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1 CEMITÉRIO DOM BOSCO Endereço: Estrada do Pinheirinho, 860, Perus, São Paulo, SP. Classificação: Cemitério. Identificação numérica: 054-04.001 O Cemitério Dom Bosco foi inaugurado em 02 de março de 1971, durante as gestões de Paulo Salim Maluf, na prefeitura de São Paulo (1969 a 1971), Laudo Natel no governo do Estado (1971 a 1975), e do presidente Emílio Garrastazu Médici, que assumiu o governo federal entre os anos de 1969 a 1974. Criado para atender os bairros periféricos da cidade, com a finalidade de sepultar corpos de indigentes e indivíduos pobres sem identificação, este cemitério público municipal abrigou, ainda que secretamente, os corpos de militantes opositores do Estado que foram mortos e ocultados pelas forças de segurança pública. Os últimos momentos dessas pessoas foram omitidos de seus familiares e estes não puderam cumprir o direito de realizar rituais fúnebres de acordo com suas crenças e religiões. O funcionamento de cemitérios públicos, como o Dom Bosco, está atrelado ao principal órgão do estado responsável por laudos necróticos: o Instituto Médico Legal de São Paulo (IML/SP), que auxilia as investigações de mortes suspeitas e violentas por meio da análise de cadáveres e das cenas de crimes. O IML é vinculado a Secretaria de Segurança Pública do Estado, a organismos como a Guarda e Polícia Civil, Polícia Militar, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) e as instituições próprias do aparato repressivo do regime ditatorial, como o Destacamento de Operações de Informações, Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-Codi) e o Departamento Estadual de Ordem de Política e Social de São Paulo (Deops/SP). Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

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CEMITÉRIO DOM BOSCO

Endereço: Estrada do Pinheirinho, 860,

Perus, São Paulo, SP.

Classificação: Cemitério.

Identificação numérica: 054-04.001

O Cemitério Dom Bosco foi inaugurado em 02 de março de 1971, durante as

gestões de Paulo Salim Maluf, na prefeitura de São Paulo (1969 a 1971), Laudo

Natel no governo do Estado (1971 a 1975), e do presidente Emílio Garrastazu

Médici, que assumiu o governo federal entre os anos de 1969 a 1974. Criado para

atender os bairros periféricos da cidade, com a finalidade de sepultar corpos de

indigentes e indivíduos pobres sem identificação, este cemitério público municipal

abrigou, ainda que secretamente, os corpos de militantes opositores do Estado que

foram mortos e ocultados pelas forças de segurança pública. Os últimos momentos

dessas pessoas foram omitidos de seus familiares e estes não puderam cumprir o

direito de realizar rituais fúnebres de acordo com suas crenças e religiões.

O funcionamento de cemitérios públicos, como o Dom Bosco, está atrelado ao

principal órgão do estado responsável por laudos necróticos: o Instituto Médico

Legal de São Paulo (IML/SP), que auxilia as investigações de mortes suspeitas e

violentas por meio da análise de cadáveres e das cenas de crimes. O IML é

vinculado a Secretaria de Segurança Pública do Estado, a organismos como a

Guarda e Polícia Civil, Polícia Militar, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA)

e as instituições próprias do aparato repressivo do regime ditatorial, como o

Destacamento de Operações de Informações, Centro de Operações e Defesa

Interna (DOI-Codi) e o Departamento Estadual de Ordem de Política e Social de

São Paulo (Deops/SP).

Memorial da Resistência de São Paulo

PROGRAMA

LUGARES DA MEMÓRIA

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Após identificar a morte de um indivíduo, os agentes responsáveis faziam um

primeiro contato com o Instituto Médico Legal. O IML seguia ao local com um carro

apropriado, juntamente com um médico-legista para elaboração dos laudos

referentes à cena do crime ou acidente. No IML, os corpos eram levados para a

sala de autópsias para elaboração do laudo necrótico e posteriormente ser liberado

para sepultamento. Todos os dados e informações coletadas dos documentos

encontrados junto ao cadáver (nome, endereço, filiação, estado civil) e constatados

pelos legistas (como sexo, idade, peso, estatura, causa da morte) eram registrados

em fichas individuais e arquivados na sede do próprio instituto. Corpos não

identificados ou identificados, cujas famílias não procuravam de imediato, eram

mantidos na câmara frigorífica por até seis dias, para depois serem encaminhados

a um cemitério público por carros da Guarda Civil ou Polícia Militar, para serem

sepultados1.

Durante os processos das investigações e obtenção de novas informações

referentes às diferentes organizações que, clandestinamente, se manifestavam

contra o regime ditatorial, presos políticos sofreram torturas físicas e psicológicas

que mutilaram seus corpos e causaram suas mortes. Entretanto, não era de

interesse da polícia que estes corpos fossem encontrados, pois seriam provas

irrefutáveis dos atos de violência que eram praticados pelos órgãos de segurança e

com o consentimento do Estado. Para a ocultação dessas mortes, eram elaborados

laudos falsos, que “montavam” cenas de acidentes trágicos, como atropelamentos,

e mortes violentas, como suicídios. Para completar, contavam com endosso de

falsos exames necróticos que corroboravam com a versão dada pela polícia. Eram

falsificados os dados pessoais, causa de morte e em alguns casos o destino do

corpo, com a alteração do nome do cemitério2.

