beber, somente para não gastar nada,” riu o agricultor pois, para ele, isso não

era novidade.

Miang , porém, abanou a cabeça: “Então ele é tão pobre?”

“Ao contrário, ele é rico, mas a riqueza tornou-o duro. Nunca dá uma esmola a um

pobre, espanta-os todos com seus cachorros.”

“Pobre homem!” deixou escapar Miang e, com isso, deixou os seus ouvintes muito

surpresos.

“Pobre, o rico Mi?” Como isso faz sentido? Miang, porém, explicou-lhes que eles

eram ricos em amor, mas o outro não e que aquele que não conhece o amor, era muito

pobre.

“Sua riqueza ele pode perder e o que lhe resta então? Ele não fez amizades com

isso.”

Isso, a boa gente teve que confirmar. Eles ofereceram um pernoite a Miang, que o

aceitou de bom grado. Parecia-lhe que alguma coisa ainda o prendia aqui. Durante a

noite, ele foi acordado por grande gritaria e quando se levantou e olhou pela janela, viu

um clarão vermelho no céu. Involuntariamente, teve que se lembrar do rosto vermelho

de raiva. Por longo tempo Miang ficou olhando para fora, até que o clarão diminuiu.

Depois, deitou novamente e dormiu tranqüilamente até de manhã. Quando levantou,

soube dos seus hospedeiros que, durante a noite, houve um incêndio na casa de Mi, o

rico agricultor e que o fogo tinha se espalhado tão rapidamente, que não foi possível

salvar coisa alguma.

“Agora ele ficou bem pobre,” acrescentaram com pesar. “Não mais pobre do que já

era antes,” disse Miang e eles o compreenderam.

Agora, porém, Miang devia continuar sua caminhada, pois tinha que aprender e

assimilar. Ele ainda devia conhecer e vivenciar a insensatez humana e a desgraça

humana, para disso tirar sabedoria e abrir ainda mais seus olhos e ouvidos interiores.

Ainda por muito tempo Miang percorreu essa terra fértil. Raramente permanecia

por tempo mais longo em uma das localidades. Somente quando encontrava pessoas que

ansiavam pelo saber e pela verdade, então permanecia e ajudava. Havia se tornado mais

forte, mais enrijecido, despretencioso durante este tempo de caminhada e aprendizado.

Cada vez mais se aprofundava nas almas das pessoas, sempre mais reconhecia sua

indolência interior, que os impedia de progredir e a qual os espíritos trevosos

aproveitavam para exercer domínio sobre elas. Muitas vezes sentia tristeza, quando

sempre de novo encontrava os mesmos defeitos, e às vezes parecia-lhe quase impossível

de remediar o mal. Mas então ouvia novamente a voz suave, que sussurrava:” Não

desanime, Miang, o Altíssimo ajuda, confia Nele!”

Page 62: MIANG -  FONG

Então continuava sua caminhada fortalecido e encorajado. Certa noite, porém,

alcançou-o o chamado de que deveria retornar e voltar para Fong. Fong havia ficado

velho e necessitava dele. Na mesma hora Miang partiu e dirigiu-se novamente para o

norte, em direção às altas cordilheiras do Karakorum. De boa vontade deixou as

planícies quentes atrás de si. Ele era um filho das montanhas e sentia falta de sua brisa

fresca e áspera. Ansioso, inspirava o ar fresco das montanhas quando começou a escalá-

las. Sem perigo e sem vivências especiais, alcançou sua pátria terrena, a tribo amarela.

Encontrou-a em profundo pesar, pois Fong preparava-se para deixar a Terra.

Abatido, com os olhos fechados, estava deitado em seu leito. Ao seu redor

encontravam-se os mais nobres da tribo em profundo luto. Em suas feições havia paz.

Quando Miang aproximou-se, em silêncio, ele abriu os olhos e um sorriso feliz de

reconhecimento cobriu seu rosto.

“Tu vieste, Miang, meu filho?” exclamou feliz e levantou-se um pouco. Parecia

que, com a alegria, tinha recobrado novas forças.

“Deixem-me sozinho com ele,” pediu aos nobres e estes obedeceram.

Perscrutador, o olhar de Fong dirigia-se para Miang e o que viu devia ser de seu

agrado. “Agora tu amadureceste,” disse ele, “agora tu podes assumir a liderança da tribo

amarela, quando eu não mais estiver aqui. Cuide para que ela permaneça pura e

conserve a sua fé. Tu poderás instruí-la ainda melhor do que eu o consegui, pois o

Altíssimo tem te abençoado ricamente, Miang, meu filho!”

Profundamente comovido, ajoelhou-se Miang ao lado do leito do amigo paternal e

protetor, e recebeu a sua bênção. Na presença de seus conselheiros e pessoas de

confiança, Fong investiu Miang como seu sucessor. A seguir, fechou os olhos para

sempre.

Miang, porém, compareceu diante dos súditos e informou-os sobre o que Fong

havia determinado. Estes aclamavam o belo jovem, que se encontrava diante deles na

flor de sua força. “Eu quero ser um pai e um protetor para vós, como Fong o era,”

prometeu Miang, e uma voz pediu:

“Então seja Miang-Fong para nós! Que Fong continue vivo dentro de ti!”

A partir desse dia, o jovem chamar-se-ia Miang-Fong e o novo nome lembrava-o sempre de seu velho professor, ao qual tanto tinha que agradecer e cujo exemplo esforçava-se a seguir. Com sabedoria guiava a tribo a ele confiada, fortificava o saber do Altíssimo, ensinava e instruía sem cessar e, no entanto, sabia que tudo isso somente seria de curta duração.

Certo dia alcançou-o uma mensagem do príncipe Hador. Miang-Fong recebeu os

mensageiros, que pediam uma audiência, em sua tenda. Expuseram-lhe um pedido do

príncipe Hador. Ele pediu proteção contra seus vizinhos, que novamente empreendiam

incursões predatórias em seu território, não deixando sua tribo viver em paz.

Miang-Fong ouvia pacientemente a queixa apresentada. Depois pediu aos

mensageiros que aceitassem a sua hospitalidade, pois devia primeiro pedir orientação do

alto. Isso eles compreenderam e retiraram-se. Em Miang-Fong, porém, os pensamentos

começavam a brotar. Poderosamente surgiu nele o saber de que o aguardavam missões

maiores do que conduzir a tribo amarela. Também Hador poderia fazer isso, caso sua fé

no Altíssimo tiver resistido e sua força, nos melhores anos, tiver aumentada. Disso,

aliás, tinha que certificar-se antes e, fervorosamente, rogou por ajuda e conselho. Então

escutou novamente a voz bem conhecida e, agora, já tão familiar, que lhe falou:

Page 63: MIANG -  FONG

“Estás certo, Miang-Fong, quando acreditas que o Altíssimo te reserva uma missão

mais importante. O que até agora fizeste, foi tudo somente para te deixar amadurecer e

crescer interiormente. Um grande povo, entre as cordilheiras altíssimas, aguarda o

mensageiro enviado por Deus, para que os liberte de sua grande desgraça. Pedidos

suplicantes elevam-se desse povo até o trono do Altíssimo e, misericordioso, Ele lhes

concederá ajuda, assim que a hora para isso estiver madura. Unifica a tua tribo com a

dos Waringis, confia ao príncipe Hador a condução das duas tribos que, futuramente,

devem receber o nome em comum “povo das montanhas selvagens”. A proteção do

Altíssimo estará com eles, desde que se deixem conduzir obedientemente. Tu, porém,

prepara-te para, assim que isso esteja concluído, deixar esta região para sempre. Deves

dirigir-te até um povo estranho, cujo idioma ainda não conheces, numa terra muito

distante, ao encontro de um elevado servo do Altíssimo Deus, o qual te ensinará e

instruirá como conduzir um grande povo na força e na sabedoria do Alto.”

Miang-Fong recebeu agradecido a notícia e reuniu no dia seguinte os mais velhos

da tribo para uma deliberação. Eles receberam a novidade com profunda seriedade, pois

trouxe-lhes tristeza no primeiro momento: Deviam abrir mão de Miang-Fong, a quem

todos amavam e admiravam. Mas não houve contestação. Os mensageiros do príncipe

Hador foram chamados e a resolução foi-lhes apresentada. Isso era mais, muito mais do

que eles haviam esperado. Com grande alegria receberam a mensagem.

“Voltem para a vossa tribo e levem ao príncipe Hador a mensagem do Alto!”

ordenou Miang-Fong. “Ele deve, tão logo lhe seja possível, cavalgar até aqui, para que

eu possa entregar-lhe a tribo amarela.”

Passaram-se somente algumas semanas, quando, ao entardecer, chegou o príncipe

Hador com uma pequena comitiva e cumprimentou Miang-Fong com sincera alegria. A

resposta de Miang-Fong fora inesperada e, ainda agora, quase lhe parecia inacreditável.

A força e o poder das duas tribos juntas, manteria sob controle todos os assaltantes

selvagens, isso era certo.

“Mudem o vosso domicílio para próximo de nós,” convidou-os Miang-Fong.”

“Reunidos somos fortes o suficiente contra qualquer ataque. Depois, porém, tome a

liderança dos que te estão confiados. O Altíssimo os confia a ti, e Ele exigirá prestação

de contas de ti, de como procedeste com eles.”

“O que, porém, será de ti, meu amigo?” perguntou Hador, que ainda não conseguia

entender tudo.

“O Altíssimo me chama para um povo estranho,” foi a resposta de Miang-Fong.

Mais ele não disse e Hador teve que se contentar com essa resposta.

Quando tudo estava resolvido da melhor forma e Hador tinha assumido a condução

das tribos unidas, preparou-se Miang-Fong para a partida. Caminhou mais uma vez

pelas fileiras de tendas, visitando um ou outro para lhe dar algumas palavras

confortantes. Assim chegou também à tenda de Hisor, na qual outrora havia iniciado a

sua atuação como servo do Altíssimo. Ela era irreconhecível em comparação com

antigamente, pois onde antes havia sujeira e desordem, agora tudo brilhava de limpeza e

uma mulher jovem trabalhava e lidava cheia de alegria. Feliz e satisfeita era a aparência

de Hisor e A-na crescera, tornando-se uma linda moça. Miang-Fong ficou contente e

desejou-lhes toda felicidade também para o futuro.

Ele sabia os seus em boas mãos. Em toda parte encontrou vida assídua,

movimentada, que tornava as pessoas alegres e a fé no Altíssimo havia se tornado óbvia

Page 64: MIANG -  FONG

para eles. Poderia partir sossegadamente. Miang-Fong não pretendia despedir-se

festivamente de sua tribo. Queria partir silenciosamente, para não despertar tristeza nos

corações dos que ficavam para trás. Assim, somente Hador sabia da hora da partida e,

também a ele, Miang-Fong pediu que o deixasse partir sem chamar a atenção das

pessoas.

O sol mal lançava seus primeiros raios sobre o horizonte, quando ele partiu,

acompanhado pela bênção do príncipe. No vilarejo de tendas todos ainda dormiam. A

alvorada tecia ainda seus véus cinzentos sobre arbustos e o vale. Uma vez mais voltou-

se Miang-Fong, depois partiu com o ânimo confiante. Seu caminho levava-o, dessa vez,

para o sudoeste, ao encontro do distante e desconhecido país. Seu coração batia mais

forte quando se lembrava de que deixava para trás, como uma vestimenta usada, tudo o

que até então vivenciara. Seu futuro estava incerto diante dele, desconhecido, coberto

por véus.

É desnecessário seguir todos os seus passos. Aproximamo-nos do destino de sua

aspiração, o país da Pérsia, no qual o sábio Zoroaster, a alma de fogo, com todo ardor de

seu coração testemunhava o herói esperado, o Saoshyant. E ao seu lado atuava Jadasa, a

pura, que ensinava às mulheres a pureza e o correto servir.

Por muito tempo Miang-Fong caminhou solitário. Para ele, o tempo passava

rapidamente. Nas noites vivenciava mais do que de dia, pois não era da vontade do

Altíssimo que no caminho ele fosse detido por pessoas com perguntas e pedidos de

ajuda. O que tinha que aprender em suas caminhadas – reconhecer a múltipla miséria

dos seres humanos, isto ele já tinha aprendido na sua última caminhada. Agora tinha

que ser preparado para o novo, ao encontro do qual estava indo. Quando, de noite,

repousava em leito simples, muitas vezes sob céu aberto, sobre relva ou feno, embaixo

de arbustos ou numa caverna protetora, então novamente passavam quadros e mais

quadros diante de seu espírito. Especialmente um o impressionara muito.

Ele viu uma grande árvore com muitos galhos, nos quais encontravam-se muitos

pássaros de diferentes plumagens. Uma mão luminosa espalhava grãos no chão embaixo

desta árvore. Aí vieram todos os pássaros e picavam os grãos. Um deles, porém, tinha

uma plumagem desconhecida, ele tinha um aspecto diferente dos outros. Mas também

ele se aproximou e tomou dos grãos. A mão do semeador quis detê-lo, mas uma voz

disse:

“Deixa picar também esse pássaro, ele também deve poder saciar-se. Assim é da

vontade de Deus.”

Miang-Fong não entendia esse quadro, mas ele não pôde esquecê-lo e, quando

tinha atravessado as montanhas protetoras da Pérsia, aproximando-se aos poucos da

capital, sentiu nesse país uma disposição bem ordenada, uma prosperidade sem

opulência, seres humanos satisfeitos, como ainda não havia encontrado antes. Em toda

parte via fisionomias alegres e vida ativa. Isso lhe agradava, e ele se esforçava para

entender-se com os moradores do país; logo aprendeu uma palavra, que sempre voltava

e que possuía um som mais claro que todas as outras, e notava-se que a mesma fazia

bater mais forte os corações e que era pronunciada em todos os tons de veneração,

alegria e gratidão, a palavra” Zoroaster”!

Nas praças das localidades encontrava as pessoas reunidas regularmente para

adoração a Deus. Silêncio e ordem reinavam em toda parte.

“Deveras, um país abençoado” pensou Miang-Fong novamente e,

involuntariamente, comparou-o com as planícies férteis, nas quais os homens

Page 65: MIANG -  FONG

amarelados cultivavam o arroz, do país rico, no qual, porém, os corações das pessoas

erm tão pobres. Eles não tinham um Zoroaster, essa era a diferença. Aí foi dado a

Miang-Fong um novo reconhecimento: quanta coisa magnífica pode realizar um único

espírito puro, quando a força do Altíssimo está com ele. Um povo inteiro podia ser

transformado com isso. Mais alegre ainda, continuou sua caminhada. Nas estradas

aumentava o número de pessoas a pé e o de veículos. Todos dirigiam-se para a capital,

como se algo os chamasse para lá e Miang-Fong seguia essa peregrinação.

Finalmente chegou o momento em que Miang-Fong entrou nas ruas da maravilhosa

cidade. Ele não precisava perguntar pela moradia do Zoroaster. Em sonho lhe havia sido

mostrada a casa branca a qual devia procurar. E parecia-lhe um sonho quando se

encontrou diante de Zoroaster, apresentando-lhe o seu pedido de aceitá-lo como seu

aluno.

