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    MEMRIA DO SAGRADOEstudos de religio e ritual

    Carlos Rodrigues Brando

    Nem? Nem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo louco. O senhor, eu, ns, as pessoas todas. Porisso que se carece principalmente de religio: paradesendoidecer, desdoidar. Reza que sara a loucura. Nogeral. Isso que a salvao-da-alma... muita religio, seu

    moo! Eu c, no perco ocasio de religio. Aproveito detodas. Bebo gua de todo rio... Uma s, para mim pouca,talvez no me chegue. Rezo cristo, catlico, embrenho acerto; e aceito as preces de compadre meu Quelemm,doutrina dele, de Cardque, Mas, quando posso, vou noMindubim, onde um Matias crente, metodista: a gente seacusa de pecador, l alto a Bblia, e ora, cantando hinosbelos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquersombrinha me refresca. Mas tudo muito provisrio. Euqueria rezar o tempo todo. Muita gente no me aprova,acham que lei de Deus privilgios, invarivel. E eu! Bof!Detesto! O que sou? o que fao, que quero, muito curial.E em cara de todos fao, executado. Eu? no tresmalho!

    Riobaldo, dito Tatarana, em Grande Serto, Veredas, escrito porJoo Guimares Rosa

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    NDICE

    CRER, REZAR, FESTAR, DANAR

    Captulo IMEMRIA DO SAGRADOCOMO A RELIGIO ACONTECE?

    Uma histria de serto1. Os moradores caipiras2. Os donos do caf3. As invases da cana4. As gentes do lugar

    A capela e a Igreja, as igrejas1. A religio dos camponeses2. A Igreja dos fazendeiros3. Camponeses e colonos, escravos e operrios4. Heresia popular e cisma burgus5. Pastores e mdiuns em Itapira6. Os tempos do secular

    As muitas moradas1. As novas igrejas2. As igrejas de Baixo3. Pais-de-santo, curandeiros, benzedores4. Variaes catlicas

    Captulo IIO NMERO DOS ELEITOSOS SALVOS SE CONTAM E SE EXPLICAM

    Monte-Mor, batatas e cruzes

    A produo do sagradoa) Os catlicosb) Os protestantesc) Os pentecostaisd) os espritas e as religies sem igreja

    Igrejas, agentes e fiisa) As relaes das quantidadesb) As relaes e os usos da f

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    As representaes da santidade

    Captulo IIIEM NOME DE SANTOS REIS

    VIAGENS DE UM RITUAL CAMPONS ENTRE PODERES DA IGREJACatolicismo popular e pastoral popular

    Folias, padres e foliesa. O ritual da Foliab. Cantos e danas diante do altarc. Deixemos danarem esses ndiosd. Do altar ao adro, do adro rua

    De folies a companheiros de caminhada?a. Estranhos fatos recentesb. Compromisso ou submisso?

    Captulo IVA FESTA DO ESPRITO SANTO NA CASA DE SO JOSSERVOS E SENHORES COMEM E CANTAM

    Introduo

    A festa do Esprito Santo em MossmedesFesta e ritual

    Os acontecimentos da Festa do DivinoA Folia do Esprito SantoA Festa da IgrejaO Rancho Alegre

    A ordem do ritual: Relaes e posies na festaA festa como religio

    A festa como um festejo

    Festa do Esprito Santo

    Captulo VA DANA DOS CONGOSESSES NEGROS NA RUA, NO MEIO DA PRAA...

    Esses negros na rua...

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    As verses locais sobre um ritual de negrosa. Origem e significado: verses de brancos e pretosb. As impresses da decadnciaSociedade e ritual: as articulaes sociais da dana dos congosa. As relaes internas: parentes, pedreiros e guerreirosb. As relaes externas: congos, brancos e padres

    As sequncias da dana dos congosa. Desafio-luta-reconciliaob. Congos e congadas: rituais do bem e do mal

    A fala dos Congos: identidade de negros e f de cristoa. Brancos e negros: o nvel das relaes intertnicasb. Cristos e no-cristos: o nvel da crena

    Guerreiros a p, guerreiros a cavalo: congos e cavaleiros

    ANEXO

    A DANA DOS CONGOS DA CIDADE DE GOIS

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    INTRODUO

    CRER, REZAR, FESTAR, DANAR

    fala de Riobaldo Tatarana d o que pensar. No porque seja a dele, jaguno terrveleirado entre armas e mortes, viajeiro errante em tropa de bravos por sertes e gerais, atquando um dia parou tudo e disse: existe o homem humano. Travessia, e viroubarranqueiro nas beiras do So Francisco. No que a fala fosse de um que disse a Deus queviesse armado, depois de declarar que, de religio, quanto mais melhor. Serto, O senhorsabe: serto onde manda quem forte, com as astcias. Deus mesmo, quando vier, que

    venha armado.D o que pensar porque uma fala que as pessoas do povo parece que escondem de

    quem pergunta, mas cada vez mais usam para viver. Religio? Muitas. De resto, sendo de fe no vindo do maligno, so todas boas. Por isso mesmo, entre surtos e ritos elas se recriamno campo e multiplicam nas beiras da cidade. Homens e mulheres com quem conversei emreas posseiras do Norte, entre lavradores de So Paulo, camponeses de Gois e garimpeirosde Minas, assim como entre moradores migrantes das pontas de rua de toda a parte,disseram a mesma coisa. Houve uma s no tempo dos antigos, mas hoje h muitas e, se deum lado a diversidade amedronta, de outro a diferena ajuda. Tambm os perigos do mundoso agora maiores e mais terrveis, de modo que, de assuntos do sagrado, quanto mais melhor.Fui catlico, fui de outras ... Igreja? aproveito de todas, ouvi muitas vezes e no entre

    jagunos, mas entre outros guerreiros, sujeitos desarmados e desvalidos do cotidianosubalterno.

    Na periferia de cidades de So Paulo, Minas e Gois, aos poucos fui percebendomodos populares de se viver entre a cultura e a crena, a que Duglas Teixeira Monteiro haviaantes chamado a minha ateno. Fora da viso estreita a que a cincia reduz s vezes a facereligiosa da cultura popular, a afiliao religiosa, o imaginrio do sagrado e a vivnciaindividual e coletiva da f possuem muitos caminhos. Eles podem ir, da participaopraticante e no raro quase fantica, a uma nica pequena igreja de bairro, ao viver a crenacom as mesmas estratgias de sobrevivncia com que se vivem outros assuntos v ameaas davida subalterna. A vida cotidiana daqueles a quem os ferros da opresso obrigam aqui e ali ano se crer mais em uma nica a religio, para no se perder de todo a f na religio.

    Difcil pensar que os assuntos da religio popular so apenas os sinais de um dosmodos do grito da conscincia oprimida. So, mas no s. E para no viver de repetirfrmulas, este pode ser o tempo de procurar compreender o que a religio na culturapopular, quando no s aquele grito, ou quando ela se reveste de ser outras coisas, parapoder ser tambm aquele grito.

    Deuses h sempre, santos mais ainda, e modos coletivos de crer, ainda mais. Quandouma forma cultural de crer nos mistrios do sagrado morre entre camponeses ou operrios, elanem sempre d lugar ao seu oposto, mas a formas novas, ou recriao das antigas, de modoa que, reinventados, eles possam ser de novo amados e acreditados. necessrio um forte

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    esforo de esquecimento terico para separar da vida cotidiana das pessoas reais e dosmomentos vividos dos mais diferentes tipos de sujeitos populares, o teor e a fora da presenadas incontveis modalidades de experincias culturais de trocas com o sagrado.

    MEMRIA DO SAGRADO rene cinco estudos que no so mais do que buscas desituaes, cdigos e falas, onde a cultura aparece como religio, s vezes s claras, notrabalho e no poder de agentes religiosos dominantes, s vezes simbolicamente escondida,reservada aos dias de festa, ou submersa em outras prticas da vida, to vivas quanto elaprpria.

    O primeiro estudo o que d nome ao conjunto. Ali no fao mais do que contar umahistria. A de como a religio acontece em uma cidade do interior do Brasil, desde o tempodos lavradores caipiras do bairro dos Macucos, at o tempo das pequenas igrejas pentecostaisdas ruas do Risca Faca, para onde os camponeses do passado migram com a famlia,transformados em lavradores volantes do corte de cana. Rezadores, padres vigrios, profetasde esquina, curandeiros, pastores, mdiuns e mes-de-santo so convocados a dizer comosurgiram e como lutaram entre si e com outros, para no fim das contas repartirem as pessoasdo lugar e construrem o que chamei de um campo religioso. Procurando compreender no ahistria local e a estrutura de poder e trabalho simblico de um nico grupo religioso, como

    tem sido feito repetidamente. Busquei explicar a histria do que aconteceu entre todos osgrupos religiosos de Itapira, uma cidade do interior de So Paulo.

    O numero dos eleitos o resultado de uma pesquisa de campo feita em Monte Mor,uma pequena cidade de economia agrria que, depois de existir muitos janeiros entre tomatese batatas que os primeiros migrantes alemes trouxeram, viu chegarem em poucos anosfbricas, patres e operrios. Ao contrrio do que realizei no primeiro estudo, sem qualquerpreocupao sistemtica de fazer a histria do mundo religioso do lugar, busquei antes dizerquem so os sujeitos que afinal se afiliam a cada unidade confessional da cidade, e como osseus agentes de culto desenham o mapa simblico dos redutos da f, para marcarem no centrodele o lugar de sua prpria crena, de sua igreja.

    Depois de dois estudos realizados em So Paulo e concentrados em uma histria e em

    um universo classificatrio de smbolos no restrito a qualquer grupo confessional nico, ostrs escritos seguintes voltam a ser sobre um dos temas a que tenho me dedicado com maisempenho nos ltimos anos: os festejos e os rituais do catolicismo popular.

    Em nome dos Santos Reis, frmula com que muitas vezes se apresentam osincontveis ternos de folias de Reis que, entre Natal e 6 de janeiro, viajam trilhas de barro porcasas e bairros de moradores camponeses, descreve relaes de poder e estratgias deresistncia entre uma cerimnia devota muito antiga e ainda hoje extraordinariamentepersistente no Brasil, e os agentes eclesisticos da igreja catlica: os que no passadotrouxeram e trabalharam por tornar legtima e poderosa uma igreja colonialista; os que raros ainda, mas profeticamente crescentes trabalham por descobrir agora os sinais de umaigreja popular. Assim como o rito que escolhi uma viagem devota entre casas, o estudo

    sobre as trocas do rito uma viagem curiosa entre tempos e atos sucessivos de criaopopular, apropriao e expropriao cannica, resistncia popular e reintegrao eclesistica.

    A festa do Esprito Santo na Casa de So Jos recupera os dados de dois momentosde campo vividos em Mossmedes, Gois, para discutir relaes de alegria e poder, mastambm de f e solidariedade, no mais entre agentes populares da festa e sujeitos da Igrejacatlica, mas agora entre diferentes tipos de sujeitos sociais no interior da mesma festa e, aseu modo, da mesma crena.

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    Talvez o terno de congos de Jos de Arruda no percorra mais as ruas da Cidade deGois at chegar ao largo fronteiro Igreja do Rosrio. Por duas vezes estive entre eles,negros, mulatos e raros brancos, guerreiros armados de marimbas e espadas e divididos entreinvasores e invadidos. Ao descrever em A Dana dos Congos quem so, o que pensamsobre o que fazem quando se revestem de pedreiros em atores, e o que dizem, cantam edanam entre marchas de rua, e embaixadas de guerra, procuro afinal falar sobre uma

    questo que atravessa com variaes o fio de todos os estudos anteriores. De que modo, maisdo que uma ideologia de classe atravs da religio, sinais e smbolos do sagrado ajudam aescrever a face mais imaginria da identidade e do modo de vida de to diferentes tipos degrupos e pessoas das classes populares?