1 Procedimentos de funcionamento do Instituto Médico Legal de São Paulo. Informação disponível no depoimento do ex-administrador, Josué Teixeira dos Santos para a Comissão Parlamentar de Inquérito processo nº 2450/90. Arquivo Municipal de São Paulo. Fundo CMSP; grupo comissão; subgrupo CPI Processo nº 2450/90; caixa dois, volume quatro.

2 Dezenas de casos tiveram versões oficiais deturpadas apenas preocupadas com a ocultação da real causa de morte dos militantes políticos. Pode-se exemplificar por meio do caso do militante da Ação Popular (AP) Luiz Hirata torturado e morto pela equipe de Sérgio Paranhos Fleury nas dependências do Deops. Solicitado por Fleury, o médico legista Harry Shibata havia sustentado a versão policial de que Hirata teria colidido com a traseira de um ônibus em tentativa de fuga, que explicaria o traumatismo torácico e as escoriações múltiplas identificadas no prontuário do Hospital das Clínicas para o qual foi levado mesmo após ter falecido (Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil – 1964-1985. São Paulo: Imprensa Oficial. 2 ed. 2009. p.295).

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TORTURA CONTINUADA – OS FAMILIARES DAS VÍTIMAS E SUA

INTERMINÁVEL BUSCA POR SEUS DESAPARECIDOS

Os familiares das vítimas da repressão do regime militar mantêm por décadas

uma busca incansável pelo destino de seus parentes. A ausência de informações,

segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), se configura

como um crime de tortura continuada. BRITO (2013,17) afirma que a CIDH, em

reiteradas sentenças, tem promulgado que manter os familiares das vítimas de

desaparecimento forçados na ignorância configura-se em tortura, crime continuado

e imprescritível. Os casos Blake contra Guatemala, Neira Alegria contra Peru e

Irmãs Serrana Cruz contra El Salvador, são os principais precedentes jurídicos

nesse sentido.

Para além dos fatores jurídicos, em se tratando de crimes de lesa-

humanidade cometidos contra as vítimas diretas – portanto imprescritíveis –, a

categoria dos familiares das vítimas ingressa como vítimas indiretas da repressão,

que permanecem na ignorância do que aconteceu a seus entes queridos. Há uma

dificuldade em racionalizar a morte presumida do parente desaparecido, dada

ausência de informações, atrelado a impossibilidade de prestar honras fúnebres

aos mortos.

A reportagem de Caco Barcellos (1990, 35:54) registrou a história da família

Torigoe, no interior de Piracicaba-SP que, além de questões afetivas da perda do

filho Hiroaki Torigoe, enfrentam a dor, enquanto budistas, de não poder cumprir sua

tradição religiosa de guarda das cinzas do filho e celebrar o luto com os ritos

sagrados. Seu irmão, Shuniti Torigoe, em entrevista concedida a Caco Barcellos do

Globo Repórter, em 1990, afirmou que, após descobrir que o corpo de seu irmão

estava enterrado em Perus, foi ao local. No entanto, não dispôs de autorização da

administração do cemitério para retirar o corpo3.

3 Respaldado no artigo 551 do Decreto Estadual nº 16.017/1980 - “o prazo mínimo para a exumação de corpos é fixado em 3 (três) anos, contados da data do óbito, e em 2 (dois) anos no caso de criança até a idade de seis anos, inclusive”. Tratava-se de um procedimento padrão dos cemitérios públicos, e que segue existindo nos dias de hoje: após o mínimo de três anos do sepultamento, quando os familiares não se manifestam ou não se propõem a pagar a taxa de manutenção, os ossos podem ser retirados da cova, o esqueleto é ensacado para ser guardado em ossuário de alvenaria no próprio Dom Bosco ou em outro cemitério. Todos os procedimentos são registrados. Dessa forma, mais de mil esqueletos foram retirados das duas quadras, porém, ainda sem destino, as ossadas ficaram armazenadas em salas de velório, e apenas as exumações ficaram registradas.

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Hiroaki era dirigente do Movimento de Libertação Popular, nasceu em 02 de

dezembro de 1944, cursou até o quarto ano da Faculdade de Ciências Médicas da

Santa Casa de São Paulo, até que passou a clandestinidade. E, em 05 de janeiro

de 1972, foi baleado, preso e torturado até a morte no DOI-Codi, sendo enterrado

com o nome falso de Massahiro Nakamura no cemitério de Perus em 07 de janeiro

de 1972 (BRASIL, 2012, 94). Decorridos os três anos, a busca de Shuniti colidiu

com a informação de que o corpo de seu irmão havia sido exumado, com destino

não informado. Sob pressão do Ministério Público Federal, foi permitido a

realização de investigações posteriores nos livros do Cemitério Dom Bosco e na

documentação de exumações pelo Instituto Médico Legal. Em 2007, chegaram a

outras ossadas que supostamente seriam de Hiroaki. No entanto, todas as

tentativas chegaram a resultados negativos. Restou à família de Hiroaki substituir

suas cinzas por uma foto num altar mantido na casa da família, onde ainda fazem

orações pelo filho desaparecido (BRASIL, 2012, 95).

