Memoria Historiador

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REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO, N 4, 2004. ISSN 1806.3993 MEMÓRIA, CIDADANIA E OS NOVOS CAMPOS DE TRABALHO DO HISTORIADOR Gunter Axt i Resumo: Este texto tem mais as características de um ensaio do que de um artigo científico, pois está fundamentalmente apoiado em opiniões e vivências profissionais que nos são próximas. Procuramos, aqui, relacionar os novos campos de trabalho do historiador na sociedade brasileira contemporânea com algumas das condições de exercício profissional e associativo, bem como com conceitos de memória e de cidadania. Além disso, procuramos conduzir uma reflexão sobre a recente experiência de constituição de memoriais e centros de memória institucionais no País. Palavras-chave: : memória, cidadania, historiador, memoriais Abstract: This work is much more an essay than a scientific paper. It is grounded in opinions and professional experiences that we all share as historians. Here we explore the relationship between some new fields of work for historians in contemporary Brazilian society with their professional reality, as well as with the concepts of memory and citizenship. Besides that, we reflect on the recent experience on new memorial buildings and institutional memory centers all over the country. Keywords: Memory, citizenship and the new working areas for the Historian. Este texto, muito mais do que um artigo científico tradicional, pode ser entendido como um ensaio que sugere algumas reflexões baseadas em uma prática profissional ainda nova e sobre cujas nuanças muito pouco se escreveu ii . Por isso mesmo, importa sublinhar que as idéias que aqui procuro compartilhar são produto de avaliações do momento, podendo transformar-se com o tempo, adequando-se ao sabor da evolução imponderável do porvir. A chance de publicar um texto como este em uma revista científica é um privilégio, não apenas para mim, ouso dizer, mas para o conjunto da classe de historiadores, pois urge que possamos nos concentrar mais nos diversos aspectos das condições de produção do nosso ofício. A interface do campo de trabalho

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Gunter Axt

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  • REVISTA HISTRIA HOJE, SO PAULO, N 4, 2004. ISSN 1806.3993

    MEMRIA, CIDADANIA E OS NOVOS CAMPOS DE TRABALHO DO HISTORIADOR Gunter Axt i

    Resumo: Este texto tem mais as caractersticas de um ensaio do que de um artigo cientfico, pois est fundamentalmente apoiado em opinies e vivncias profissionais que

    nos so prximas. Procuramos, aqui, relacionar os novos campos de trabalho do

    historiador na sociedade brasileira contempornea com algumas das condies de

    exerccio profissional e associativo, bem como com conceitos de memria e de cidadania.

    Alm disso, procuramos conduzir uma reflexo sobre a recente experincia de

    constituio de memoriais e centros de memria institucionais no Pas.

    Palavras-chave: : memria, cidadania, historiador, memoriais

    Abstract: This work is much more an essay than a scientific paper. It is grounded in opinions and professional experiences that we all share as historians. Here we explore the

    relationship between some new fields of work for historians in contemporary Brazilian

    society with their professional reality, as well as with the concepts of memory and

    citizenship. Besides that, we reflect on the recent experience on new memorial buildings

    and institutional memory centers all over the country.

    Keywords: Memory, citizenship and the new working areas for the Historian.

    Este texto, muito mais do que um artigo cientfico tradicional, pode ser entendido

    como um ensaio que sugere algumas reflexes baseadas em uma prtica profissional

    ainda nova e sobre cujas nuanas muito pouco se escreveuii. Por isso mesmo, importa

    sublinhar que as idias que aqui procuro compartilhar so produto de avaliaes do

    momento, podendo transformar-se com o tempo, adequando-se ao sabor da evoluo

    impondervel do porvir. A chance de publicar um texto como este em uma revista

    cientfica um privilgio, no apenas para mim, ouso dizer, mas para o conjunto da

    classe de historiadores, pois urge que possamos nos concentrar mais nos diversos

    aspectos das condies de produo do nosso ofcio. A interface do campo de trabalho

  • do historiador com os memoriais, centros de memria e projetos de memria institucional

    tema sobre o qual eu tenha, talvez, algumas contribuies a acrescentar a este vasto

    debate, sempre em crescimento.

    O surgimento de memoriais, centros de memria e projetos de memria

    institucional constitui-se em fenmeno relativamente recente que tem chamado a ateno,

    pelo seu ineditismo, de muitos profissionais que se conectam de alguma forma com o

    campo da memria. Tais iniciativas, algumas efmeras, outras com poderosa capacidade

    de institucionalizao, tm suscitado instigantes questes, de interesse, tanto para a

    reflexo em torno da construo do conhecimento histrico, quanto para a reflexo

    atinente prtica do ofcio do historiador. De fato, um dos primeiros aspectos a serem

    considerados diante da profuso de projetos de memria institucional o da emergncia

    de novos campos de trabalho para o historiador, bem como sobre as causas sociais que

    esto interagindo sobre este fenmeno. Outro tema relevante nos leva a meditar sobre a

    possibilidade, ou no, de se produzir reflexo de carter acadmico e produo cientfica

    de qualidade fora do ambiente universitrio tradicional. Em terceiro lugar, cabe refletir um

    pouco sobre princpios gerais da metodologia de trabalho desses projetos institucionais,

    bem como sobre aspectos da dinmica de interdisciplinaridade a eles necessariamente

    intrnseca.

    Muitos pensam no historiador como aquele senhor respeitvel, de idade provecta,

    sentado, de culos, em sua vasta biblioteca, distante do mundo, que pode ser consultado

    sempre que as pessoas tiverem necessidade de acessar um arsenal infindvel de

    curiosidades e de detalhes que nem mesmo a memria do mais potente computador

    conseguiria armazenar. Noutro extremo, h quem imagine o historiador devendo dedicar-

    se exclusivamente docncia e s suas investigaes cientficas, abrigando-se, no topo

    da carreira, nas instituies de ensino superior e estabelecendo por interlocutores

    privilegiados, quando no exclusivos, seus pares da academia, seus alunos e

    orientandos.

    Entretanto, se tentarmos identificar no historiador um profissional que encarna uma

    importante funo social, talvez concluiremos que esta funo social perpassa, alm das

    j tradicionais e relevantssimas funes de pesquisa acadmica e docncia, a condio

    de um artfice de identidades. No que identidades scio-culturais no existam

    independentemente do trabalho do historiador. Mas ao organizar fontes, propondo sries

    documentais, sistematizando dados empricos, formular o historiador perguntas e cerzir

    interpretaes sobre o vivido que sugeriro sentidos para as pessoas. Esses sentidos

  • convertem-se em identidades. Assim como todo indivduo necessita ter a sua certido de

    nascimento, o seu registro geral e outros dados que o identifiquem, tambm as

    instituies, as comunidades, as cidades e as sociedades precisam conhecer suas

    identidades culturais. Porque so essas identidades que facilitaro a conscincia do que

    intrinsecamente comum a todos, daquilo que transcende o individual, o particular.

    Identidades, portanto, facilitam a coeso social, contribuindo, destarte, na afirmao dos

    espaos pblicos e da cidadania, no fortalecimento da democracia e na preservao da

    soberania, de uma nao ou de uma instituio, aspecto que procurarei desenvolver a

    seguir.

    Mais ou menos conscientes dessas conexes, instituies, tais como o Poder

    Judicirio e o Ministrio Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, os Ministrios Pblicos

    dos Estados da Paraba e de Pernambuco, as Assemblias Legislativas dos Estados do

    Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, agncias federais de desenvolvimento ou de

    fomento, a Cmara Municipal da Cidade de Pelotas, entre outras, bem como diversas

    empresas privadas, tm investindo, ou investiram em algum momento, na concepo e

    implantao de projetos de memria institucional, tecnicamente coordenados por

    historiadores experientes e titulados, e, ocasionalmente, tambm, por muselogos,

    arquivistas e socilogos, naquilo que diz respeito a sua rea de especializao.

    Uma parcela, ainda pequena, desses projetos tem sido viabilizada mediante

    convnios com universidades, em geral pblicas ou comunitrias, especialmente aquelas

    instituies que, por suas caractersticas constituintes, associaram historicamente s

    atividades de ensino e de pesquisa laos mais estreitos de intercmbios com o entorno

    comunitrio e que, ainda, lograram desenvolver estratgias geis e contemporneas de

    gesto. De fato, a operacionalizao de projetos de memria institucional demanda

    estruturas administrativas capazes de levar em conta, alm da excelncia acadmica,

    tambm as injunes da lgica de mercado, tais como cuidadosa ateno dedicada a

    clientes que nem sempre conhecem as agruras e dificuldades da pesquisa, disposio de

    convivncia com culturas corporativas e administrativas distantes da ambincia

    universitria, capacidade de trabalhar com cronogramas de execuo baseados em

    expectativas de resultados, capacidade de viabilizar o ofcio do historiador sob o formato

    de trabalhos de equipe, o que, particularmente, no nada fcil, considerando que a

    formao e o exerccio da nossa profisso possuem uma nfase na performance

    individual, ou seja, uma nfase no historiador indivduo, solitrio, que descobre as fontes,

  • formula suas prprias questes sobre o passado e trabalha isoladamente, to somente,

    em geral, compartilhando suas reflexes no momento da publicao de seu trabalho.

    De qualquer forma, o interesse das instituies tradicionais de ensino e de

    pesquisa pelo mercado , ainda, recente. Praticamente desconhecido em pases da

    Europa e, mesmo, nos Estados Unidos, foi, no Brasil, uma resposta, em grande parte,

    crise de financiamento que se abateu sobre parcela considervel das instituies de

    ensino superior a partir, sobretudo, de fins dos anos 1980, na medida em que, atentas

    experincia exitosa acumulada por alguns historiadores que comearam a atuar em

    conexo com o mercado e fora do espao acadmico tradicional, perceberam, as

    mesmas, uma chance de capitalizao de recursos intrnseca aos projetos de memria

    institucional.

    Dois outros fenmenos, ainda, tendem a reforar esta tendncia nos ltimos anos.

    De um lado, fugindo de um mercado em si altamente competitivo e deveras saturado,

    alguns jornalistas, dominando com desenvoltura tcnicas de escrita e sabendo comunicar-

    se com clareza e leveza com um grande pblico de leitores, alm do fato de estarem, em

    geral, posicionados de forma mais privilegiada do que normalmente esto os historiadores

    junto ao setor editorial e mdia, passaram a imiscuir-se no campo prprio dos

    historiadores, produzindo obras, em muitos casos, descontadas algumas excees, cuja

    qualidade do contedo duvidosa, mas que, no obstante, se converteram em grandes

    sucessos editoriais, de forma a sinalizar com muita clareza para os prejuzos derivados do

    vcuo deixado pelos profissionais do campo da Histria, que, at ento, no Brasil, pouco

    haviam se apercebido da grande demanda existente na sociedade pelo produto da

    reflexo historiogrfica e sobre a memria.