    Campinas, 21 de maro de 1983

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    CAPTULO I

    MEMRIA DO SAGRADO

    COMO A RELIGIO ACONTECE?

    Deus no disse na sua santa e bendita palavra: na casa de meu Paitem muitas moradas? Pois so as muitas igrejas dele, meu filho: asque tinha, que tem agora e que vai ter ainda. Tem muitas, de diversostipos, mas nem todas so de Deus no. Mas no dia do Juzo Final,no todas que vai subir no, meu filho. Um velho crente

    Este estudo dedicado a dois agentes de religio em Itapira. Mais doque informantes, foram amigos e morreram alguns meses depois determinado o trabalho de campo: Slvio, presbtero da IgrejaPentecostal Boas Novas de Alegria, e Lzaro, dito Lazo, dito Zico,dito tambm Lazo, rezador de tero, sambador e embaixador daCongada Tradicional de Itapira.

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    UMA HISTRIA DE SERTO

    Tal como no poema de Joo Cabral de Meio Neto, so vrios os planos de ver paraquem olha o mundo do alto do Parque Juca Mulato em Itapira1. Azuladas pela distncia e bem frente do olhar do viajante, h montanhas de Minas Gerais. Quando perguntado sobre o quese esconde atrs delas, o morador da cidade dir: ali Minas, com um gesto familiar que

    denuncia, para com o vizinho, uma intimidade que ele mesmo acredita nem sempre repartircom uma grande poro do seu prprio estado, alm da Mogiana e de Campinas. Em direo direita as mesmas montanhas mineiras entram por lia Paulo adentro e se recobrem deestranhas fontes minerais que formam o circuito das guas paulistas prximo capital:Serra Negra, Lindia, Amparo e Socorro.

    No interior de um plano mais imediato, entre as montanhas e a cidade, o viajanteavista morros de pasto e plantaes; o que sobra da invaso dos tapetes verdes e onduladosdos canaviais, cujas queimadas de setembro desenham quadros de fogo e fumaa numhorizonte to perto, que a cor dos novelos escuros de fumo chega quase junto com o cheiroforte do queimado e os estalidos das folhas de cana quando queimam. Mais esquerda dacidade e em direo ao Sul, a mesma cana de Itapira estende-se livre de obstculos at fazer afronteira com os tabuleiros de Mogi-Mirim e de Mogi-Guau. Em alguns lugares de maisperto ela encosta na periferia urbana e ameaa invadir at mesmo as ruas de moradia2. Emoutros ela toca, como um inimigo, as roas dos stios, inmeros e pequenos a que resistemcada vez com menos armas ainda ao seu avano. Resistem com mais empenho a Leste, onde omunicpio acolhe, concentrados no pouco espao disponvel, os ltimos bairros rurais. A meiocaminho entre os stios e a Usina Nossa Senhora da Aparecida, fora os quadrados da cana,tudo o que existe para se ver so alguns bosques de eucaliptos, restos de capes de mata,pastos cercados, pores pequenas de lavouras de milho, de caf, de algum algodo, laranjaise as coisas de horta.

    O Parque Juca Mulato o limite da parte alta dos espaos urbanos de Itapira.Baixando a cabea, o viajante descobre sua frente os bairros de baixo, separados dos decima pelo Ribeiro da Penha e pelo morro, a barroca, o barroco, a mesma antiga

    penha que ajudou os moradores caipiras a inventarem os primeiros nomes do lugar: Penha

    1 Joo Cabral de Melo Neto, De um avio (1963). Mas o escritor da cidade outro, Menochi del Pichia. Eleviveu, trabalhou e escreveu em Itapira durante vrios anos. O Parque Juca Mulato a lembrana da lenda de queali, nas tardes e ao pr do sol, ele escreveu o seu poema mais conhecido. Para os efeitos deste estudo melhorler, no entanto, A longa viagem (1972) e O dente de ouro (1923). De acordo com alguns leitores do lugar, opoeta fez neste ltimo romance a crtica de Itapira no seu tempo.2 A tal ponto a cana encosta na cidade, que ao longo do tempo da estiagem e da safra, uma fuligem negra cobreas ruas, os telhados e mesmo o interior de casas mal fechadas. Durante alguns meses do ano de 1977 o problema,tornado ponto de atrito entre a Prefeitura, a Cmara Municipal e a Usina, andou entre as manchetes dos doisjornais da cidade em pelo menos trs domingos (Queima dos canaviais Comisso de Justia da Cmara julgainconstitucional o projeto do Prefeito, CI Cidade de Itapira 31.07.1977, n. 4052; Prefeito afirma: Projetosobre a queima da cana rejeitado por 8 a 4, CI, 14.08.1977, n.4054). O Prefeito encaminhou projeto Cmara

    tornando proibida a queima da cana dentro de um permetro de at 7km da cidade. Depois de muita discussonas ruas e no plenrio, o projeto foi rejeitado. A polmica sobre o assunto durou algumas semanas ainda. Algunsporta-vozes da elite agrria acusam o prefeito de ser inimigo da Usina e de prejudicar, com isso, o progressode Itapira. O presidente da Cmara de Vereadores parente da atual proprietria da Usina, a viva doComendador Vergolino de Oliveira. Perdida a causa da Prefeitura em nome dos defensores da livre queima,algumas pessoas deixaram em frente ao local da deciso municipal um protesto simblico. Aps a sesso daCmara, quando os vereadores e o pblico retiravam-se do recinto, foi constatado um fato deplorvel e de muitomau gosto, constituindo-se mesmo uma autntica molecagem, ou seja, foi colocado defronte ao prdio dolegislativo itapirense um monte de cana, em sinal de protesto, jogado no meio da rua, um protesto que no sejustificava naquela ocasio, pois a vontade soberana do povo foi manifestada pelos seus ldimos representantesna Cmara Municipal de Itapira pelo voto democrtico (Cidade de Itapira, 14.08.1977, n.4054, p.1).

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    de Mogy Mirim e Penha do Rio do Peixe. preciso descrever com um pouco mais de cuidadoeste pequeno mundo. Quase tudo o que falo daqui em diante aconteceu nele, ou contra ele.

    Abaixo da barroca do Parque, entre um dos extremos urbanos da cidade e o lugarrural dos stios o viajante avista, no meio das chamins das olarias e da pequena torre dacapela de Nossa Senhora de Aparecida, o bairro dos Prados (ou Bairro dos Prado, segundooutros). Ele j foi roa e foi onde moraram os sitiantes que um dia descobriram as suaspoucas terras envolvidas de casas, ruas e uma avenida de sada da cidade. Hoje os sitiantesdividem o bairro com operrios, donos de bar e venda e os primeiros bias-frias, os queinvadem o lugar pelos fundos. Mais esquerda fica o Cubato, o maior dos bairros de baixoe o das ruas onde a cidade nasceu, entre casas de fazendeiros, sitiantes e outras gentes depoucas posses e ambies, at quando os primeiros donos do caf subiram o Morro da Penhapara construrem em cima uma igreja, uma cadeia e as primeiras casas de taipa.

    Entre a Avenida Conselheiro Laurindo e a Comendador Vergolino de Oliveira acidade esparrama em aparente desordem inmeras casas do alto do Parque, coloridas, deperto, pobres e apertadas das famlias dos trabalhadores volantes da cana, do caf e doalgodo; uma gente nascida em Itapira ou migrante dos muitos cantos de So Paulo e deMinas Gerais. Eles so a gente da lavoura e repartem com operrios da Usina e das fbricas

    da Mogiana: a Vila Ilse, a Vila Isaura, o Paranazinho e outros lugares de moradia proletria,desdobrados das duas vilas. Lugares que frente ao crescimento acelerado de casas e pessoasno encontram outro remdio seno o de subirem os morros ao norte, empurrando cada vezmais os espaos da cidade em direo a Minas. Ao contrrio daquele que termina no JucaMulato, este em cima do outro lado do Ribeiro da Penha foi invadido pelas pequenasfavelas de Itapira3.

    Por entre a palha dos canaviais o viajante reconhecer as chamins altas e sempreenfumaadas da Usina, orgulho agrrio da regio e o lugar de trabalho de muita gente dosbairros de baixo. Menor e mais rica, ali existe uma quase outra cidade. Em direo oposta serpreciso esticar os olhos e imaginar, para os lados de Mogi-Mirim, o Murro do Gravi, onde osmoradores de Itapira colocaram num monumento em memria dos seus mortos que, na

    Revoluo de 32, travaram dentro do municpio alguns combates ferozes contra forasfederais invasoras.

    Se ele perguntar pelo nome do que avista, ficar sabendo que algumas das coisasmaiores e mais importantes usam palavras do sagrado. A usina de Nossa Senhora daAparecida e a fbrica de papel, de Nossa Senhora da Penha. Senhora da Aparecida,Comendador Vergolino de Oliveira, Vila Ilse, Vila Isaura. Os donos colocam em suasposses os nomes dos seus santos; os pobres moram e transitam pelos nomes dos seus donos 4.

    Por esses bairros, roas, campos e lavouras de caf ou de cana, viveram e trocaramservios e smbolos: camponeses caipiras pioneiros sitiantes ou posseiros das primeirasterras do serto do lugar; senhores e os seus escravos; coronis e os seus colonos; fazendeirose os seus agregados e camaradas; usineiros, fornecedores, turmeiros e os seus volantes bias-

    frias. Sem reconstruir uma histria, procuro como surgiram, trabalharam e se dividiramsocialmente no lugar os tipos de sujeitos de quem o conhecimento da prtica econmica e da

    3 O viajante que descer aos bairros de baixo aprender depressa, em qualquer bar de esquina, que deve falarVila Ilse ao invs de Risca-Faca (nome, no entanto, mais usado), e gente da lavoura, em lugar de bia-fria (que ningum usa). O principal produtor direto da riqueza agrria do lugar precisa reclamar com freqnciacontra os nomes com que os outros tratam a sua ocupao e o seu local de moradia.4 A longa avenida que sai da cidade, passa por uma das fbricas de papel e papelo e vai ao porto da U.N.S.A.chama-se Comendador Vergolino de Oliveira, o fazendeiro criador da grande usina. As duas vilas de residnciada maior parte da gente da lavoura chamam-se Ilse e lsaura, nomes de duas filhas do comendador.

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    posio na sociedade importante aqui, na medida em que ajuda a explicar as suas crenas, osseus interesses e as suas pequenas lutas de religio.

    1. Os moradores caipiras

    Em direo ao sul de Minas, Itapira um dos limites da economia do caf do primeirooeste paulista5. J um pouco onduladas, as terras do atual municpio podiam ser aindaaproveitadas para o caf, o algodo e a cana. Elas ficavam um pouco alm da margem direitado roteiro do Anhanguera, ao longo de onde houve sesmarias e povoados desde osprimeiros anos do sculo XVII6. Ficavam tambm do lado oposto ao de um territrio paulistade vertiginoso desenvolvimento agrrio, aps a incorporao do caf economia de mercadodos produtos da agricultura. Esta regio vai de Mogi-Mirim a Rio Claro, em direo aoscampos de Araraquara e de Ribeiro Preto.

    As relaes sociais de produo praticadas nas terras do atual municpio constituram,primeiro, a relativa autonomia agrcola da pequena policultura caipira dos posseiros eproprietrios que chegaram regio. Responderam, depois, pelo domnio de fazendeiros-coronis sobre trs tipos de produtores que os serviram sucessivamente: o escravo, o lavrador(inclusive o colono) e o proletrio rural7.