O caso da família Torigoe é apenas uma dentre tantas outras que remontam a

ocultação de informações, a cadáveres insepultos e ao cerceamento do direito de

enterrar seus mortos. Direito esse, inscrito na tradição ocidental, cujo culto e

respeito está presente nas mais diferentes sociedades (TRINDADE, 2013,196).

Análises de psiquiatras como Paz Rojas Baeza, com familiares que buscam o

destino das vítimas, têm indicado que a ausência de informações têm provocado

traumas agudos e síndromes crônicas, sintomas que se agravam pela ausência de

justiça e impunidade. BAEZA (2009,187) aponta que as funções mentais

primeiramente afetadas são a percepção e a afetividade, pois ao não ter acesso à

representação mental, se desencadeia uma tortura psicológica grave e permanente,

que altera progressivamente todas as funções psíquicas, em forma aguda, segundo

o curso do tempo e o comportamento que tenham todas as estruturas do poder.

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CEMITÉRIO DOM BOSCO E A DESCOBERTA DA VALA

A descoberta da vala clandestina em Perus trouxe para debate público

questões evitadas e silenciadas no cenário social. Os restos mortais descobertos na

vala comunicavam à sociedade a existência de crimes de sequestro, tortura,

assassinato e ocultamento de cadáveres, fomentando um debate em torno da anistia

política, quanto à prescrição de crimes observados como contínuos, e a necessidade

da identificação desses corpos.

Imagem 01: A retirada dos ossos mobilizou profissionais do Cemitério e de outros setores do serviço público, como policiais militares e da Guarda Civil Metropolitana. Fotos Marcelo Vigneron. Fonte: Vala Clandestina de Perus (2012,150).

A descoberta foi apenas uma das conquistas na busca por verdade e justiça.

Foram longos anos de reivindicações e acompanhamento no processo de

identificação.

O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI PERUS (1992,11)

destaca que, a partir do ano 1971, os corpos de vítimas de mortes violentas (sobre

os quais não era possível a identificação) e, ainda, os corpos não reclamados que

saíam do IML, eram destinados ao Cemitério Dom Bosco. A partir de 1975, os

espaços para sepultamento no cemitério chegaram ao limite e ossadas de duas

quadras do cemitério (quadras 1 e 2 da gleba 1) foram exumadas; trabalho que

demorou cerca de um ano, até ser concluído. No mesmo ano foi aberta uma vala,

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na qual foram depositadas cerca de 1.500 ossadas sem qualquer tipo de registro

sobre a ação4.

A não conclusão do projeto de um ossuário5 no Dom Bosco, somada à falta

de ossuários disponíveis para as ossadas em outros cemitérios, além de

descartada a possibilidade de cremá-las, Rubens Vieira, o administrador do

cemitério na época, determinou que as ossadas fossem reinumadas no próprio

cemitério. Assim, em meados de 1976, com uma retroescavadeira, a vala comum

foi aberta com dimensões de cerca de 30 metros de comprimento e 2 metros de

profundidade; a vala, sua localização e os restos mortais nela enterrados não foram

registrados, tratava-se de uma vala comum clandestina.

Em 1979, a vala foi reaberta pela primeira vez, a partir de iniciativas da

Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos que, em sua contínua busca

pelo destino de seus parentes, se depararam com o caso da vala clandestina

localizada pelo administrador do cemitério Antônio Eustáquio.

A família do militante do Movimento de Libertação Popular Flávio Carvalho

Molina, morto em 1971, descobriu que seu corpo teria sido enterrado com nome

falso no cemitério Dom Bosco. Após tentativas particulares da família de Flávio

junto ao Serviço Funerário Municipal, Gilberto Molina (irmão do militante Flávio

Carvalho Molina – 1947-1971) toma conhecimento da existência de uma vala

clandestina com restos mortais enterrados em sacos do serviço funerário.

Considerando a falta de respaldo político, jurídico e médico forense para que

pudesse dar prosseguimento às investigações6, Gilberto Molina pediu ao

administrador do cemitério para que a vala fosse fechada. Com essa descoberta, a

luta da família, sobretudo de seu irmão, foi no sentido de exigir a retificação de

assentamento de óbito e reconstituição de identidade, processo ganho na justiça do

estado de São Paulo em 1981.

