Metafísica

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16 Existem egos e existem eus de vários tipos que tentamos expressar... Algumas vezes, espremidos como são, tornam-se violentos, brotam dos subterrâneos da alma e se manifestam, lindos e brilhantes. Pareceriam bolhas de sabão — se não fossem tão inflexíveis e pesados — mas não são! Quando você está no meio do mato, ou outro lugar, sempre existe a possibilidade de fantasiar-se de si mesmo, já, porém, recontado por dimensões talvez mais conciliadoras entre tais facetas. Quando se é de gêmeos, é mais fácil lidar com tais disparates e contradições consigo mesmo. Quando revi os tais catadores de lixo, não liguei a mínima. Somente fechei a janela. Eu estava tendo, finalmente, a possibilidade de colocar os pés no chão... Depois de tudo que tinha acontecido. Estava plenamente em paz com uma espécie de tribunal da razão, e me submetida assustadoramente sem ação. A Lili era pivetinha ainda, e brincava no chão, quando eu escrevia um relatório para um banco... Quando ela começou a chorar coloquei em meu colo, e mostrei os papéis que estava revisando. Ela gostou, manuseou e sorriu. Provavelmente quando chegou seu amiguinho — e na língua dos bebês — ela comentou: — Eu vi um negócio maravilhoso: um monte de formiguinhas andando em fila, e uns objetos de circo no meio delas... O seu amiguinho deve ter respondido, estupefacto: — Cê tá maluca, acho que você andou mamando muito hoje...

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Crônicas de Leonardo

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Deuses

16tc "16"Existem egos e existem eus de vrios tipos que tentamos expressar... Algumas vezes, espremidos como so, tornam-se violentos, brotam dos subterrneos da alma e se manifestam, lindos e brilhantes. Pareceriam bolhas de sabo se no fossem to inflexveis e pesados mas no so! Quando voc est no meio do mato, ou outro lugar, sempre existe a possibilidade de fantasiar-se de si mesmo, j, porm, recontado por dimenses talvez mais conciliadoras entre tais facetas. Quando se de gmeos, mais fcil lidar com tais disparates e contradies consigo mesmo.

Quando revi os tais catadores de lixo, no liguei a mnima. Somente fechei a janela. Eu estava tendo, finalmente, a possibilidade de colocar os ps no cho... Depois de tudo que tinha acontecido. Estava plenamente em paz com uma espcie de tribunal da razo, e me submetida assustadoramente sem ao.

A Lili era pivetinha ainda, e brincava no cho, quando eu escrevia um relatrio para um banco... Quando ela comeou a chorar coloquei em meu colo, e mostrei os papis que estava revisando. Ela gostou, manuseou e sorriu. Provavelmente quando chegou seu amiguinho e na lngua dos bebs ela comentou:

Eu vi um negcio maravilhoso: um monte de formiguinhas andando em fila, e uns objetos de circo no meio delas...

O seu amiguinho deve ter respondido, estupefacto:

C t maluca, acho que voc andou mamando muito hoje...

Sabia, com tambm assustadora certeza, que nada disso importava, eram tempos que por fugazes ou seja l o que for, evaporam-se, e passam a no ter mais registros na grande teia de significao que circunda nosso dia-a-dia: outras avassaladoras ondas moviam nossos dias, ento... No entanto, quando eu lia naquele grande livro que regia o tal tribunal, eu no via alm de formiguinhas andando em fila, e objetos de circo. Nada que pudesse entender e, assustadoramente tambm, nada que passasse desentendido, ou ausente. Mas quando eu contava sobre o tal livro, com as formiguinhas, algum dizia:

C t maluco, acho que voc andou mamando muito hoje...

Eu tinha passado seis meses na cadeia, e estava, por assim dizer, me recuperando... No tivera grande trauma, no xis, como se diz. Mas digamos que a terapia muito boa: quer queira quer no, acaba mudando a forma de pensar. Existia agora, uma vontade meio estranha de ser algum, alguma coisa... Ter coisas, sei l, nunca tinha tido uma experincia muito boa com tais sentimentos.