    Por outro lado, as leis de incentivo cultura, cujo uso se difundiu no Brasil ao

    longo dos anos 1990, vm sendo, ainda, relativamente pouco aplicadas a projetos

    culturais voltados para a rea do patrimnio e da reflexo histricos. A maior parte dos

    projetos destinados a esta rea so assinados por arquitetos ou jornalistas, e, em que

    pese os muitos acertos e resultados positivos alcanados, nem sempre levando em conta

    alguns critrios caros aos profissionais do campo de construo do conhecimento

    histrico. Preocupadas em contribuir para a qualificao dos profissionais em atuao no

    mercado de produo cultural e em sedimentar conceitos prprios ao campo da Histria

    junto a projetos culturais direcionados s leis de incentivo, algumas instituies de ensino

    superior passaram a investir na organizao de cursos de extenso ou de especializao.

    Tratam-se de iniciativas a serem saudadas, pois no apenas indicam o reconhecimento

  • da acelerada consolidao de um novo mercado para a ao dos profissionais de

    Histria, como prestam um relevantssimo servio social, vez que os recursos mobilizados

    pelas leis de incentivo, essenciais para a alavancagem do mercado cultural num pas sem

    tradio de mecenato e com o estado mergulhado em dramtica crise estrutural, no

    deixam de ser produto da renncia fiscal, sendo, portanto, em ltima anlise, recursos

    pblicos cujo investimento deve, especialmente em um pas pobre como o nosso,

    obedecer tambm a critrios de interesse social. No se trata aqui de invocar a

    restaurao de antigas polticas estribadas no dirigismo estatal, mais coerente com

    regimes autoritrios, o que no pretendemos ser o caso brasileiro no momento, nem

    muito menos de defender a criao de agncias de regulao que, se mal

    implementadas, podem se converter com facilidade em instrumentos de racionalizao de

    eventuais prticas clientelsticas, mas, to somente, de sugerir algumas prioridades,

    talvez fixadas em critrios de permanncia. De fato, o Poder Pblico no pode entender

    que seu papel na poltica cultural resume-se a implantar as leis de incentivo cultura e

    deixar que o mercado se encarregue naturalmente de priorizar os investimentos. Por

    exemplo, ao invs de investirem-se milhes de reais em shows de cantores populares,

    comerciais e amplamente reconhecidos pelo mercado fonogrfico, ou em carssimos

    espetculos de luzes e som que duram algumas dezenas de minutos, no poderamos

    estabelecer mecanismos, ou, ento, militar para que uma parte desses recursos pudesse

    ser direcionada tambm para projetos menos visveis, digamos assim, mas, talvez, muito

    mais perenes, tais como a restaurao do acervo de um museu, a organizao de um

    arquivo, a publicao de livros com densidade de contedo ou o abastecimento de

    bibliotecas pblicas?

    Enfim, somente no Estado gacho, possuem atualmente cursos recm-criados de

    especializao direcionados para esta rea as Universidades Federais de Pelotas e do

    Rio Grande do Sul. Em nvel nacional, parece pertencer ao CPDOC, da Fundao Getlio

    Vargas, a iniciativa mais slida nesse sentido. Com efeito, em 2003, o CPDOC, que at

    ento no havia se dedicado sistematicamente docncia, implantou um mestrado

    profissionalizante em gesto de bens culturais e de responsabilidade social. O prprio

    CPDOC, como se sabe, passou a incluir, dentre as suas atividades vocacionadas,

    sobretudo desde incios dos anos 1990, adequando-se a uma conjuntura de refluxo de

    recursos que at ento lhe eram destinados por instituies de financiamento pesquisa,

    como a Fundao Ford e a FINEP, consultorias a projetos de memria que

    compreendiam pesquisa histrica. A condio de um segmento dedicado pesquisa

  • histrica, no mbito de uma fundao privada, tenha, talvez, facilitado ao CPDOC a

    percepo das demandas do mercado, assim como a formulao de respostas geis,

    garantindo a esta instituio notvel pioneirismo na execuo de consultorias a projetos

    de memria. A profcua produo do CPDOC tem comprovado a todos que

    perfeitamente possvel desenvolver-se trabalhos de qualidade como produto de

    consultorias prestadas a projetos de memria institucional. Alm disso, a metodologia

    desenvolvida pelo CPDOC tem servido de referencial para muitos historiadores

    consultores e para instituies interessadas em consolidar centros de pesquisa e de

    documentao.

    Parte expressiva dos projetos de memria institucional em execuo, ou

    executados, no Pas viabilizou-se mediante a contratao de historiadores consultores.

    No caso de instituies pblicas, que enfrentam uma srie de limitaes e

    regulamentaes administrativas, como se sabe, esses contratos se materializaram, em

    geral, por notria especializao, com inexigibilidade de licitao, de pessoas fsicas. No

    Rio Grande do Sul, a Assemblia Legislativa desenvolveu uma atividade pioneira,

    seguindo este modelo, entre os anos de 1996 e 2001. Recentemente, pessoas jurdicas,

    tais como empresas ou institutos, vm sendo criadas por historiadores justamente para

    dar conta da ampliao da demanda pelos servios de pesquisa histrica. O principal

    diferencial das pessoas jurdicas em relao s fsicas est na capacidade de mobilizar

    equipes de pesquisa, de baratear custos contratuais para a instituio contratante, de

    descaracterizar qualquer trao de vnculo empregatcio e de agregar aos contratos uma

    experincia acumulada de relacionamento institucional, de especializao na interface

    entre o mercado e o campo da memria, incluindo, ocasionalmente, a gesto com as leis

    de incentivo cultura, o que muito importante, pois os profissionais de Histria

    tenderam a deixar este campo para os agentes culturais, jornalistas e publicitrios, raras

    oportunidades atuando diretamente na proposio de projetos culturais junto aos

    conselhos estaduais de cultura ou ao Ministrio da Cultura.

    Sendo ainda poucos os historiadores atuando no campo de consultorias, seu

    nmero vem crescendo nos ltimos anos, na esteira de alguns exemplos bem sucedidos.

    Em que pese, contudo, serem estes profissionais cada vez mais reconhecidos pelos seus

    pares como portadores de receitas de sucesso, so ainda expressivos os desafios e

    incompreenses a que esto os mesmos submetidos.

    Em primeiro lugar, um historiador consultor precisa aprender a falar a linguagem

    do mercado, o que no nada fcil, considerando que nossa formao majoritariamente

  • direcionada para uma nfase conteudstica e terica. Isto , historiadores, em geral, no

    s no so preparados para ingressarem no mercado na condio de profissionais

    liberais, ao contrrio dos mdicos, arquitetos ou bacharis em direito, por exemplo, como,

    inclusive, em virtude, talvez, do profundo grau de compromisso com o social que distingue

    organicamente esta categoria, chegam a animar uma tomada de posio refratria em

    relao ao mercado. Neste ponto, duas consideraes fulcrais se impem: em primeiro

    lugar, o dilogo com o mercado no implica, necessariamente, na abdicao da

    conscincia social dos historiadores, da mesma forma como que muitos historiadores,

    filiados a partidos polticos, no empanaram faciosamente suas anlises cientficas. Se

    um advogado, um arquiteto ou um mdico podem animar o exerccio da sua atividade

    profissional liberal com profundo compromisso social, por que no poderia fazer o mesmo

    um historiador? Em segundo lugar, cabe a pergunta: existe maneira mais eficaz, no dias

    de hoje, quando as alternativas de revolues e lutas armadas parecem a todos cada vez

    mais anacrnicas e descabidas, de influir para que o mercado capitalista torne-se menos

    excludente, exploratrio e imediatista do que atuar junto ao mesmo, conhecendo suas

    regras de funcionamento? claro que, cabe aqui, para os historiadores a mesma reflexo

    que pode ser aplicada, de resto, a qualquer profissional ou cidado: no a sua

    participao no mercado ou sua posio em relao ao mesmo que caracterizar a

    eficcia de sua responsabilidade com a dimenso do social, mas a consistncia de seus

    valores, de seus compromissos ticos e conceituais.

    Outro aspecto sutil desta questo que, ao falar a lngua do mercado, o

    historiador consultor no pode voltar as costas metodologia e cincia acadmicas e

    cientficas. O historiador no pode, por fora das presses do mercado, converter-se num

    apologista ou num publicitrio, pois, nesse caso, ele perde a sua identidade. preciso

    encontrar um ponto de equilbrio entre os dois termos: cincia e mercado. Este equilbrio

    alcanado, por exemplo, quando um livro de um consultor pode ser lido tanto no meio

    universitrio quanto por um pblico amplo ou por leitores de instituies especficas

    situadas fora da ambincia acadmica e para os quais o livro foi originalmente produzido.

    Dito assim, pode parecer estranho e at um tanto hertico para alguns historiadores mais

    conservadores. Entretanto, este equilbrio no assim to incomum: a historiadora norte-

    americana Brbara Tuchmann, por exemplo, nunca abriu mo da excelncia cientfica

    para se converter em um fenmeno editorial mundial.