    Os antigos e os atuais cronistas de Itapira costumam falar com mais detalhes sobre acidade depois da chegada dos primeiros senhores do caf. No entanto, as notcias dasprimeiras doaes de terras a leste de Mogi-Mirim lembram que viveram ali, entre bairrosrurais, stios e fazendas, moradores caipiras, camponeses de terras doadas ou simplesmenteocupadas por produtores diretos de pequenas lavouras de subsistncia ou de venda emmercados regionais8.

    A cidade originou-se possivelmente de um dos bairros rurais, o dos Macucos, cujosmoradores teriam introduzido a cana, junto com as lavouras do serto: milho, feijo,mandioca, fumo, mamona, algodo e arroz, sem nunca terem conseguido produzir, no entanto,uma efetiva economia para o grande mercado.

    As dimenses da economia e dos servios polticos desta populao primitiva demoradores camponeses no podem ser compreendidas com um exame restrito ao mbito das

    5 Sobre os dois oestes paulistas da expanso do caf, consultar Octvio Ianni (1976). O primeiro deles, do qual aregio de Itapira pode ser considerada como um dos extremos em direo a Minas Gerais, teve a sua sede emCampinas. O segundo, em Ribeiro Preto.6 , portanto, a derrota seguida pelo Anhanguera em 1722 e de novo, agora, cm 1726 que passa a atrair asatenes, tanto das autoridades quanto de particulares. E ser esse caminho usado da por diante, com aconseqncia para a ocupao do solo hoje paulista de se estabelecerem a vrios centros de irradiao oufrente de povoamento no setor por ele percorrido: Mogi-Guau e Mirim, Casa Branca, Batatais, Franca. (MarioNeme, 1974:23)7 Entre os primeiros povoadores da regio havia posseiros de stios e de fazendas. Todos produziam, no entanto,

    como camponeses, ou seja, atravs cio trabalho direto da famlia do proprietrio, ou atravs de modalidades detrabalho voluntrio e coletivo. S depois da capitalizao do setor agrrio que chegam a Itapira os primeirosfazendeiros-coronis formadores da elite agrria. So estes grandes proprietrios de terras, senhores de grandeslavouras para mercado e apropriadores de fora de trabalho, os que se titulavam tradicionalmente comocoronis ou como comendadores.8 H notcias de doaes de terras no atual municpio de Mogi-Mirim pelo menos o ano de 1668. H refernciasmais precisas a partir do ano de 1707. Assim, antes mesmo do estabelecimento do roteiro do Anhanguera emdireo s minas de ouro de Gois, houve sesmarias e moradores esparramados por toda a regio da atualMogiana (Mario Neme, 1974:7). O primeiro documento de doao de terras na regio de Itapira data de 1716.Foram terras de sesmarias dadas a Manuel Pereira, o velho (Museu Histrico e Pedaggico ComendadorVergolino de Oliveira, doc. datilografado, p. 1).

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    trocas processadas dentro dos limites das prprias comunidades locais. Para todo o espaopioneiro dos dois oestes paulistas, vale a lembrana de que as franjas camponesas deconquista de moradores caipiras estabeleciam os limites entre as grandes propriedadesagrrias de produo mercantil e o serto ainda inexplorado e que, a bem da verdade, foiconquistado mais pelo trabalho destes pioneiros de p-no-cho, do que pelo dos audazesbandeirantes. At chegada dos senhores de escravos, a franja rstica dos moradores e

    posseiros ocupava efetivamente pores de territrio da regio e respondia distncia pordois desempenhos a servio dos interesses da expanso do capitalismo agrrio. Ela desenhavae mantinha, com os seus prprios recursos, um espao de defesa entre a grande propriedade eo serto, assumindo a tarefa de aniquilar os ndios ou empurr-los para mais adiante. Elacriava por antecipao, com o trabalho de derrubada de matas, queima de florestas e o preparodo solo, o espao de produo das futuras grandes lavouras do caf, do algodo e da cana.

    2. Os donos do caf

    Foi sistematicamente dentro dos territrios antes trabalhados com as prticas militares,tecnolgicas e econmicas das franjas camponesas, que as grandes fazendas foram sendo

    estabelecidas: a) sobre terras de sesmarias, quando o ingresso do capital na agriculturapaulista tornou realizvel a sua ocupao; b) atravs das compras de partes de sesmariasprimitivas, quase nunca efetivamente ocupadas pelos seus posseiros anteriores, feitas pelosgrandes fazendeiros; c) pela compra e/ou usurpao de pequenas propriedades contguas,cujos donos posseiros no raro, transformavam-se em trabalhadores agregados da novafazenda, quando no migravam, para reproduzirem em um outro serto os mesmos serviosde pioneiros provisrios.

    Ao fazer o exame das relaes de produo das antigas fazendas de caf e de cana domunicpio de Rio Claro, Warren Dean (1977:77) rene uma srie de observaes que podemser aplicadas tambm Mogiana. No processo original de ocupao do territrio, osdonatrios das maiores sesmarias conservaram as melhores terras e empurraram os lavradores

    caipiras serto adentro. Dado que as grandes lavouras de mercado eram muito predatrias, osfazendeiros deslocavam continuamente as suas posses e os seus trabalhadores em direo aosespaos ocupados pela fronteira camponesa, formando-se ento uma espcie de frente mvelde dupla ocupao. Ora, como estes sertes mais prximos ao avano do caf e da canaestavam sempre ocupados por posseiros caipiras, a conquista das fazendas era, de um modoou de outro, um ato de expropriao. So tambm explicaes conjunturais como estas as quefornecem razes para o predomnio da violncia nas relaes sociais, como as que MariaSylvia de Carvalho Franco encontrou e descreveu no Vale do Paraba (1969), e DuglasTeixeira Monteiro na regio do Contestado (1974)9.

    De forma diferente do que aconteceu em Campinas e em outras reas do roteiro doAnhanguera, a antiga Penha do Rio do Peixe no gerou de incio grandes lavouras de cana,produtoras de acar e aguardente em dimenso de mercado. No entanto, mesmo para as

    primeiras regies de cana em So Paulo, preciso no esquecer que o segundo surtoaucareiro no pas dado a partir de 1880 e decorre da poltica oficial de incentivo aosengenhos centrais (Gnacarini, 1972:122). A economia local passou da produo de policulturaem escala de subsistncia e mercado restrito, para o sistema caracterstico das sociedades

    9 O prprio Dean apresenta nmeros que confirmam a tese do predomnio da violncia na passagem das frentespioneiras e, sobretudo, durante o perodo de fixao das grandes fazendas. No ano de 1835 a taxa de crimes parao Estado cio So Paula f ai de 32 em 1 .000. No mesmo perodo, em Rio Claro, ela atingiu 176 em 1.000 (1977:36).

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    escravocratas do caf. Foi de fato muito marcante o contraste entre a condio da sociedadecamponesa anterior e a que em pouco tempo se instalou com a chegada do primeiro coroneldono de escravos10.

    O ingresso do caf representou tambm o estabelecimento local do trabalho servil,como produtor direto das riquezas da economia capitalista agrria. Tal como em outrasregies de So Paulo, o homem livre no foi inicialmente ocupado nas grandes lavouras decaf. Mas a concorrncia do escravo no eliminou da regio o pequeno produtor campons.Ele continuou trabalhando em suas terras, ou passou a ser um agregado parceiro das fazendasde caf. De qualquer forma o destino dos moradores caipiras foi redefinido. Parte da produodos pequenos stios e fazendas comeou a ser dirigida subsistncia de moradores de umacidade que cresceu depressa depois de 1842. Alguns pequenos proprietrios arriscaramplantar tambm para o grande mercado e alguns poucos conheceram uma relativaprosperidade. Muito embora o interesse do capital determinasse a concentrao dapropriedade fundiria a exemplo do que fez de sada o primeiro coronel do caf inmeros stios foram mantidos em toda a regio, sobretudo onde o relevo do terreno tornavamenos rentveis grandes lavouras11.

    Outros camponeses produtores familiares foram forados ou preferiram vender

    as suas terras, quando no as tiveram usurpadas por grandes fazendeiros que, no raro,chegavam regio com ttulos de propriedade nas mos. Foram eles os que se incorporarams grandes fazendas do caf, como moradores, trabalhadores ou parceiros, a quem ainda sepermitiu, durante algum tempo a posse provisria de pores de terra para o plantio delavouras de subsistncia. Quando se afirma hoje em dia que as grandes fazendas paulistas dopassado foram unidades quase autnomas de produo dos seus prprios recursos dealimentao, vestimenta e moradia, em boa medida sobre o trabalho desses camponesesexpropriados que se est falando12. Quando depois de 1888 os escravos saram em massa das

    10 Um documento datado de 1864 e escrito por iniciativa do prprio primeiro fazendeiro-coronel d a medida decomo a elite agrria define as comunidades camponesas e defende os seus direitos.A Camara Municipal de Vilia da... em Sesso de hoje resolvo que se attestasse o/ o Suplicante Joo Batista de

    Arajo Cintra/ seguinte que em mil oitocentos e quarenta mudou-se para o Destricto dsta Villa/ que entohera Curato tendo meia dzia de casas insig/nificantes, e construdas de madeiras r, sem alinhamento, tendo ellej fortuna comeou a influar/ o povo que appkcava-se na criao de porcos, assim como para edificarem casas napovoa/o, dando elle exemplo em construir casas de tai/pas, e de bom gosto de modo que o augmento da/povoao foi rpido e por isso foi logo elevada a Freguesia e mais depois em mil oitocentos e cin/coenta e oito Villa. (Doc. do Pao da Cmara Municipal da Villa da Penha, sesso de 6.11.1861, Museu Histrico ePedaggico Comendador Virgolino de Oliveira.)O Comendador chegou a Itapira para abrir fazendas de caf. Por ocasio do documento transcrito acima, elepossua na regio: trez fazendas com cultivo de caf, com mais de cem escravos vrias casas de muito bomgosto nsta Villa (Doc. 6.11.1864).11 De um total de 646 propriedades cadastradas em 1970, 479 tm menos de 50 ha e 343 tm menos de 20 ha.Por outro lado, 112 tm mais de 100 ha e 19 so fazendas de mais de 500 ha. No ponto extremo da concentraofundiria, duas grandes propriedades totalizam 5 917 ha (IBGE, Censo agropecurio, So Paulo, vol. 1H, tomoXVJII, 1 parte). Grande parte das fazendas foram desmembradas e vendidas at mesmo aos colonos. Em 1937

    era a seguinte a relao entre origem do produtor e nmero de propriedades: 605 fazendeiros e sitiantes nacionaisconcentravam 16.805 alqueires; 204 proprietrios europeus italianos em maioria, e alguns portugueses, srios,alemes, austracos concentravam 3. 106 alqueires. Cerca de 40% dos proprietrios rurais de ento haviamsido colonos.12 Muito mais do que a cana, o caf se associa ao cultivo das culturas tradicionais de subsistncia: primeiro,porque era plantado em grandes propriedades cujas florestas podiam ser derrubadas e usadas inicialmente paraplantio do milho, feijo, arroz, fumo e mandioca; segundo, porque entre as suas ruas o caf pode serconsorciado com outras lavouras, prtica alis muito comum em toda a regio no passado. Em 1910 houvenotcias de uma primeira revolta de colonos contra um fazendeiro em Itapira, porque, ao contrrio do que haviasido contratado, ele resolvera proibir a plantao consorciada de milho e feijo para o sustento das famlias doscolonos (Cidade de Itapira, 25.091910, o. 237, p. 2).