Onze anos após este evento, a Vala de Perus foi novamente aberta em 04 de

setembro de 1990, mas nesta ocasião com o apoio do governo do estado e da

4 Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI PERUS, 1992, pg. 12. Disponível em: BRASIL. Vala Clandestina de Perus: desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira. São Paulo: Instituto Macuco, 2012, pg. 157-1999. 5 Ossário ou ossuário é um depósito onde são guardados os ossos de animais ou pessoas. Construídas em cemitérios, surge da necessidade de tornar disponível sepulturas desativadas. Nesse sentido, os corpos são exumados e depositados em gavetas ou urnas. 6 Investigações da Comissão de Familiares em 1979 e reabertura da vala de Perus de 1990 são citadas nos depoimentos de Gilberto Molina e Ivan Seixas no documentário: Vala Comum, direção: João Godoy, 1994.

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prefeitura de São Paulo. Cabe destacar a importância do trabalho investigativo do

jornalista Caco Barcellos que, à época, promovia investigações nos arquivos do

Instituto Médico Legal e de cemitérios da capital para o livro Rota 667. Em sua

pesquisa, o jornalista chegou a documentos que dispunha de uma letra “T” em

vermelho, identificando os cadáveres de subversivos, ditos terroristas. Nesse

contexto, o administrador do cemitério Antônio Eustáquio, lhe contou sobre a

existência da vala e sua localização.

O jornalista então passou a investigar se, de fato, se tratava de uma vala

clandestina e procurou nos arquivos do departamento municipal documentos de

registro da vala. As plantas e os mapas do cemitério indicavam apenas a

localização do ossuário (a 400 metros de distância da vala) e do projeto de uma

capela, que ficaria justamente no local da vala. A Comissão de Familiares de

Presos Políticos foi procurada por Caco Barcellos e juntos buscaram retomar o

projeto de abertura da vala.

É criada, em 12 de setembro de 1990, a Comissão Especial de Investigação e

Acompanhamento das Ossadas Humanas encontradas em cemitérios da capital,

durante a gestão da prefeita de São Paulo Luiza Erundina de Sousa, com o objetivo

de pesquisar sobre a existência da vala clandestina, em conjunto com a Comissão

de Familiares. A participação direta do Instituto Médico Legal de São Paulo foi

vetada, a partir de reivindicações em dezembro de 1990 dos familiares, que não

aceitavam a identificação das ossadas por funcionários que atuaram como agentes

da repressão, como os médicos-legistas da ditadura8. Assim, os restos mortais

foram encaminhados para o Departamento de Medicina Legal da Unicamp

7 Barcellos, Caco. Rota 66. São Paulo: Globo. 29 ed. 1997. Narra o caso especifico da noticia 255 extraída do Jornal Noticias Populares, na qual três rapazes, em um fusca azul, são perseguidos e mortos pela equipe de polícia do carro número 66 das Rondas Ostensivas Tobias Aguar (ROTA). 8 Segundo o Dr. Edson Luís de Almeida Teles, ex-preso político. “O diretor do IML, nessa época, Dr. José Antônio de Melo, assinou o laudo necroscópico de Manoel Fiel Filho, assassinado sob tortura no dia 16 de janeiro de 1976, no DOICODI/ II Exército.” (extraído do site de internet Eremias Delizoicov – Centro de Documentação/ Dossiê: mortos desaparecidos políticos no Brasil. http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=39&m=8. Acesso em 01 de novembro de 2010). A Ação Civil Pública n° 2009.61.00.025169-4 proposta pelo Ministério Público Federal em 26 de novembro de 2009, também comenta o papel do Instituto Médico Legal na ocultação de cadáveres durante o período de ditadura. “O mais lógico é que esses trabalhos fossem realizados pelo Instituto Médico Legal - IML, de São Paulo, mas essa hipótese foi refutada pelas várias comissões de diretos humanos que acompanharam a abertura da vala e também por familiares de mortos e desaparecidos políticos. A recusa fundou-se na participação fundamental que o IML teve na ocultação dos cadáveres e no fato de que ainda trabalhavam no Instituto alguns profissionais que colaboraram com a repressão na época da ditadura militar” (6).

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(DML/Unicamp), visando a identificação das 1.049 ossadas exumadas da vala

clandestina.

Imagem 02: Técnicos da Unicamp fazendo a análise e separação das ossadas. Material foi transferido para o Columbário do Cemitério do Araçá em São Paulo. Foto Marcelo Vigneron. Fonte: Vala Clandestina de Perus (2012,154).

Os trabalhos do Departamento de Medicina Legal da Unicamp (DML) tiveram

inicio em 22 de novembro de 1990, depois de estabelecido um convênio entre a

prefeitura de São Paulo, governo do estado e a Universidade de Campinas, tendo

como signatário o reitor Carlos Voght.

Ao receber as ossadas, em 01 de dezembro de 1990, o DML deu início à

coleta de dados das ossadas, com a finalidade de dividi-las em dois grupos, de

acordo com a condição em que foram encontradas. Um grupo, com os crânios

encontrados quase íntegros, e outro, com crânios com várias fraturas ou

fragmentados, e dos sacos plásticos com ossadas sem crânio ou com mais de um

crânio.