    Alm de falar a linguagem do mercado e preservar seu referencial acadmico,

    precisa o historiador consultor disponibilizar-se a investir na interdisciplinaridade, o que

  • consome tempo, dinheiro e muito esforo. Como a demanda pelo trabalho de pesquisa do

    historiador partir de instituies situadas em outros campos do conhecimento, como o

    direito, a medicina, segmentos diversos da indstria, etc., precisar este consultor

    dominar conceitos bsicos destes campos. O historiador consultor ser, portanto, cobrado

    por seus pares, colegas de academia, no que se refere a qualidade acadmica e

    epistemolgica de seu trabalho, ao mesmo tempo em que ser cobrado pelos

    profissionais que atuam no campo para qual presta a sua consultoria. Assim, alm de ser

    um profissional competente na sua rea de atuao, o historiador consultor precisar,

    tambm, formar um razovel conhecimento de outras reas e campos do conhecimento,

    para os quais prestar consultoria. Este conhecimento cumulativo no fcil de ser

    reunido.

    fundamental conhecer, igualmente, das estratgias modernas de gesto de

    equipe, de conceitos de administrao empresarial ou do conhecimento prprio ao campo

    da produo e da gesto cultural. A propsito, administrao de empresas, num pas to

    peculiar como o Brasil, no nada simples. Em pouco tempo, descobrir o historiador

    consultor e administrador de uma empresa que, neste pas, o estmulo livre iniciativa e

    ao emprendedorismo gerador de empregos e de renda deveras duvidoso. No fosse,

    por exemplo, a legislao federal que instituiu o SIMPLES, programa de recolhimento de

    impostos com base no lucro presumido que beneficia micro e pequenas empresas, seria

    praticamente impossvel aos historiadores constituir escritrios de consultoria. Apesar

    dessa garantia, no h sossego para o pequeno ou micro empresrio. Nadando nas

    guas turvas da estonteante instabilidade jurdica deste Pas e arrostando ms a ms a

    fria arrecadatria de governantes e de burocratas de planto, municipais, estaduais e

    federais, logo descobrir o historiador consultor a enorme dificuldade de ser em pequeno

    empresrio.

    Por exemplo: se o Governo Federal estimulou as micro e pequenas empresas por

    intermdio do SIMPLES, a Prefeitura de Porto Alegre possui um ISSQN padro, de 5%

    sobre o faturamento, que incide sobre toda a natureza de negcios, sem distines, o que

    inibe iniciativas de pequenos empresrios e pode contribuir para expulsar empresas para

    os municpios circunvizinhos, onde o ISSQN fica em torno de 2%. Sabemos, a propsito,

    que justamente esta faixa empresarial que responde, no Brasil, pela maior quantidade

    de empregos.

    Outro escolho ao empreendedorismo dos pequenos a legislao trabalhista

    brasileira. Fruto, sabemo-lo, da necessidade histrica do Pas em enfrentar suas

  • profundas injustias sociais, pela sua complexidade e volume de encargos agregados,

    contudo, ela pode prejudicar algumas pequenas iniciativas. Convnios visando vagas

    para estagirios e contratos com autnomos podem ajudar a contornar esta barreira, pelo

    menos por um determinado tempo e para determinadas tarefas e funes.

    No possuem os pequenos, em geral, recursos para financiar assessorias

    jurdicas, sendo este um dos motivos fulcrais que explicam a dificuldade de sobrevivncia,

    no Brasil, por mais de trs anos, da maioria dos pequenos negcios. Dificilmente

    encontram os pequenos apoio eficaz em sindicatos empresariais e raramente so ouvidos

    pelos Legislativos, do Estado e dos Municpios. Freqentemente, porm, enfrentam a fria

    discricionria de certos tcnicos das Fazendas Municipais e Estaduais, muitos dos quais

    tm grande dificuldade de reconhecer o SIMPLES e esto sempre se esmerando por

    encontrar alguma instruo normativa qualquer que violente a legislao soberana do

    Congresso Nacional. Sem dvida, o direito ofendido pode ser reparado pela via judicial,

    mas o pequeno empreendimento arcar com o peso dos honorrios advocatcios,

    enquanto os tcnicos, mesmo constrangidos a reconhecer o equvoco, no sofrero

    qualquer reprimenda e podero, no futuro, voltar a atazanar a vida de quem gera renda e

    emprego. Enfim, preciso dizer-se que este um Pas que no garante tranqilidade

    para o empresrio trabalhar dentro da lei e da ordem, o que acaba representando um

    custo extraordinrio, em tempo, dinheiro e estresse, para todo aquele que se lanar no

    empreendedorismo.

    Outro campo de conhecimento para o qual deve estar atento o historiador

    consultor o da gesto cultural. Trata-se de um campo cujos conceitos e estratgias vm

    se afirmando nos ltimos anos, em decorrncia da abertura econmica do Pas

    acontecida no incio dos anos 1990, da implantao das leis de incentivo cultura e do

    progressivo recuo da interveno direta do estado no campo cultural. No possvel

    neste espao aprofundar-se a matria, mas importante registrar genericamente que, ao

    conceber e executar projetos de memria institucional, sejam eles pontuais ou mais

    sistemticos, est o historiador fazendo poltica cultural e, possivelmente, tambm,

    marketing cultural para uma dada instituio.

    Em primeiro lugar, todo o projeto de memria institucional deve ter clareza quanto

    a sua misso (ou seja, o compromisso mais amplo com uma instituio ou com a

    sociedade) e a sua viso (ou seja, a meta a ser alcanada pelo projeto ou pela instituio

    que o promove no futuro). fundamental, alm disso, que se tenha em mente o pblico

    alvo do projeto. Havendo clareza quanto misso e guiados pela viso, podem ento os

  • executores do projeto propor macro e micro estratgias de ao, que se conectaro aos

    objetivos gerais e especficos do projeto. As estratgias no so rgidas e podem ser

    revistas ao longo do tempo de execuo do projeto, conforme o seu grau de sucesso.

    Mas elas devem estar elencadas por esquemas de prioridade e compreendidas em

    cronogramas de trabalho.

    Paralelamente a isso, o historiador consultor precisa ter presente que no

    nenhum crime que o seu trabalho com a memria faa parte de uma estratgia mais

    ampla de marketing institucional. Aqui, entretanto, impem-se alguns limites bem claros.

    Se o que o cliente deseja um trabalho apologtico, ento, como indicamos

    anteriormente, ele precisa de um publicitrio e no de um historiador, pois o papel do

    historiador justamente construir, reconstruir e debater a identidade de uma instituio, o

    que se faz, tambm, e necessariamente, operando-se anlises crticas. Estas anlises,

    todavia, devem ser costuradas com responsabilidade institucional, o que, trocando em

    midos, pode significar to simplesmente a devida contextualizao do problema. Por

    exemplo: se um consultor ignorar que na Primeira Repblica a Justia era elitista e

    excludente e que o Judicirio podia ser aparelhado pelo Poder Executivo ou pelos

    poderes privados locais, seu trabalho perder legitimidade e, em ltima anlise, no

    estar alcanando o objetivo final, que debater a identidade institucional. Mas se, por

    outro lado, esta captura do Poder Judicirio por influncias exgenas for explicada no

    contexto geral de relaes de poderes do sistema coronelista e se o historiador mostrar a

    importncia, justamente, para a cidadania de um Judicirio com independncia,

    autonomia e compromisso social, ento a crtica ter sido feita com responsabilidade

    institucional e ser prestigiada no apenas pelos historiadores, mas tambm pela

    Magistratura. Outro exemplo: um projeto de memria institucional no pode estar a

    servio de uma determinada faco ou corrente poltica interna de uma instituio, pois,

    caso contrrio, o conjunto de uma classe no reconhecer legitimidade no trabalho

    realizado, o que se constituir em uma barreira para que o objetivo geral de debater a

    identidade da instituio seja alcanado. Ou seja, o historiador consultor precisa vestir a

    camiseta da instituio, digamos assim, e no de uma corrente ou faco intestina. Cabe,

    com certeza, ao historiador consultor explicar esta sutileza aos seus clientes, tarefa, que,

    reconhecemos, nem sempre fcil. Esta tomada de posio conceitual, claro, mais

    difcil quando uma instituio contratante no tem clareza quanto ao seu projeto

    institucional e presa fcil de personalismos de ocasio.

  • Este um dos motivos pelos quais mais fcil alcanar a institucionalizao de

    um projeto de memria no Poder Judicirio ou no Ministrio Pblico do que nos

    Legislativos. As Assemblias Legislativas tendem, salvo excees cada vez mais raras no

    Brasil, a funcionar cada vez menos organicamente. Cada gabinete parlamentar pode se

    constituir em um mundo parte, uma ilha, e as presidncias convertem-se geralmente em

    extenso desses gabinetes, de tal sorte que se torna cada vez mais difcil a identificao

    de um projeto institucional de mdio e longo prazo nos Legislativos. Este problema est

    na raiz, entre outras coisas, da perda progressiva de importncia dos Legislativos no

    cenrio poltico nacional. No que se refere especificamente sobre a memria, as

    Assemblias Legislativas dificilmente conseguem implementar polticas de gesto

    documental, de tal sorte que se torna praticamente impossvel localizar relatrios, de

    comisses de inqurito, extraordinrias ou permanentes, por exemplo, que no foram

    publicados ou no integram os anais. Assim sendo, no de se estranhar que ao herdar

    um projeto de memria institucional em curso uma dada presidncia no sinta

    necessidade de garantir-lhe continuidade, pois a tendncia natural seria identific-lo com

    a poltica da presidncia anterior, por mais que o projeto tenha um compromisso

    institucional e no especfico, nem tampouco personalista.

    Esta continuidade tambm muito difcil de ser estabelecida em instituies que

    no tm clareza quanto necessidade de estabelecer um canal de comunicao

    sistemtico com a comunidade. Para algumas instituies, a melhor estratgia de

    sobrevivncia e de afirmao parece ser a de fechar-se em copas, dialogando o mnimo

    possvel com o entorno comunitrio e com os formadores de opinio pblica, o que se

    constitui, em tempos atuais, numa tomada de posio anacrnica e com grandes chances

    de ser contra-produtiva. Setores da rea militar e da rea judiciria podem estar neste

    grupo e por isso mesmo tm dificuldades de consolidar a institucionalizao de modernas

    assessorias de imprensa ou de projetos de memria.

    Por qu to importante, nos dias de hoje, para as instituies pblicas

    comunicarem-se com sistemtica e profissionalismo com o entorno social? Por qu cada

    vez mais as instituies pblicas apercebem-se que o investimento na comunicao

    para elas to essencial quanto para qualquer empresa privada? Para responder a estas

    perguntas, precisamos refletir brevemente sobre a crise do moderno estado de direito

    democrtico em pases perifricos. Os conceitos de soberania e de estado nacional foram

    sacudidos no Brasil, nos ltimos anos, por um duplo fenmeno. De um lado, sofremos o

    impacto do processo de globalizao e, de outro, democratizamos o Pas a partir da

  • Constituio Federal de 5 de outubro de 1988 e, desde ento, muito embora nossas

    instituies estejam resistindo a ameaas de rupturas drsticas, mergulhamos em uma

    impressionante cultura de instabilidade jurdica.