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    fazendas, os moradores caipiras trabalharam ao lado dos colonos que j haviam chegado aItapira antes mesmo da Abolio. Depois de 1880, quando o valor do caf e, logo depois, o dacana, tornou vantajoso o uso exclusivo de quase todas as terras para lavouras de mercado,esses camponeses comearam a ser expulsos das fazendas para a cidade. Voltariam a elasaps a quebra do caf, primeiro como camaradas e, mais tarde, como trabalhadores volantes.Finalmente, alguns camponeses expropriados saram da regio somando-se s levas de

    migrantes vindos de Minas Gerais, do Vale do Paraba e de outras reas anteriores de plantiodo caf. Desde anos posteriores a 1840 eles formaram parte da franja de lavradores e decamponeses que antecederam a marcha do caf, nos limites entre Araraquara e RibeiroPreto.

    A partir de 1850 Itapira um povoado prspero13. Quando ela j havia constitudo umperfil de vida urbana, antigos moradores dos stios rurais mudaram-se para a periferia dacidade e, em muitos casos, tambm para o trabalho urbano, formando, ao lado de antigosescravos e de colonos, sobretudo depois de 1890, um primeiro contingente de trabalhadoresde fbricas, usinas e lavoura, O nmero deles aumentou depois do acesso da cana posio delavoura dominante e aps um modesto surto de transferncia de capital agrrio para a pequenaindstria da regio. As transformaes econmicas e polticas durante o domnio do caf e napassagem dele para o da cana, fizeram a histria da diferenciao das relaes de produo edas categorias de produtores, atravs de sucessivas desarticulaes de sistemas do trabalho, dacirculao e do consumo de bens e de servios: da comunidade camponesa para a sociedadeescravocrata do caf; desta sociedade para a do trabalho livre sob o regime do colonato coexistindo as duas em Itapira, por alguns anos; desta terceira para a do trabalho assalariadodos produtores volantes da cana-de-acar.

    3. As invases da cana

    Os colonos europeus chegaram a Ittapira antes da entrada da cana e antes da sada dosescravos. Eles existiram nas fazendas de caf e os italianos chegaram a ser muito numerosos.

    Depois de 1888, as previses de catstrofe econmica dos fazendeiros mais reacionrios noforam confirmadas. A substituio do escravo pelo colono modificou em muito pouco aescala de ganhos das grandes fazendas. Foi exatamente o perodo de ps-abolio aquele quelevou, pelo menos at cerca de 1925, a economia de Itapira aos seus melhores momentos.Neste sentido a Mogiana acompanha a trajetria da economia paulista, cuja efetivamonetarizao posterior a 1880 e decorre do caf (Gnacarini, 1972:124). Passado este tempode grande prosperidade, houve uma trplice tendncia na reaplicao do capital obtido com acomercializao do caf: 1) em uma diversificao de produtos agrcolas substitutivos, oalgodo, a policultura de subsistncia e, finalmente, a cana14; 2) ainda no caf, em novas

    13 Em 1858 a Penha do Rio do Peixe foi desmembrada do Municpio de Mogi-Mirim e em 1881 foi elevada acidade. Este foi o comeo de um perodo de notvel desenvolvimento. Em 1882 foi concludo o ramal ferrovirio

    entre as duas cidades. Um dos acompanhantes da visita pastoral do Conde D. Nery, em 1910, escreveu depoisem um dos jornais de Campinas palavras de raro entusiasmo sobre a riqueza e o crescimento da cidade.Que Itapira a primeira cidade de So Paulo sob muitos aspectos, uma afirmao de grande verdade. E no s para os que vm de Minas como acrescentam os espirituosos daquela terra. Para comprovar a importnciadesse centro de atividade, basta-nos a permanncia de dois ou trs dias ali, merc de observaes feitas a voldoiseau. ... O viajor que a contempla, avistando esse pitoresco agrupamento de casas, em forma de amphiteatro,admira-o desde logo e desde logo se lhe grava na retina a imagem admirvel do burgo florescente. (Omensageiro, 19.021911, n. 90, p. 2)14 At hoje a agricultura mercantil est concentrada sobre o caf e a cana. Das lavouras de mercado, apenas oalgodo perdeu em muito a sua posio. De uma produo cujo valor total foi de Cr$ 154.811.601,00 em 1976,para o setor agrrio, o caf e a cana responderam juntos por Cr$ 129.338.401,00. sem cantar com os rendimentos

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    lavouras dentro e em lavouras fora do municpio, em direo a Araraquara; 3) na indstrialocal.

    Sempre houve plantaes de cana no municpio. Por toda a parte ela era usada para afabricao local de acar e aguardente. Mas como um produto para o grande mercado a canainvadiu Itapira a partir de 1920 e as modificaes dos nmeros a seu favor so apenasrelativos. No fosse a grande Usina Nossa Senhora da Aparecida e ela no seria at hoje senoo segundo produto da economia agrria, depois do caf15. De qualquer modo, a lavouracanavieira e a presena de agroindstrias no municpio e em toda a Mogiana redefiniramcategorias de produtores e de relaes entre eles. Poucos foram os que conseguiram fazer desuas fazendas e engenhos as grandes usinas de agora, como o Comendador Virgolino deOliveira, que os itapirenses mais velhos viram vendendo laranjas nas estradas de Itapira e,depois, tocando engenho por sua prpria conta. Grande parte dos fazendeiros tornaram-sefornecedores de cana para as usinas, sem abandonarem de todo, quando podiam, o plantio docaf e do algodo. Jos Cesar Gnacarini aponta efeitos da poltica protecionista do governoem favor das usinas, na explorao destas sobre os camponeses e fazendeiros, pequenosfornecedores de toda a regio de Mogi-Mirim (1972:163).

    O caf congregava no trabalho de uma mesma fazenda, ainda que produzindo servios

    diferentes: o fazendeiro, o escravo, o colono, o morador parceiro e o camarada. Entre aAbolio e o tempo da cana ele comeou a expulsar os agregados e a incorporar maciamentecolonos no lugar dos escravos. No perodo da quebra empobreceu fazendeiros, dividiu asfazendas inclusive entre colonos, transformados agora em sitiantes e abriu novoslugares para o trabalho associado de camaradas, muitos deles j residentes na periferia dacidade. Nos jornais posteriores a 1935 comeam a aparecer, com freqncia, anncios defazendeiros oferecendo terras para o plantio do arroz em parceria, ou recrutando camaradas adois cruzeiros por dia. Foram estes moradores da cidade e ainda os trabalhadores da lavourapagos ao dia, os que alguns anos mais tarde comearam a ser reconvocados em turmas paraos trabalhos dos canaviais (plantio e corte), do caf (colheita) e do algodo (plantio epanha). Depois do vertiginoso aumento dos tabuleiros de cana, de 1960 em diante,registraram-se trs alteraes nos nmeros do destino dos trabalhadores diretos do setor

    agrrio.Houve um discreto aumento na quantidade de stios e de pequenas fazendas de at 50

    ha. Eram 428 em 1950 e, vinte anos depois, 534. No mesmo perodo o nmero de produtorescamponeses (responsvel e famlia, segundo o IBGE) cresceu tambm muito pouco: de1.472 para 1.865. Houve uma reduo muito acentuada no nmero de empregadospermanentes, muitos deles tambm antigos produtores parceiros das fazendas. Eles passaramde 5.763 em 1950 para 2.007 em 1970. No tenho dados oficiais sobre eles a partir de 1970,mas a opinio de todas as pessoas com quem conversei a de que, justamente depois desteano, o nmero de trabalhadores mensalistas, sobretudo quando residentes nas fazendas,decresceu de modo mais vertical. Os mesmos informantes acreditam que alguns antigoscamponeses proprietrios de stios, inmeros lavradores-moradores nas fazendas do

    municpio e em fazendas de outras reas de So Paulo e de Minas Gerais transformaram-se

    totais da agroindstria da Usina Nossa Senhora da Aparecida. Depois das duas lavouras dominantes, os produtosde maior rendimento so, pela ordem: laranja, milho, algodo, arroz, feijo (UNICAMP, Centro deComputao).15 Para o ano de 1976, o valor de produo do caf foi de Cr$ 74.100.001,00 e o da cana de Cr$ 55.238.400,00(UNICAMP, Centro de Computao). Mas a variao de quantidade de um e outro produtos muitosignificativa. Em 1950 o municpio produziu 4 619 t. de caf; em 1970, 3 967 t. e em 1976, 49 400 sacas. Poroutro lado, a produo de cana foi de 37.146 t. em 1950; 246.146 t. em 1970 e de 480.000 t. em 1976 (Dados doIBGE para 1950 e 1970; dados da UNICAMP para 1976).

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    nos lavradores-volantes de hoje cm dia. A formao de um contingente grande egeometricamente crescente de bias-frias a terceira variao ocorrida, depois da cana, naconstituio de categorias de produtores do trabalho agrrio. Entretanto, nem todos osvolantes trabalham hoje em dia em fazendas de Itapira. Sob o comando de turmeiros, sodiariamente enviados a lavouras de outros municpios da Mogiana e mesmo de mais longe,como Campinas. Nos bairros de Vila Ilse e Vila Isaura a cidade concentra hoje em dia um dos

    maiores reservatrios regionais de mo-de-obra para a lavoura16

    .

    4. As gentes do lugar

    Para constituir diferenas entre sujeitos e mundos de Itapira, teis aos momentosseguintes, nada melhor do que opor a viso de um velho morador de fazenda, benzedorconhecido e cantador de danas de So Gonalo, petio feita um dia Cmara Municipal,em nome dos interesses do Comendador Joo Baptista de Arajo Cintra.

    O velho Lus Laia at hoje se esconde na fazenda. Veio pouco no comrcio, viu eouviu coisas tenebrosas. No Risca-Faca s facada, coisa que a gente de l nega: Tevemuita sim, mas coisa do passado. Talvez elas no tenham sido mesmo tantas quantas asque deveriam ter trocado entre si os caipiras de muitos anos atrs coisa que os mais velhostambm negam, contra pelo menos o testemunho de Saint-Hilaire (1954) e o de alguns autos

    judicirios em Mogi-Mirim. O fato que, tendo nascido e trabalhado muitos anos depois dachegada dos fazendeiros do caf, o velho guarda a memria daqueles tempos com imagensde campons: as relaes entre iguais margem dos grandes; as trocas solidrias em ummundo em boa ordem. No mais muita fartura, mantimento para todos, terra farta, sempreciso de adubo nenhum, muito respeito e a boa vontade de Deus por cima de tudo.

    Este modo de representar o passado precisar ser retomado aqui, quando for feito oestudo da ideologia do catolicismo popular. Mas o exemplo de um velho lavrador que nuncafoi sequer um pequeno sitiante serve para a lembrana de que, entre os moradores da cidade eos camponeses ainda ativos, todos os que viveram dentro dos espaos protegidos das

    comunidades caipiras guardam do seu tempo a idia de uma sociedade definida como, aomesmo tempo, perdida e desejada.