Zoroaster havia reunido seus alunos ao seu redor, para instruí-los. Surpreso olhou

para o jovem forasteiro, que tinha o aspecto totalmente diferente das pessoas de seu

país. Ele não pôde familiarizar-se com a fisionomia estranha e considerou fingimento o

jeito modesto de

Miang-Fong. Ele recusou o seu pedido. Parecia-lhe impossível aceitar um membro tão

estranho em sua comunidade. Iria incomodá-lo, e ele também não compreendia por que

esse forasteiro necessitaria de seu ensinamento. Estava prestes a se voltar novamente

aos seus alunos e considerava o assunto como resolvido, quando o jovem forasteiro

disse, em sílabas um pouco quebradas, no entanto compreensíveis: “Mestre, deixe que

também o pássaro estranho pique dos grãos dourados!”

Com essas palavras rompeu um véu diante dos olhos de Zoroaster e ele lembrou-se

novamente do quadro que lhe fora mostrado, do pássaro estranho que tinha se juntado

aos nativos e diligentemente picava junto o alimento espalhado.

Zoroaster não se arrependeu em nenhum momento de ter aceito Miang-Fong, pois

o jovem silencioso exercia a mais forte influência sobre os seus companheiros. Uma

força partia dele, que nenhum dos outros possuía, que os estimulava a imitá-lo. Sedento,

Miang-Fong absorvia cada palavra do Zoroaster em sua alma e processava-a em seu

íntimo, transformava-a em uma propriedade imperdível e acumulava, dessa forma,

tesouros para toda a sua vida.

Ele não fazia parte daqueles, que imitavam como escravos aquilo que lhes era

ensinado, que só obedeciam com o raciocínio. Sempre era impelido a continuar no

caminho que Zoroaster trilhava com eles. Para ele, todos os ensinamentos eram grãos

dourados de semeadura, que deviam ser cuidados, para crescerem e tornarem-se árvores

que ofereciam sombra. Também o seu saber sobre o Altíssimo, que Zoroaster chamava

de Ahuramazda, crescia e firmava-se e, como tesouro maior, adquiria o saber.

Demasiadamente rápido passou o tempo de aprendizado no belo país da Pérsia.

Miang-Fong agora estava pronto, preparado para a verdadeira missão de sua vida: levar

a luz da verdade para um povo, que sem essa ajuda deveria afundar na noite mais

escura. Por força própria não era mais capaz de ajudar-se a si mesmo, pois as trevas já

tinham cravadas suas garras profundamente em seu corpo. Extenuado até a morte estava

o corpo desse povo, repleto de graves feridas purulentas. Se deveria sarar novamente,

então estava na última hora de auxiliá-lo, senão extinguir-se-ia o último brilho da luz de

sua alma.

Todos sentiam dolorosamente a falta do jovem silencioso, que lhes tinha repassado

tanta força com o seu silêncio. As poucas palavras que tinha pronunciado, sempre

Page 66: MIANG -  FONG

traziam clareza onde os outros não conseguiam prosseguir. Sempre, porém, o que ele

dizia era totalmente diferente daquilo que todos esperavam. Novos caminhos no pensar

e agir, mais inovadores que dos demais, foram trilhados por Miang-Fong.

Assim, certa vez respondeu à pergunta, qual seria a melhor forma de ajudar às

pessoas: “Deixem-nas passar fome!”

Ninguém conseguia entender isso, até que esclareceu: “Uma pessoa faminta pede

ardentemente por comida, pois a fome a tortura. Entretanto, se ofereceres comida ao

farto, então ele a despreza. Se uma pessoa acredita ter encontrado a verdade, então

dificilmente ele a aceitará de vós, mesmo se a verdade dele for uma ilusão. Somente

quando reconhecer que estava enganado, ele abrir-se-á para a vossa verdade.”

Isto era claro e inequívoco, mesmo assim um dos alunos ainda perguntou:” O que

queres dizer com deixar passar fome, Miang-Fong?”

Outra vez, igualmente claro veio o novo esclarecimento: “Não faz sentido oferecer

a verdade, somente a fome por ela abre as almas. Portanto, tirem do farto a vossa ajuda,

até que ele peça por ela, mesmo quando ele afirmar necessitar dela urgentemente.”

Também Jadasa afeiçoou-se ao jovem com os olhos escuros e sérios.

Foi mostrado a ela um quadro, no qual braços suplicantes se estendiam ao encontro

dele e vozes aflitas chamavam-no. Ela viu-o escalando o planalto do Tibete, um claro

lume na mão, que iluminava todos os precipícios e abismos escuros. Mas viu também

figuras horríveis, manchadas de sangue, que se interpunham em seu caminho, e seu

coração tremeu de compaixão pela miséria que ele haveria de ver e vivenciar.

Silencioso e discreto como havia chegado, Miang-Fong deixou o local de sua

última preparação. Ele sabia, que nunca mais voltaria a este lugar, nunca mais voltaria a

ver as pessoas que se tornaram caras para ele. Porém, muito acima de todos os desejos

humanos estava aquilo, para o qual ele foi designado: ser porta-archote da Luz e

conduzir um povo da escuridão novamente para o dia claro. A despedida foi calorosa e

cordial como nunca antes. Por longo tempo os olhares acompanharam o jovem, ao qual

todos tinham se afeiçoado e que, agora, novamente trilhava seu caminho tão solitário.

No coração de Miang-Fong vivia a alegria! Agora podia dedicar-se completamente

àquilo que ele tanto ansiara por toda sua vida: ao Altíssimo, que o havia escolhido como

Seu servo.

Durou vários meses até que Miang-Fong chegou ao pé das altas montanhas, que

circundavam o planalto com seus cumes cobertos de gelo, meses de aprofundamento

interior, de último fortalecimento. Certo dia, ao anoitecer, chegou a um pequeno

povoado nas montanhas, onde sopravam ventos frios. Choupanas baixas, sujas,

espremiam-se junto às paredes das encostas das montanhas, uma apertada à outra, como

se quisessem proteger-se mutuamente. Telhados planos, cinzentos fechavam-nas em

cima. A aldeia parecia deserta, somente a alguma distância ouvia-se sons estranhos,

como estalos, choros e gritos estridentes intercalados. Não soava nada atraente, mesmo

assim, Miang-Fong dirigiu seus passos para o lugar de onde vinham os sons.

Apresentou-se a ele um quadro horroroso. Um monte de gente tremendo apinhava-

se diante de algumas figuras selvagens que, com ruidosas matracas na mão

apresentavam danças, cujos movimentos lembravam os de animais selvagens, que

querem atirar-se sobre sua presa, mas que sempre são detidos no último momento. De

suas bocas também saíam os sons estridentes, que mudavam novamente para sons

invocantes. Pintadas com cores berrantes, vestidas com peles e plumas, essas figuras

Page 67: MIANG -  FONG

proporcionavam um aspecto repelente. Um deles puxou agora uma faca de sua cinta e

queria dar um golpe rápido. Agarrou alguém do amontoado de gente e puxou-o,

paralizado de medo, para o seu lado. Miang-Fong via aquilo com pavor.

“Pára!” exclamou com voz estrondosa e com o braço levantado.

O que era isto? Admirado, o sacerdote mago deixou cair os braços. Nunca antes

havia acontecido aqui algo semelhante. Mas antes que pudesse refletir, já estava Miang-

Fong diante dele e tirou-lhe a faca. Ameaçadoramente mirava-o de cima a baixo.

“Como te atreves?” berrou o sacerdote mago e quis apanhar novamente a faca.

Entretanto, uma chama de ira sagrada tão forte chamejava dos olhos de Miang-Fong,

que deixou cair a mão, já levantada, e involuntariamente retrocedeu um passo.

Miang-Fong tomou a mão da vítima, ainda paralizada de medo, e confortava-a

amavelmente.

“Não tenhas medo, ele não pode fazer-te nenhum mal!” prometeu-lhe e dele partiu

tamanha força, que todos os moradores da aldeia suspiraram aliviados. Como um Deus,

descido do céu, assim lhes parecia Miang-Fong e eles caíram de joelhos diante dele e

queriam venerá-lo. Ele, porém, proibiu-o e lhes disse:

“Venham e mostrem-me onde moram. Eu quero ficar junto de vós e ajudar-vos.”

Eles ficaram radiantes, os dois sacerdotes, porém, afastaram-se furtivamente.

Tinham ficado com medo. Miang-Fong ia, rodeado pelos moradores, em direção à

aldeia. Ninguem queria deixá- lo, todos estavam presos nos seus olhos, sua boca e

aguardavam o que faria agora.

“Onde podemos conversar?” perguntou Miang-Fong e, procurando, olhou ao redor.

Eles apontaram para uma casa um pouco maior. De boa vontade o proprietário abriu a

porta e todos entravam, empurrando-se. Rapidamente acenderam um fogo no fogão, que

lançava luzes avermelhadas sobre os rostos dos presentes, aquecendo-os. Sentaram-se

no chão, outros permaneceram em pé no vão da porta ou ficaram aglomeradas no lado

de fora,.

Agora, Miang-Fong começou a falar.

“Digam-me, gente, o que aconteceu há pouco lá fora? O que fostes fazer lá, e

porque o homem vestido com peles queria matar um de vós?” Adiantou-se um homem

de mais idade, inclinou-se levemente diante de Miang-Fong, como se um respeito

desconhecido o obrigasse a fazer esse movimento inusitado, e começou a falar:

“Forasteiro, tu viste como um sacerdote mago, com o seu ajudante, queria

novamente roubar uma pessoa e sacrificá-la. Insaciável é ele em suas exigências. Ele

nos havia chamado e ameaçado, que chamaria a ira dos deuses sobre nós, se não

obedecessemos.”

“E o que teria acontecido com a vítima? perguntou Miang-Fong abalado.”

“Ele a teria abandonado e as suas posses teriam passado para o sacerdote,”

explicou o homem.

“Vós realmente acreditais, que deuses exigem tal sacrifício?” perguntou Miang-

Fong.

“Nós não o sabemos. Os sacerdotes assim o dizem e ameaçam-nos e maldizem-nos,

quando não obedecemos.”

Page 68: MIANG -  FONG

“E aí ficam com medo?” perguntou Miang-Fong novamente.

As pessoas entreolharam-se acanhadas. Uma criança choramingava. As mulheres

olharam assustadas.

“Se não fizermos o que querem, então eles enfeitiçam o nosso gado para que fique

doente e morra, ou eles atraem fortes tempestades, ou maldizem as mulheres para que

não possam ter filhos.”

“Como um ser humano pode ter tanto poder?” admirou-se Miang-Fong, “e que

“deuses” são esses que os ajudam a praticar tanto mal?”

“Forasteiro, tu não os conheces, mas nós os conhecemos e temos medo deles,”

disse o velho cauteloso, e Miang-Fong leu concordância em todos os rostos. Então ele

se levantou: “Eu, porém, vos digo que não são deuses que ajudam esses sacerdotes! Um

Deus não prejudica os seres humanos, ele os ajuda!

“Tu tens um tal Deus?” queriam eles saber então e Miang-Fong afirmou.

“Vós mesmos vistes quão forte Ele é! O sacerdote perdeu seu poder sobre vós e teve que largar sua vítima!” Isto todos eles tinham vivenciado, e ainda agora admiravam-se da coragem do forasteiro.

“O teu Deus pode ajudar a nós também?” queriam saber agora e Ming-Fong

afirmava-o alegremente.

“Meu Deus é um Deus bom, e Ele me mandou para junto de vós para que vos

auxilie e vos salve do poder dos sacerdotes, que vos corrompem. Se vós acreditais Nele

e pedís proteção a Ele, Ele vos protegerá, como tem vos ajudado nesta noite. Então não

mais precisais temer nenhum sacerdote, eles não vos podem fazer mal.”

Os rostos preocupados iluminaram-se. A força e a confiança de Miang-Fong

levantou a sua coragem. Eles mesmos o haviam vivenciado, como o sacerdote tinha

fugido, contra o qual todos eles juntos tinham sido impotentes.

“Mas ele voltará e exigirá novas vítimas,” disse alguém desanimado.

“Eu permanecerei convosco até aprenderdes a colocar-vos na proteção do bom

Deus,” prometeu Miang-Fong.

Irrompeu então tão grande alegria, que Miang-Fong teve que tapar seus ouvidos.

Um medo que durou anos, um pesadelo, que estava sufocando estes seres humanos, foi

afastado deles. Sozinhos, haviam sido muito fracos e ignorantes, agora, porém, com a

promessa de Miang-Fong, tornaram-se corajosos.

Passaram-se meses, nos quais Miang-Fong conseguiu tornar novamente alegres

estas pessoas intimidadas e amedrontadas. Mais francos eram seus olhares e escutava-se

risos alegres, quando reuniram-se para serem instruídos.

“É de se admirar,” disse certo dia Mu-hai, o ancião, para Miang-Fong, “o que de

nós fizeste. Nosso coração tornou-se leve desde que estás conosco. Antes havia um

grande peso nele, que quase nos sufocou.”

E assim era. A dominação dos sacerdotes não permitiu um desenvolvimento nas

almas das pessoas, somente medo e miséria. Agora podiam tratar de seu trabalho sem

preocupação, pois os sacerdotes não mais apareceram. Assim parecia. Na verdade,

porém, olhos atentos observavam tudo o que acontecia no pequeno vilarejo das

montanhas, pois havia um entre os moradores, que secretamente estava ao lado dos

sacerdotes e que de noite levava mensagens a eles. Ódio vivia na alma desse homem,

ódio contra a luz, que irradiava de Miang-Fong e que ele não podia suportar. Fu era

Page 69: MIANG -  FONG

pobre porque era preguiçoso e esperava receber uma recompensa dos sacerdotes, se

prestasse serviços de espionagem a eles.

Miang-Fong, no entanto, continuou, despreocupado com as atividades trevosas, a

ajudar e a acender a luz nas almas dessas pessoas simples.

Quando foi informado, aos sacerdotes, de que a influência de Miang-Fong

aumentava diariamente e que não tomava nenhuma providência para deixar o vilarejo,

conspiraram sobre como podiam liquidá-lo. Era muito difícil aproximar-se dele, pois

sempre estava rodeado por pessoas, mas talvez oferecer-se-ia uma oportunidade de

encontrá-lo sozinho.

“Ele não vai acreditar nisso,” opinou Fu. “Além disso, não acredito que tesouros

possam atraí-lo.”

Assim tiveram que inventar algo diferente e, no final, chegaram a uma manha

diabólica. Amarraram um animal do pasto à meia altura de uma rocha saliente e

deixaram-no gemendo dolorosamente. Porém, aos homens do povoado Fu teve que

dizer que era um espírito irado com o povo, por terem abandonado os sacerdotes.

Medo supersticioso queria novamente apoderar-se das pessoas, pois lúgubres

entoavam os gemidos do animal faminto e torturado. Tinham-no amarrado num local

íngreme, onde estava em constante perigo de enforcar-se.

Miang-Fong, no entanto, resolveu averiguar corajosamente o motivo. Ele escalou o

caminho estreito que o levaria próximo ao local de onde vinham os gemidos. De

repente, seu pé deu um passo em falso numa pedra escorregadia e quase despencou.