Note-se que todo trmino de guerra no acaba em acordos, como se pensa, acaba sempre em superao. O derrotado, alm disso, desarmado e controlado. Como os japoneses, por exemplo. Tudo se justifica, e novamente a vida banalizada, frente j banalizada guerra. Seu trmino ento, alm de trmino de guerra mais um passo de decadncia no mundo. Para uns a compaixo determina o suborno quotidiano da vida. Para outros o no envolvimento. No fim, as tais bases militares prostituem, legalizam o indizvel e fazem o que no se acredita com o tal povo desarmado em nome da paz.

O nico lugar que me aceitou foi uma agenciazinha de publicidade, que gostou do meu trabalho. Fazia oito horas noturnas. Recebi a me de um dos meus filhos um dia, para uma visita de apoio. Tais apoios, para quem ainda no conviveu com isso, uma espcie de apoio crtico. Dizem construtivas, tais crticas, mas tenho l minhas dvidas.

O fato que bem, acreditem ou no, mas agora eu gostava de fatos. Me apoiava neles, justificava-me a objetividade que sempre me tinha cegado e o fato que na despedida, surpreendentemente, ao invs de me esperar uma boca, que sabidamente me esperaria, sentiu-se uma espcie de frieza inexplicvel. Imperceptvel, eu diria, quando ela virou o rosto, e deu um beijinho carinhoso e apoiador.

Depois de alguns dias, soube que algum dissera que eu tinha o vrus: e algum queria dizer alguns. Finalmente eu estava sendo desmascarado. Quem teria afinal sabido de tudo?!? Quando assumi o compromisso de espalhar o vrus, assumi tambm um segredo absoluto. Nada que pudesse, de modo nenhum, revelar a fonte que eu era, de tamanho desarranjo... Eu me sabia acuado e desarmado, ento s contava mesmo com a minha inteligncia e cuidado absoluto no dia-a-dia.

Estamos preocupados com voc. Como que est?!? T precisando de alguma coisa?!?

Era um grande amigo meu, que tambm me apoiava. Todos tentavam contribuir, de uma forma ou outra, para que eu no bebesse. Ento me levavam cigarros, maconha, CDs e vdeos... Estavam todos preocupados comigo, e eu tocado por preocupar tantos e to veementemente. Mas de qualquer forma, com os quatro meses de aluguel vencidos, a falta total de dinheiro e o descrdito geral da rede de significados mundial, minhas paredes pareciam sombrias e gotejantes. Emboloradas, eu diria. Mas me redimia a sensao de estar sendo aceito de volta, uma espcie de filho prdigo.

O dono da agenciazinha era um otariozinho. Lgico. Mas tinha seu brilho: bons clientes, carteira abarrotada de possveis moscas, em sua rede de ganhar dinheiro e cheirar p. Que tinha isso: era nia. E bichinha: vivia se esfregando em mim, achando que eu no percebia. Mas ele pagava razovel e eu sabia que minhas roupas estragadas, a ficha de ex-detento e a cara de mau que eu sempre tive, acabavam por ter um charme inexplicvel, porm bastante bem remunerado, digo, para a situao objetiva dos fatos. Ele acabou fechando um grande contrato, com uma rede de televiso. Produziramos o novo programa, uma novelinha idiota qualquer voltada para as crianas. Faramos a seleo e contratao: precisavam de meninos e meninas de 12 a 16 anos. Estvamos empolgados naquele dia, pois parece que preencheramos as vagas todas... A mulher, ento, sada do lado da sala dele que ficava mais ou menos isolada do restante da empresa e berrava, histrica:

Tarado, filho de uma puta... T pensando o qu, filho da puta... Filho da puta!!!

Os seguranas foram logo requisitados, para acalmar a mulher. Mas ela no se acalmava, e gritava:

O filho da puta quer bulir com crianas, vai bulir com marmanjos no xilindr!!!