As primeiras identificações aconteceram após o fim da catalogação das

ossadas e dos dados e documentos solicitados aos familiares. No dia 08 de julho

de 1991 foram identificados os restos mortais de Sônia Maria Moraes Angel Jones

e Antônio Carlos Bicalho Lana (encontrados no cemitério Dom Bosco, fora da vala)

e Denis Antônio Casemiro (cujos restos mortais estavam na vala comum). No ano

seguinte, em 25 de junho de 1992, foram identificados: Frederico Eduardo Mayr

(seus restos mortais foram depositados na vala comum), Helber José Gomes

Goulart (sepultado no cemitério Dom Bosco, encontrado fora da vala)9.

9 Jornal Unicamp. Edição Especial 2001: Documento. Projeto Perus: passando a limpo. A história corrigida. Disponível em

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Os trabalhos se dilataram e ossadas encontradas em outros cemitérios

também foram encaminhadas para o Departamento de Medicina da Unicamp. Os

restos mortais de Emanuel Bezerra dos Santos, exumado do Cemitério Campo

Grande de São Paulo, foram identificados em 25 de junho de 1992; e Maria Lúcia

Petit da Silva foi identificada em 29 de abril de 1996, exumada do Cemitério

Xambioá, do estado do Tocantins.

Missas foram realizadas na Catedral da Sé, por Dom Paulo Evaristo Arns, em

celebração à entrega dos restos mortais identificados nos dias 11 e 12 de agosto de

1991 e 12 e 13 de julho de 1992.

Durante sete anos de trabalhos, o DML/Unicamp identificou sete

desaparecidos políticos, dois deles vindos da vala comum de Perus, por meio de

técnicas de análises dos ossos e arcadas dentárias, intersecção de dados dos

familiares e características das ossadas, sobreposição de fotografias dos

desaparecidos e radiografias dos crânios possivelmente compatíveis e fragmentos

de ossos foram encaminhados para a Universidade de Minas Gerais para

identificações por meio de DNA. Na tabela abaixo, é possível verificar as principais

ações em torno da Vala de Perus.

<www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/mar2001/ossopag4e5.html>. Acesso em 19 de novembro de 2010.

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DATAS AÇÃO

04/09/1990 Abertura da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus.

05/09/1990 Criação da Comissão Especial de Investigação e Acompanhamento das Ossadas

de Perus.

06/09/1990 Abertura do Inquérito policial para investigação das ossadas de Perus.

17/09/1990 Instalação da CPI dos Desaparecidos Políticos na Câmara Municipal de São Paulo.

22/11/1990 Assinatura de convênio entre a Prefeitura de São Paulo, Governo do Estado e

Unicamp visando a realização do trabalho de perícias na Universidade.

01/12/1990 Transferência das ossadas para a Unicamp

29/04/1991 Chega à Unicamp duas ossadas do Cemitério de Xambioá. Uma pertencente à

Francisco Manoel Chaves e a outra a Maria Lúcia Petit da Silva, supostamente

guerrilheiros mortos no Araguaia.

Junho/ 1991 Entrega do relatório da CPI dos Desaparecidos Políticos na Câmara de São Paulo

09/09/1991 Exumação de três ossadas para investigar se alguma pertencia a Luiz José da

Cunha

13/12/1991 Instalação da Comissão de Representação Externa de Busca dos Desaparecidos

Políticos no Congresso Nacional

25/06/1992 Unicamp identifica os restos mortais de Helber José Gomes Goulart, Frederico

Eduardo Mayr e Emanuel Bezerra dos Santos.

Março/1995 Cria-se a Comissão de Supervisão de Perícias, para exigir a prestação de contas

sobre o trabalho de identificação das ossadas.

29/04/1996 Identificação dos restos mortais de Maria lúcia Petit da Silva

31/10/1996 O médico legista Fortunato Badan Palhares é afastado da coordenação do Projeto

Perus. A coordenação técnica fica a cargo do também médico-legista José Eduardo

Zappa.

07/04/1997 Entrega do laudo final sobre o trabalho de perícia nas ossadas. O relatório,

assinado por José Eduardo Bueno Zappa, é entregue aos familiares.

11/02/1998 Secretaria de Segurança Pública nomeia uma comissão, presidida pelo legista

Antenor Chicarino, para definir o destino das Ossadas.

Março/1998 A Comissão Especial entrega relatório indicando a transferência das ossadas para

o Instituto Oscar Freire do Departamento de Medicina Legal da USP e a

participação de um perito internacional como observador.

19/04/1998 Comissão de transferência das Ossadas sugere que o trabalho de identificação

continue na USP

21/12/1999 Unicamp extingue seu Departamento de Medicina Legal com aprovação do

Conselho Universitário

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DATAS AÇÃO

07/01/2000 A Reitoria nomeia a Comissão de Supervisão de Perícias, encarregada de receber,

avaliar e encaminhar todas as solicitações de perícias forenses.