Pareceu, porém, como se uma mão invisível o amparasse, até que seus pés

conseguissem pisar em solo firme. Nitidamente reconheceu agora, acima de si, o animal

amarrado e grande compaixão e ira sobre tanta maldade tomou conta dele. Com grande

esforço escalou o último trecho e encontrava-se, respirando aliviado, no pequeno

ressalto de rocha lisa. Inquieto, o animal queria encostar-se nele, ele sentia a ajuda, mas

era impossível soltá-lo. Ambos iriam despencar no abismo, pois não podiam

movimentar-se simultaneamente.

Enquanto Miang-Fong ainda refletia o que deveria fazer, um bloco de granito

despencou repentinamente lá do alto e passou próximo dele, ao mesmo tempo ouviu-se

um grito, e Miang-Fong viu o corpo de um homem passando por ele e caindo no

abismo. Ele não conseguiu ver de quem se tratava, no entanto, sabia que o acidentado

alcançou o fim a ele destinado. Dirigiu-se ao animal que tremia em todo o corpo,

encorajando-o.

“Eu vou buscar ajuda para ti, disse ele, e o animal deve tê-lo entendido, pois

aquietou-se.

Miang-Fong, porém, apressou-se, tão rapidamente quanto o caminho inclinado o

permitia, até o povoado e relatou o que havia vivenciado. Alguns homens colocaram-se

à disposição para voltar com ele e libertar o animal. Levaram cordas para a segurança

mútua e, incutindo ânimo, foi possível soltar o animal e trazê-lo para baixo.

A partir desse dia, Fu nunca mais foi visto.

Com a morte de Fu, desapareceu o único espírito mau do povoado e Miang-Fong

pôde continuar a atuar desimpedidamente. Aos poucos desapareceu o medo e crescia a

confiança e a força nas almas das pessoas e quando, após algum tempo, Miang-Fong

deles se despediu, ele sabia que eles permaneceriam fiéis à sua nova fé. Havia, no

Page 70: MIANG -  FONG

entanto, ainda muitos seres humanos desanimados e amedrontados nesse grande país.

Pessoas embrutecidas e cruéis subjugavam os fracos, em toda parte faziam-se sacrifícios

humanos, sob a alegação de que os deuses assim o exigiam. Relativamente fácil havia

sido a vida de Miang-Fong naquele pequeno povoado nas montanhas distantes. Agora,

porém, quando avançava para a parte central do país, reconheceu o sinistro poder que os

sacerdotes e os príncipes de tribos mantinham em suas mãos.

Parecia que aqui existiam dois tipos de pessoas: os com as feições grosseiras,

narizes largos, olhos bem inclinados e membros nodosos, grosseiros. Elas também eram

mais fortes fisicamente que as outras, cuja cor da pele era mais clara e as feições dos

rostos mais delicadas.

Miang-Fong investigou a origem disso e foi informado que os homens Tau, como

se chamava a classe dominante, haviam invadido esta terra em época remota, vindos do

norte e desalojada a população local dos Ming, forçando-os sob seu domínio. Agora não

eram mais capazes de se defender, pois os homens Tau também tinham trazido sua

crença de magia, seus sacrifícios humanos e seus sacerdotes magos, que conseguiram,

com muita astúcia e mistificações, mas também com ajuda de auxiliares trevosos,

manter o povo Ming sob medo e em dependência.

Miang-Fong ainda não havia caminhado longe, quando deparou-se novamente com

vestígios desse culto horrivel. Blocos de pedra toscos, cobertos de sangue,

testemunhavam dos horrores, que aqui haviam acontecido. O local parecia deserto, onde

somente há pouco tempo devia ter ocorrido uma cena de horror. O coração de Miang-

Fong inflamou-se de ira. Procurando, olhou ao seu redor. No começo não pôde

descobrir um povoado. Algo, porém, atraiu o seu olhar: uma mulher velha, que estava

caída no chão a alguma distância. Ele foi até ela, tocou nela para ver se ainda estava

viva. Ela não deu nenhum sinal de que sentia o que lhe acontecia. Então virou o seu

corpo, para melhor poder enxergar. Mas, horrorizado, recuou alguns passos. Era um

rosto mutilado, com as órbitas dos olhos vazias. Nunca havia visto algo tão horrível.

Debruçou-se sobre o corpo. A mulher devia estar morta, o último sopro parecia ter

escapado do corpo. Mas não podia deixar a morta abandonada aqui! Animais selvagens

viriam e atacariam o cadáver. Procurando, olhou ao seu redor. Nas proximidades havia

somente pedras, nenhum arbusto, do qual poderia ter quebrado alguns galhos, e o chão

era duro. Assim empilhou pedras ao redor do corpo e cobriu-o igualmente com pedras.

A seguir, fez uma silenciosa oração pela pobre alma.

No entanto, ainda não havia terminado, quando, de diversos lados, aproximaram-se

figuras sinistras com facas apontadas ameaçadoramente, que o cercaram e investiram

contra ele com sons selvagens. Miang-Fong ficou parado calma e tranqüilamente e

olhou fixamente nos olhos deles. Isso era descomunal para eles, que sempre viam as

pessoas fugir em pavor mortal.

“Levem ele convosco!” ordenou o chefe, um gigante com olhos oblíquos, nariz

chato e expressão cruel no rosto.

Miang-Fong tolerou tudo. Conduziram-no até um povoado, construído toscamente

de pedras cinzentas, de modo que as habitações pouco se diferenciavam do chão

rochoso. Com gritaria triunfante, Miang-Fong foi levado a uma espécie de praça e lá

amarrado num poste. A seguir, com tambores e apitos estridentes, os homens chamaram

os habitantes das casas que, contrariados, compareceram. Admirados ao máximo,

perceberam o forasteiro, que se encontrava tão corajoso entre os selvagens. Algo assim

nunca lhes havia ocorrido. Parecia como se os selvagens ainda queriam deleitar-se na

Page 71: MIANG -  FONG

contemplação do prisioneiro, pois o gigante parou diante de Miang-Fong e começou a

interrogá-lo.

“Quem és tu, e o que procuras aqui?”

Com voz sonante respondeu Miang-Fong: “Eu sou o mensageiro do Altíssimo e

vim para ajudar aos oprimidos neste país.”

Quase inacreditáveis soaram estas palavras, incompreensíveis e, mesmo assim,

havia algo nelas que chamou a atenção de todos. Os selvagens olharam para Miang-

Fong um tanto desnorteados, pois este não mostrava nenhum medo e nem queria

dobrar-se ao poder deles. O que deveriam fazer com ele? No entanto, não tinha ele

ameaçado de que queria libertar os oprimidos?

Subitamente, o gigante irrompeu numa gargalhada feia: “Tu queres libertar os

oprimidos? Liberta-te primeiro a ti mesmo! Ainda te encontras em nosso poder.”

“Somente pelo tempo que o meu Senhor, o Altíssimo, o permitir,” respondeu

Miang-Fong sem medo. “Nenhum momento mais.”

“Então, vamos ver, quem é o mais forte, teu Senhor, do qual falas tão

arrogantemente, ou esta minha faca aqui!” gabou-se o gigante. Ele levantou sua faca

curvada e queria dar o golpe, quando um pequeno cão, que estava junto aos moradores

espectadores, correu por entre suas pernas, latindo alto. O gigante tropeçou e caiu no

chão. Nisso, a faca encravou-se profundamente no seu próprio peito. Um grito fez se

ouvir na multidão. Em Miang-Fong, porém, elevou-se fervoroso agradecimento, pela

visível ajuda de seu Senhor.

“Quem agora ainda se atreve a duvidar que o Altíssimo protege seus servos?”

perguntou Miang-Fong.

Cheios de medo supersticioso olharam os sacerdotes magos para ele. Não tinham

coragem de levar o morto embora, até que Miang-Fong ordenou-lhes:

“Levem esse aí embora e soltem as minhas amarras, para que possa anunciar-vos

mais sobre o meu Senhor.”

Como se essas palavras quebrassem um encanto, alguns homens vieram correndo,

cortaram as cordas e afastaram-se dele novamente, com respeito. Miang-Fong, porém,

falou com eles, como se não tivesse acontecido nada de especial.

“Vós agora o vivenciastes, ó homens, que não precisais ter medo quando o

Altíssimo vos protege. Mas vós ainda não O conheceis, por isso também não podeis

pedir a Sua ajuda. Eu, porém, O conheço, e Ele me envia até vós para que eu vos

auxilie.”

Esta era outra nova, incompreensível para as pobres, amedrontadas pessoas. Existia

realmente um Ser elevado, que se apiedava delas?

“Então eu não roguei em vão,” fez se ouvir uma voz, e um jovem franzino

aproximou-se com entusiasmo e chegou-se bem perto de Miang-Fong. “Sempre de novo

roguei que nos viesse auxílio em nossa angústia. Eu, no entanto, não sabia a quem devia

rogar, mas sempre acreditava que devia existir um Deus bom, e nele tinha esperança.”

“Fizeste bem, e Ele ouviu o teu pedido,” disse Miang-Fong amavelmente. “E agora

todos vós podeis ouvir Dele. Muito posso anunciar-vos Dele, antes de tudo, porém,

saibam que Ele não esquece ninguém que está em apuros e que Seus servos O informam

sobre cada um que se esforça para o bem.”

Page 72: MIANG -  FONG

Já essas poucas explicações eram tão avassaladoramente novas para essas pessoas –

que até agora sempre haviam sido mantidas sob medo de “deuses” ameaçadores, irados,

castigadores, ávidos por sangue e sacrifícios – que mal podiam acreditar no que estavam

ouvindo.

“Conte-nos mais sobre o Deus bom,” pediram. “Onde Ele está? Ele nos vê?

Podemos realmente fazer pedidos?”

O sofrimento suportado há tanto tempo havia deixado receptivas as pessoas, que

aqui se aglomeravam junto a Miang-Fong. Nem todos eram moradores do povoado.

Muitos continuavam tremendo diante do poder dos sacerdotes e afastaram-se

silenciosamente, para que não fossem vistos aqui. Eles acreditavam que os sacerdotes

podiam vê-los também de longe e eles receavam sua vingança. Min-fu, no entanto, o

jovem, que como primeiro ousara aproximar-se, escutava cheio de felicidade as palavras

de Miang-Fong e encorajava os demais a formular novas perguntas.

“Não podemos permanecer aqui, ó sábio,” disseram elas. “Venha para o nosso

povoado e conta-nos mais sobre o teu Senhor forte e bom.”

Novamente, foi encontrado um povoado no qual Miang-Fong podia atuar e ele o

fez cheio de alegria. Min-fu não saiu do lado dele e, quando chegou o momento em que

Miang-Fong foi chamado para espalhar a sua semeadura em outros corações, ele pediu:

“Deixa-me seguir contigo, ó grande mestre, para que não fiques sozinho em tua difícil

caminhada. Deixa-me ser o teu Tschila, teu aluno, que de ti aprende e te auxilia a tornar

as tuas caminhadas menos penosas.”

Satisfeito, Miang-Fong concordou. Era isso que ele esperava, que encontrasse

pessoas dispostas a apoiá-lo em sua grande obra.

Miang-Fong continuou percorrendo o país, de localidade em localidade e, em todo

lugar, deparou-se com o mesmo domínio de horror de superstição tenebrosa. Certo dia

alcançou-o o chamado de uma tribo especialmente ameaçada. Ele havia se dirigido para

o norte, rumo aos altos contrafortes da cordilheira. Lá encontrou um povoado maior,

chamado Kum-bum, no qual instalara-se um grupo de sacerdotes magos, que dali

dominava toda a região.

O chefe da tribo, um homen Tau, dominava as pessoas junto com os sacerdotes

magos e arrecadava dos circunvizinhos grande quantidade de gado, leite e grãos. Uma

tropa, armada com flechas e lanças, garantia-lhe o poder de extorquir tudo o que

desejava. Impotentes, os moradores tiveram que presenciar como eram roubados

continuamente.

A notícia do sábio forasteiro já havia chegado até aqui, e um homem corajoso

colocou-se à disposição para sondar Miang-Fong e para pedir sua ajuda. Pois, sobre ele

espalhavam-se fatos milagrosos: que era invulnerável, porque tinha um Deus poderoso,

que era mais forte do que todos os demais deuses, mais forte também que os sacerdotes,

que perante ele caíam mortos quando ele apenas os olhava. Novamente, as pessoas já

haviam adaptado os fatos à sua maneira de pensar.

O mensageiro, Mao-tsu, encontrou efetivamente o rastro de Miang-Fong e seu

companheiro, pois boatos singulares precederam-no sobre o seu poder e sua influência.

Mao-tsu inclinou-se profundamente diante do grande mestre sábio, como Miang-

Fong geralmente era chamado, juntou as palmas das mãos levantadas e pediu:

Page 73: MIANG -  FONG

“Ó tu, grande mestre, os moradores de Kum-bum pedem a tua ajuda! Estão sendo

duramente ameaçados por Mao-dsung, o chefe selvagem, as suas vidas estão sempre em

perigo. Veio até nós a notícia de que tu te encontras na proteção de um Deus, cuja

magia é mais forte do que a dos deuses dos quais nos falam os sacerdotes. Viemos

pedir-te a proteção Dele!”

Admirado, Miang-Fong escutava as palavras. O que os homens haviam feito da

notícia sobre o Altíssimo? Quão rapidamente a tinham torcido de acordo com o seu

pensamento! Devia prestar muita atenção e reconstituir novamente a verdade.

“Conduze-me até Kum-bum,” ordenou a Ma-tsu, e de muito bom grado, este

obedeceu. O caminho era árduo. Selvagens torrentes das montanhas tinham que ser

transpostas, superados caminhos cheios de rochas e gelados sopravam os ventos vindos

do norte para o planalto aberto, no qual, ao sopé de uma pequena elevação, estava

situada Kum-bum. Aqui tudo revelava uma riqueza maior. Este planalto parecia ser

fértil, as moradias das pessoas mais sólidas.

Miang-Fong chegou a tempo para assistir a uma espécie de festa. Grande número

de pessoas percorria as ruas, porém, não pareciam felizes. Mesmo que elas

conversassem e trocassem cumprimentos, o som abafado de tambores e de apitos

estridentes proporcionavam a tudo uma nota sinistra. Aproximava-se agora um cortejo,

diante do qual todos recuaram, na dianteira um sacerdote ornamentado, envolto em

diversos panos coloridos, o rosto pintado em cores, agitando uma grande faca na mão

direita. Atrás dele seguiam mais algumas figuras semelhantes, sacudindo nas mãos

tambores ruidosos que, ao sacudir, soltavam seus sons dissonantes. Era um ruído

infernal, ao qual o silêncio mortal dos moradores oferecia um estranho contraste.

Miang-Fong observava o cortejo que estava se aproximando. Eram rostos

animalescos, cujas expressões cruéis ainda eram intensificadas pela pintura berrante. Ele

fixou seu olhar neles, enviando ao seu encontro pensamentos defensivos. Estes também

pareciam sentir alguma coisa, pois seus passos vieram a estancar, no entanto, logo a

seguir os pequenos tambores redondos rugiram ainda mais altos e os apitos soaram mais

estridentes e dissonantes. O cortejo movimentava-se justamente na direção em que

Miang-Fong e seu companheiro se encontravam. Aproximava-se já dos espectadores

aglomerados. Um tremor perpassou a multidão, Miang-Fong sentia o seu medo. Então

ele se adiantou, levantou imperativamente a mão e mandou o cortejo barulhento parar.