Era obvio que ela no ia se acalmar, ento os seguranas comearam a movimentar-se para colocar ordem na casa, o que significaria expuls-la dali.

Assustava-me a perspectiva negativa que me aguardaria num possvel fracasso. Bastante provvel, alm de possvel, e sempre o mais comum de se ver e de acontecer, inclusive nas melhores famlias: tentar congelar o tempo, dar-se a impresso de que se vai pagar, o prazo vai dilatar, o capitalista vai entender, a gente vai conseguir. O entusiasmo que brota disso tudo, aquela sensao de filme que deve ter final feliz, ou final, afinal, que no seja o final de verdade, que a seria a morte.

Formas separadas numa forma s: um esparramo deitado no sof: sonificados e personificados. Heris e desenhos, armas, escudos e serpentes, flres e morais da histria. Ao mesmo tempo em que a fora vencia em todos, aliada, evidentemente da justia e da bondade, armada, tambm sempre, a vida se mostrava dominada pelos fracos. Covardes quotidianos davam a ntida sensao de que eu tinha cado num logro, e percebido tarde demais.

Pelo menos tem comida nessa casa?!?

Obviamente existiam momentos mpares nessa vida toda, momentos que solidificavam a sensao de estar-se do lado certo: dar a sensao de no estar num logro. Um conjunto de distraes: crianas e distraes, tudo coadjuvando uma infelicidade. Planos, desenhos e projetos passariam para um plano to grande e slido de inexistncia, que, mesmo nesses momentos mpares, a gente se perguntava: onde estou eu que me planejei e no me cumpri?!?

Depender e esperar. O mercado, sabe? A recesso, o desemprego. Eternamente empobrecendo as pessoas, e fazendo delas um bando de covardes. Porque o mundo sempre ameaa desabar, mas no desaba. Afinal de contas, toda tragdia sempre ofereceu a oportunidade do herosmo, ser heri profissional, afinal de contas. Roubar dos ricos, conquistar tronos usurpados, escudos e trofus. E salvar outros dos desabamentos, cavalos e cavaleiros, cinderelas, gatos, gatas e borralheiros, convivendo, num mgico sincretismo, com os heris japoneses.

Depois das adocicadas domingadas com outros filhos nada tinha ocorrido e, de repente, algum se lembrava: no tinha ocorrido nada. E quando algum falava nisso, na segunda-feira, quem havia se lembrado j sabia que no ocorrera nada: nada havia mudado no mundo, que continuava ameaando desabar.

Mas existia tambm a fotografia, a cena, o instante captado como nico e real momento da existncia, a felicidade imortalizada de uma recordao qualquer. Mostrar pros netos, pros vizinhos, invejar e fazer inveja.

Os degraus, os vidros, amanheceres e luares. E os ratos, gatos e cheiros que arrepiavam. Que faziam parte de uma felicidade estranha, meio feliz, meio medo. Um poro muitos sonhos, pianos, pelas segundas vezes.

Trs meses sem um puto, hein?!? Mas que vido que voc tem. cara de pau que tem os homens hoje em dia...

Naquele momento eu vi claramente, e no sei se os berros da mulher mostravam, mas eu via alguma coisa meio diferente: acho que os lados da vida, no final das contas, acabam se encontrando nas esquinas. E eu vi o busto que estava sendo construdo: muito bonito, louvado nos meios de comunicao, Uma mulher com trs crianas empunhadas, leite jorrando aos montes, velha pela tradio, nova pela propriedade. Isso mesmo, nova porque ela agora quem compra a televiso, paga a feira. Alm de carregar, em suas costas, a ancestralidade da preservao, e em sua barriga a vida.