    No resta, atualmente, dvida que, muito embora inevitvel, a globalizao

    carrega em si o perigoso componente de priorizar as necessidades do mercado financeiro

    em detrimento das demais necessidades de uma sociedade. A chamada guerra contra o

    terror, presentemente movida pelos Estados Unidos da Amrica contra outros pases,

    como o Iraque e o Afeganisto, pode estar indicando que o mundo no foi ainda capaz de

    desenvolver instituies internacionais, independentes e eficazes, de mediao dos

    conflitos, o que, justamente, sugere que assistimos a mundializao de alguns conceitos,

    em prejuzo de outros, quem sabe regionais, e, talvez, mais fracos, ou to simplesmente

    dissonantes em relao lgica dominante do mercado. No vem nessa considerao

    nenhuma inteno de justificar a barbrie do terrorismo, mas apenas uma tentativa de

    reflexo sobre a eficcia real de responder a esta selvageria com mais violncia, quando

    talvez precisssemos buscar a causa do sintoma. O processo de globalizao tem

    ofendido a jurisdio do estado nacional, o que poderia at ser uma coisa positiva se no

    lugar desta jurisdio pulverizada entre inmeros estados estivssemos construindo

    instituies internacionais independentes, ao invs de submetermos o mundo ao taco de

    uma nica potncia.

    Um pas perifrico diante deste quadro pode, grosso modo, optar dentre trs

    caminhos distintos: submeter-se passivamente a um processo de globalizao de fora

    para dentro, de cima para baixo e com nfase nos interesses do mercado financeiro;

    partir, no outro extremo, para uma resistncia geral e indiscriminada e, talvez por isso

    mesmo, atvica; ou, ento, que o que nos parece mais razovel, estabelecer estratgias

    combinadas de resistncia e de adeso, identificando os aspectos em que conveniente,

    ou inevitvel, ceder e adaptar-se s condies externas, bem como aqueles em que a

    submisso compromete parcela razovel de uma soberania que ainda parece ser

    essencial na busca pelo bem estar do nosso povo. Sem dvida que esta ltima estratgia

    no se constri de forma essencialista. H algum tempo o Brasil tenta ser uma

    democracia e, nesse sistema, as decises no so tomadas exclusivamente pelo

    comando do Poder Executivo, mas, para serem efetivas, precisam estar escudadas numa

    legitimidade conferida pela participao popular e pela negociao com outras esferas de

    poder e instituies. Eis porque fundamental que cada instituio, cada comunidade,

    tenha clareza quanto ao seu projeto de desenvolvimento, para que, no somatrio desses

  • inmeros projetos, possa-se encontrar uma mdia, que ser a base mais estvel de um

    projeto nacional, noo da qual, creio, abrimos perigosamente mo nesse Pas nas

    ltimas dcadas se numa Capital, como Porto Alegre, nacionalmente reconhecida pelos

    seus ndices de qualidade de vida, os cidados no sabem como se projeta a cidade para

    os prximos 10 anos (coisa que qualquer habitante de Barcelona ou de Paris saber

    informar minimamente), isto , se a vocao da cidade o setor de servios, se a

    vocao o desenvolvimento da indstria de informtica, se a vocao da cidade o

    desenvolvimento da industrializao, etc., enfim, o que se pode dizer do Brasil? Ningum

    mais parece saber para onde queremos ir, enquanto nao civilizada. Pedem-se mais e

    mais sacrifcios populao, aumentam-se os impostos, e para qu?

    Por isso, fulcral que cada instituio, cada ente, cada categoria profissional seja

    capaz de debater aonde quer chegar. No se resiste a nada e no se defende a

    soberania se no se tem um projeto. E no se tem um projeto com um ncleo aglutinador

    minimamente estvel se no se tem noo da sua prpria identidade. exatamente aqui

    que entra a contribuio possvel do historiador, pois, sendo um arteso da memria,

    ele um artfice de identidades, e identidade e soberania so dimenses indissociveis.

    Cada vez mais instituies, pblicas e privadas, tm se apercebido, quase que

    instintivamente, desta conexo e procuram estabelecer projetos de memria, o que

    altamente positivo, pois pode estar indicando que nem tudo est perdido neste Pas e

    que, especialmente para os historiadores, h um mercado em expanso esperando para

    ser explorado. Creio, portanto, sinceramente, que a crtica construtiva e a proposio de

    estratgias de resistncia ao processo estandartizador da globalizao podem

    perfeitamente conviver, no plano do ofcio do historiador, com uma lgica relacional com o

    mercado, situada na interface com a cincia.

    A grandeza de uma nao comea nas pequenas coisas. Uma cidade, um bairro,

    uma instituio, uma escola, uma empresa que so capazes de sinalizar a sua origem e

    de expor a sua trajetria aos olhos do estranho, do visitante ou da prpria comunidade,

    fixam marcos de memria. Estes marcos da memria coletiva contribuem para a costura

    de uma identidade comunitria comum e facilitam a coeso social, alm de, claro,

    estimularem a indstria do turismo. A coeso social pode ser uma aliada poderosa na

    identificao de certos valores comunitrios elementares ou mesmo na luta contra a

    violncia cotidiana. Memria, portanto, se est conectada identidade comunitria e

    soberania, pode estar tambm conectada coeso social. claro que, dificilmente

    caminharemos no sentido da coeso social se adotarmos um paradigma de memria

  • excludente, em face do qual mulheres, negros, ndios, operrios ou favelados tenham

    menos destaque do que a elite burguesa ou aristocrtica. O prprio mercado, entretanto,

    ainda que baseado no direito de propriedade, oferece brechas para que projetos

    especficos quebrem o paradigma da memria.

    Em segundo lugar, a reconstitucionalizao democrtica do Pas acontecida nos

    anos 1980 lanou as bases para o estabelecimento de um novo referencial na relao

    entre estado e sociedade: no mais a tutela de uma tecnocracia sobre o povo, mas o

    prprio povo, cada vez mais, chamado a participar do espao pblico. Estamos ainda

    muito longe de uma democracia plena, tanto do ponto de vista institucional quanto social,

    todavia a distino realizada aqui importante. Os mandatos governativos e legislativos

    so decididos nas urnas e no mais nos acordos palacianos e nas conversas de alcova.

    Bem ou mal, as polticas pblicas so cada vez mais debatidas pela sociedade e assim

    como os governantes precisam explicar convincentemente para os eleitores suas opes,

    sob pena de serem rejeitados pelas urnas, instituies que se situam aparentemente

    distantes do campo poltico-eleitoral e cujos membros no empunham mandatos

    populares, como o Poder Judicirio, as Foras Armadas e o Ministrio Pblico, precisam

    estar atentas dinmica do campo poltico-eleitoral, pois somente o eleitor convencido

    da importncia social de uma dada instituio que a defender de eventuais influxos

    conservadores ou injunes que visem a limitar suas garantias constitucionais. Por

    exemplo, como defender o Judicirio dos ataques do Congresso Nacional e do Poder

    Executivo Federal se a imagem da Justia junto ao povo ruim? Esta preocupao tem

    aumentado no quadro de instabilidade jurdica que tem caracterizado nossa democracia

    desde a malfadada reviso constitucional de 1993. grande a ameaa atual, patenteada

    pelo legislador ordinrio e com freqncia promovida pelo Executivo, s chamadas

    clusulas ptreas da Constituio. Alm disso, considerando a vivncia democrtica ainda

    incipiente do povo brasileiro e o nvel relativamente fraco de formao educacional de

    muitos eleitores, alto o risco de afirmao de discursos populistas de ocasio que

    escondem, por detrs de falas amenas e pretensamente democrticas, intenes

    autoritrias ou conservadoras. Da a questo: no Brasil, no adianta uma instituio

    desempenhar um papel constitucional relevantssimo e executar um bom trabalho,

    preciso comunicar ao cidado eleitor os resultados desse trabalho com profissionalismo e

    eficcia. Mais do que isto, ainda, preciso saber reconhecer publicamente os erros e

    problemas internos, reconhecer a sua parcela de responsabilidade, debatendo-os de

  • alguma forma com a comunidade, para que esta ajude a instituio a enfrent-las

    competentemente.

    Portanto, quando uma instituio ou uma comunidade empenha-se na implantao

    de museus, arquivos, bibliotecas, memoriais e centros de memria, ela est investindo no

    futuro do Pas, est aprimorando a capacidade das geraes futuras de produzir

    identidades mais elaboradas, capazes de contribuir com respostas mais sofisticadas aos

    impasses do porvir. Os cidados que conhecem a funo social de suas instituies

    participaro mais do cotidiano das atividades delas, realimentando a prpria cidadania, e

    estaro mais propensos a defend-las em momentos de crise. Em um mundo sacudido

    pela estandartizao de uma globalizao esgrimida de cima para baixo, esta uma

    condio que pode ter muito valor. Da mesma forma, considerando a ainda relativa

    fragilidade da nossa incipiente democracia, armar conceitualmente o cidado com o

    conhecimento sobre o funcionamento das instituies que compem o quadro

    democrtico nacional, de forma a que ele possa se defender de influxos conservadores,

    pode se revelar altamente proveitoso.

    Eis porque cresce, dia a dia, o interesse de muitas instituies pelo

    estabelecimento de estratgias de comunicao profissionalizadas e eficientes com a

    comunidade, terreno, este, frtil para os projetos de memria. Pensemos no Poder

    Judicirio ou no Ministrio Pblico, ou mesmo no Legislativo: para estes entes pode ser

    contraproducente publicar propaganda institucional nos jornais ou veicular reclames

    publicitrios na mdia. Os projetos de memria, podem, contudo, revelarem-se canais

    indiretos de marketing institucional. No que os historiadores devam, aqui, converter-se

    em um aliado do corporativismo. Algumas reformas institucionais podem e devem

    acontecer. Mas se for o historiador um aliado da cidadania, ajudando-a a compreender a

    importncia de algumas instituies a partir do trabalho com a memria, ento o

    historiador poder estar contribuindo para que o debate em torno de eventuais reformas

    qualifique-se. Portanto, responsabilidade social, aliana com a cidadania, compromisso

    com a cincia e com a tica acadmica, interesse pelo mercado e marketing cultural

    podem perfeitamente convergir no mbito do ofcio do historiador.