Com um movimento contrariado, o primeiro dos sacerdotes magos quis empurrá-lo para

o lado, Miang Fong, porém, estava como que enraizado, de modo que obrigou o outro a

parar também.

“Saia do meu caminho!” berrou o mago. “Tu nada tens a fazer aqui.”

“Estás enganado,” foi a resposta de Miang-Fong. “Eu procuro algo, que tu não

possuis e não conheces, entretanto, tens que me dar.”

“Tu falas em enigmas, homem,” respondeu o mago ironicamente. “O que não se

tem, não se pode dar. Ceda lugar, senão terás que sentir a minha faca.” E,

ameaçadoramente, a agitava diante do rosto de Miang-Fong.

“Tu perdeste algo!” disse Miang-Fong inesperadamente, e o mago abaixou-se,

como se quisesse apanhar alguma coisa do chão. Imediatamente Miang-Fong tirou-lhe a

faca, quebrou a lâmina ao meio e jogou-a aos pés do mago. Uivando de raiva, este quis

avançar sobre ele, porém, o olhar claro de Miang-Fong o deteve.

Page 74: MIANG -  FONG

“Vês, que nada podes fazer contra mim?” perguntou Miang-Fong. “Agora dá-me

aquilo que tu não possues e não conheces: a liberdade para estas pessoas! Pare de

torturá-las e de amedrontá-las!”

Bravejando de raiva, o mago dirigiu-se aos seus companheiros.

“Peguem-no e amarrem-no!” ordenou.

Mas ele falou ao vento. De Miang-Fong partia algo que deteve até essas pessoas

depravadas. Elas não estavam armadas, traziam somente seus instrumentos barulhentos.

Quem poderia saber que tipo de magia ele possuía? Nunca antes havia acontecido que

alguém tivesse a coragem de enfrentar Hi-lao. Cheia de curiosidade, a multidão

observava. O que faria o sacerdote mago agora? Se realmente possuisse poder, então

devia mostrá-lo agora! Mas nada aconteceu. Ele tentou desviar e passar por Miang-

Fong. Este, porém, enfrentou-o novamente e disse: “Mais uma vez eu exijo de ti: deixa

estas pessoas em paz! Tu não tens poder sobre elas.”

O que faria Hi-lao? Ele sempre havia afirmado que os deuses iríam esmagar aquele

que se opusesse a ele? E agora não acontecia nada? Pela primeira vez, fizeram-se ouvir

vozes: “Agora, Hi-lao, onde estão teus deuses? Chama-os para ajudar-te!”

Então Miang-Fong levantou sua voz, e ela soou longe: “Amigos, os deuses, com os

quais ele vos ameaçava, não existem! Existe somente um Deus, a quem tudo tem que

servir e Seus servos não são inimigos dos seres humanos, mas seus amigos!”

“Vejam, vejam!” exclamou uma voz agitada e indicou para uma figura horrível,

que se formava atrás de Hi-lao. “O deus dele!”

Aos gritos, as pessoas queriam fugir. Hi-lao voltou-se e caiu ao chão gritando por

ajuda. Também para ele isso era novo.

“Foi ele quem o mandou!” gritou ele e indicou para Miang-Fong. “Ajudem-me,

gente boa!”

Então elas pararam e observaram com uma certa satisfação maliciosa o medo

daqueles, diante dos quais por tanto tempo tremeram. Miang-Fong, no entanto, levantou

seus braços para o céu e exclamou: “Ó Altíssimo, a quem me é permitido servir,

proteja-nos desse demônio, que esse homem gerou!”

Então desceu uma neblina luminosa e, diante dela, desfez-se a figura.

“Vistes vós, como o Altíssimo enviou para nós um raio de Sua pureza?” exclamou

Miang-Fong. “Não tenham medo desse homem, ele é impotente e não pode vos fazer

mal. Retirem-no daqui,” ordenou aos acompanhantes do sacerdote mago e eles

obedeceram.

E Miang-Fong voltou-se para os espectadores e disse: “Quem procura o bem,

encontrará o bem. Quem procura o mal, até ele virá o mal e o destrói. Vós o vistes.

Procurem sempre o bem, então sempre vos virá auxílio.”

Espalhou-se rapidamente a notícia do que havia acontecido e chegou também até

Mao-dsung, o chefe da tribo. Este encolerizou-se e partiu com seus soldados para

prender o intruso. Os moradores, porém, advertiram Miang-Fong e o esconderam em

seu povoado. Um corredor escuro, na casa de Göpek, que conduzia do porão da casa

para dentro da montanha, deu abrigo a Miang-Fong e seu companheiro e, às escondidas,

Göpek os abastecia com alimento e bebida.

Page 75: MIANG -  FONG

A Miang-Fong não agradava esperar no esconderijo, parecia-lhe muito melhor

enfrentar Mao-dsung abertamente . Mas o seu guia luminoso ordenou-lhe: “Espere, até

que sejas chamado.” Contentou-se com isso e ensinava às escondidas.

Mao-dsung, porém, bravejava de raiva e jurou que iria incendiar tudo, se o intruso

não lhe fosse entregue. Deus, porém, ajudou Miang-Fong, para que não fosse

encontrado. Mao-dsung mandou vasculhar todas as casas, mas Miang-Fong não foi

encontrado. Quando seus soldados o informaram que não tinham achado o procurado,

Mao-dsung berrou: “Então eles vão me pagar!” E deu ordem para acender uma grande

fogueira, na qual os soldados deveriam jogar todos os pertences dos moradores.

Entraram nas casas, saquearam e levaram tudo, o que viam pelo caminho, para fora e

jogaram-no ao fogo. Os magos, no entanto, dançavam ao redor do fogo, gritavam e

cantavam suas selvagens invocações. Os moradores assistiam clamorosos e não sabiam

como ajudar-se. Havia muitos que agora teriam denunciado o esconderijo de Miang-

Fong, se o soubessem. Mas este havia ficado em segredo para todos.

O fogo, bem alimentado, aumentava, e sempre mais selvagens tornaram-se as

contorções dos membros dos sacerdotes, que dançavam ao redor. De repente, apareceu

Miang-Fong diante do fogo, como se surgido do solo. Imperativamente, levantou as

mãos e exclamou tão alto, que todos puderam ouvir:

“Em nome do Altíssimo Deus eu te ordeno, fogo, pára de queimar!”

Como que por encanto, as chamas baixaram, a crepitação diminuiu e, pouco tempo

depois, o fogo somente ardia sem chamas. Somente Miang-Fong viu os pequenos entes

do fogo, que rapidamente se afastavam. Todos os demais caíram de joelhos diante desse

grande”feitiço” e ficaram com muito medo.

Agora Miang-Fong dirigiu-se a Mao-dsung, que ainda não conseguiu compreender

o que aqui tinha acontecido, e disse: “E tu, servo das trevas, retira-te deste local e não

volta nunca mais! O teu tempo terminou, nada mais tens a fazer aqui.”

Com essas palavras aproximou-se mais do chefe, mas este retrocedeu. Não podia

suportar o olhar flamejante de Miang-Fong. Seus soldados seguiram-no.

Quando o povo viu que Mao-dsung e seus soldados foram embora, encheram-se de coragem, como nunca a tiveram. Com pedaços de madeira em brasa, que retiravam do resto do fogo, investiram contra os sacerdotes magos e os afugentaram, sim, perseguiram-nos até longe, voltando então triunfantemente.

Estas pessoas haviam assistido, pela primeira vez, ao atuar de um poder mais

elevado. Não paravam de admirar-se e elas, antes tão caladas, não se cansavam de

expressar sua admiração.

Miang-Fong, no entanto, não lhes deixou muito tempo para isso, mas exigiu:

“Agradeçam agora ao Altíssimo, que ajudou a livrar-vos desse jugo!”

E em voz alta e com as mão levantadas, enalteceu a bondade de Deus e acrescentou:

“Perdoa-lhes, ó Altíssimo, se ainda não sabem como agradecer-Te. Eles estão

dispostos a aprendê-lo.”

Miang-Fong não mais deixou recair os moradores de Kum-bum em seu antigo

afrouxamento e medo.

“Vós tendes que ajudar-vos a vós próprios,” disse ele. “Vós deveis eleger um

dentre vós, que vos guie, no lugar de Mao-dsung. A ele quero dar assistência, para que

aprenda a atuar de acordo com a vontade do Altíssimo. Se assim o fizerdes, então Ele

também vos protegerá. Nunca mais poderá atingir-vos tamanho sofrimento como tens

suportado até agora.”

Page 76: MIANG -  FONG

Isso todos entenderam, e a escolha recaiu unanimamente sobre Göpek, um homem

de mais idade e ponderado, que já tinha perdido diversos filhos devido aos sacerdotes

magos. Ele nunca mais se dobraria diante deles.

Miang-Fong auxiliou-o a organizar tudo e a estabelecer leis, de acordo com as

quais as pessoas deveriam viver daqui por diante. Eram as seguintes:

1. Existe somente um Deus, o Altíssimo, que criou a todos nós.

2. A Ele devemos gratidão e obediência, pois Ele nos presenteou a nossa vida.

3. Também os animais e as plantas foram por Ele criados. O homem deve respeitá-

los como suas criaturas companheiras.

4. Sirvam todos ao Altíssimo, então vós todos sereis irmãos e nenhum de vós fará

mal algum ao outro.

5. Mantenham a paz entre vós, então sereis fortes.

6. Auxiliem um ao outro, então tudo prosperará.

Com essas leis, a tribo dos Mihao organizou, a partir de então, a sua vida. Miang-

Fong instruiu-os até que podia deixá-los cuidarem de si próprios. Göpek provou ser um

líder de confiança.

Quando Miang-Fong partiu, juntou-se a ele mais um grupo de jovens que, igual a

Min-fu, tinham o desejo de se tornarem seus Tschilas. Deles faziam parte Pao, Lung,

Dak e Su.

Miang-Fong viu agora ter chegada a hora para que ele e seus alunos preparassem

um local fixo, onde ele poderia ensiná-los, instruí-los e prepará-los diariamente, para

tornarem-se futuros auxiliares. Um grande plano, amplamente elaborado, começou a

formar-se no seu íntimo. Qual uma grande edificação, totalmente perpassada pela luz,

com muitos ambientes, surgiu nele um quadro do futuro Tibete. Uma luz radiante

deveria partir dessa edificação, deveria ser o sol, que aqueceria e iluminaria todo o país.

Até o último canto escuro do país deveriam chegar esses raios, para que não pudesse,

em lugar algum, manter-se ou até aninhar-se algo, que não pudesse persistir diante dos

olhos do Altíssimo.

Miang-Fong viu muitos fios de pensamentos luminosos partindo do ponto central

visualizado e eles eram como cordas fortes, nas quais os seres humanos poderiam

segurar-se. Através das mesmas, ele puxava as almas dos seres humanos para o alto,

pois simultaneamente com os raios de luz expedidos, deveriam esforçar-se para elevar

ininterruptamente fios do bom querer, da adoração e do servir, e estes deveriam então

elevar consigo as almas dos seres humanos a eles ligados. Cada vez mais nítido formou-

se o quadro diante de seus olhos, ele mal podia esperar a hora de iniciá-lo. Mas ainda

não fora encontrado o local no qual poderia estabelecer-se. Ele deveria esperar a hora do

Altíssimo e isto Miang-Fong já aprendera há muito tempo. Somente então, tudo seria

bem sucedido com a perfeição, que era inseparável de tudo que o Altíssimo mandava

executar de acordo com Sua vontade. Se mãos humanas interviéssem impaciente e

intempestivamente nessa fina tecedura, romper-se-iam os fios de apoio, e isso não

deveria acontecer.

Assim, Miang-Fong percorreu o vasto país com os seus Tschilas, ensinando-os.

Sem medo, enfrentava em todo lugar a superstição tenebrosa e as intrigas dos

sacerdotes. A fama do poder mágico do grande mestre precedia-o e preparava as

pessoas para o seu atuar. Mesmo que muitas vezes misturavam-se relatos inventados,

Page 77: MIANG -  FONG

mal compreendidos e mal interpretados, estes, no entanto, sempre coincidiam com a

verdade no que se referia ao seu poder sobre os falsos sacerdotes e encorajavam as

pessoas para que se livrassem de seu domínio.

Kum-bum já há muito ficara para trás. Dirigia agora seus passos para o leste,

caminhava através de vastos planaltos, regiões inabitadas. Cordilheiras íngremes foram

atravessadas. O guia, então, chamou-os novamente para o sul. Dessa forma percorreu

longas distâncias pelo país, até que, certo dia, alcançou-o o chamado para estabelecer-

se. Encontrava-se no sopé de uma montanha moderadamente alta, que ascendia em

forma de terraços. Do seu pico deveria haver uma ampla vista dos arredores. Quem lá

em cima morasse, poderia reinar como um soberano. Tinha o país aos seus pés.

“Esta montanha deve tornar-se um centro para o Altíssimo,” explicou-lhe o seu

guia luminoso. “Veja, como se eleva em degraus até o cume, um símbolo do

desenvolvimento do espírito humano para o alto. De degrau para degrau ele deve elevar-

se, cada degrau deve prepará-lo para o próximo mais elevado. Nenhum pode ser

omitido. Assim deves ensiná-lo aos seres humanos e assim deves classificá-los: no

degrau inferior estão aqueles que iniciam a aprender a assimilar em si a verdade. Feito

isso, eles podem levantar o pé até o próximo degrau. Assim continuará, do auxiliar para

o servir, para um novo procurar e encontrar. Edifica isso no teu íntimo e, depois,

comece a conduzir os teus alunos nesse caminho.”

Agora a questão ainda era: quando e como Miang-Fong pretendia dar início à

construção do local de ensinamento para os seus alunos. Aí, um acontecimento veio em

seu auxílio, que lhe mostrou o caminho e que também proporcionou-lhe os ajudantes

necessários para esse fim. Na proximidade da montanha de terraços, em cujo cume

deveria ser erguida a construção material, que seria a imagem do templo espiritual e que

seria construída para todo o Tibete, havia na planície um povoado, com cuja população

Miang-Fong já havia entrado em contato. Eles o receberam de modo amável e

prestativo, pois também até eles chegara a notícia do grande milagreiro e suscitara a sua

curiosidade ao máximo.

Aquela região ainda era mais intocada por estar mais afastada. A população não era

numerosa e estava igualmente afastada tanto da riqueza como da pobreza. Esta média

saudável havia favorecido também o seu equilíbrio interior, de modo que Miang-Fong

nunca havia encontrado almas tão abertas como aqui em Lao-tschang.

Mas, então, sobreveio repentinamente uma grande desgraça a estes seres humanos,

como nunca haviam vivenciado. Irrompeu entre eles uma epidemia, a qual não

conseguiam controlar. Atacava inicialmente as crianças, espalhava-se depois também

entre os adultos e ceifou muitos deles em curto espaço de tempo. Não havia sacerdotes

por perto, que pudessem combater a epidemia com fórmulas e bebidas mágicas, os

conhecimentos das pessoas, porém, não eram suficientes para combater a doença.