    Elas eram as que existiam, nicas no lugar, quando o Comendador Cintra chegou,vindo de Atibaia. Ele pretendeu tirar os camponeses caipiras dos seus porcos; procurouensinar-lhes a plantar caf na regio, no sem antes formar trs fazendas para o trabalho dosseus escravos; deu-lhes depois uma cadeia, uma igreja matriz e a primeira casa de taipas nolugar. Mais tarde exigiu da Cmara o atestado de tudo isso. Sem meias medidas separa omundo campons do seu. Encontrou, quando chegou, meia dzia de casas insignificantes, econstrudas de madeiras, e sem alinhamento. Tendo ele j fortuna comeou a influir o povoque aplicava-se na criao de porcos, para a cultura do caf. De uma s vez trouxe o capital,

    16

    Em um estudo sobre o fluxo de mo-de-obra volante na regio da Mogiana, o socilogo Norberto F. Marquesoferece dados reveladores sobre a situao de Itapira. Enquanto em 1976 enviava uma mdia de 22 caminhesde turma para fora do municpio, recebia apenas uma mdia de 3 vindos de outros. Dos municpios estudados,4 enviam mais turmas do que recebem: Limeira, Pinhal, Mogi-Guau e Itapira. Com uma diferena negativamdia de 19 turmas, Itapira , sem concorrente prximo, o municpio de toda a regio que mais envia gruposdirios de volantes. Turmas de Itapira so regularmente enviadaas, segundo o mesmo estudo, para Mogi-Mirim, Mogi-Guau, Pinhal, Araras e Piracicaba. Com informaes de bias-frias e turmeiros da Vila Ilse, possoacrescentar os municpios de Campinas, Jaguarina, Agua, Guaxup, So Joo da Boa Vista e Santo Antnio daPosse. Em direo oposta, 8 municpios pesquisados recebem mais turmas do que enviam: Mogi-Mirim, SantoAntnio da Posse, guas de Lindia, Paulnia, Jaguarina, Campinas, Piracicaba e So Joo da Boa Vista(Norberto F. Marques, 1977: 79 a 85).

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    o caf e os escravos, alm das idias de uma sociedade onde essas coisas se misturavam paraproduzir novos donos e uma nova ordem que serviria para incorporar as comunidadescamponesas ao mundo dos coronis. A declarao dos seus atos era a de quem tomou contado lugar e lutou para transformar, segundo o seu modelo, os seus moradores.

    Estes servios e esforos do Supplicante em promover a prosperidade pblica sogeralmente conhecidos, bem como o seu genio creador, e bem fazejo, gozando porconseguinte de estima geral no s nesta Villa como por onde conhecido: possue trezfazendas com cultura de caf, com mais de cem escravos, vrias casas de muito bom gostonesta Villa. Seu comportamento civil e moral digno de ser imitado. (Pao da CmaraMunicipal, ata da sesso extraordinria de 6.11.1864)17.

    A consulta deste e de outros documentos, assim como a fala dos fazendeiros, quereproduzem, com as palavras de hoje, a mesma ideologia dos grandes senhores regionais dopassado, no escondem: a) o reconhecimento do atraso e da marginalidade do trabalho e dacultura dos camponeses caipiras; b) o reconhecimento das expropriaes exercidas sobreambos, como sinais dos direitos e do poder do capital e dos seus detentores.

    Ao falar do trabalho e das relaes entre tipos locais de produtores agrrios, procureicompreender a sociedade camponesa como uma frao primitiva e uma frente pioneira depenetrao da economia capitalista na regio. Ela no foi, portanto, em momento algum, umaporo de terras e de gente escondida entre morros, margem da agricultura mercantil. Nuncafoi tambm uma espcie de sociedade residual, como a de uma gente pobre que permanece eobtm, sobre a decadncia de momentos da economia capitalista agrria, retornos ao rsticoe subsistncia. preciso insistir que, por toda a regio da Mogiana, pequenosproprietrios e posseiros viveram e trabalharam durante 120 anos pelo menos, at quando oseu territrio de trocas foi invadido pela grande fazenda. Ali eles constituram, sob o domnio distncia dos poderosos da Colnia e do Imprio, uma ordem social relativamenteautnoma, com estilos prprios de ideologia e de religio. Sobre este mundo caipira anterior,a presena de grandes fazendeiros migrantes atualizou relaes de domnio, a comear pelofato de que ela redefiniu posses e usos da terra e de outros meios de produo. As dimenses

    do mundo de trabalho do fazendeiro do caf so as do mercado externo. Por isso, desde osprimeiros, todos estaro unidos no esforo de trazer Penha do Rio do Peixe um ramal daestrada de ferro. As dimenses do seu poder poltico so as do municpio e da regio. Por issoa cidade subiu o morro e foi construda em pouco tempo, para logo depois estabelecer vriasformas de rivalidade de elite com as outras, a comear por Mogi-Mirim. Este poder foidisputado entre os grandes fazendeiros e envolvia sempre alianas foradas com os sitiantes.

    A verdade que at hoje os pequenos centros de concentrao camponesa osbairros rurais, os distritos de Itapira e de outros homens livres no-dominantes, so espaosde resistncia cidade e ordem dos grandes proprietrios. Os estudos de comunidadecostumam deixar de lado o exame desta qualidade essencial: a de uma resistncia poltica

    17

    Quem redigiu a petio foi uni parente do Suplicante, o ento secretrio da Cmara Municipal Jos Augustode Arajo Cintra. Hoje em dia a memria burguesa da cidade separa, a seu modo, a iniciativa e a genialidadecapitalista dos coronis do passado, da basbaquice dos caipiras primitivos. No artigo em que reproduziu apetio de Arajo Cintra Cmara, o colunista diz o seguinte, aps lembrar nomes ilustres citados todos os anosna comemorao da data errada da fundao de Itapira: So citados em seguida trs nomes: Joo Gonalvesde Moraes, Manoel Pereira da Silva e Joo Baptista de Arajo Cintra, o primeiro figurando como homem rico,proprietrio de vasta rea de terra, mas pessoa simples, de poucas luzes quer dizer, sem instruo; o segundo,este bem mais esperto, atilado, atuando como intermedirio do primeiro na doao para a igreja; e o terceiroaparecendo mais tarde da tmida histria caipira, mostrando aos basbaques penhenses como que se plantavacaf, como que se criava porcos, como que se construa casas de taipa, como que se enriquecia (Cidade deItapira, 15.05.1977, p. 3).

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    restrita, mas relativamente eficaz, ao domnio completo de uma classe sobre a outra. Oaparente isolamento das sociedades camponesas em reas de refgio e sob cdigos de trocasoriginais, foi sempre uma estratgia de reconstruo e garantia de um mundo subjugado, masparcialmente vivido e representado como prprio e autnomo.

    Quase todos os estudos sobre os sujeitos da agricultura no Brasil reafirmam aexistncia de um respeito mtuo, do qual a prpria violncia seria um agente regulador, nosrelacionamentos entre vizinhos, fazendeiros e sitiantes. Como se costuma dizer, o filho dofazendeiro no faria jamais com a filha do campons, s vezes compadre de seu pai, o que elefazia com as filhas dos escravos, Mas entre sujeitos que pareciam falar as mesmas regras dedesempenho social e se respeitavam como pessoas, os grandes fazendeiros buscavam edetinham um domnio poltico sobre os sitiantes. De acordo com as leis da primeira repblica,eram eleitores somente os proprietrios e, portanto, os camponeses sitiantes devem ter sido amaioria dos sujeitos rurais que elegiam a elite agrria.

    Eram de um outro tipo as relaes de trabalho e de deferncia entre os homens livresno-proprietrios e dependentes da fazenda, e os grandes fazendeiros. O empregado, ocamarada, o agregado eram os produtores subalternos de servios agrrios especializados nasgrandes lavouras, ou eram os pequenos agricultores das roas caipiras de produtos de

    subsistncia. O fazendeiro vizinho de um sitiante cujas terras no conseguia comprar, era omesmo que concedia ao lavrador viver e plantar em uma poro das suas. Assim, o mundodeste homem livre no-proprietrio foi o de uma, ou o das vrias fazendas de que era parte.De maneira nunca to filial como s vezes se proclama, o morador da fazenda era um servidorpoltico fiel ao fazendeiro, senhor das terras onde estava. Nos tempos de paz foi um produtorde alimentos, segundo os interesses de consumo ou de vencia local, sob o controle do dono.Em tempos de guerra deveria ser um aliado militar de linha de frente ou de retaguarda. Comono restante do pas, os grandes fazendeiros tinham interesses polticos sempre em jogo e, parapequenas vitrias, contavam com os servios subalternos dos habitantes da fazenda18. Assim,quando o delegado Joaquim Firmino foi assassinado em sua casa em Itapira, os fazendeirosmandantes faziam-se acompanhar de seus empregados, moradores e alguns capangas.

    Os colonos chegaram s fazendas antes e depois da Abolio. Entre eles e os outrosmoradores delas houve sempre notveis diferenas de ideologia e desempenho poltico. Otrabalhador agregado, empregado direto ou indireto e morador por favor, compreendia omundo desde a tica da ordem da fazenda. No encontrei sinais em Itapira de que no passadoele tivesse, em algum momento, aparecido como uma classe organizada. No encontreitambm, entre aqueles com quem conversei, uma fala sobre o seu mundo que no passassepelo do patro. Os colonos aparecem como grupos c1iiicos nunca deixaro de seralemes, italianos ou espanhis e tomo uma classe: a dos colonos. Pouco tempo depois dechegados, cuidaram associaes e promoveram lutas polticas contra a prepotncia dosfazendeiros. Depois de esgotadas as alternativas econmicas do colonato, raros os europeusque permaneceram nas fazendas, em situao semelhante dos moradores agregados que,anos mais inicie, comearam a ser expulsos delas. Os colonos reaparecem no trabalho agrrio

    como pequenos proprietrios, os novos camponeses-sitiantes do lugar. Quando noconseguem comprar parte das terias de fazendas decadentes, ou quando no so chamados,como aconteceu algumas vezes, para o cargo de administradores de uma delas, migram para a

    18 Muitos anos mais tarde, nas ltimas eleies, um outro fato ilustra vestgios modernizados das relaescoronelistas. O MDB conseguiu no municpio uma vitria esmagadora e elegeu pela primeira vez o prefeito(ARENA 3.106 votos para o Senado, MDB, 9.147; ARENA 3.413 para deputado estadual, MDB, 6.364). Para aCmara local a ARENA fez oito vereadores e o MDB, cinco. Um dos vitoriosos da ARENA um dos donosda Usina Nossa Senhora da Aparecida. Ele obteve, sozinho, 4.335 votos, cerca do dobro dois que conseguiramtodos os candidatos do MDB juntos (2.848) (UNICAMP, Centro de Documentao).

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    cidade e para o trabalho urbano; na maioria dos vasos, para as pequenas indstrias do lugar.Pouco tempo depois dessas transferncias surgiram em Itapira os movimentos de classe quedurante vrios anos conduziram as pequenas lutas locais dos operrios. Os europeus noforam os seus principais condutores, mas tambm no ficaram ausentes delas19.

    Durante todo o perodo do caf, o camarada antecedeu o trabalhador-volante daagricultura. Em conjunturas diferentes, os dois estiveram mergulhados em condiessemelhantes de apropriao: estavam plenamente separados dos meios de produo, a no serquando os primeiros puderam se manter, por algum tempo ainda, como lavradores meeirosdas fazendas; foram cada vez mais migrantes rurais do trabalho agrrio, saindo das fazendas eindo morar com as famlias na periferia da cidade. Juntamente com os operrios das fbricasdos bairros de baixo, os. camaradas comearam a povoar os espaos que viriam a ser depoisinvadidos pelos trabalhadores volantes.