Março/2000 A Comissão de Perícias convoca a entrevista coletiva com a participação de

integrantes da Comissão de Familiares, secretaria de Justiça e Segurança Pública,

médicos legistas e Unicamp, com intuito de que todas as partes se manifestem.

13/09/2000 Reunidos na Reitoria, representantes da Unicamp, Secretaria de Segurança

Pública do Estado, Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado, Secretaria de

Estado e Direitos Humanos (Ministério da Justiça), Comissão dos Direitos

Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo e Ministério Público Federal,

acordam que os trabalhos de identificação serão reiniciados até o dia 25 de

setembro de 2000, mediante vistoria das ossadas e respectivos documentos de

perícia pela Secretaria de Segurança Pública, nas próprias instalações da

Unicamp.

08/11/2000 Reunião que estabeleceu cronogramas de trabalho na Secretaria Estadual de

Segurança Pública. No encontro estiveram representantes da Unicamp, Ministério

Público, Comissão do Familiares do Mortos Desaparecidos Políticos, da Secretaria

de Segurança Pública e o Deputado Estadual Renato Simões. Durante a reunião foi

estabelecido um prazo para a retirada de ossadas da Universidade

07/12/2000 Oito ossadas que estavam guardadas no extinto Departamento de Medicina Legal

são transferidas para o Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo. O traslado

cumpriu compromisso firmado um mês antes entre a Secretaria de Segurança

Pública, o Ministério Público Federal, a Universidade e a Comissão de Familiares

de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ainda segundo esse acordo, as ossadas que

permanecem sob a guarda da Unicamp deverão ser levadas em 2001 para um

local apropriado no Cemitério do Araçá, na Capital.

13/02/2001 Reunião de avaliação na Procuradoria-Geral da República em São Paulo com

representantes da Unicamp, da Secretaria Estadual de Segurança Pública,

Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, do IML de São

Paulo e o deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da

Assembleia Legislativa de São Paulo, Renato Simões.

Tabela 01: Principais ações em torno do Projeto Perus. Fonte: Informações da tabela foram obtidas no documento “Projeto Perus: passando a limpo”, Jornal da Unicamp da Universidade Estadual de Campinas, 2000, p. 22.

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Após as suas primeiras identificações, a perícia começou a sofrer com

problemas políticos, que afastaram odonto-legistas, alunos e outros técnicos10. Os

trabalhos tornaram-se lentos e ainda mais dificultosos, à medida que os mandatos

dos signatários do convênio acabavam. Em 1993, ao fim do mandato da prefeita

Luiza Erundina, não havia relatório ou informe oficial por parte dos conveniados ou

da Unicamp sobre os trabalhos realizados.

Em 1995, os familiares continuavam sem qualquer resposta a respeito dos

trabalhos de identificação. Em uma reunião que contou com representantes da

Comissão Especial, da Secretaria de Segurança Pública, Secretaria da Justiça, e

os Deputados Estaduais Renato Simões e Wagner Lino, decidiu-se pelo

afastamento do médico-legista chefe do DML/Unicamp, Fortunato A. Badan

Palhares, que foi substituído em 31 de outubro de 1996 por José Eduardo Bueno

Zappa. Zappa coordenou os trabalhos do Departamento até a entrega do laudo

“Projeto Perus”, no dia 07 de abril de 1997. Desde 1995, os trabalhos da perícia

estavam parados. Não havia equipe técnica e subsídios financeiros suficientes para

a continuidade do projeto. A Comissão de Transferência das Ossadas, em abril de

1998, solicitou à Secretaria de Segurança Pública que a Unicamp providenciasse

conclusões a respeito de seus trabalhos, pois o laudo entregue foi considerado

evasivo. Requereu a transferência das ossadas para o Instituto Oscar Freire, do

Departamento de Medicina Legal da USP, após constatar péssimas condições de

armazenamento as quais as ossadas estavam sendo submetidas na Unicamp

(sujeitas à umidade, mofo, baratas e ratos numa sala da universidade)11.

Em maio de 1998, o acervo de documentações produzidas pela Unicamp foi

transferido para a Secretaria de Segurança Pública e, sob a responsabilidade do

professor e medico legista da Universidade de São Paulo, responsável pelo Instituto

Oscar Freire e médico legista do IML, Daniel Muñoz, criou-se uma dinâmica de

trabalho que integrava as ações desses órgãos. Todos com o objetivo de continuar

as identificações, tendo a concordata e o prazo definido em 08 de novembro de

2000. O compromisso assumido não foi cumprido.

10 Jornal Unicamp. Edição Especial 2001: Documento. Projeto Perus: passando a limpo. Projeto Perus passo a passo. Disponível em <www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/mar2001/ossopag2e3.html>. Acesso em 19 de novembro de 2010.

11 Jornal Unicamp. Edição Especial 2001: Documento. Projeto Perus: passando a limpo. Depoimentos. Disponível em <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/mar2001/ossopag16.html>. Acesso em 19 de novembro de 2010.