Assim, consideravam Miang-Fong como um enviado do céu, quando veio em seu

auxílio e, cheios de confiança, solicitaram sua ajuda.

Miang-Fong foi ver os doentes e reconheceu o perigo que essa epidemia

representava. Caso não fosse detida logo, em breve toda a região estaria desabitada. Mas

ele também reconheceu a causa: tratava-se de uma doença transmitida pelo leite dos

animais. Quem se abstinha de consumir o leite, restabelecia-se em pouco tempo. Para os

outros não havia salvação. Uma doença do sangue, que se manifestava em inúmeras

úlceras purulentas, tirava todas as forças e deixava o corpo apodrecer. De onde, porém,

vinha essa doença até os animais? Miang-Fong investiguou e solicitou esclarecimento

ao seu guia. Então, foi-lhe mostrado uma planta, que neste ano vicejava

Page 78: MIANG -  FONG

abundantemente, e cuja seiva provocava essa doença febril. Mas enquanto não fazia mal

aos animais, o ácido venenoso transmitia-se através de seu leite para os seres humanos e

os matava.

Após Miang-Fong ter chegado a esse reconhecimento, ordenou que os moradores

de Lao-tschang conduzissem seu gado para pastos situados em altitude maior, onde essa

planta não crescia e onde encontrariam alimento melhor. Acontece que houve, naquele

verão, um clima adverso nessa planície, e somente a planta nefasta sobreviveu à seca e

vicejou. Aos moradores, no entanto, ordenou que se abstivessem do leite por algum

tempo, então o sangue iria purificar-se novamente e eles se restabeleceriam. Nem todos

submeteram-se à essa ordem, mas quem o fez, logo mais colhia a recompensa pela sua

obediência, enquanto os outros continuavam sucumbindo à doença.

Abriram-se, então, os olhos dos moradores de Lao-tschang, uma vez que viam como Miang-Fong e seus alunos eram incansáveis no auxílio aos doentes, cuidavam deles, lavavam e davam banho a eles, colocavam compressas aliviadoras e encorajavam-nos. Abriam-se também os corações, deixando entrar muitas sementes, que brotavam no solo fértil. Quando a epidemia havia sido extinta, os moradores de Lao-tschang queriam que Miang-Fong permanecesse com eles.

“Fique conosco, ó grande mestre,” suplicavam eles, “ensina-nos como devemos

adorar o teu Deus. Tu és mais sábio do que todos nós. Caso nos atingisse novo

infortúnio, estaríamos desamparados sem ti.”

Miang-Fong, porém, não queria continuar morando entre eles. Já sentia

dolorosamente a falta do silêncio e solidão da natureza intocada, onde se sentia tão mais

perto de Deus. Sabia, também, que seus alunos necessitavam de isolamento e silêncio

para poderem assimilar e desenvolver-se, e ele o explicou aos moradores de Lao-

tschang. Eles o compreenderam e ofereceram-se para ajudá-lo a construir um local,

onde pudesse morar com os seus alunos, sem serem incomodados por eles.

Miang-Fong indicou para a montanha em terraços distante e disse:

“Essa montanha foi escolhida pelo Altíssimo para ser nossa moradia. Situa-se bem

acima das atividades e pensamentos dos seres humanos, no entanto, não

inacessivelmente distante deles. Se vós estais dispostos a ajudar-me, então queremos

construir lá um mosteiro, no qual poderei morar com os meus alunos.”

Isso alegrou os moradores de Lao-tschang e, diligentemente, ofereceram sua ajuda.

A partir daquele dia começou um laborioso edificar na montanha do Altíssimo, Tao-

Schan, como foi chamada dali em diante. De noite, foi mostrado um quadro a Miang-

Fong, sobre como deveria ser o mosteiro e ele deu instruções aos construtores de como

deviam construí-lo. Havia, porém, alguém entre eles que também tinha o dom de ver

quadros, que lhe eram mostrados de noite, e ele sabia como empregar e conduzir as

pessoas, para que surgisse uma cópia fiel daquilo que havia sido mostrado do Alto.

Devagar, mas continuamente aumentava a construção no Tao-schan. O prédio ficou

maior do que, por enquanto, era necessário para Miang-Fong e seu pequeno grupo, mas

ele sabia que em breve mais pessoas viriam até ele. Muito importante era, também, a

criação de jardins, pois tinham que providenciar a produção do próprio alimento. Foram

criados vários deles no lado sul da montanha, em terraços diferentes, para grãos e

hortaliças. Também foram plantadas árvores frutíferas. Min-fu foi incumbido da

supervisão dos jardins. Ele tinha se fortalecido muito durante os anos de peregrinação.

Simples e modestos eram todos eles. Em cima, na parte plana da montanha, foi

instalado um jardim ao redor do mosteiro, para o qual também foi mostrado um modelo

a Miang-Fong. Essa instalação tinha por base um profundo significado. Este jardim

deveria lembrar àqueles, que o freqüentassem, os eternos jardins celestiais. Por isso,

Page 79: MIANG -  FONG

deveria ser enfeitado com muitas flores, e cercas vivas de arbustos verdes deviam

dividí-lo em muitas partes, das quais cada uma seria mantida, predominantemente,

numa cor só.

“A cor azul”, assim explicava Miang-Fong a seus alunos,” deve lembrar-vos da

verdade eterna, que é tão clara e transparente e tão imutável como o céu azul acima de

vós”.

“A cor vermelha fala-vos do amor do Altíssimo, que nos guia e conduz. Quente é

essa cor e ela brilha até longe. Assim, também deve o nosso amor pelas pessoas

estender-se para longe e fazer bem a elas”.

“As flores amarelas sejam para vós a imagem da luz celeste. Muito significativa é

essa cor, pois a luz, eterna em seu brilho radiante, deve levantar-se agora sobre este país

e deve expulsar a escuridão do mesmo. Onde a luz chegar, ali desaparecerá a escuridão,

ela é afuguentada pela luz. Esta é a nossa missão daqui por diante – espalhar a luz ao

nosso redor e para distâncias longínquas”.

“O verde, porém, que não faltará em nenhum dos jardins, é como a mão

auxiliadora, que nós queremos estender às pessoas. O verde liga todas as cores entre si.

Silenciosa e modestamente ela está aí, ela mesma não quer ser nada e, no entanto,

nenhuma flor seria verdadeiramente bonita sem suas folhas verdes, sem o gramado

verde, onde ela se encontra. O verde dos campos alimenta o gado. Verde é aquilo que o

solo produz para a nossa alimentação em grande parte, nós não podemos carecer do

verde”.

“Vamos, portanto, assimilar a verdade eterna do Alto, encher nosso coração com

amor cálido, para que possamos levar a luz para a escuridão e tornar-nos auxiliares dos

seres humanos”.

Afortunados, os alunos acolheram dentro de si o novo saber. Nunca mais o

esqueceram e tornou-se a base para sua divisão em grupos distintos.

“Primeiramente deveis procurar pela verdade com toda a ânsia de vosso coração,”

ensinou Miang-Fong. “Esvaziai o vosso íntimo, para que possa encher-se com os

tesouros da verdade. Quanto menos estiverdes preenchidos com saber próprio, tanto

mais podereis assimilar daquilo que o Altíssimo nos doa. Por isso, não deixeis que

vossos pensamentos vaguem procurando por aí – eles ficariam presos à Terra. Não

deveis preencher-vos com pensamentos, mas com a verdade e essa é saber. O saber,

porém, não pode ser encontrado, ele nos será presenteado do Alto, se estivermos abertos

para isso.”

Assim e de forma similar ensinava Miang-Fong seus alunos. Todas as noites,

quando o trabalho penoso estava concluído, ele os reunia em sua volta e lhes falava e,

agradecidos, acolhiam cada uma de suas palavras.

Principalmente Dak sabia escutar e assimilar, melhor que qualquer outro. Seus

olhos tornavam-se cada vez mais brilhantes, somente poucas palavras saíam de sua

boca. Pois Miang-Fong continuou ensinando: “Quando tiverdes recebido da verdade,

não a transmiteis logo em seguida. Não a deixais voar que nem os filhotes de pássaros,

que esvoaçam do ninho. Eles ainda não podem voar, quando recém saíram do ovo.

Primeiramente devem crescer e suas asas devem poder suportá-los, antes que possam

arriscar seu primeiro vôo. Portanto, deixai crescer e fortalecer o saber da verdade dentro

de vós, antes que o transmitais a outrem. Silenciai a respeito, até que o tenhais

compreendido completamente.”

Page 80: MIANG -  FONG

Assim ensinava Miang-Fong seus alunos a reconhecer o poder do silêncio e, logo,

estavam acostumados a permanecer em silêncio após os ensinamentos noturnos. E

Miang-Fong continuou: “Quando o vosso corpo descansa de noite, então aquilo, que

está vivo em vós, vós próprios, pode deixá-lo. Pois o corpo é somente vosso invólucro,

do qual vós necessitais como proteção aqui na Terra, e esse invólucro necessita de

repouso. Vós próprios, porém, deveis pedir de noite o caminho para os jardins eternos,

deveis procurá-lo, pois lá no Alto é a vossa pátria. Tentai, já agora, aproximar-vos um

pouco. Vós o podeis, mesmo que não o compreendesseis de dia. Procurai os jardins em

silêncio, sem palavras, mas elevai o vosso espírito ansiosamente ao encontro deles, para

que não errais o caminho, quando um dia deixardes o vosso invólucro terreno.”

“Mestre,” perguntou Su, “é-nos permitido retornar aos jardins eternos quando

ficarmos velhos e nosso invólucro terreno quebrar? Não precisaremos voltar?”

“Isso dependerá de vós,” explicou Miang-Fong, pacientemente. “Quem, de noite, já

consegue ascender muito no caminho para os jardins eternos, o seu pé tornou-se leve e

rápido. Ele encontra o caminho e a pátria o atrai. Mas somente aquele que tiver vencido

o seu eu, terá seu pé tão leve e tão rápido, que a Terra não mais pode chamá-lo de volta

e retê-lo.”

“Mas como nós podemos vencer o nosso eu?” perguntou agora Lung, o mais

vagaroso e pensativo de seus alunos. Havia certa preocupação nessa pergunta.

Miang-Fong, porém, sorriu: “Lung, para aprender isso, fomos todos conduzidos

para o Tao-schan aqui. Não é fácil aprender isso, mas quem o faz, já prova aqui na Terra

a felicidade bem-aventurada dos jardins celestiais. Quero dar-vos um exemplo. Vós

conheceis Min-ha, a jovem mulher que viu seu filho morrendo. Também sabeis, como

cuidava do filho dia e noite, como tudo fez, para mantê-lo com vida. Nisso, ela

esqueceu-se de si mesma, pensou somente no sofrimento do filho e cuidou dele dia e

noite e, com seu cuidado abnegado, conseguiu salvá-lo. Ela se sentia feliz e em nenhum

momento lembrou-se dos sacrifícios prestados ao filho. Ela não teria compreendido se

alguém a tivesse elogiado ou admirado. Para ela era natural, ela tinha vencido o seu eu,

por amor ao seu filho. Se vós ajudardes a outrem assim como Min-ha ajudou seu filho,

quando somente viveis com o pensamento: o que eu posso fazer, para manter o outro

com vida, então vós esquecereis o vosso próprio eu, e nem vos ocorrerá ter desejos para

vós próprios.”

Assim e de modo semelhante ensinava o sábio e introduziu seus alunos, cada dia mais profundamente, naquilo que eles deveriam saber e guardar dentro de si, para poderem difundir luz, a luz da verdade, que ele tinha aceso neles. Meses haviam passado. Chegou o dia em que Miang-Fong pôde mudar-se com seus alunos para o novo prédio, mesmo que ainda não estivesse totalmente

concluído. Os homens de Lao-tschang tinham ajudado diligentemente na construção do mosteiro. Eles próprios alegravam-se com o andamento dos trabalhos. Agora, quando o trabalho aproximava-se de seu final, muitos lamentavam o fato de, em breve, terem que deixar a montanha do Altíssimo. A vida em comum os agradava e sentiam por ter que deixá-la. Assim, alguns dos mais jovens pediram a Miang-Fong, que os aceitasse no grupo de seus alunos. Miang-Fong examinou-os e, onde encontrava sincero desejo por uma vida com mais sentido, por um saber aprofundado e o anseio de auxiliar aos outros, então ele consentia.

Assim, em pouco tempo, multiplicou-se o número de moradores do mosteiro em

três, até quatro vezes, e Miang-Fong teve que dividí-los em grupos, de acordo com sua

igual espécie e maturidade espiritual. Já pôde elevar alguns de seus alunos mais antigos

para “auxiliadores”, que o assistiam na instrução dos”aprendizes”. Tratava-se

especialmente de Dak, o mais maduro de seus Tschilas, mas também Su e Pao. Lung era

muito vagaroso. Ele ainda devia continuar a assimilar e aprofundar os ensinamentos no

seu íntimo, e Min-fu pediu ao mestre, que também doravante lhe confiasse os jardins.

Com esse trabalho estava totalmente ocupado. Ele educou, entre os mais jovens, um

Page 81: MIANG -  FONG

grupo de ajudantes solícitos, que cuidavam da alimentação necessária dos moradores do

mosteiro. Certo dia, chegou uma mensagem até Miang Fong, de que num povoado

distante, chamado Kombodscha, também havia irrompida uma epidemia e que eles não

sabiam como ajudar-se. A notícia de sua ajuda milagrosa aos moradores de Lao-tschang

havia chegado até eles e, agora, pediam a ele que também os ajudasse. Eles estavam

confiantes de que ele seria o único que poderia ajudá-los.

Miang-Fong consultou seu guia luminoso e recebeu a resposta que deveria partir e

dirigir-se ao Kombodscha. Isso resultaria em grande bênção para ele e promoveria

muito a causa do Altíssimo. Então, Miang-Fong escolheu alguns de seus alunos para

seguirem com ele. Entregou a Dak a direção do mosteiro na montanha Tao-schan.

Os mensageiros de Kombodscha conduziram-no, cheios de alegria, pelo caminho

mais curto até sua pátria tão atormentada. A situação, lá, era realmente grave. Uma

grande parte da população já havia morrido por causa da epidemia febril semelhante à

peste e, os até agora preservados, tremiam de medo e não arriscavam deixar suas casas.

Miang-Fong ia de casa em casa, consolava e encorajava e sua atitude sem medo

deu novo ânimo aos deprimidos. Parecia que somente a sua presença espalhava saúde e

novo ânimo. Depois que Miang-Fong se convenceu do que se tratava aqui, começou a

combater vigorosamente a doença. Mandou erigir um tipo de cabana de proteção, na

qual mandou deitar todos os enfermos sobre leitos limpos. A seguir, todas as casas

deviam ser limpas minuciosamente, eliminando sujeira, às vezes de anos, e que deveria

ser queimada publicamente. Com isso, muitos germes da doença foram destruídos.