    Entre esses dois tipos de produtores da lavoura houve diferenas importantes. Tanto ostrabalhadores parceiros quanto os assalariados do passado tratavam os seus negciosdiretamente com os fazendeiros; estabeleciam contratos pessoais de trocas de servios comeles e, no raro, produziam para um deles com garantias de uma relativa estabilidade. Por suavez, o bia-fria uma frao da fora de trabalho da turma de que faz parte. Est

    subordinado ao turmeiro e, com muita freqncia, no sabe sequer o nome do fazendeiro ondetrabalhou durante algumas semanas. Um trabalhador-volante mantm s vezes uma relao defidelidade para com o seu agenciador de servios. H uma conscincia de minha turma que,nos casos das mais estveis, chega a ser parte importante da vida de cada um. H aconscincia de uma classe que aos poucos se configura, livre de qualquer tipo de fidelidadepoltica ou simblica para com os grandes fazendeiros e aparentemente indiferente ao destinodas outras categorias de produtores agrrios.

    Mas os bias-frias no so ciganos das lavouras e das cidades, como pareceram aalguns observadores. Em Itapira muitos deles moram em suas casas h mais de 15 anos e, emconjunto, eles souberam produzir nos seus bairros um mundo tambm prprio, sem quasequalquer vestgio dos smbolos camponeses. Na cidade eles esto durante os perodos em

    que no so da turma entre os operrios da usina e os das pequenas fbricas locais e deoutras maiores, na regio. H um crescente trnsito entre estes operrios e os das indstrias.Muitas vezes um volante , durante curtos perodos em um ano: um operrio da construocivil, da prefeitura, de uma fbrica ou um subempregado. Afastados dos outros sujeitossociais do trabalho agrrio, os bias-frias parecem querer construir com os operrios dasfbricas um mesmo mundo e os mesmos smbolos20.

    Nos momentos seguintes vamos reencontrar os mesmos personagens dos primeiroscaipiras primitivos aos volantes em roupa de domingo, ou seja, como produtores

    19 Notcias de jornal: Os Comunistas de Itapira Pixaram a Cidade quem julga que em Itapira no hcomunistas est muito enganado. H meia dzia que seguem as ordens de Moscou. Como se sabe, no obstante oelevado nmero de proletrios, o comunismo com ele no vinga (Cidade de Itapira, 6.03.1949, p. 2). O

    operariado de Itapira, aliado a alguns representantes liberais o socialistas que surgiram na regio depois de 1910,organizou-se em associaes o sindicatos e participou das intensas lutas do perodo. No entanto, sempre aimprensa de elite procurou, como de costume, negar os interesses da classe e afirmar que todo o trabalho polticoe ideolgico devia ser atribudo a uma nela dzia de desordeiros.20 Em 1970, de um total de 29.399 pessoas ocupadas, 6.712 trabalhavam na agricultura, com urna proporoaproximada de 5 homens para cada mulher; 3. 137 trabalhavam na indstria, com uma proporo de 9 homenspara cada mulher, sendo que inmeros homens e rarssimas mulheres eram operrios de fbricas em outrosmunicpios, sobretudo em Mogi-Guau; 946 pessoas trabalhavam no comrcio; 1.533 em servios urbanos, ondea proporo se inverte, com 2 mulheres para cada homem; 516 em transportes e comunicaes; 802 ematividades sociais; 352 na administrao pblica e, finalmente, 549 em outras atividades (IBGE, 1972, SoPaulo).

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    parcialmente autnomos, ou como participantes subalternos dos sistemas religiosos popularesou eruditos que produziram e reproduzem um campo religioso, onde smbolos e lutasseculares se recobrem com os nomes do sagrado.

    A CAPELA E A IGREJA, AS IGREJAS

    No ano de 1820 os moradores do bairro dos Macucos deliberaram construir umacapela no morro ao lado e acima do Ribeiro da Penha, e transferir uma imagem de NossaSenhora da casa de um deles para l. A pequena santa era venerada desde algum tempo pelagente do lugar e no raro recebia, alm de rezas, esmolas. Alguns anos antes vrios homensdo bairro fizeram um adjutrio e auxiliaram Joo Gonalves de Moraes a construir a sua casa.Alguns anos depois, em nome da comunidade, Manuel Pereira da Silva convenceu o dono a

    doar a imagem e uma poro de terras no morro onde ficariam a capela e o seu patrimnio.Damos de esmola a dita Imagem de Nossa Senhora da Penha, e desde j desistimose ao bem de ns para a posse, jus e domnio que tnhamos nas ditas terras na pessoade Manoel Pereira da Silva protetor e procurador da dita imagem... fazemos no spor devoam a dita Imagem, como em remuneraam de vrias esmolas dos fieis adita Imagem e o adjutrio que fizeram no levantamento de nossa casa de morada ematenam a mesma Senhora... e por no sabermos escrever (...) rogamos ao nossoReverendo Capellam Antonio de Araujo Ferraz, que este por ns fizesse e eusomente me assino de cruz signal de que uso. (Cartrio do 1 ofcio, Mogi-Mirim,Livro de Notas, n 16, fls. 58 e 59)

    Todo o trabalho de construo do pequeno oratrio foi feito pelos homens do bairro e,mesmo rstica, a capela demorou meses para ficar pronta, entre o comeo da derrubada do

    mato no local da obra e a procisso que conduziu a imagem de madeira da casa de JooGonalves ao seu novo lugar de culto comunitrio1.

    Tudo combinado a derrubada do matto teve incio, de mo comum, na madrugadade 24 de outubro de 1820, continuando aos poucos, embora vagarosamente,porquanto era impossvel quella gente, quasi toda pobre, dedicar todo o tempo aopiedoso afan, abandonando por completo as suas lavouras. (Caldeira, 1935:52)

    1 H dvidas sobre as datas. Nolbum de Itapira (Caldeira, 1935: 52) a derrubada do mato teria comeado a 24de outubro de 1820 e a primeira missa Inaugurou a capela em 19 de maro de 1821. Escrevendo sob opseudnimo de Eusbios Ignotus, o atual vigrio de Nossa Senhora da Penha atrasa a concluso da capela para

    17 de maro de 1824 (Cidade de Itapira, 06.10.1946, p- 4). Depois de sua visita pastoral a Ita.pira, o bispo D.Nery fez as seguintes anotaes: Em 1823, Joo Gonalves de Moraes, morador num bairro que pertencia aoterritrio de Mogi-Mirim, nas divisas de Minas Gerais, era possuidor de uma imagem de Nossa Senhora daPenha, muito venerada pelos habitantes dos lugares vizinhos. Nesse anno, pois com o auxlio dos fiis resolveuelle erigir um oratrio para aquella imagem, tendo obtido assentamento do bispo de SP, D. Matheus de AbreuPereira, em proviso de 23.09.1823. Em 1 de outubro desse annno reunido o povo do bairro, que ao tempo sechamava Mucucos, convite e em casa do referido Joo de Moraes, foram lanadas as bases do templo. A 24desse mez e anno, sob a direo de Monoel Pereira da Silva, comeou-se a derrubada da mata que havia no lugarescolhido... Com o nome de Oratrio de N. S. da Penha da Boa Vista, a pequena igreja ficou concluda: a 17 demaro de 1824. A 19 deu-se a transladao da imagem para ella no meio de grandes festas, celebrando a primeiramissa o Pe. A. de Arajo Ferraz (Nery, 1911).

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    1. A religio dos camponeses

    Esse tipo de acordo entre homens e santos, onde comparecem donos de imagens,moradores caipiras de um bairro rural, um padre capelo e um bispo diocesano, marca a etapafinal de uma trajetria corriqueira de concorrncias entre santos de devoo, ao longo da qualum deles passa aos poucos de protetor de uma famlia a padroeiro preferencial de uma

    comunidade camponesa. Quando em 1952 o vigrio da Igreja da Penha fez a contagem dascapelas da parquia, encontrou nada menos do que 46 delas, fora os pequenos oratriosvotivos de beira de estrada. Entre os inmeros locais caipiras de devoo catlica casas,grutas, cruzeiros, capelas, curvas de estrada um deles tendia a ser o mais procurado, aexigir a festa anual mais concorrida, sob patrocnio dos moradores de mais posses e a setornar, com o passar dos anos, o ncleo primitivo do lugar urbano da sociedade de fazendeiroscapitalistas, assim como o espao principal do culto catlico, o da igreja matriz2.

    Os termos do documento de doao so o primeiro testemunho de um controleeclesistico que determina a legitimidade catlica de um lugar de culto sertanejo e prescreve,na concesso de terras santa atravs de seu procurador, as primeiras posses obtidas dacomunidadepara a Igreja3. O padre Arajo Ferraz foi indicado como cura daquellas almas.O bispo diocesano de So Paulo acolheu a petio dos moradores do Bairro dos Macucos econcedeu as licenas de funcionamento da capela em setembro de 1823, exigindo, porm,que ao novo Templo fosse doado o competente patrimnio (Caldeira, 1935:52). De acordocom o testemunho de Caldeira, o padre Ferraz era Missionrio de passagem por MogyMyrim (1935:52).

    As crnicas da histria catlica de Itapira escrevem poucas referncias sobre a religiodos sitiantes caipiras do passado. Elas costumam saltar da construo da capela de NossaSenhora da Penha ao levantamento da nova igreja para a mesma santa, com o trabalho deescravos e de empregados do primeiro coronel do caf de Itapira. No entanto, durante poucomais de 120 anos uma forma popular e relativamente autnoma de crena e de prtica decultos catlicos foi o sistema quase nico de trocas entre a sociedade e o sagrado. Antes dehaver a cidade e o coronel, no havia tambm na antiga Penha da Boa Vista um catolicismo

    urbano, erudito e controlado de perto pelos agentes da Igreja oficial. Das agncias catlicas decentros regionais maiores eram enviados a Itapira dois tipos de emissrios: o padre capelo,responsvel distncia pelas almas dos moradores; o padre missionrio, em passagensespordicas para os fervorosos trabalhos das santas misses4.

    2 Dentre as capelas enumeradas pelo vigrio: 9 eram dedicadas a Santo Antnio, 6 a Nossa Senhora daAparecida, 5 a So Sebastio, 4 a So Jos, 3 a So Roque, duas ao Divino Esprito Santo, Santa Cruz, a SoJoaquim, ao Bom Jesus da Cana Verde; uma, a vrios outros santos, inclusive So Benedito, desde muitos anos opadroeiro da mais importante festa popular da Mogiana. 15 capelas ficavam em bairros rurais, 27 em fazendas e4 em morros, retiros ou distritos.3 A licena diocesana foi concedida em setembro de 1823, exigindo (o bispo) porm que ao novo templo fossedoado o competente patrimnio (Caldeira, 1935: 52). A doao de terras para ordens religiosas, santos

    padroeiros ou agentes eclesisticos era prevista e, s vezes, dificultada, desde os documentos mais antigos deposse na regio: E possua como coisa sua prpria tanto elle como todos os seus herdeiros descendentes eascendentes sem nem tributo algum mais que o dzimo a Deus Nosso Senhor dos fructos que della tiver... epassando as ditas terras a pessoas eclesisticas pagaro delas dzimos e todos os mais encargos que o dito senhorlhe quizer impor; e outrossim no podero nellas suceder religies por nenhum tributo e acontecendo possuil-aspagaro dizemos como se fossem possudas por pessoas seculares (Concesso de Sesmaria ao Sargento-morManuel Gonalves de Aguiar, dada na Praa de Santos em 1728 Registro de Sesmarias Repartio dorchivo e Estatstica do Estado de So Paulo, apud Caldeira, 1935: 49).4 As passagens de missionrios e as vibrantes pregaes das santas misses so anunciadas e comentadas pelosjornais at pelo menos o ano dc 1958. No entanto, o trabalho missionrio dos padres redentoristas praticado athoje no interior de So Paulo, Os missionrios eram sacerdotes do clero regular e associavam a uma intensa

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    Alm destas duas situaes tradicionais de encontro, atravs das quais a Igreja vinha aItapira, havia uma terceira, pela qual os moradores dos bairros e dos stios de Itapira iam Igreja: as romarias. Elas foram freqentes desde meados do sculo passado e algumas pessoasa quem entrevistei orgulham-se de haverem ido entre vinte e trinta vezes a um dos trs centrosregionais de peregrinao mais procurados: o santurio de Nossa Senhora da Aparecida e,com menos importncia, os de Pirapora do Bom Jesus e de Bom Jesus dos Perdes. As visitas

    em desobriga do capelo, as passagens rpidas e espaadas dos padres missionrios e asvisitas de romaria fechavam o ciclo de momentos em que os camponeses escutavam da Igrejaa sua doutrina e recebiam dela alguns sacramentos.