    Vejamos alguns exemplos prticos de estratgias de gesto cultural aplicadas ao

    campo da memria. A Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul comeou a

    editar, em 1996, no mbito do Projeto Memria do Parlamento, hoje extinto, a Srie Perfis

    Parlamentares. Com esta srie editorial, o Legislativo pde incorporar sua imagem

    perante a opinio pblica o capital simblico carregado por alguns dos grandes polticos

  • da nossa histria regional, coisa que para a cultura popular do Estado gacho tem muito

    valor, imprimindo um vnculo com a tradio e as origens da nossa cultura poltica. Mas o

    Projeto Memria do Parlamento errou ao no conseguir desenvolver, paralelamente, uma

    linha editorial de impresso menos dispendiosa e linguagem simplificada e didtica, capaz

    de alcanar um pblico menos elitizado, reforando, assim, a imagem do Parlamento na

    sociedade com mais amplitude.

    Por sua vez, a Cmara de Vereadores da Cidade de Pelotas, segundo o que se

    noticia, vale-se de uma linha editorial que publica teses e dissertaes, acadmicas, mas

    com linguagem acessvel, sobre temas locais para afirmar o seu vnculo com a

    comunidade e o seu compromisso com a cultura e a reflexo social de qualidade.

    O Memorial do Judicirio, do Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul,

    criou uma revista de carter acadmico direcionada para a fronteira entre a Histria e o

    Direito, objetivando estabelecer um frum permanente para a dispersa produo

    historiogrfica brasileira sobre a Justia e o Poder Judicirio. Assim, o Tribunal de Justia

    logrou, a um s tempo, afirmar-se perante a comunidade de cientistas sociais agentes

    formadores de opinio como instituio comprometida com a reflexo social isenta e de

    qualidade; reforou a imagem de ser uma Corte de vanguarda no Brasil, vez que no

    apenas passou a editar a primeira revista cientfica dirigida para esta fronteira especfica

    do conhecimento, como ainda esta mesma revista constitui-se em um dos poucos

    veculos cientficos voltados para as Cincias Sociais de que se tem notcia editado fora

    do ambiente acadmico convencional; contribuiu para incentivar a reflexo historiogrfica

    nacional sobre a Justia e o Poder Judicirio; finalmente, o Tribunal de Justia logrou

    consolidar a imagem de seu Memorial, setor que nasceu a quatro atrs, como um centro

    de pesquisas situado fora do ambiente acadmico e universitrio tradicional. Outro

    produto deste Memorial que merece destaque o programa Formando Geraes. Trata-

    se de um mix de atividades dirigidas ao pblico infanto-juvenil, que vo desde visitas

    guiadas at exposies, cartilhas, vdeos e folders, com o qual o Judicirio atrai e explica

    para os cidados do futuro a importncia e o funcionamento da Justia numa sociedade

    democrtica.

    O Memorial do Ministrio Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, por seu turno,

    criou uma srie editorial que se dedica a publicar obras raras e esgotadas ou fontes

    originais e inditas sobre a histria poltica e jurdica do Rio Grande do Sul. Com este

    produto, a instituio granjeia um espao nobre, espontneo e simptico opinio pblica

    na imprensa cultural, alm de reforar para a sociedade o compromisso institucional para

  • com as origens culturais do povo gacho. A prpria consolidao de um Memorial, que

    hoje modelar, sinaliza para a sociedade que esta instituio leva to a srio a misso,

    atribuda pelo constituinte original de 1988, de velar pelo patrimnio histrico da

    sociedade que organizou internamente um espao de reflexo sobre a sua prpria

    memria, o qual, dentre outras coisas, tem contribudo, por exemplo, na definio de uma

    poltica arquivstica tcnica e moderna. Abrigado em um belo prdio histrico localizado

    no Centro de Porto Alegre e restaurado com muito esmero, o Memorial tambm contribuiu

    para aproximar a populao da instituio ministerial organizando seminrios acadmicos,

    mas divulgados para um pblico amplo, que tematizam a histria regional. Neste caso,

    assim como para o Memorial do Judicirio, o positivo poder simblico da reflexo

    acadmica ideologicamente isenta e metodologicamente estruturada tem contribudo para

    fortalecer a imagem de iseno que a sociedade espera dos agentes da Justia. Para o

    pblico interno, o Memorial do Ministrio Pblico tem investido em investigaes

    cientficas, materializadas em exposies e publicaes, que recuperam a trajetria da

    evoluo institucional, em seus vrios momentos, o que tem sido fundamental para o

    tratamento da questo identitria, contribuindo na conformao de um saudvel sprit de

    corps.

    Tanto no Memorial do Ministrio Pblico, quanto no Memorial do Judicirio, como,

    ainda, no Projeto Memria da Justia Militar do Estado, usou-se a ferramenta

    metodolgica da Histria Oral. Um programa de histria oral costuma ser estratgico para

    a implantao de um projeto de memria institucional pelos seguintes motivos: a) quando

    a equipe de execuo do projeto de memria institucional ainda no possui intimidade

    com a cultura da instituio, entrevistas de prospeco, ou exploratrias, podem auxiliar a

    mapear a rede de depoentes e a delinear as questes e indagaes tericas balizadoras

    da reflexo historiogrfica; b) como a pesquisa documental, pela sua natureza, costuma

    ser mais lenta, o programa de histria oral oferece um instrumento gil de produo

    documental, o que pode ser estratgico para um projeto de memria institucional, que

    precisa apresentar resultados prticos com relativa rapidez para continuar justificando o

    investimento realizado pela instituio que o contratou; c) o programa de histria oral

    opera como um instrumento de relaes pblicas a servio do projeto de memria

    institucional e da instituio que o contratou, pois visita membros ilustres da corporao e

    valoriza a atuao pessoal de cada um; d) o programa de histria oral um instrumento

    de captao de acervo documental e imagtico para o arquivo do projeto de memria

    institucional, o que fundamental para embasar pesquisas futuras e consolidar o setor; e)

  • os depoimentos coletados pelo programa de histria oral podem abordar temas e eventos

    sob uma perspectiva que no se encontra reproduzida na documentao impressa ou

    imagtica; f) os depoimentos coletados podem se prestar a utilizaes futuras que

    viabilizem produtos historiogrficos tais como exposies histricas, catlogos,

    coletneas, artigos acadmicos, etc que so fundamentais para garantir a continuidade

    do projeto de memria institucional; g) uma vez publicados, os depoimentos coletados

    pelo programa de histria oral sensibilizam as instncias individual e corporativa, o que,

    se conduzido tecnicamente, constituiu componente importante para garantir a

    continuidade de um projeto de memria institucional.

    No este, certamente, o espao para esmiuar-se a especificidade metodolgica

    da Histria Oral aplicada a projetos de memria institucional. Todavia, fica registrado o

    alerta de que se trata de relao altamente complexa que, se conduzida temerariamente

    sem o devido cuidado tcnico e sem a garantia da experincia prtica, pode trazer graves

    prejuzos instituio contratante do servio de consultoria, a tal ponto de empurrar para

    o sepultamento um promissor projeto de memria institucional.

    Outra estratgia aplicada a vrios projetos de memria institucional o que

    convencionamos chamar de estudos instrumentais. Tratam-se geralmente de pesquisas

    de carter narrativo que permitem a formatao de bancos de dados que sero

    instrumentalmente teis a projetos futuros. Assim, tanto no Judicirio, quanto no Ministrio

    Pblico e no Tribunal Militar procuramos constituir bancos de dados dos membros, a fim

    de que pudssemos identificar com agilidade quem foi quem, quando e onde dentro da

    instituio. Tambm foram constitudos bancos de dados com a legislao que

    fundamentou a evoluo de cada uma dessas instituies. Finalmente, foram ainda

    realizados estudos sobre a trajetria administrativa dessas instituies, tais como

    evoluo da jurisdio das comarcas e histria da composio da pea oramentria do

    Poder Judicirio. Todas estas iniciativas preenchem tambm a condio de prestar um

    servio aos consulentes e pesquisadores externos dos projetos de memria ou de atender

    a demandas administrativas correntes da instituio contratante. Portanto, foram

    princpios fundamentais nestes casos a realizao de pesquisas que possam repousar

    sobre bases de dados consistentes, bem como a prestao de um servio social pelos

    memoriais.

    Outra caracterstica comum a todos estes projetos, como se pode notar, o

    repdio quilo que podemos chamar de iniciativa de vitrine, isto , projetos sem

    fundamentao emprica, tais como exposies histricas feitas independentemente de

  • slidas pesquisas ou da organizao prvia de bases de dados, acervos e arquivos, ou

    publicaes festivas que pouco acrescentaro reflexo sobre a construo do

    conhecimento e pouco contribuiro para impactar efetivamente o campo dos profissionais

    formadores de opinio. Estas iniciativas de vitrine, caracterizadas pela sua

    superficialidade e pela sua transitoriedade, constituem-se, cada vez mais, em uma

    verdadeira praga no campo da memria institucional. Os Poderes Executivo e Legislativo

    costumam ser particularmente vulnerveis a esta praga, justamente por tenderem a

    enfatizar excessivamente a conjuntura poltica, projetos pessoais ou partidrios, em

    detrimento de uma viso institucional de longo prazo e efetivamente compromissada com

    a sociedade. Os projetos de vitrine tm crescido, tambm, muito em funo da

    mobilizao interesseira de grficas e de produtores culturais com tradio de acesso s

    leis de incentivo cultura. Ao abraarem projetos de vitrine, muitos pensam estar

    inscrevendo seu nome nos anais da histria, enquanto outros pensam estar produzindo

    material didtico e facilmente assimilvel, mas, na prtica, tais iniciativas podem estar, em

    alguns casos, revelando-se num legtimo tiro pela culatra, pois correm o risco de passar

    uma imagem perfunctria, ao invs de pretender mostrar justamente a profundidade do

    compromisso de uma instituio, pblica ou privada, com a sociedade. Muito embora a

    crtica da imprensa superficialidade crescente neste Pas seja cada vez menos

    percebida, ainda acredito que o povo no burro e sabe perceber o que tem e o que no

    qualidade.

    Em face dos cases aqui relatados, cabe a pergunta: por que os projetos de

    memria institucional desenvolveram-se tanto no Rio Grande do Sul, quando em muitos

    outros estados da Federao ainda permanecem os mesmos praticamente

    desconhecidos? No pergunta fcil de responder e, certamente, no h uma resposta

    definitiva, pois parte da mesma pode perfeitamente ser buscada nas vicissitudes do

    acaso. Todavia, algumas recorrncias e coincidncias podem ser apontadas. Em primeiro

    lugar, ressalta a profunda e relevante tradio gacha de refletir sobre o Direito Pblico.