Depois, ordenou para todos os moradores lavagens, três vezes por dia, com água

fervida, à qual eram acrescentadas determinados sucos de plantas com efeito curativo.

Em suas caminhadas pelos arredores, ele havia pedido auxílio aos pequenos servos do

Altíssimo, e eles mostraram-lhe as ervas singelas, as quais continham a ajuda contra o

mal. Miang-Fong ordenou que pessoas jovens, que não tinham sido infectadas,

colhessem essas ervas em quantidade suficiente e que as mulheres preparassem as

poções medicinais. Também os corpos dos enfermos eram lavados com essa poção três

vezes por dia, não sendo utilizados panos para as lavagens, mas sim fibras macias, que

eram depois queimadas.

Muitos restabeleceram-se aos poucos. Aqueles, que a epidemia tinha enfraquecido

demais, vieram a falecer, porém, não era mais uma morte dolorosa, mas lento apagar da

força viva. Os outros, que haviam seguido as instruções de Miang-Fong, permaneceram

com saúde e, depois de semanas, quando Miang-Fong pôde respirar aliviado, seu

esforço foi ricamente recompensado. Os moradores de Kombodscha agradeceram-lhe

efusivamente, mas Miang-Fong rechaçou.

“Não a mim compete o agradecimento. Agradeçei Àquele, que me ajudou a

encontrar os remédios certos, que ordenou aos Seus servos que me indicassem as ervas

curativas.” Admirados, os moradores de Kombodscha perguntaram: “Quem é aquele, de

quem falas? Nós não o conhecemos, e também não enxergamos ninguém que te ajuda!”

Então Miang-Fong podia começar a instruí-los. Agora estavam dispostos a ouvir e

assimilar, pois o medo pela saúde de seus corpos não os afligia mais. Miang-Fong

mostrou-lhes que havia ainda um outro sofrimento, que era muito pior que o sofrimento

do corpo – o da alma faminta. E eles começaram a compreendê-lo.

Satisfeito e alegre retornou o pequeno grupo à montanha do Altíssimo, onde

encontraram tudo na mais perfeita ordem. Todos trabalhavam ativamente na conclusão

da obra iniciada. Miang-Fong alegrou-se com a dedicação de seu pequeno grupo. Isso

Page 82: MIANG -  FONG

incentivava-o a dar a eles, por seu lado, tanto quanto eram capazes de assimilar. A ele

mesmo foi dado reconhecimento sobre reconhecimento nas horas silenciosas de

meditação. Tornou-se para ele uma necessidade de intercalar horas de silêncio em sua

rotina diária, e seus alunos seguiram seu exemplo. E eram essas horas as que mais os

presenteavam. Todos sentiam isso e, agradecidos, eles acolheram essa nova revelação.

Aos poucos, começou Miang-Fong a instituir uma rígida disciplina diária. Às horas

de estudo seguiam horas de silêncio. Os dias iniciavam e terminavam com uma oração.

Isto dava a cada dia uma consistência firme. No entanto, em silêncio, Miang-Fong já

trabalhava na futura estruturação da vida de mosteiro, que devia tomar formas ainda

muito mais rígidas. Os que aqui estudavam deveriam ser retirados da humanidade. Isto

deveria se fazer sentir de todas as maneiras. Quem era aceito como aluno no mosteiro

do Altíssimo, dava sua vida a Ele, doravante ele não mais pertencia a si

mesmo. Uma ânsia só deveria preenchê-lo: avançar para as fontes do verdadeiro saber,

deixar-se preencher completamente pela verdade, com o fim de levá-la até os outros.

Pois Miang-Fong educava seus alunos para serem auxiliares para o seu povo. Ele lhes

mostrava o precipício das trevas, que havia se aberto no país do Tibete. Deviam

reconhecer o perigo para todo o país que nisso se encontrava, de que a fé nos sacerdotes

magos com seu séquito de horrores, medo e opressão das almas, dominava grande parte

da população. Todos eles o haviam vivenciado com maior ou menor intensidade, quase

todos tinham a lamentar uma vítima entre seus parentes mais próximos.

Miang-Fong, porém, lhes ensinou que o Altíssimo é um Deus do amor, que por

amor deu a vida às Suas criaturas e que desejava que elas vivessem a vida, a elas

presenteada, em paz e alegria.

“Ele vos criou, não para uma existência de sofrimento e de medo. Cheios de alegria

deveis novamente ascender para os jardins eternos, dos quais viestes, deveis escalar

degrau por degrau, em esforço incansável. Então, se assim agires, tornar-vos-eis mais

fortes e com agrado pairará o olhar do Altíssimo sobre vosso esforço.”

“Mas como pode acontecer, ó mestre,” perguntou Lung, o pensativo “que os

sacerdotes magos possam exercer um poder tão grande sobre as pessoas? Onde os

enfrentaste, seu poder logo sucumbiu, nenhum de nós, porém, conseguiu fazer isso.”

“O motivo disso, Lung,” ensinou Miang-Fong, “é que vós nada sabíeis do

Altíssimo. Por isso Sua força não podia estar em vós, e somente com Sua força consegui

enfrentar os sacerdotes magos e diante de Sua força quebrou o poder deles.”

“Os sacerdotes também não têm conhecimento do Altíssimo, ou eles só o ocultam

de nós? “continuaram perguntando.

“Se sabem ou não, isso não lhes posso dizer. Em todo caso eles servem a um outro

senhor e não ao Altíssimo.”

Isso foi uma novidade avassaladora para os alunos. Um outro senhor? Quem

poderia ser? Que os deuses, dos quais falavam para os seres humanos, com os quais

ameaçavam, não eram deuses, isto eles agora já compreendiam. Quem, no entanto, era

então o senhor, do qual Miang-Fong falava há pouco?

Miang-Fong continuou ensinando: “Como o Altíssimo é o próprio amor, como Ele

vive na Luz e é a própria Luz, assim existe também um senhor das trevas e a este

servem os vossos sacerdotes.”

Um senhor das trevas? Não conseguiam imaginar nada em pormenores. Miang-

Fong teve que continuar esclarecendo: “Este é um inimigo do Altíssimo. Ele tenta de

Page 83: MIANG -  FONG

tudo para apagar nos seres humanos o saber do Altíssimo. Seus servos não podem nunca

falar Dele. Ele

promete-lhes poder e riqueza se eles servirem a ele e, como a maioria dos seres

humanos almeja poder e riqueza por parecer-lhes o mais desejável, ele sempre encontra

ferramentas solícitas. Onde os servos dele aparecem, aí surge escuridão nas almas das

pessoas, aí elas se torcem de medo e não têm coragem de dar um passo sequer por

vontade própria. Meus alunos! Cuidem-se de todos que vos querem prometer poder e

riqueza! Eles vos puxam junto para o abismo da perdição, que também os tragará.

Certamente também o Altíssimo tem tesouros para distribuir, mas estes são de outra

espécie. Tesouros do saber Ele vos presenteia em abundância, e eles são eternos. Quem

adquire esses tesouros para si,. neste brilha a luz da verdade, e ele pode levar este saber

também para outros seres humanos, iluminando-os no seu íntimo. Onde, porém, surgir

claridade, lá o senhor das trevas não tem mais espaço. Ele tem que recuar diante da luz,

ele não a suporta.

Compreendeis agora, porque tenho que instruí-los e ensiná-los aqui no isolamento?

Aqui não pode aproximar-se um sedutor de vós. Sem impedimento, podeis assimilar a

luz da verdade dentro de vós e deixá-la crescer, de tal modo que ninguém poderá tirá-la

novamente de vós. Cada hora de silêncio, porém, fortalece em vós a força para enfrentar

os servos das trevas e vencê-los. Uma multidão desses portadores da luz deve-se

derramar a partir daqui sobre o Tibete, cada qual uma luz forte e pura, que por sua vez

espalha luz ao seu redor. Para isso eu vos instruo, pois essa é a minha missão, que me

foi transmitida pelo Altíssimo: Levar luz para esse país escuro, que o senhor das trevas

escolheu para seu reino. Entretanto, ele deve ser novamente tirado dele, e para isso será

necessária a vossa ajuda. Aprendei, desde já, a enviar vossos pensamentos para aqueles

que necessitam de um apoio. Cada um desses pensamentos seja puro e claro, um bastão

firme, no qual um fraco pode se apoiar. Pois pensamentos são como cordas firmes e

fortes. Elas permanecem ligadas convosco e estabelecem simultaneamente ligação entre

vós e outros. Vejam-no sempre assim diante de vós: Vós mantereis muitos ligados a este

local, se vós lhes derdes o apoio de pensamentos puros, e daqui pode lhes afluir a força

do Altíssimo.”

Isso todos compreenderam, e duplamente abençoada era doravante a hora do

silêncio, na qual os alunos aprenderam, não somente a receber do Alto, mas também a

atuar à distância. Visivelmente formava-se o seu aspecto exterior de acordo com sua

vida interior. Sua fisionomia começou a ser espiritualizada , e Miang-Fong alegrou-se,

quando olhava nos seus olhos claros, que eram um retrato de seu espírito em

amadurecimento.

Os anos seguintes passaram cheios de paz. Sem ser incomodado, Miang Fong pôde

continuar ampliando a sua escola, e sua fama já começou a espalhar-se para longe. Já

havia acontecido várias vezes, que moradores de povoações distantes tinham solicitado

professores da escola do Tao-Schan. Miang-Fong podia então enviar os mais maduros

de seus alunos auxiliares, para divulgar o saber sobre o Altíssimo entre os seres

humanos. Eles voltavam após algum tempo, para continuar aprendendo e se

aperfeiçoando.

Miang-Fong classificou agora os alunos em três grupos: os verdes, que denominou

de alunos que procuravam. Eles ainda procuravam pela verdade, que deveria tornar-se-

lhes uma ajuda interior, por isso a cor verde. Foi lhe mostrado também um traje de

mosteiro, um manto comprido simples, atado com um cinto na cintura.

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Ao segundo grupo pertenciam os irmãos que estudavam, que já tinham encontrado

a verdade e que agora nela se aprofundavam e ampliavam seu saber. Sua cor era o

amarelo, pois deviam acender em seu íntimo a luz da verdade.

O terceiro grupo eram os irmãos azuis, que eram enviados aos seres humanos como

auxiliares. Para isso necessitavam da força, que se encontra na verdade, a cor azul.

Os irmãos operários, que cultivavam o solo e que cuidavam do abastecimento

terreno, usavam vestuário marrom curto, pois manuseavam a terra e os frutos por ela

produzidos. Eles encontravam-se separados do grupo de três classes de alunos do

mosteiro.

No decorrer do tempo, tornou-se necessário anexar ainda um quarto grupo mais

elevado, que se situava acima dos três grupos de alunos. Devido ao constante

aprofundamento, do abrir-se interiormente, alguns espíritos estavam amadurecidos no

silêncio a tal ponto, que também eles conseguiam receber mensagens do Alto e ver os

servos de Deus. Abriu-se sua visão e audição interiores e foram agraciados com a

capacidade de assimilar mais que outras pessoas.

Dak era o primeiro, no qual o mestre percebeu o novo dom. Ele não havia falado

disso, não teve coragem, com receio de que essa revelação lhe pudesse ser tirada

novamente. Miang-Fong, no entanto, encontrou-o certo dia no jardim, mantendo

diálogo com um servo de Deus, invisível para os homens, e sentiu-se muito feliz.

“Alcançaste agora um degrau, do qual podes estender a mão para o alto e segurar

uma outra mão, Dak,” disse Miang-Fong. “Se conservares isto, nunca te faltará a força e

o auxílio.”

Miang-Fong recebeu, agora, a ordem de conceder a Dak uma bênção especial e

conferir a ele, como o primeiro, o grau de um”lama”. “Lama quer dizer servo vidente de

Deus”, ensinou-o seu guia luminoso. “Muitos lamas ainda provirão daqui e, como os

filhos se separam da mãe, para poder levar uma vida própria, como é desejado por Deus,

assim esses lamas devem fundar novos mosteiros pelo país afora, nos quais, por sua vez,

reunirão alunos e os formarão para serem auxiliares de seu povo. Dessa forma, no

decorrer do tempo, todo o Tibete deverá ser coberto com uma rede de mosteiros e, nas

malhas dessa rede de luz, os seres humanos deverão encontrar apoio e proteção contra

as manobras das trevas. Tu, porém, deves permanecer aqui como o protetor de todos os

mosteiros e daqui sairá sempre a maior força, aqui o Altíssimo fará anunciar suas

mensagens e mandará dar suas ordens. Tu és o “lama superior”, que se encontra acima

de todos os demais irmãos e mosteiros. Aqui a fonte da verdade sempre deve fluir do

modo mais puro e forte.”

Foi um grande dia de solenidade, quando Dak recebeu a bênção do Altíssimo da

mão de Miang-Fong. No mosteiro havia sido instalada uma sala maior, como sala de

devoção. Era a única sala do mosteiro que estava ricamente ornamentada, pois, “em

honra a Deus, o homem deve fazer tudo, por Ele deve desenvolver a maior beleza

dentro de si, para Ele nada pode ser suficientemente belo.”

Assim foram confeccionados, no decorrer dos anos, utensílios de ouro e de prata,

tecidos de seda cobriam as paredes e, no meio da sala, encontrava-se uma mesa baixa,

que sempre estava ornamentada com lindas flores, que os jardins ofereciam. Apesar da

altitude, os jardins haviam se desenvolvido maravilhosamente sob os cuidados

carinhosos de Min-fu e seus auxiliares. Já há tempo ele se entendia bem com os

pequenos servos do Altíssimo e sabia como pedir seu conselho. Nunca algo desandava,

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sempre sabia a hora certa para semear, plantar e colher. Visivelmente a bênção de Deus

pairava sobre esta obra.

As celas dos irmãos do mosteiro eram as mais simples possíveis, não continham

nenhum tipo de utensílios, nada que pudesse desviar o sentido do vivenciar interior. Um

leito duro, que não convidava para um longo descanso, era tudo o que havia de

equipamento nas celas. No alto do muro de pedras encontrava-se uma pequena janela,

sempre aberta, que não permitia olhar para fora. Os irmãos deviam se aprofundar em

seu íntimo, deviam procurar os mundos superiores, quando o dia ia se findando.

Estreitas eram as celas, situavam-se uma ao lado da outra, como alvéolos de uma

colmeia de abelhas. O silêncio era obrigatório aqui, nenhum irmão podia entrar na cela

de outro. Mas todos os moradores do mosteiro submetiam-se de boa vontade às severas

regras, pois todos vivenciavam a bênção que lhes advinha desse autodomínio.

Os alunos mais antigos, que deveriam ser enviados como professores, eram

instruídos pelo próprio Miang Fong. Ele lhes dava tarefas, que estimulavam o seu

espírito e o mantinham ativo. Antes que Dak fosse instituído lama, Miang-Fong reuniu

os alunos mais antigos e fez o seguinte discurso: “Um dentre vós amadureceu agora

tanto, que se tornou um portador da Luz. Ele encontra-se em ligação com um elevado

guia, que o conduz. Agora chegou a hora, em que ele será enviado para junto dos seres

humanos, para que ele próprio formasse um centro de luz. Juntem os vossos rogos ao

seu redor, para que ele assimile totalmente a bênção do Altíssimo no dia de sua

consagração.”