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Oito ossadas encaminhadas para o IML, em dezembro do ano de 2000,

tiveram relatórios elaborados por Daniel Muñoz, que apontavam informações

semelhantes às pericias realizadas pela Unicamp. Não havia projetos para a

identificação das demais ossadas, que foram mantidas sob a guarda da Unicamp

até 31 de maio de 2001, quando foram transferidas para o Cemitério do Araçá em

caixas lacradas, não identificadas e fora da ordem. Posteriormente, os dados foram

obtidos junto à Unicamp e seus funcionários.

O Ministério Público Federal de São Paulo prosseguiu com os trabalhos de

identificação, juntamente com o Departamento de Cemitério do Município de São

Paulo, a Diretoria do Núcleo de Antropologia do IML e a Comissão Especial de

Direitos Humanos da Presidência da República, que avançaram as pesquisas. Em

02 de setembro de 2005, foi divulgado pelo Ministério Público o resultado do exame

de DNA, que comprovava a identificação dos restos mortais de Flávio Carvalho

Molina.

Imagem 03: Militante do Molipo, Frederico Eduardo Mayr, foi sepultado com o nome de Eugênio Magalhães Sardinha, em fevereiro de 1972. A sobreposição da foto sobre o crânio encontrado na vala clandestina ajudou na identificação. Arquivo Comissão de Familiares de Desaparecidos Políticos e CMSP/CPI Perus-Desaparecidos Políticos. Fonte: Vala Clandestina de Perus (2012,155).

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Em 2006, as ossadas descartadas pela perícia como pertencentes a militantes

foram devolvidas aos cemitérios de origem. A identificação de Luiz José da Cunha,

por amostra de DNA, foi divulgada em 28 de junho de 2006. Exames de DNA

identificaram, também, a ossada de Miguel Sabat Nuet, em 27 de agosto de 2008.

Seus restos mortais não estavam na vala comum, mas havia sido exumado no

Cemitério Dom Bosco, onde teria sido sepultado como indigente em 197312.

Mais de vinte anos se passaram da abertura da vala no cemitério Dom Bosco

e muitas ainda são as famílias que precisam da identificação dos corpos para

sepultar seus mortos e promover a realização do luto, racionalizando a morte de

seu parente desaparecido. O número de corpos identificados é irrisório diante da

quantidade de pessoas desaparecidas durante o período de ditadura civil-militar,

sepultados como indigentes no cemitério Dom Bosco e que estavam entre as 1.049

ossadas exumadas da vala comum em 1990.

O MONUMENTO AOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS

Com toda a repercussão somada ao ativismo de familiares e organizações de

direitos humanos, em 26 de agosto de 1993, durante a gestão da Prefeita Luiza

Erundina de Souza, foi inaugurado um monumento, no local onde foi descoberta a

Vala Clandestina com os corpos de muitos desaparecidos políticos. De autoria de

Ricardo Ohtake, foi erguido um muro com a seguinte frase: “Aqui os ditadores

tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do

estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo os direitos dos cidadãos

pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade

serão sempre descobertos”.

12 Identificações feitas a partir do ano de 2000 foram divulgadas pelo portal da Procuradoria Geral da República. Links: Disponível em: <http://www.prsp/noticia-2073/?searchterm>; <http://www.prsp/noticia-3599/?searchterm>; <http://www.prsp/noticia8046/?searchterm>. Acesso em 19 de novembro de 2010.

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Imagem 04: Monumento erguido no Cemitério Dom Bosco, no entorno do local onde foi descoberta a Vala Clandestina. Foto: Gutte Garbetollo/CMSP.

O monumento, que é popularmente conhecido como memorial, passou a ser

ponto de referência para ações de memória e atos públicos, como missas abertas

em homenagem a indigentes entre outras.

ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES:

O cemitério Dom Bosco, construído para ser um lugar limite, onde o fim se

concretiza afastado do centro urbano, pensado para ser a morada final da camada

mais baixa da sociedade, tem dentro de seus muros toda a história de repressão

sofrida por aqueles que lutaram e levantaram a voz por seus direitos civis.

Atualmente, o cemitério Dom Bosco pertence ao serviço funerário municipal de São

Paulo e faz parte de um conjunto de 22 cemitérios públicos, onde são sepultados,

entre outros, indigentes e pessoas que não têm condições de optar por serviços

particulares.

Em novembro de 2013, o cemitério abriu as portas para uma intervenção

artística chamada “Penetrável Genet/Experiência Araçá – um passeio pela

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necrópole” como parte da programação da X Bienal de Arquitetura. A proposta

visou oferecer às pessoas uma reflexão sobre memória, vida e morte através de

uma visita pelo cemitério e pelo Edifício Ossário Geral. O visitante recebia fones de

ouvidos que tocavam a composição musical “OTO SOUZA MATTOS” de Hélio

Oiticica (1974) durante o percurso que terminava no prédio do Ossário Geral. O

edifício, que abrigava as ossadas de vítimas do terrorismo de Estado, recebeu uma

instalação de mármore que projetava filmes com referências a enterros e velórios,

numa tentativa de “velar/sepultar” os restos mortais dos chamados “desaparecidos

políticos” na vala comum e que permanecem naquele prédio sem identificação.