    Os grandes juristas do Rio Grande do Sul, tais como Gaspar da Silveira Martins, Jlio de

    Castilhos, Antnio Augusto Borges de Medeiros, Carlos Maximiliano, Joaquim Francisco

    de Assis Brasil, Armando Cmara e Ruy Cirne Lima, dentre outros tantos, deram forte

    nfase nos seus estudos justamente rea do Direto Pblico, o que revela um trao

    cultural que diferencia o Rio Grande do Sul em relao s tradies dos outros estados

    federados. A prpria contingncia de sermos uma zona de fronteira mvel e de estarmos

    muito prximos s experincias histricas dos pases do Prata, talvez tenha contribudo

  • para que tenhamos dado sempre muito valor reflexo sobre a relao entre o estado e a

    sociedade. Pode ter contribudo tambm para esta distino o fato de que nossa histria

    poltica registra momentos de grandes embates que se refletiram sobre o plano dos

    debates institucionais, tais como a Revoluo Farroupilha, a Revoluo Federalista, a

    Revoluo Assisista e a Revoluo de 1930. A influncia da doutrina positivista sobre o

    discurso poltico legitimador do regime durante a Primeira Repblica pode, tambm, ter

    contribudo para relevar o plano do Direito Pblico. Finalmente, o sistema de pequenas

    propriedades rurais, bem como o processo de industrializao baseado no excedente do

    capital comercial de origem colonial, derivados do processo de imigrao europia para o

    Estado, podem ter contribudo para a formatao de um conceito de cidadania com traos

    diferenciados da tradio patrimonial brasileira, to profundamente estudada por tericos

    como Raymundo Faoro e Victor Nunes Leal.

    Em funo, talvez, dessa histria regional cruenta, plena de conflitos polticos

    exacerbados, bem como de um conceito mais especfico da vida comunitria e

    associativa e da participao do cidado no espao pblico, a tradio histrica e a

    memria sempre mereceram destaque especial na nossa cultura regional. Este o motivo

    pelo qual, por exemplo, todo poltico sempre procura se apropriar de elementos do campo

    da memria poltica do Estado em seus discursos, como uma forma de legitimar seu

    vnculo com a comunidade. Outro exemplo frisante nesse sentido a Movimento

    Tradicionalista Gacho, surgido nos anos 1960, e que hoje influencia um amplo leque de

    atividades culturais espontneas, tais como festivais de msica, rodeios, CTGs, etc,

    espalhados por todo o Brasil. A Histria e a memria, portanto, ocupam no imaginrio

    coletivo sul-rio-grandense, sem dvida alguma, um espao de destaque.

    Outra conseqncia desse trao cultural possivelmente traduz-se num desejo mais

    decidido de autonomia institucional dos entes pblicos em face do Poder Executivo, bem

    como, ainda uma disposio menos resistente das instituies em se abrir participao

    do cidado. As frmulas de democracia direta ou participativa ganharam tanto relevo no

    Rio Grande do Sul, nos ltimos anos, tanto no mbito do Poder Executivo, quanto no do

    Legislativo e do Judicirio, justamente porque existe uma base social com entranhadas

    vivncias associativas e de prticas comunitrias.

    Uma ltima caracterstica que pode ajudar a explicar o fenmeno da disseminao

    dos projetos de memria institucional no Rio Grande do Sul a condio ainda

    relativamente enxuta das instituies. Isto , muitas instituies pblicas sul-rio-

    grandenses dispem de razovel capacidade de mobilizao de recursos, ao mesmo

  • tempo em que no adquiriram o gigantismo prprio de instituies similares de outros

    estados. Alm disso, as instituies sul-rio-grandenses tm, via de regra, sido mais

    eficazes no equacionamento dos seus conflitos internos, evitando rupturas irreversveis e

    conseguindo posicionar um projeto institucional de longo curso acima dos interesses

    individuais ou de faco. Nossa experincia indica que muito difcil instituir projetos de

    memria institucional em instituies cindidas internamente entre correntes antagnicas e

    irreconciliveis.

    Para alm dos aspectos relacionados interdisciplinaridade que condiciona o

    trabalho do historiador consultor, como vimos, outros dilemas para o exerccio dessa

    atividade insinuam-se com relevncia. Um dos aspectos curiais desta questo a

    repercusso, sobre o historiador consultor, empresrio ou no, do drama da falta de

    regulamentao da profisso. A regulamentao profissional pelo Congresso Nacional

    pode ser produto de uma cultura bacharelesca, cartorial, monopolista e antiquada.

    Todavia, j que ela existe, produziu-se como conseqncia no Pas uma realidade em

    que existem duas classes de profisses: as que podem usufruir o privilgio do monoplio

    de mercado e as que no podem. Os historiadores esto entre os profissionais excludos

    desse privilgio. Por conta disso, aqueles que atuam no mercado enfrentam algumas

    dificuldades, que precisam ser registradas.

    Em primeiro lugar, h a concorrncia, cada vez mais acirrada, com os jornalistas.

    Esta concorrncia somente acontece no campo da Histria, pois os jornalistas esto

    devidamente protegidos pela blindagem monopolista e no se relacionam com os

    historiadores em igualdade de condies, vez que, por exemplo, a um competentssimo

    investigador da Histria Poltica legalmente vedado integrar a editoria poltica de um

    jornal, ao passo que qualquer jornalista de qualificao ordinria, e, muitas vezes, at,

    rechaado pelos seus pares e fracassado em seu campo profissional de origem, pode

    arvorar-se na condio de historiador e disputar espao no mercado. Haja vista que, nas

    empresas jornalsticas, muito mais freqente a presena do jornalista que escreve sobre

    a Histria alguns, at, justia seja feita, razoavelmente bem do que historiadores que

    escrevam a um grande pblico sobre o seu campo de conhecimento. Alis, grandes

    empresas jornalsticas, descobrindo o filo da memria, tm constitudo editoras e

    organizado livros de Histria granel, alguns dos quais distribudos em encartes

    especiais dos jornais de circulao diria, em geral brindados com grande divulgao na

    mdia televisiva. Ora, tais publicaes, cuja qualidade de contedo amide apresenta-se

    embaada, absorvem e monopolizam, no raro, extraordinrios recursos, sob a forma de

  • patrocnios ou incentivos, originrios de empresas privadas e, at, pblicas, edies,

    estas, exclusivamente organizadas por jornalistas, cujos servios, imaginamos, devem ser

    bem remunerados!

    Esta concorrncia cria um problema para a aferio de qualidade dos trabalhos e

    para a remunerao dos servios. Como no existe um Conselho Estadual de Histria a

    exemplo da Ordem dos Advogados, ou de um Conselho Estadual de Medicina, ou de

    Arquitetura, etc. ajudando a estabelecer referenciais (e aqui fazemos questo de

    sublinhar que referenciais de qualidade podem ser estabelecidos sem que se censure a

    produo do conhecimento), torna-se mais difcil para os clientes em potencial dos

    consultores em Histria divisar a diferena entre o que um produto de mais qualidade,

    devendo por isso ser apreciado com uma remunerao coerente, do que apresenta

    eventualmente menos profundidade e cuidado metodolgico. Por exemplo: para algum

    de fora da ambincia acadmica, no costuma ser perceptvel a diferena entre dois

    profissionais cujo currculo conta com titulao de doutor, mas ns sabemos que o peso

    desta titulao pode pendular conforme o prestgio da instituio na qual o doutorado foi

    defendido, conforme a nota alcanada na defesa, se h ou no indicao de publicao

    da tese, se h ou no indicao de louvor na ata de defesa. Ns sabemos, tambm, que a

    quantidade, mas, sobretudo, a qualidade, das publicaes de um profissional diferenciam

    um currculo. E assim por diante.

    Outrossim, a prpria definio da remunerao por servios prestados difcil, vez

    que no existe uma tabela de valores sugerida por um Conselho. Na falta de critrios

    orientadores, muitos utilizam os valores das bolsas de pesquisa do CNPQ como

    referenciais para a remunerao dos servios de consultoria, os quais, entretanto, so

    defasados em relao aos valores normalmente praticados em projetos culturais

    agraciados por incentivos fiscais.

    Um pouco mais difcil torna-se a criao de uma empresa de consultoria histrica

    ou a realizao de um concurso pblico para historiadores quando a profisso no est

    devidamente regulamentada. Contratos sociais e editais de concursos so construdos a

    partir de brechas jurdicas, gerando enriquecedores precedentes. Mas como assinar, por

    exemplo, a carteira de trabalho de um historiador numa empresa privada? No formulrio

    de declarao de imposto de renda pessoa fsica, o historiador que no for professor, nem

    tampouco funcionrio pblico, precisa lascar um outros, porque a nossa profisso, a luz

    da legislao atual, no existe.

  • conhecida a frmula adotada pelo Poder Executivo do Estado do Rio Grande do

    Sul, que criou, para os seus museus e arquivos, o cargo de historigrafo. O Ministrio

    Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, instituio pioneira a convocar

    um concurso pblico para assessor na rea de histria. Atualmente, trs historiadores

    concursados distribuem-se entre o Memorial e a Curadoria de Patrimnio Histrico. Sabe-

    se, tambm, que no Estado de So Paulo, algumas Prefeituras criaram em seus quadros

    funcionais o cargo de historiador e promoveram concursos pblicos. Estes exemplos

    podem estar sinalizando um importante caminho a ser trilhado do ponto de vista formal

    das relaes de trabalho.

    Esta uma tendncia notadamente salutar para os historiadores, pois pode, em

    muito, ampliar o seu campo de trabalho, abrindo novas oportunidades de emprego.

    Todavia, nem sempre a via do concurso pblico ou da assinatura da carteira de trabalho

    a mais conveniente para o cliente interessado na contratao de uma pesquisa histrica.

    Em primeiro lugar, porque pode se tratar de uma atividade eventual. Em segundo lugar,

    porque um concurso pblico pode aferir conhecimento e titulao, mas no

    necessariamente a capacidade prtica de implantao de um projeto de memria

    institucional que pretende institucionalizar-se. Eis porque, neste caso, a figura do

    consultor absolutamente fulcral, pelo menos para a implantao de um projeto.

    Por outro lado, a polarizao entre historiador consultor-contratado e historiador

    concursado, que alguns menos esclarecidos querem ver, no se sustenta. No Ministrio

    Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, o concurso pblico para historiador

    derivou da necessidade de institucionalizao do antigo Projeto Memria hoje Memorial

    e foi apoiado pelos consultores que ajudaram a implantar este mesmo Projeto. Alm

    disso, atualmente, contratados, consultores e concursados convivem em perfeita

    harmonia no Memorial. Ou seja, foi o prprio resultado do trabalho dos consultores que

    oportunizou, tambm, o concurso pblico e, uma vez nomeados, os concursados no s

    no substituram a presena de todos os consultores, como ainda se formou uma nica

    equipe de trabalho e pesquisa.