O dia da instituição de Dak como lama havia chegado. Radiante o sol iluminava e

aquecia o puro ar da primavera. Um silêncio de expectativa pairava sobre o mosteiro,

pois era a primeira solenidade dessa espécie, que podia ser vivenciada, e algo de muito

especial aguardavam dela os moradores do mosteiro. E também não foram

decepcionados em suas expectativas. Em cortejo solene caminhavam os alunos até a

sala de devoção, primeiro os irmãos azuis, os auxiliadores, a seguir os amarelos e por

fim os verdes. Cada qual conhecia o lugar a ele destinado e, silenciosamente, o ocupava.

Canto solene do coro masculino enchia o ambiente e recebia-os com intensa vibração.

Luz do alto parecia encher o ambiente, este parecia mais claro do que em outros dias.

Em vestimenta branca de sacerdote, encontrava-se Miang-Fong atrás da mesa

ornamentada com flores, as mãos elevadas para o alto, aprofundado em oração.

Quando o canto terminou, houve silêncio profundo. Miang-Fong baixou os braços

e começou a falar: “Vós, servos do Altíssimo, e vós, que o pretendeis ser, ouçam, o que

o Altíssimo vos manda dizer: Ele escolheu um de vosso grupo para ser portador de

elevada força, para que partisse, para tornar-se uma coluna de Luz no Tibete e, que em

sua volta, muitos pudessem se reunir. O Altíssimo determinou para ele um novo nome,

que deverá usar daqui em diante.

Ajoelha-te diante da face de teu mais elevado Senhor, Dak, que doravante deverás

chamar-te Dao-tse! Este nome significa” servo da mais elevada Luz!” Ele deve

proporcionar-te força, para sempre permaneceres nos caminhos do Altíssimo e servires

a Ele em inquebrantável fidelidade. Verde seja a tua cor daqui por diante, o verde claro

da natureza despertando, que presenteia todas as criaturas com força vital. Vista, junto

com teu novo nome, a vestimenta verde do lama auxiliador. Ela o lembrará sempre de

teu compromisso diante do Altíssimo. E agora, receba a bênção do Altíssimo, que Ele te

concede por meu intermédio!”

Dak ajoelhou-se diante da mesa coberta de flores. Sua alma ascendeu e percebeu

sons que o encheram com bem-aventurança. Então veio de cima um fluxo de força até

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ele, que o fez estremecer até o seu íntimo. Miang-Fong havia pousado as mãos sobre

sua cabeça com as palavras: “Tu, Altíssimo, que adoramos, conceda a Teu servo aqui

ajoelhado diante de Ti, a força para que se torne um portador de Tua Luz!”

Aos poucos o fluxo de força recolheu-se novamente. Alguns alunos ajudaram Dao-

tse a se levantar e Pao colocou-lhe o manto de seda verde-claro. Aos sons de um solene

coral masculino deixaram todos a sala de devoção, onde haviam vivenciado algo

inesquecível. Dak, porém, que agora se chamava Dao-tse, logo pôde iniciar sua nova

atuação. Do Kombodscha veio o pedido, que lhes fosse enviado um irmão que pudesse

permanecer junto deles. Eles estariam dispostos a erguer um mosteiro para ele e muitos

jovens já estariam esperando poder ingressar nesse convento como alunos.

A despedida foi curta. Mais uma vez Miang-Fong colocou sua mão, abençoando,

sobre a cabeça de seu antigo aluno, a seguir este partiu, acompanhado pelos votos de

felicidade dos irmãos. Dao-tse fundou o mosteiro de Kombodscha, cujos resquícios

ainda hoje existem, e grande benção partiu também daquele local. No Kombodscha não

haviam se esquecido da ajuda de Miang-Fong no passado e, assim, também receberam o

seu aluno com toda a confiança.

Depois da partida de Dao-tse do mosteiro, seus irmãos sentiram muita falta do

jovem calado, que agora havia se tornado um homem completamente amadurecido. No

entanto, logo mais outros colocaram-se em seu lugar e a vida no mosteiro, rigidamente

disciplinada, não permitia que os pensamentos se prendessem a lembranças.

Foi Pao que ocupou o lugar de Dak. Também ele crescia visivelmente e seu espírito

florescia. Era mais animado do que havia sido Dak, alegria distribuía ao seu redor.

Nunca lhe faltava um gracejo, onde havia oportunidade para isso. Miang-Fong

observava o seu amadurecimento cheio de satisfação. Com toda sua alegria não lhe

faltava a seriedade varonil e Miang-Fong já podia incumbí-lo de tarefas mais

importantes. Também foi Pao o segundo a ser consagrado lama, quando novamente

chegou um pedido a Miang-Fong para enviar um irmão do mosteiro do Altíssimo.

Desta vez, o pedido veio de uma região, na qual o senhor das trevas ainda mantinha

as rédeas do poder em mãos, deixando o povo estremecer de medo. Entretanto, também

lá havia pessoas, às quais chegara a notícia do Altíssimo Senhor, que era mais forte que

os homens Tau e os sacerdotes. Secretamente estes enviaram a Miang-Fong o pedido

suplicante por ajuda. O que deveria ser feito neste caso? Miang-Fong não podia enviar

uma única pessoa para uma região tão ameaçada pela luta, este dificilmente poderia

realizar alguma coisa. Por esse motivo foi cedido a Pao, que fora designado para esta

tarefa, um pequeno grupo de auxiliadores azuis, homens corajosos, que ansiavam aceitar

a luta contra o senhor das trevas.

Novamente realizou-se uma solenidade na sala de devoção e Pao recebeu, com a

ordenação como lama, o novo nome: Pao-san-tse, que quer dizer “combatente pela

Luz.” Miang-Fong esclareceu-lhe o significado do novo nome. Ele deveria ser um

lutador, para enfrentar os inimigos com a coragem da convicção. Necessitaria de muita

força. Nessa luta, a verdade deveria ser a sua espada invencível. Por essa razão, o

Altíssimo determinara para ele a resplandecente cor azul da verdade.

“Vá, Pao-san-tse,” exclamou Miang-Fong. “Luta e vence em nome do Altíssimo.

Ele te chamou, Ele te envia para a luta contra o senhor das trevas. Luta com Sua força.”

Assim, o número de irmãos do mosteiro reduziu-se pelo grupo que partiu, mas com

isso não surgiram lacunas. Sempre chegavam novos alunos, atraídos pela fama do

mosteiro. Miang-Fong teve que limitar o número de alunos. Nem todos que o

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solicitavam, podiam ser aceitos. Mas Dao-tse no Kombodscha estava disposto a aceitar

os que aqui tiveram que ser dispensados, caso se mostrassem aptos para as grandes

tarefas que lhes deveriam ser delegadas.

O trabalho de Pao-san-tse não foi fácil, mas também ele conseguiu, como outrora

Miang-Fong, quebrar o poder dos sacerdotes magos e dos homens Tau ligados a eles, e

o povo em Ladak sentiu-se aliviado. Solícitos uniram-se, sob a condução de Pao-san-

tse, numa comunidade, para lutar contra o poder do senhor das trevas e, contra essa

força de defesa, fora em vão todo tipo de ataques, ameaças e perseguições dos servos

das trevas. Tempos mais felizes irromperam para Ladak. Eles haviam cooperado na luta

pela libertação do poder das trevas e, ainda hoje, vive lá um espírito mais livre do que

no restante do Tibete que, após um tempo da mais bela florescência, caiu novamente nas

mãos das trevas. Entretanto, não é sobre isso que queremos relatar aqui, mas sobre a

difusão da verdade, do saber do Altíssimo. Em toda parte onde a verdade se alojou, a

vida floresceu, as pessoas respiravam mais aliviadas, sua existência havia recebido um

sentido.

Novamente passaram-se anos cheios de paz, nos quais Miang-Fong instruía e

ensinava, e ele mesmo penetrava sempre mais fundo no saber sobre Deus e Suas leis.

Era isso que agora se esforçava passar aos seus alunos: um reconhecimento da profunda

sabedoria de Deus, de Suas elevadas leis que mantêm e regem o universo. A ele próprio

era freqüentemente permitido elevar-se de noite para alturas luminosas, onde lhe afluía

saber e reconhecimento de todos os lados. Lá no alto, tudo parecia-lhe conhecido, como

se apenas acordasse do que na Terra estava coberto por um véu do esquecimento. Então

Miang-Fong reconheceu pela primeira vez o que significava “matéria” , uma

condensação, que impede a visão de enxergar os mundos superiores. Entretanto, não

havia nisso também sabedoria do Altíssimo? Gostariam os seres humanos viver ainda

na Terra, se constantemente tivessem diante de seus olhos a magnificiência dos jardins

celestes? Não, era melhor assim como estava e aqueles, aos quais seria aberta a visão

para contemplar os mundos superiores, tinham a missão de informar outros sobre isso,

mantendo viva a saudade, para que não ficassem presos na matéria, mas se esforçassem

para ascender.

A Miang-Fong foi mostrado o circular dos espíritos humanos, o eterno ir e vir entre

o aquém e o além. Causava-lhe, porém, tristeza ter que observar como, em cada nova

vida terrena, a maioria dos seres humanos sobrecarregava-se com novas culpas e como

uma nova vida não levava para cima, mas sempre mais para baixo. Acordava nele uma

ardente ânsia, que dia e noite não o deixava sossegar, de advertir os seres humanos e de,

mais uma vez, empenhar uma caminhada para falar-lhes, acordá-los com palavras

flamejantes.. No mosteiro tudo estava bem encaminhado. Certamente os alunos mais

velhos necessitavam dele, pois somente ele poderia conduzí-los mais para o alto, pois

nenhum outro encontrava-se tão adiantado em seu desenvolvimento espiritual como ele,

porém, não poderiam ficar sem ele por algum tempo? Tanto mais eles deveriam cuidar

dos demais alunos, sem constantemente poder pedir-lhe conselhos, e essa autonomia

lhes faria bem.

E o Altíssimo atendeu a sua prece. Certa noite viu novamente quadros desfilando

diante de seus olhos. Eram diferentes daqueles de antigamente, quando o sofrimento no

Tibete o conduziu ao país, devido à opressão dos sacerdotes magos. Dessa vez viu

muitas pessoas ao lado de um imenso tear. Era um tecido comprido, artisticamente

confeccionado, o qual era tecido por um grande número de pessoas. Não era possível

ver sua borda superior, estava muito alta. Na borda inferior teciam as pessoas, porém,

enquanto que na parte superior distinguiam-se claramente lindas trepadeiras e flores,

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embaraçavam-se aqui os fios e, impacientes, muitos rebentavam-nos e depois queriam

novamente atá-los. Disso resultava cada vez um nó, no qual era contida a luz clara, que

de cima penetrava no tecido. E como eram feias as cores na borda inferior! Escuras,

sujas, cinzentas ou berrantes. Raras vezes via Miang-Fong um tecelão sentado ali que,

pacientemente e sem ser molestado, conseguia tecer e ligar fios puros. Ao redor dessas

pessoas havia um brilho mais claro e pareciam alegres e felizes, enquanto que as outras

pareciam rabugentas e aborrecidas, incomodando-se mutuamente e até enfrentando-se

verbal e fisicamente.

“Porque não agís como aqueles!” exclamou Miang-Fong e indicava para os

tecelões quietos, cujo trabalho era tão bem sucedido.

Mas ninguém o escutava e ele teve que desistir.

“Veja aqui a humanidade, que devia ter participado na grande tecedura da criação!”

ouvia Miang-Fong uma voz falar.

“Experimenta mostrar-lhes, como vem intervindo perturbadoramente, como

prejudicam a beleza do todo, com seu agir obstinado!”

Miang-Fong acordou com tristeza no coração. Constantemente via esse quadro

diante de seus olhos, no entanto, mais ardentemente ainda brotava nele o desejo de

ajudar e advertir. Ele entregou o mosteiro ao mais velho de seus alunos e partiu,

totalmente solitário e sozinho, como havia partido nos anos de sua juventude, para o

mundo desconhecido. Naquela época ele mesmo ainda era um aluno, um aprendiz.

Agora ele podia dar, podia atuar conduzindo. E a bênção e a proteção do Altíssimo o

acompanhavam em todos os seus caminhos.

Por muito tempo ainda circulavam, entre os seres humanos, histórias milagrosas

sobre o grande mestre, que tinha percorrido o país, que a muitos havia chamado e

advertido e acordado para um atuar melhor. Era como se fogo tivesse atingido as almas,

quando falava, assim se ouvia falar dele e os que o haviam escutado nunca mais o

esqueciam. Diante dele as trevas recuavam, ele as varria da sua frente como que com

uma espada em brasa e empurrava-as de volta aos seus esconderijos mais ocultos. Havia

agora mais claridade no Tibete, desimpedidamente podia descer o fluxo de luz do

Altíssimo, e mais aliviado tornou-se o coração das pessoas. Mesmo que nem todos

tivessem abandonado sua inércia interior, outros incandesciam tanto mais. Parecia que

um amplo acordar perpassava todo o país. Agora cumpriu-se em Miang-Fong, o que

havia admirado na Pérsia: que uma única pessoa podia mudar um país inteiro.

Quando Miang-Fong retornou ao mosteiro do Altíssimo na montanha Tao-schan,

deixou atrás de si um outro Tibete daquele quando iniciou sua viagem. Perpassado por

fios luminosos, nos quais ardia aqui e acolá uma clara luz, como pequenos archotes,

assim estava diante de seus olhos espirituais e alegrava seu coração. Não havia

trabalhado em vão. No entanto, o trabalho ainda não terminara, outros mosteiros deviam

ser construídos, para servirem como pontos de apoio. Naquela época, todos estes

mosteiros estavam servindo à verdade, irradiavam pureza para longe e atraíam espíritos

humanos que procuravam.

Quão diferente é hoje a situação no Tibete! Em toda parte alojaram-se firmemente

as trevas mais escuras, usando conscientemente os poucos seguidores da verdade, que

ainda restaram daqueles tempos longíquos, para seus próprios propósitos, ao

adicionarem à verdade fé falsa, erros e sedução. O tibetano é muito receptivo para

coisas e ocorrências sobrenaturais. Ele quer penetrar nos segredos do universo

espiritual, mas não o consegue mais, porque a verdade foi soterrada e em toda parte

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envereda por caminhos errados. Do silêncio ordenado por Miang-Fong ele fez

afastamento da alma, no que conseguiu ir longe. Mas o que lhe adianta aprender a

enviar sua alma conscientemente para o Bönspa, o reino intermediário? Mais adiante

não consegue ir, pois sempre permanece ligada à Terra, presa à Terra. No Tibete

encontram-se somente ainda restos do verdadeiro saber.

Antigamente, porém, nos tempos de Miang-Fong ele floresceu, também nos

corações das pessoas humildes, pois a simples e infantil confiança em Deus é o caminho

para isso. Juntando-se, então, a esta ainda um espírito forte como guia, que os conduz e

acelera o seu desenvolvimento, grandes feitos podem ser alcançados.