    Praticamente isolada em uma fronteira de trabalho e de cultura de camponeses, areligio dos caipiras que encontramos plantando milho e mandioca pginas atrs reunia todosos atributos de um sistema religioso catlico que, nos estudos atuais sobre o assunto, apareceadjetivado como: popularrural, tradicional, rstico, privatizado ou de folk5. Logode sada preciso que duas idias nem sempre aceitas a respeito dessa religio de camponesesde uma sociedade agrria anterior capitalizao do campo em So Paulo, sejam propostasaqui. Em primeiro lugar, ela no um aglomerado pitoresco de crendices e prticas mgico-religiosas, mas, ao contrrio, constitui um sistema coerente e complexo possivelmentemais complexo do que o do prprio catolicismo erudito de crenas e prticas do sagrado,combinadas com agentes e trocas de servios. Em segundo lugar, ela no uma criaoreligiosa exclusiva e isolada dentro de uma cultura camponesa, mas, ao contrrio, retraduzpara a sociedade caipira dependente, segundo os seus termos, o conhecimento e a prticaerudita da religio dominante.

    Para produzir tipos de servios de valor simblico muito variados, o catolicismopopular da regio articulava-se atravs de trocas entre categorias de leigos e categorias deespecialistas religiosos, cujas funes, domnio e conhecimento do sagrado estavamcodificados: eram socialmente definidos com preciso e marcavam as diferenas entre tiposde prticas devocionais e propiciatrias e tipos de agentes produtores. Boa parte das relaesentre o fiel e o sujeito sagrado divindade, santo padroeiro, santos especficos, almas demortos, objetos de devoo eram conduzidas por meio de trocas simples entre a pessoa e o

    santo. Rezas pessoais, frmulas de pedido ou de evitao, obrigaes cerimoniais, promessas,reconhecimento de resposta simblica eficaz, so alguns exemplos. A possibilidade doexerccio de inmeras prticas religiosas feitas pelo leigo, sem o concurso de um especialistapopular, correspondia ao fato de que parte da teoria e das regras do saber religioso eram doconhecimento de toda a comunidade camponesa.

    Ofcios rituais coletivizados exigiam a presena de um sujeito semi-especializado nombito familiar, como, por exemplo, uma velha av rezadeira de tero, ou exigiam odesempenho de um verdadeiro especialista. Ele poderia ser, ento, um profissional popular daregio, remunerado pela comunidade por seus servios. Seria tambm, com maior freqncia,um campons que dividia o seu trabalho entre a produo terrena de bens de subsistncia e aproduo de servios simblicos. No primeiro caso estavam os curandeiros e benzedores, em

    atualizao da Comunidade aos sacramentos da Igreja, unia fervorosa pregao tico-religiosa. s vezes algunsdeles tendiam a serem vistos pelo povo como verdadeiros homens santos, At hoje, quando o camponsrecorda uma Igreja quente, no passado, sacudida da rotina e de um morno ritualismo latino, ele faz memria daspassagens de missionrios pelos bairros, ou dos que encontrou nas viagens de devoo que fez aos locais degrandes romarias. Por sua vez, desde o primeiro, os padres capeles eram funcionrios visitadores, de presenaespordica e prtica ritualista entre os seus fregueses.5Rstico, por exemplo, em Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973: 72) em Duglas Teixeira Monteiro (1974: 86);Tradicional-rural em Cndido Procopio Ferreira de Camargo (1973: 78); Popularem Waldo Cezar, RiolandoAzzi, Eduardo Hoornaert, Ednio Vaile e outros (1976); Privatizado em Pedro de Assis Ribeiro de Oliveira(1978: 28);De folkem Ralph Delia Cava (1977; 42 e 43).

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    geral profissionais de fronteira entre a medicina e a religio. No segundo estavam todos ostipos de sacerdotes populares: os capeles (os primitivos responsveis pela guarda e pelascerimnias das capelas rsticas); os rezadores de teros, de ladainhas ou de outras sortes derezas; os mestres-dirigentes de grupos rituais camponeses, como os das folias de Santos Reisou das funes de So Gonalo. No raro um especialista de renome ocupava vrias funes,como, por exemplo, as de benzedor, de capelo zelador e de mestre de Folia.

    Ao lado destes produtores de servios religiosos coletivos, o sistema inclua tipos depromotores populares das suas condies estabilizadas ou espordicas de atualizao, comoos donos de imagens de santos algumas vezes responsveis pela sua festa anual osfesteiros e os promesseiros obrigados a realizarem algum ritual coletivo como resposta a umvoto vlido6.

    No foram comuns em toda a regio os eremitas e os santos beatos. Mas um delespodia aparecer de tempos em tempos e, por um perodo sempre no muito longo, convertia-seem um dos agentes populares, carismticos e milagreiros, mas nunca contestadores oumilenaristas. Fora os contactos impostos ou procurados com os emissrios da Igreja Catlica,o catolicismo caipira da regio emergia de seu ritualismo cotidiano procurando ou produzindoespaos ou sujeitos sagrados de credibilidade ou de culto especiais: o lugar santo o morro,

    a gruta, o local de pequena e breve moradia, onde so acreditados acontecimentos religiososextraordinrios; ou o santo do lugar o beato, a santinha, o pequeno milagreirocarismtico de roa.

    Ao longo do ciclo campons de trabalho e devoo, uma religio popular existia maisou menos margem de um controle da Igreja, imposto, mas at a chegada do primeirovigrio, espordico. No seu todo, ele era socialmente acreditado como suficiente e eficaz epodia dispensar o desempenho do padre, a no ser para o caso dos sacramentos, que porsignificarem, na ideologia sociorreligiosa do caipira, alteraes relevantes na posio social,eram aceitos sem restries e requisitados com insistncia: o batismo (ritual do ingresso nasociedade dos vivos), o casamento (ritual de mudana pessoal na sociedade), a encomenda dedefuntos (ritual de ingresso na sociedade dos mortos)7. No entanto, todo o trabalho religioso

    do padre nos bairros rurais fazia as vezes de rituais e ensinos de valor complementar,sobrepostos a um sistema de saber e de prtica populares quase autnomo, uma vezconstitudo.

    Por outro lado, como forma de conhecimento religioso, o catolicismo dos camponesesprimitivos de Itapira no era uma inveno isolada original, criada sobre valores exclusivosde uma suposta cultura caipira. Ele combinava componentes do sistema simblico dosertanejo viso do mundo, ideologia religiosa, cdigos de trocas familiares e sociais

    6 preciso insistir em que, dentro do sistema muito rico e muito diferenciado do catolicismo popular, s vezesum mesmo agente religioso ocupava simultaneamente diversas posies. Um dono de imagem podia ser umfesteiro anual de seu padroeiro, um rezador de tero, um capelo do santo e at mesmo um mestre-dirigente deum grupo ritual. Um tipo assim de polivalncia religiosa estava muitas vezes ligado a um compromisso de vida,

    atravs de um contrato pessoal de trocas recprocas de obrigaes e favores entre o devoto e a santidade,7 Estas observaes conferem com as de Las Mouro S (1974: 126), que, entretanto, parece no registrar, parao casamento religioso entre os camponeses do Maranho, a mesma importncia que encontrei para os daMogiana. Dentre os outros sacramentos, a confisso e a comunho eram usados por mulheres e evitados peloshomens, sobretudo depois de adultos e casados. A crisma era praticamente desconhecida e, at hoje, o homem dopovo no sabe para o que ela serve. Por outro lado, as observaes concordam tambm com o que DuglasTeixeira descreve para o passado da regio do Contestado (Monteiro, 1974: 86). De modo geral o camponsreservava muito pouca importncia religio do padre e, fora alguma missa que serviam para legitimar esolenizar festas de bairros, e os sacramentos de valor social, ele dispensaria de bom grado o desempenho dosacerdote oficial. Em algumas reas paulistas de menor desintegrao da cultura caipira, existem at hoje, vivas,formas eminentemente populares de batizado e de encomenda de almas dos monos.

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    com elementos mais. ou menos fragmentados da Histria Sagrada, da doutrina e das regras deprticas devocional da Igreja catlica. Reforo aqui esta idia, qual voltarei adiante, porquenormalmente estudos sobre a religio popular enfatizam oposies diante da religio oficial, aponto de fazerem do catolicismo rstico ou um sistema religioso autnomo, ou um sistemadesvirtuado frente religio da Igreja, tomada como modelo de referncia.

    A autonomia relativa da religio dos camponeses pressupunha a sua relativadependncia diante do controle da Igreja oficial. O padre-missionrio e o padre-capelo eramreconhecidos pelos moradores dos stios e bairros como emissrios de uma agncia desejada,mas sob certos aspectos, hostil. No entanto, mesmo quando eles eram desacreditados comopessoas, nunca deixavam de ser considerados como os produtores mais legtimos dos serviosdo sagrado, enquanto agentes religiosos da Igreja. De outra parte, o saber religioso doespecialista popular era, sob muitos aspectos, uma retraduo, ao alcance da culturacamponesa, do monoplio de saber do sacerdote erudito. Ouvindo e aprendendo com padres ecom missionrios, no seu bairro ou nas cidades de romaria, o capelo, o rezador e outrosagentes locais acumulavam um saber doutrinrio e um repertrio de prticas rituais quetraziam o catolicismo romano para dentro da fazenda, do stio ou da comunidade. At mesmonas cerimnias coletivas mais aparentemente folclorizadas e das quais uma vocaoequivocada de pesquisa acostumou-se a perceber apenas o folclrico os momentos maisessenciais e mais religiosamente motivados so, ainda hoje, as rezas de tero, as formas debnos, as oraes e as ladainhas onde, nos exemplos melhor conservados, no falta sequer olatim que a prpria Igreja oficial abandonou. Tudo isso foi aprendido um dia por especialistascaipiras e, passado depois, de uns aos outros. Algumas vezes um capelo ou rezador migradoda cidade para o bairro rural fora antes um auxiliar leigo do sacerdote: um coroinha, quandomenino, ou um sacristo, quando adulto. Em casos ainda mais raros, um rezador popularsemiletrado aprendeu parte do seu saber da doutrina em colgios catlicos, ou mesmo em umseminrio menor8.

    Aqui e mais frente veremos como o que conduzia a identidade da religio rstica dosmoradores caipiras dos stios e bairros, era a formao e a reproduo de uma ordem religiosaderivada, mas ativamente tornada prpria e comunitria atravs da garantia de um

    distanciamento frente ao exerccio crescente do controle religioso da Igreja Catlica. Esta tambm a histria da expropriao e da resistncia de uma religio de camponeses, sob odomnio daquela que os fazendeiros-coronis importaram para a regio juntamente com osseus escravos, dinheiro, interesses e padres.