    Enfim, se quiserem garantir a regulamentao de sua profisso no Congresso

    Nacional, talvez os historiadores precisem, hoje, enfrentar o poderoso lobby dos

    jornalistas. Por enquanto, porm, nem foi necessria a mobilizao dos jornalistas, ou de

    quem quer que seja, contra os interesses da nossa categoria, pois os prprios

    historiadores tm se encarregado de emperrar, ainda que indiretamente, o projeto de lei

    que tramita h vrios anos com este objetivo no Congresso.

  • Ora, sabido que dois so os pr-requisitos fundamentais para que uma categoria

    logre a regulamentao profissional: em primeiro lugar, ela precisa da representatividade

    e da legitimidade de uma associao de classe e, em segundo lugar, precisa de um ou

    mais Deputados que apadrinhem o projeto de lei. Os historiadores tm a ANPUH,

    entidade nacionalmente organizada e que possui enorme poder de mobilizao. Basta

    notar que, no ltimo Encontro Nacional da Associao, realizado em julho de 2003, na

    cidade de Joo Pessoa, na Paraba, reuniram-se mais de 5.000 historiadores! O problema

    que, muito embora a entidade tenha trocado de nome de Associao Nacional dos

    Profissionais Universitrios de Histria para Associao Nacional de Histria , continua

    prevalecendo o entendimento que enfatiza a docncia e o ambiente universitrio como o

    campo de atuao privilegiado dos historiadores. Alm disso, a ANPUH tem se dedicado

    relativamente pouco a defender certos interesses da categoria, operando mais como

    entidade cientfica, vez que a ANDES Associao Nacional dos Docentes do Ensino

    Superior tem, via de regra, se encarregado de abrigar a defesa dos interesses dos

    professores universitrios, cuja posio tem sido hegemnica na ANPUH. Da mesma

    forma, professores da rede escolar e do ensino superior privado possuem sindicatos

    prprios e associaes que representam os interesses da docncia e do magistrio.

    Desse modo, o problema de regulamentao pode ter sido encaminhado de forma

    mais ansilar pela ANPUH. Com efeito, sobre este assunto a Associao tem se perdido

    em interminveis discusses que produziram poucos resultados concretos at o

    momento. Chegou-se a organizar um timo documento a respeito do assunto, mas

    algumas diretorias, com efeito, so mais propensas a discutir o tema do que outrasiii. Alm

    disso, ressalta o fato de que as diretorias nacionais so compostas por apenas sete

    pessoas e que a Associao no possui quadro de profissionais de apoio, tais como

    secretrios. A prpria sede da Associao itinerante, fixando-se via de regra na

    instituio universitria a qual pertence o Presidente. Ora, sem consenso e objetividade

    pragmtica de parte da Associao, os Deputados certamente no se sentem

    confortveis para desarquivar e promover o projeto de lei. Estabelece-se um ciclo vicioso:

    os historiadores no olham para o mercado, o mercado no olha para os historiadores;

    no se regulamenta porque no h mobilizao suficiente, no h mobilizao suficiente

    porque no h interesse, e o interesse no cresce porque no h regulamentao e nem

    a percepo de que existem outros campos para o ofcio do historiador para alm dos

    muros das academias e das escolas.

  • A ANPUH, alis, tem sido um verdadeiro fenmeno de mobilizao e

    congraamento acadmico. A cada dois anos, cresce vertiginosamente o nmero de

    participantes no Encontro Nacional, onde so debatidas as novas teses historiogrficas e

    apresentadas as pesquisas mais recentes em andamento em todo o Pas. Neste sentido,

    a Associao tem sido um exemplo de sucesso, o que se deve, sem dvida, a notvel e

    mourejada capacidade de trabalho das nossas diretorias. Todavia, justamente por reunir

    enorme massa crtica, ou seja, profissionais formadores de opinio altamente

    qualificados, poderia a Associao ter uma presena mais perceptvel na vida institucional

    e comunitria brasileira, participando de conselhos, propondo aos Legislativos projetos de

    lei de interesse para a rea de patrimnio histrico, fiscalizando a administrao de

    arquivos e museus, etc., o que, lamentavelmente, por desinteresse da prpria categoria,

    no acontece, pelo menos na escala e com a sistemtica que seria desejvel. So, com

    efeito, ainda raros os casos em que os historiadores rompem o silncio complacente

    (Villa, 2004) e vem a pblico debater a sorte de um arquivo ou de um acervo.

    No basta a Associao ter assentos formais em conselhos institucionais,

    estaduais, municipais ou federais, de cultura ou de patrimnio histrico fundamental

    que ela tenha uma orientao poltica e conceitual para este campo, conhecida e

    reconhecida pelo conjunto da categoria. Esta falta de um compromisso poltico renovador

    da categoria com seus prprios interesses de classe e com o entorno comunitrio tem, ao

    nosso ver, importado em prejuzos ao bem estar, no somente dos historiadores, mas,

    tambm, da sociedade em geral. Est na hora da ANPUH dar mais um passo no sentido

    de sua misso social.

    A necessria regulamentao da profisso, contudo, reconhece-se, assunto

    complexo, que requer, de fato, reflexo cuidadosa. A disciplina histrica e os historiadores

    tm se beneficiado, tambm, da liberdade profissional. Algumas das principais

    contribuies historiografia brasileira foram escritas, por exemplo, por juristas, como

    Raymundo Faoro e Victor Nunes Leal. Os prprios jornalistas, que vm disputando

    espaos com os historiadores no mercado, ajudaram a chamar a ateno dos

    historiadores para a necessidade de aprimorar a comunicao com um pblico de leitores

    mais amplo do que aquele exclusivamente acadmico. Existe, alm disso, um sem

    nmero de pessoas dedicadas ao campo da memria, muitos dos quais, mesmo no

    tendo graduao em Histria, escrevem trabalhos importantes, em geral sobre a histria

    local, e contribuem enormemente para a preservao da memria nas localidades, onde

    muitos historiadores graduados e titulados ainda no chegam. Ora, ao regulamentar-se a

  • profisso preciso encontrar-se mecanismos que no constranjam a interdisciplinaridade,

    caracterstica da identidade do campo de conhecimento da Histria, e ajudem tambm a

    preservar o trabalho desses prticos da Histria. Uma das alternativas pensadas para isso

    no projeto de regulamentao seria a chance de os prticos j em atividade a um certo

    tempo solicitarem registro profissional junto aos conselhos regionais da categoria, assim

    como se fez com a museologia e o jornalismo, que admitiram registros para aqueles

    profissionais que j atuavam no mercado, mesmo sem diploma especfico da rea.

    Outro aspecto sintomtico que talvez merea breve referncia o relativo

    desinteresse de muitos historiadores universitrios pela problemtica do ensino em

    Histria. Nos ltimos anos, o Grupo de Trabalho de Ensino da ANPUH vem enfrentando

    este vcuo, oportunizando um enriquecedor frum de debates no interior da Associao.

    Existe, no entanto, uma Sociedade Brasileira de Ensino de Histria, independente da

    ANPUH, revelando que boa parte das discusses sobre o ensino esto na rea da

    Educao, cujos profissionais acreditam, via de regra, na existncia de uma epistemologia

    prpria de ensino autnoma em relao dinmica de construo do conhecimento das

    reas especficas. Vem da, por exemplo, a tradicional separao entre os cursos de

    licenciatura e bacharelado. Nesse sentido, os profissionais mais ligados Educao

    acabam por absorver um campo importantssimo, qual seja, o da confeco de livros

    didticos e para-didticos, enquanto a grande maioria dos historiadores universitrios e

    acadmicos parece assistir a este fenmeno do alto de sua torre de marfim. Da, parece-

    me, a importncia do debate em torno das diretrizes curriculares que as ltimas diretorias

    tm procurado incentivar no corao da ANPUH.

    Muitos historiadores, especialmente aqueles que se dedicaram vida universitria,

    tm uma viso nem sempre fiel realidade dos colegas que, por fora da circunstncias

    ou por opes pessoais, aproximaram-se do mercado. Imagina-se, com alguma

    freqncia, que os consultores tm muito tempo disponvel, em contraste com a

    sobrecarga da vida universitria, ou que desfrutam de invejveis estruturas de suporte ao

    trabalho, o que no corresponde aos fatos, pois, em nossa profisso, acmulo de

    atribuies, escassez de tempo e de recursos, ou remunerao aqum do desejvel, so

    condies quase que intrnsecas, as quais devem ser, em meu entendimento,

    coletivamente enfrentadas, como de resto fazem todas as categorias. Outrossim, ainda

    expressivo o preconceito que se alimenta em parte de nossa classe contra os

    historiadores que atuam fora do ambiente acadmico. Tanto a viso idlica quanto o

  • preconceito constituem-se em distores contraproducentes, que podem ser melhor

    equacionadas pela intensificao do dilogo e da troca de experincias e convivncias.

    Um ltimo aspecto merece ainda breve reflexo. Qual a diferena entre projeto de

    memria, centro de memria, memorial e museu? No h na literatura disponvel um

    conjunto de conceitos que responda a esta pergunta. Mais uma vez, portanto, a

    aproximao ao tema se faz com base na experincia vivida.

    Um projeto de memria difere-se de um centro de memria e de um memorial na

    medida em que caracteriza uma ao menos institucionalizada e, alm disso, temporria.

    Sugere-se, a propsito, que todo memorial ou centro de memria inicie suas atividades na

    condio de um projeto de memria, pois uma administrao pode estar decidida a

    instalar um espao de memria mais institucionalizado, mas a instituio que comanda

    pode no estar madura para esta idia. Portanto, prefervel sempre iniciar o trato com a

    memria em alguma instituio por meio de um projeto, pois, se houver necessidade de

    desmobiliz-lo, os constrangimentos com esta medida sero menores. Em segundo lugar,

    a melhor forma de institucionalizar um projeto, dando-lhe um espao fsico definitivo e um

    regimento interno, testando-o na prtica, motivo pelo qual, mais uma vez, conveniente

    comear-se sempre por um projeto.

    J a distino entre centro de memria e memorial bem menos perceptvel.