Agora Miang-Fong averiguou em seu íntimo, onde deveria erigir pontos de apoio

da Luz em forma de mosteiros, e foi-lhe mostrada a distribuição dos mosteiros por todo

o país. Entrementes, tantos irmãos haviam chegado ao amadurecimento de um lama,

que podia preencher todos os postos vagos nos mosteiros.

Assim, Su foi enviado para Kum-bum, onde erigiu um mosteiro, que ainda hoje é

afamado, atraindo muitos. Uma vibração de verdadeira procura se encontra lá, ainda

hoje. A pesquisadora do Tibete também lá esteve, e foi ordenada ao posto de lama

feminina; hoje em dia, porém, um lama, de longe, não é mais aquilo o que era

antigamente, mesmo que eles próprios considerem-se fontes de sabedoria e de um saber

mais elevado. Su recebeu o nome de lama Sao-tse, isto significa “portador da Luz no

Norte.” Feliz foi sua mão e bênção pairava sobre seu atuar. Os mosteiros do Dao-tse e

do Sao-tse permaneceram por mais tempo em estreita ligação com o mosteiro matriz,

conservaram-se por mais tempo puros e intocados.

Porém, quando os mosteiros estavam erigidos e todos firmemente interligados entre

si, Miang-Fong viu aproximar-se o fim da obra de sua vida. Cada vez mais podia

aprofundar-se, agora, na sabedoria do alto, sempre mais abria-se seu olho interior e ele

via parte por parte da magnificiência do Altíssimo.

Certa noite, aconteceu que ele foi conduzido para o alto, até um grande salão.

Colunas gigantescas circundavam-no, luz fluía de cima, de uma altura insondável. No

piso reluzante do gigantesco salão abobadado projetava-se a luz em círculos e em raios,

cruzando-se, formando estrelas num infindável jogo das mais brilhantes e delicadas

cores. Mais lindo ainda do que este jogo encantador da luz e das cores, mais elevado e

irresistívelmente atraente era um altar branco no meio do salão, sobre o qual uma taça

aberta brilhava no mais maravilhoso vermelho púrpura. Sons celestes de jubilosa

adoração enchiam o ambiente e uma sublime figura luminosa, perante cujo esplendor

Miang-Fong caiu de joelhos e baixou os olhos, aproximou-se do altar e levantou o

cálice ardendo em púrpura em direção ao fluxo branco de luz, que do alto afluía

reforçadamente ao mesmo. E um pássaro com asas brancas como neve permaneceu

verticalmente sobre a taça levantada, no meio do fluxo de força e estendia suas asas.

Quase sem sentidos estava Miang-Fong deitado no chão, pressionado para baixo

pela força, à qual não pôde contrapor-se e, mesmo assim, assimilava tudo e conservava-

o no seu íntimo para sempre, inesquecível, único. Quando novamente encontrou-se em

seu leito, ainda preenchido pelo vivenciado e inflamado à mais alta incandescência de

seu íntimo, ouviu a voz de seu amigo luminoso dizer:

“A ti foi dado ver o rei dos mundos, nunca o esqueças! Mas não comenta nada com

os teus, eles ainda não podem compreendê-lo. Um outro virá para falar-lhes disso,

mesmo que seja somente em tempos futuros. Essa não é mais a tua missão. Prepara-te,

para que a tua missão na Terra chegue ao fim. Esteja atento, para estar preparado a

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qualquer hora. Fortifica os teus e dê-lhes como último presente uma imagem da taça

sagrada, que se encontra lá no alto no santuário do Altíssimo, para acolher a Sua força.”

O mensageiro luminoso calou, e Miang-Fong recolheu-se em profunda reflexão.

Por quanto tempo ainda lhe será permitido ser um auxiliar de seu povo? Devia

aproveitar cada momento que ainda lhe restava. E, incansavelmente, empenhou-se no

trabalho, para concluir o último que ainda lhe restava fazer.

Miang-Fong fez, conforme lhe foi ordenado: mandou confeccionar um precioso

cálice vermelho de cristal de acordo com o modelo da taça sagrada que havia visto no

templo do Altíssimo. Os tibetanos sabiam produzir uma liga de vidro de alto valor. O

material para isso oferecia-lhes o país em abundância, e eles tinham descoberto como

colorir o vidro por inteiro. Até agora, porém, ninguém ainda conseguira fabricar vidro

vermelho, somente azul ou verde.

Quando foi confrontado com essa dificuldade, Miang-Fong pediu auxílio, e não

demorou até que este lhe foi dado. Poucos dias depois, fez-se anunciar um homem de

aparência estrangeira. Ele tinha uma mensagem a dar ao grande mestre. Um homem

idoso, de cabelo grisalho curvou-se profundamente diante de Miang-Fong. Portava um

chapéu pontiagudo de cor cinza, uma vestimenta justa, que consistia de uma calça

comprida e de um casaco curto, e um largo manto pregueado por cima. Com sons

guturais, mas na língua dos tibetanos, ele cumprimentou Miang-Fong com as palavras:

“O Altíssimo envia-me até ti, ó grande mestre! Eu devo ajudar-te a confeccionar o

recipiente, do qual necessitais.” E tirou um pedaço de vidro das pregas de seu manto,

que apresentava a cor vermelha, que ainda não sabiam produzir no Tibete.

Com o coração comovido, Miang-Fong reconheceu novamente a bondosa

condução de seu mais alto Senhor. Ele saudou o homem, mandou-o fortalecer-se e

descansar no mosteiro. A seguir, Hu-si-nan iniciou seu trabalho. Tinha vindo de longe,

do país Tarim. Por ordem de Deus havia partido há meses, para trazer a ajuda a Miang-

Fong, da qual este necessitava. Ele mostrou aos irmãos a fabricação e a coloração do

vidro vermelho, ao qual deviam ser adicionados determinados metais, fundidos em alta

temperatura e, após algumas semanas, a taça estava diante dos olhos de Miang-Fong,

assim como a havia visto de noite. Não era necessário descrevê-la para Hu-si-nan, o

velho também a conhecia.

“Em cada templo da minha terra natal encontra-se uma taça dessas,” contou ele.

“Mensageiros do Altíssimo mostraram-nos sua imagem. Mostraram-nos também a

imagem do templo nas alturas mais elevadas, e à sua imagem construímos os nossos

templos.

Havia, então, ainda outros povos que também tinham conhecimento do Altíssimo,

que O adoravam e eram por Ele conduzidos? Quão maravilhosa era essa notícia! Miang-

Fong agradeceu do fundo do coração por isso. Convidou Hu-si-nan para permanecer

junto deles. O velho, porém, recusou-se.

“Eu somente posso permanecer aqui até que vos tenho ensinado os conhecimentos

que me foram presenteados,” disse solenemente. “Quando for chamado pelo Altíssimo,

devo deixar-vos.” E, certa manhã, os irmãos encontraram a sua cela vazia, quando

vieram procurá-lo por não ter-se apresentado. A mando de Deus, Hu-si-nan havia

partido, no meio da noite, para executar uma nova tarefa. Nunca mais foi visto no

mosteiro, porém, ficou inesquecido, e muitas vezes falava-se do velho artesão do

desconhecido país Tarim.

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A taça vermelha ornamentava, doravante, a mesa na sala de devoção e enchia os corações dos ouvintes com uma noção da magnificência celeste. Miang-Fong havia lhes explicado que, na parte mais alta do céu, no templo do Altíssimo, também se encontrava uma taça semelhante, na qual derramava a força do alto. Ela a absorvia, e quando

estava totalmente cheia, então ela transbordava e lançava a força para tudo o que é criado. A taça terrena também foi destinada para absorver a força do alto e a transmití-la ao transbordar. Eles deviam abrir bem os seus corações para esse sublime acontecimento, então a força chegaria também até eles no dia em que é distribuída pelo Altíssimo à Sua criação.

Mais do que isso Miang-Fong não devia dizer aos seus, e era o bastante para eles.

Até o dia de hoje sussurra-se ainda da misteriosa taça vermelha que antigamente se

encontrava na montanha Tao-Schan e que havia feito milagres. Lendas e contos ataram-

se à mesma, imaginados pelo espírito desejoso de milagres dos seres humanos, mas

tinham como ponto positivo ajudar a manter a lembrança. A própria taça, porém,

desapareceu. Ninguém conhece o seu paradeiro.

Miang-Fong passou seus últimos anos na Terra em atuação intensificada para o

Altíssimo. Insistia junto aos irmãos, o mais fervorosamente possível, de que eles seriam

responsáveis pela manutenção da verdade e sempre de novo os instruía:

“Não deixem desviar-vos nem uma polegada do caminho reto da verdade. Cada

um, até o menor dos passos para o lado, leva às redes do senhor sobre as trevas. Ele

espera pelo momento em que vós puderdes enfraquecer, ele não conhece piedade, com

riso sarcástico ele vos atrairia à destruição. Porém, se permanecerdes com a verdade,

então sereis protegidos. Ele tem que permanecer afastado de vós, pois a verdade vos

envolve como um muro protetor, intransponível.”

Quando Miang-Fong assim falava a eles, então os alunos inflamavam-se em seu

íntimo e prometiam agir de acordo com suas palavras. Todos ainda tinham na lembrança

os tempos horríveis, quando o Tibete era dominado pelo senhor das trevas. Eles ainda o

temiam e, por muito tempo, a luz da verdade foi mantida pura através dos mosteiros,

que continuavam enviando servos puros do Altíssimo para todo o extenso país. Quem

recebera os ensinamentos do mosteiro, esse estava invulnerável às tentações do mundo

lá fora.

Quando os dias de Miang-Fong estavam contados e ele sentiu aproximar-se o seu

fim, chamou todos os irmãos à sua presença, abençou-os e mais uma vez dirigiu-lhes a

palavra.

“Não lamentais a minha partida,” falou amavelmente o sábio mestre. “Sigai

destemidamente o vosso caminho, mesmo se não mais encontrar-me entre vós. Vós

sempre sereis conduzidos pelos servos do Altíssimo. Eles nunca abandonar-vos-ão, se

vós não os abandonardes.

Concentrem luz ao redor de vós e, então, ide e levai essa luz até os seres humanos.

Eles necessitam dela. Portadores da luz deveis ser neste país, para que nunca mais

decaia para as trevas. Quando virdes pessoas alegres perto de vós, então cumpristes o

vosso dever. Se, porém, voltar o sofrimento, então perguntai-vos o que negligenciastes.

Depende de vós, de como se cumprirá o destino do Tibete. Vós sois aqueles que devem

manter a ligação com o alto, então o auxílio virá para todos. Pudestes vivenciar

milagres, quando um ser humano desabrochava durante a noite, quando era-lhe trazida a

verdade, como ele acordava de sono profundo e reconhecia quem ele era e qual era a

sua missão. Consigam muitos desses milagres, vós, meus alunos, então confiantemente

podereis um dia prestar contas, quando deixares o vosso corpo terreno.”

“Mestre,” perguntou aí um de seus alunos, e um ardente desejo estava por trás

dessa pergunta, “Mestre, tu voltarás? Ou permanecerás no alto, nos jardins eternos, de

onde vieste?”

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“Isso está na vontade do Altíssimo,” foi a resposta de Miang-Fong, “se Ele quiser

me abençoar novamente com uma missão na Terra ou se me for permitido serví-Lo lá

no alto. Vós, porém, meus alunos, cuidai para que não precisais retornar, por terdes

omitido algo, por ainda não terdes amadurecido para uma vida nos jardins celestes! Não

deixais passar nenhum dia, no qual não vos perguntais: tenho feito tudo o que devia

fazer, o que podia fazer? Examinai-vos severamente a cada noite, façam recolhimento

ao vosso íntimo e não vos poupais. Somente a verdade auxilia-nos para diante! E nunca

esqueceis de exercitar-vos no silêncio. No silêncio cresce vossa força interior, no

silêncio despertam em vós reconhecimentos, no silêncio pode aproximar-se o vosso

guia invisível. Silenciar é mais poderoso que falar, pois as palavras humanas originam-

se somente dos pensamentos dos seres humanos, da vontade dos seres humanos; no

silêncio de vossas almas, porém, fala a vós o Altíssimo.”

Comovidos, os alunos escutavam as palavras do velho mestre. Suas feições

estavam transfiguradas. Nunca esqueceram o que ele lhes havia falado naquela hora.

A seguir, Miang-Fong os mandou embora.

“Ide agora, somente Su-an-tse fique comigo.”

Fatigado, Miang-Fong fechou os olhos. O esforço havia sido quase demasiado para

o seu corpo, do qual a alma começava a desligar-se. Durante longo tempo Su-an-tse

esteve sentado junto ao leito e observava o mestre estendido inerte. Os raios do sol

poente incidiam cada vez mais oblíquos no simples quarto. E quando o último raio

atingiu o rosto de Miang-Fong, este mais uma vez abriu os olhos e disse nitidamente:

“Meu Senhor e meu Deus, a Ti eu sirvo em toda a eternidade!’

Então fecharam-se suas pálpebras e profundo silêncio estendeu-se no crepúsculo do

quarto. Silenciosamente orava Su-an-tse no leito do falecido mestre, cujo rosto tornava-

se cada vez mais transfigurado. Um sopro de paz, de pureza, de bondade cobria-o.

E os sentidos despertos de Su-an-tse viram as figuras luminosas, que levavam o

querido mestre consigo. Para o alto e cada vez mais alto, até desaparecerem, até ficarem

visíveis somente delicadas nuvenzinhas de luz e um leve som de acordes sobrenaturais

iam-se desvanecendo.

Por longo tempo ainda permaneceu Su-an-tse junto ao leito de Miang-Fong. Ele

havia sido aquele entre seus alunos, que nos últimos anos tinha estado mais próximo

dele, e ele tinha sido escolhido pelo Alto como seu sucessor.

Calmo e lúcido, firme e determinado, encarregou-se da condução do mosteiro e

dirigiu-o por muitos anos dentro do espírito de Miang-Fong, até que também ele foi

chamado para a eternidade.

Um lama superior sucedeu ao outro. As regras e prescrições de Miang-Fong foram

complementadas, o mosteiro foi ampliado. Sempre, porém, o mosteiro na montanha

Tao-Schan conservou a condução espiritual. O lama superior desse mosteiro era o

superior de todos os demais. Espiritualmente ele era o mais elevado e mantinha sem

turvação a ligação com o Alto.

Enquanto essa ligação persistiu, o Tibete esteve protegido contra as trevas, que

inutilmente esforçavam-se por recuperar o seu domínio perdido. Não sem razão este

mosteiro estava situado na maior altitude. Mas quando os mosteiros mais afastados

começaram a rebelar-se contra a condução pela montanha Tao-Schan, abriu-se a

primeira brecha e as trevas penetraram e espalharam-se rapidamente.

Page 93: MIANG -  FONG

O querer próprio e o egoísmo novamente venceram e, após a mais bela florescência

de muitos séculos, o Tibete sucumbiu novamente ao poder das trevas.

Page 94: MIANG -  FONG

A P Ê N D I C E

Teor do final sobrecolado:

Agora, porém, seu domínio terá seu fim. IMANUEL libertará também esse povo de

seu fardo. Ele lhe dará nova vida e fielmente o povo do Tibete servirá novamente ao

Altíssimo.