    2. A Igreja dos fazendeiros

    A ereo de uma capela de povoado fez intensificarem-se os intercmbios entre asociedade camponesa e a Igreja. Vimos que os moradores do lugar pediram ao bispodiocesano de So Paulo as devidas licenas eclesisticas para os usos legais da capela deNossa Senhora da Penha. O bispo atendeu ao pedido, exigiu a doao cio patrimnio e

    nomeou um primeiro padre capelo

    9

    . Estes atos de reconhecimento e conquista ocorrem entre

    8 Las Mouro S enfatiza a diferena de aprendizagem e de docncia cabe o rezador e o padre (S, 1974: 126).Creio que uma nfase em dois tipos opostos de aquisio do saber do sagrado, respondendo em boa medida pelasdiferenas entre o catolicismo popular e o erudito [az parte das observaes da maioria tios seus estudiosos sobreo assunto. No entanto, pelo menos para o caso especfico de So Paulo, contactos de docncia entre agentes daigreja e agentes populares sempre existiram e foram crescentes a partir de meados do sculo passado.9 Entre este primeiro capelo curado de 1824 e o primeiro vigrio de Nossa Senhora da Penha houve cincopadres capeles no-residentes no bairro dos Macucos ou Itapira. Eram padres que vinham algumas vezes porano de Mogi-Mirim.

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    excelente cadea e casa de Cmara e uma populao de mais de 7.000 almas (Caldeira,1935:59).

    O padre vigrio era o aliado religioso do coronel-fazendeiro. Chegou a Itapira com elee o ajudou a construir o mundo do seu domnio. A servio de senhores rurais e com aparticipao subalterna de funcionrios burgueses, de comerciantes, de profissionaisautnomos, de pequenos fazendeiros e de trabalhadores agrrios e urbanos ligados parquia,o padre constituiu uma igreja local romanizada e dominante o outro lado, agora prximo,do catolicismo da poca13.

    O discurso confessional desta Igreja, falado do plpito ou escrito em documentoseclesisticos, em anncios de festas catlicas ou em crnicas e notcias de jornais, proclamavao teor sacrossanto das relaes de trabalho introduzidas pelos fazendeiros do caf, assimcomo o valor da vigncia de uma nova ordem social finalmente estabelecida. Ao qualificar asua prpria condio atual, poucas instituies civis daqueles tempos atestavam com tantaveemncia a grandeza e os direitos de uma pequena elite agrria enriquecida s pressas, comoa Igreja Catlica entre os anos de 1880 e 192014.

    As trocas mtuas de servios preferenciais entre o padre e os grandes fazendeiros erampblicas e diretas. O sacerdote que oferecia servios religiosos s classes subalternas, estava

    politicamente a servio da dominante. Nas sucessivas campanhas de construo ou dereforma da igreja matriz, esperava-se que os cathlicos de bom corao contribussem dealguma maneira. Mas dos coronis-fazendeiros esperavam-se doaes em dinheiro, materialou trabalho de escravos e empregados, dignas de notcias com destaque no jornal da semana,de placas de bronze e, s vezes, de alguma comenda. De sua parte, a elite agrria esperava queo padre vigrio fosse o agente sempre ordeiro de uma Igreja em festa, capaz de criar, cominesquecveis rituais religiosos de rua (procisses, cortejos) ou de igreja (missas, novenas, Te-Deuns), momentos solenes e solenizadores da nova ordem.

    H suspeitas de que um padre estaria comprometido com a morte do delegadoabolicionista Joaquim Firmino. Desde todo este tempo e at a dcada de 70, em todas asquestes trabalhistas que envolveram escravos, agregados, colonos, volantes e os fazendeiros,

    a Igreja nunca se manifestou em favor dos trabalhadores. Mudanas na qualidade de suasalianas de classe so o resultado do desempenho pessoal de dois vigrios atuais e de rarosleigos.

    A Igreja oficial, implantada como um dos setores de articulao da sociedadecapitalista do caf, alterou apenas externamente a ordem da religio camponesa. Ela atualizouem Itapira a presena da hierarquia catlica a partir da fixao da residncia de um padrevigrio, o representante local do bispo. Ela deslocou relaes de domnio e de prestaes

    13 importante lembrar que o clero secular da colnia era totalmente subordinado Coroa, segundo os termos doPadroado Real estabelecido entre Roma e Lisboa, Os padres eram funcionrios do rei a quem cabia decises deescolha e destino, at mesmo de bispos. Com algumas variaes esta prtica continuou durante o Imprio eacabou por provocar conflitos institucionais entre a Igreja e o Estado. Na prtica, em cidades como Itapira e

    durante muitos anos aps a Repblica, o clero secular dependia: a) de salrios pagos pelas Irmandades religiosas;b) de pagamento pela distribuio de bens de sulvao; c) de esmolas oferecidas pelos fiis: d) de parte da rendaobtida com as festas de santos; e) de grandes e espordicas doaes testamentrias (estas, mais comuns para asordens religiosas) (ver Azzi, 1977: 284 e 285).14 Alguns exemplos do modo como, em incontveis ocasies, a parquia de Nossa Senhora da Venha, seusagentes e padres visitantes eram comentados por seu desempenho nos jornais: Na missa solenne da festa far openegyrico do glorioso santo o illustradssimo e considerado orador sacro... (CI, 06 01 1910, a. 253, p. 2).Estiveram verdadeiramente imponentes as solenidades com que o povo cathlico de Itapira hourou o gloriosomartyr... (CI, 27.01.1910, n. 259, p. 2); ...no terminaremos essas ligeiras notcias sem nos congratularmoscom o nosso vigrio padre Amorim Correia, pelo brilho e imponncia de que se revestiram todas assolemnidades, pela ordem e correo que se observaram em todas as procisses (CI, 31.03.1910, n. 276, p. 2).

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    espordicas de servios religiosos aos camponeses, para relaes de aliana e ofertasrotineiras de servios solenizados sociedade dos fazendeiros. Ela apressou a transfernciados principais cultos pblicos catlicos dos bairros caipiras e das capelas rsticas para acidade e a igreja matriz. Finalmente, ela multiplicou na cidade as associaes laicas que,primeiro, se somaram e, depois, substituram as antigas irmandades religiosas15.

    A concorrncia entre o padre e os agentes populares acentuou-se com a fixao deuma parquia na cidade. A Igreja local em parte aceitava e reconhecia o sistema religiosopopular e procurava classificar os seus tipos de especialistas e de fiis. Os sucessivos vigriosno descuidavam em demarcar os limites entre o religioso necessrio e respeitvel, praticadono interior da ordem paroquial; e um religioso ilegtimo, ora prximo da magia profanadora,ora da pequena profecia subversiva, sob o domnio de leigos no totalmente submetidos. Aoatacar publicamente a religio popular, algumas vezes atravs dos jornais da cidade, o padreagia por sua prpria conta, ou repetia ao alcance da parquia de Nossa Senhora da Penha asregras de controle proclamadas pelo bispo diocesano, primeiro o de So Paulo, depois o deCampinas16.

    As acusaes da Igreja eram dirigidas com maior freqncia aos capeles populares,rezadores e mestres de rituais. O padre redobrava publicamente os seus ataques frente a duas

    situaes: primeiro, quando o exerccio religioso popular consagrava expressesindependentes do saber catlico erudito, das regras da parquia e da presena do vigrio, oque atestava para a comunidade de fiis camponeses que os modos coletivos e tradicionais do

    15 Foi programa dos bispos renovadores retirar da Igreja Catlica, ao mesmo tempo: a) elementos de suaestrutura medieval e ibrica; li) a dependncia poltica para com o Estado, em favor de uma dependncia paracom Roma; c) a direo local dos leigos, atravs do seu controle costumeiro sobre as irmandades religiosas esobre inmeras capelas. Para tanto, diversos bispos brasileiros aceleram a romanizao do catolicismonacional desde dcadas finais do sculo passado: a) provocando uma deliberada aproximao com o Vaticano ereclamando do Estado, ao mesmo tempo, uma maior autonomia e a manuteno de uma posio privilegiada; b)importando um clero secular e regular modernizado, proveniente da Europa no-ibrica; c) retirando aos, poucos(e s vezes com grandes conflitos) a importncia religiosa e a autoridade poltica das irmandades (onde o padre um funcionrio assalariado), em favor da transferncia para o Brasil de associaes pias (onde o padre um

    dirigente eletivo). No ano de 1935 o vigrio da Penha obteve os seguintes nmeros em sua parquia: Irmandadedo Santssimo Sacramento 23 membros; Apostolado Masculino 17 membros; Congregao Mariana deMoos 19 membros; Irmandade de So Benedito 167 irmos; Apostolado Feminino. 41 zeladoras;Arquiconfraria do Purssimo Corao de Maria 38 chefes; Confraria do Rosrio Perptuo 42 chefes; PiaUnio das Filhas de Maria 27 membros; Liga do Menino Jesus 250 membros; Congregao da DoutrinaCrist 874 membros; Liga de So Jos 41 zeladoras e 800 membros; Damas da Caridade 13 associadas(Caldeira, 1935: 88).16 Em mais de dois anos de visita, observamos a imoralidade que resulta do que se chama Folia, ou do como seservem os folies da bandeira do Divino Esprito Santo para especular seus interesses; um verdadeiro modo devida e mesmo um furto. O festeiro, vulgarmente Imperador justa um dos tais cantadores, fazendo-se adespesa custa das esmolas e o restante se parte ao meio, vindo muitas vezes o Imperador, depois de seis mesese um ano, receber vinte e trinta mil ris... Se vinte folies chegam casa de cada um e levam sua esmola, todasestas juntas com a bandeira da Parquia d para a festa da mesma Parquia e evitam-se os males apontados; noquerendo falar de outras prevaricaes cometidas pela mesma comitiva de bandeira. E quando a freguesia fosse

    to pobre que sem este meio no pudesse fazer sua festa bem melhor no fazer. O Reverendo Proco que nessedia instrua seus fregueses: que todos unidos faam suas oraes e devoes sem pompa. Assim dar-se- aoDivino Esprito Santo verdadeira glria e o culto de agradvel cheiro. Mesmo havendo culto pomposo devem-seevitar essas comezainas e outros divertimentos que sempre andam de parceria nas festas do Divino. Portanto,mandamos por Santa obedincia aos Reverendos Procos, que no dem atestados para os folies sarem fora daParquia, corno Prelado tambm mandamos aos Senhores Delegados e Juzes de Paz, no prestem auxlio algumpara ditas esmolas fora da Parquia. (Carta Pastoral a D. Antnio Joaquim de Melo, bispo diocesano de SoPaulo a partir de 1852, apud Boanerges Ribeiro, 1973: 135/6). O mesmo bispo proibia o levantamento deoratrios e capelas sem a autorizao da Igreja. Proibiu tambm outros rituais populares, como as Funes deSo Gonalo, e tinha idias discriminatrias sobre as Irmandades: Seu principal defeito admitir para Irmostoda a classe de pessoas, sem nenhuma distino mais que os bons costumes (Ribeiro, 1973: 135).

  • 7/28/2019 Memoria Sagrado

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    culto popular foram e continuavam sendo eficazes. Segundo, quando as festas de santo ououtros rituais mais costumeiros produziam alguma concentrao de bens (gado, leitoas,frangos, pratos rsticos, objetos de artesanato) ou de dinheiro. O trabalho religioso dosinmeros rezadores de tero ou dos mestres violeiros das danas de So Gonalo, nocostumavam ser controvertidos quando restritos ao mbito familiar ou a pequenos gruposrurais de parentes ou vizinhos. Mas eles eram publicamente condenados pela parquia

    quando, mesmo dentro das fronteiras da comunidade camponesa, chegavam perto de umdomnio social ampliado que a Igreja reconhecia como exclusivamente seu, no campo das