Momentos mpares tambm eram os de supermercado, sempre cheio, alm evidentemente dos produtos das prateleiras, de imagens e desejos. Pequenas paqueras, entende. Sacanagem com aquelas duas, junto aos frios, enquanto a famlia passeia alegremente pelos laticnios. O problema era a hora do caixa, que alm de fila, conteria um qu de risco, que no final, iria produzir personalidades e egos que pulam, como os discos riscados. Mas o tal disco falava sempre assim:

No, no. Se voc no faz porra nenhuma eu estou com muita pressa. Vai na caixa ali do lado, que voc sabe muito bem que caixa homem se enrola todo, e demora trs vezes mais.

Mas eu tenho uma certa sorte: sempre acabo descobrindo que tais momentos de sofreres e pesares so como lmpadas: s desligar. que, de vez em quando, a maconha d uma espcie de depresso. Mas passa logo. E, no fim, d tudo errado, e a gente se realiza como micrbios* da vida, procurando hospedeiros. Matando, se possvel, ou apenas apavorando e desorganizando tudo, j quase um vrus. O bom que, no final, tudo d errado mesmo. E merda pra todo lado: as estabilidades, os salrios, os momentos mpares, os programas cabea dos canais culturais. Acabam, tudo isso, justificando o psiquiatra como cesta bsica da capacidade de significar qualquer coisa nessa porra desse mundo. Tudo acaba em antibiticos e antidepressivo. Toda a boa-forma, meia e botinha e jeitinho de adolescentes, junto com seus adolescentes filhos. D tudo errado. Menos, evidentemente, para os micrbios e as baratas. Que so covardes tambm, mas sobrevivem sempre, e no fim d tudo certo: s mudar de fossa, ou de hospedeiro. Imagina ento os vrus, que no so covardes?!?

Eu sabia que qualquer movimento em falso ia significar minha volta pra cadeia, pois estava em condicional. Mas tem hora que, sabe como , n, tem horas, que a gente sabe que a hora certa do boto: o interruptor do foda-se. s saber o momento certo de ligar e pronto: como j se disse, merda pra todo lado.

Justamente na noite anterior eu tinha estado com a Cidinha. Os lquidos dela me davam uma espcie de coragem e carcaas perdidas nesse dolorido processo. Sei l, eu me sentia de novo meio heri de alguma coisa. Alm disso, no sei bem porque, mas havia dito para a Bia, grande amiga e confidente:

Ento cai fora... Se no t de lado nenhum, t do lado de l.

Eu no sabia do que falava, no havia lado algum. Somente minha perspectiva sombria de ver tudo. Achar que todos, afinal, de uma forma ou de outra, estariam me perseguindo. Mas no me restava muita alternativa: ou eu via de um jeito, ou de outro. Nunca existiria, no final das contas, uma forma qualquer de conciliar...

Ento no sei bem porque, mas acabei destruindo o escritrio todo. Enchi o bichinha de porrada e levei a carteira dele. Claro que tive que desaparecer, pois tinha que prestar contas de minha vida todo ms, pra um oficial de qualquer coisa. claro que no iria prestar contas disso.

Mais tarde eu recebi uma carta da me do menino. Ela tinha tambm uma de dezesseis anos... Haviam cercado a pracinha onde tocavam violo e faziam fogueira e, como ela tinha mandado o capito se foder, tinham feito que rolasse no carvo ainda morno da fogueira. Ela me contou que a menina chorou de vergonha uns trs dias...

E a gente no pode fazer nada, me?!? Eu esfreguei o estatuto do menor e do adolescente na cara dele. C acha que ele fez o qu?!? Passou a mo na minha teta e me jogou no carvo!!!

* No posso deixar de fazer um aparte, frente a to irnico texto. bvio que Leonardo no era um micrbio, pois micrbios so bem menores. Acontece que ele me disse que os tais pescoudos (lembram-se? J nos referimos a eles) chamavam gente como ele de micrbios. Ele dizia que por isso mesmo era a base da vida, podia distribu-la, como os milhes de micrbios que fazem nosso inferno interior estar recheado de cidos e bases de todo tipo. Mas gostava mais de ser vrus.

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