A instalação dos artistas Anna Ferrari e Celso Sim foi destruída dentro do

Ossário, por um ato de vandalismo, no dia 03 de novembro de 2013. Os

responsáveis não foram identificados. O episódio demonstra, para além de

desrespeito ao bem público, conflitos em torno da memória política do período da

repressão militar e sua consequente série de crimes de lesa-humanidade à

sociedade, que permanece vítima da herança do medo e da ausência ao direito a

memória, verdade e justiça13.

Imagem 05: Vandalismo no

cemitério do Araçá em São

Paulo. Foto: Tuca

Vieira/Revista Brasileiros.

Fonte: Carta Capital -

Comissão da Verdade em SP

repudia invasão de ossário.

Em março de 2014, numa articulação entre as secretarias de direitos

humanos do Governo Federal e da Prefeitura Municipal de São Paulo com a

Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Cemdp) e a

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi assinado o protocolo de intenção 13 Para maiores informações sobre a exposição Penetrável Genet, sugere-se a consulta ao site do Núcleo de Preservação da Memória Política disponível no site: < http://www.nucleomemoria.org.br/imagens/banco/files/PenetravelGenet-ExperienciaAraca.pdf>, acessado em 09/05/2014.

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para a criação do primeiro centro de antropologia forense do Brasil. A instituição

terá como missão a identificação dos restos mortais encontrados no Cemitério Dom

Bosco em 1990.

FILMES E/OU DOCUMENTARIOS

Documentário: Vala Comum. Direção de João Godoy. Ano: 1994. Duração: 30

minutos

Produtora: Kawy Produções. Fotografia: Flávio Ferreira

Sinopse: O documentário discorre sobre o processo de descoberta das ossadas de

militantes políticos que combateram a ditadura e que foram enterradas na vala

comum do cemitério de Perus, em São Paulo. Apresenta ao telespectador

entrevistas com familiares e imagens históricas do processo de resgate e análise

das ossadas .

Documentário: Mártires Anônimos: Vala de Perus – 20 Anos em Busca de

Respostas. Direção de Mainary Moura do Nascimento, Janaina Martins de Oliveira

e Maria Aparecida Alves da Silva.

Sinopse: Apresenta o processo de descoberta e identificação das ossadas dos

mortos e desaparecidos políticos encontrados na Vala Clandestina de Perus.

REPORTAGENS

Globo Repórter, Reportagem Vala Clandestina de Perus por Caco Barcellos em

1994. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=yKBc7S4tSfU>, acessado

em 17/03/2014.

INTERESSE PÚBLICO, Reportagem do Programa Interesse Público sobre a vala

comum do Cemitério de Perus. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=lRQ_tvSi4m4>, acessado em 17/03/2014.

REMISSIVAS: Instituto Médico Legal – IML/SP, DEOPS, UNICAMP.

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REFERÊNCIAS

BRITO, Ana Paula Ferreira de. O tempo da memória política: (re)significando os

usos sobre a memória do período militar no Brasil. Dissertação de Mestrado do

Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, março de 2014.

BRASIL. Revista Anistia Política e justiça de transição. Brasília: Ministério da

Justiça. n. 1, 1 ed, jan/jun2009. Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de

lesa-humanidade, a imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias.

Comissão de Familiares e Desaparecidos Políticos, Instituto Estudos sobre a

violência do Estado. Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no

Brasil (1964-1985). São Paulo: Imprensa Oficial. 2ed. 2009.

Leister, Margareth Anne. Do desaparecimento forçado na jurisprudência da

Corte Interamericana de Direitos Humanos e no Supremo Tribunal Federal.

Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/43565712/9/%C2%B1-CIDH-caso-irmas-

Serrano-Cruz-desaparecimento-forcado-e-tortura>.

Maria Aparecida de Aquino, Carla Reis Longhi, Marco Aurélio Vannuchi Leme de

Martto e Walter Cruz Swensson Jr (org). Em busca do crime político. Família 50.

São Paulo: Arquivo do Estado/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. pp. 17-43.

Rubim Santos Leão de Aquino. Um tempo para não esquecer 1964-1985. Rio de

Janeiro: Editora Achiamé. 1 ed, 2010. pp. 41-99.

Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara municipal de São

Paulo. Relatório Onde estão? São Paulo, 1991.

TRINDADE, André; KARAM, Henriete. Ex fabula ius oritur: Antígona e o direito

que vem da literatura. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria

do Direito (RECHTD). Unisinos, Julho-dez, 2013. p. 196-203.

COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

Programa Lugares da Memória. Cemitério Dom Bosco. Memorial da Resistência

de São Paulo, São Paulo, 2014.