    Creio, sinceramente, que a denominao de memorial difundiu-se por ser uma expresso

    mais enxuta e enftica. A palavra memorial foi tomada de emprstimo lngua inglesa,

    onde designa monumentos pblicos erigidos em homenagem a um fato ou a um

    personagem histrico de destaque. No Brasil, ganhou um sentido completamente diverso,

    sendo aproximado ao conceito de museu.

    Se considerarmos as modernas definies da museologia, veremos que a

    distino entre memorial e museu pouco consistente. Todavia, as instituies que

    preferiram criar memoriais, ao invs de museus, estavam pretendendo destacar a origem

    e o foco institucional deste espao ao mesmo tempo em que pretendiam distinguir-se de

    iniciativas mais tradicionais. De fato, boa parte dos museus institucionais converteu-se em

    depsitos de velharias e curiosidades, pois nasceram e foram conduzidos desvinculados

    da pesquisa histrica e das modernas prticas museolgicas, de tal sorte que terminaram

    muito pouco conhecidos e visitados. Diferentemente dos antigos museus institucionais, os

    modernos memoriais pretendem estabelecer uma interlocuo dinmica com o entorno

    comunitrio. Tm por caracterstica unir a museografia, a museologia, a pesquisa histrica

  • e sociolgica, um centro de documentao e uma poltica de eventos culturais, tais como

    seminrios, palestras, projees de filmes, exposies artsticas, etc. Muitos memoriais, a

    propsito, fizeram justamente a opo por privilegiar a pesquisa histrica e a prestao de

    servios comunidade porque as instituies que os criaram no dispunham de um

    acervo cultural, imagtico ou objetal, vistoso. Isto , a designao de memoriais

    pretendeu marcar a diferena de rgos e setores voltados para o campo da memria

    cujos acervos culturais nasceram muito pobres ou que precisavam construir este acervo

    com o tempo, com base na pesquisa histrica. No que um museu tambm no pudesse

    assumir esta empreitada, mas aqui, creio, procurou-se afastar de um efeito de sentido

    projetado nos museus, j que o pblico tende a identificar nos mesmos a nfase nas

    exposies objetais. A diversidade interdisciplinar, fundamentada na pesquisa histrica e

    guiada por uma poltica cultural moderna, o que caracteriza, enfim, os memoriais.

    Memoriais so, na prtica, museus com temtica e origem institucional bem definidos,

    cuja atividade se expressa num campo interdisciplinar e cujo foco articulador a pesquisa

    histrica. Creio, assim, que a experincia prtica tendeu a encontrar uma especificidade

    conceitual para os memoriais.

    i Bacharel e Mestre em Histria pela UFRGS; Doutor em Histria Social pela USP; coordenador do GT de Histria Poltica da Associao Nacional de Histria (ANPUH); consultor do Memorial do Judicirio do RS e do Memorial do Ministrio Pblico do RS; Diretor-gerente da Axt Consultoria Histrica Limitada. ii Tratando-se de um ensaio, evitaremos neste texto as remisses bibliogrficas convencionais. Todavia, nossas reflexes no se conformariam sem um substrato terico inspirador, cuja referncia segue abaixo: ABREU, Regina & CHAGAS, Mrio (orgs.). Memria e patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro : DP&A, 2003. AXT, Gunter. Justia e memria. A experincia do Memorial do Judicirio do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Justia & Histria, Vol. 2, n 4, 2002, pgs. 215-238. _______ . Jlio de Castilhos e a Maria Degoldada: a Justia nos espaos pblicos da memria gacha. Revista da Ajuris, n 85, Porto Alegre : Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul, 2002, pg. 451-464. _______ . De Homem S a Guardio da Cidadania. Histria associativa e institucional do Ministrio Pblico do Estado do Rio Grande do Sul (1941-2001). Porto Alegre : Procuradoria-Geral de Justia, Memorial, 2003, 341 pgs.

  • _______ . A arte d(n)os negcios. Leader, n 40, Aspectos culturais que favorecem o desenvolvimento. Porto Alegre : Instituto de Estudos Empresariais, 31 de julho de 2003. www.revistaleader.com.br. AXT, Gunter; AITA, Carmen & ARAJO, Vladimir. Centro de Pesquisa e Documentao da Histria Poltica do Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Histria. N 135. So Paulo, USP/Edusp, 1996, pg. 201-204. AXT, Gunter; TORRE, Mrcia de la; SANSEVERINO, Patrcia. A Justia Militar do Estado. Histrico e Depoimentos. Srie Depoimentos, Vol I. Porto Alegre : Editora Nova Prova, 2003. AXT, Gunter; TORRE, Mrcia de la (orgs.). Histrias de Vida. Representaes do Judicirio. Porto Alegre : Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul, Memorial, Departamento de Artes Grficas, 2003. BARATIN, Marc & JACOB, Christian. O poder das bibliotecas: a memria dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro : Editora da UFRJ, 2000. BELLOTTO, Helosa Liberalli. Patrimnio documental e ao educativa dos arquivos. Cincias & Letras. Porto Alegre : Faculdade Porto-Alegrense de Educao, n 27, 2000. _______ . Documento de arquivo e sociedade. Cincias & Letras. Porto Alegre : Faculdade Porto-Alegrense de Educao, n 31, 2002. BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. So Paulo : Cia. das Letras, 1994. CAMARGO, Clia et. alli. CPDOC 30 anos. Rio de Janeiro : Editora FGV, CPDOC, 2003. COELHO, Edmundo Campos. As profisses imperiais. Medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822-1930). Rio de janeiro : Ed. Record, 1999. DARNTON, Robert. Vandalismo em Bagd. So Paulo : Folha de So Paulo, Caderno Mais, 4 de maio de 2003, pgs. 10 e 11. DINIZ, Tatiana. Espumante atrai turistas cidade catal. So Paulo : Folha de So Paulo, Folha Turismo, 24 de maio de 2004, pg. F 9. FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janana (orgs.). Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro : Fundao Getlio Vargas Editora, 1996. HERMET, Guy. Cultura e desenvolvimento. Petrpolis : Ed. Vozes, 2002. INDURSKY, Freda e CAMPOS, Maria do Carmo. Discurso, memria, identidade. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 2000. LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas : Ed. Unicamp, 1990. LOPES, Luiz Carlos. O lugar dos arquivos na cultura brasileira. Cincias & Letras. Porto Alegre : Faculdade Porto-Alegrense de Educao, n 31, 2002. MARQUES Neto, Jos Castilho. Em respeito ao leitor e biblioteca. Folha de So Paulo, So Paulo, 24 de junho de 2004, pg. A3. MENEZES, Ulpiano Bezerra de. O direito memria: patrimnio histrico e cidadania. So Paulo : DPH, 1992. NORA, Pierre. Entre memria e histria. A problemtica dos lugares. So Paulo : Revista Projeto Histria, vol 10, dez 1993, pg. 7-28. VILLA, Marco Antonio. A destruio de uma biblioteca. So Paulo : Folha de So Paulo, 2 de junho de 2004. _______ . O futuro de uma biblioteca. So Paulo : Folha de So Paulo, 9 de junho de 2004.

    iii Veja-se, a propsito, a diligente correspondncia (reproduzida no INFORME-ANPUH de julho de 2001) da Presidenta da ANPUH, Profa. Dra. Zilda Iokoi, de junho de 2001, ao Deputado Freire Jnior, ento Presidente da Comisso de Trabalho, de Administrao e Servio Pblico da Cmara Federal, a qual traz em anexo proposta da entidade e do Deputado Berzoini para a regulamentao da profisso, que, infelizmente, encontra-se engavetada desde aquela poca: CARTA DA ANPUH NACIONAL COMISSO:

  • So Paulo, 21 de Junho de 2001. Aos Membros da Comisso de Trabalho, de administrao e Servio Pblico Prezados Senhores Deputados. A Associao Nacional de Histria, fundada em 1961 e constituda por 27 Ncleos Regionais sediados nas Unidades da Federao, dirige-se a Vossa Excelncia para expor o que se segue: 1. um dos objetivos bsicos da nossa Associao lutar pelo aperfeioamento do ensino de Histria em seus diversos nveis; pelo estudo, pesquisa e divulgao dos conhecimentos histricos, defesa das fontes histricas, do patrimnio cultural e do papel do historiador na formao da cidadania; 2. consideramos, portanto, este campo do conhecimento central na formao histrica e cultural da opulao brasileira, especialmente neste momento de globalizao econmica, que exige maior compreenso sobre a especificidade da cultura brasileira, permitindo deste modo um dilogo mais fecundo com outras culturas, preservando seus prprios valores; 3. temos observado ao longo das ltimas dcadas um desapreo, especialmente da juventude, em relao ao patrimnio histrico e cultural, indicativo da fragilidade do desenvolvimento de valores afirmativos de pertencimento, de respeito e direito memria, alm de compreenso da relao do presente com o passado, desafio da construo do futuro; 4. assim, do mesmo modo que compete ao engenheiro projetar e preparar as construes das idades, ao mdico diagnosticar e curar as doenas, ao profissional de histria cabe elaborar os fundamentos conceituais da rea e sensibilizar os jovens para o exerccio da cidadania ativa; esseprofissional preparado ao longo do ensino de graduao ou nos cursos de mestrado e doutorado treinado para exercer de modo crtico e equilibrado a defesa dos valores da cidadania, sendo temerria a atribuio desta tarefa queles que no compreendam a elevada responsabilidade social da profisso; 5. as alteraes no ensino superior e no exerccio das profisses, decorrentes da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, levaram a Associao Nacional de Histria a envidar esforos no sentido de regulamentar a profisso do historiador, pois apenas a obteno do diploma no habilita ao exerccio da profisso, situao agravada com o fim do registro profissional do professor; 6. deste modo, a ANPUH encaminhou ao deputado Ricardo Berzoini, PT de So Paulo, o projeto da Associao para estudo; o primeiro estudo jurdico realizado a pedido do deputado Berzoini nos indicou a existncia de mais dois projetos de lei para a regulamentao da profisso: PL 2047 assinado pelo deputado Wilson Santos - PT/SP, e o assinado pela deputada Laura Carneiro. A Associao comparou os projetos, encaminhou discusses entre os 27 ncleos regionais, divulgou a discusso no boletim da entidade e finalmente, de acordo com o deputado Wilson Santos, consolidou a proposta, incorporando os artigos 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da proposta do Wilson Santos, e os artigos 2, 3 e Justificao da proposta de Ricardo Berzoini; o projeto da deputada Laura Carneiro no pde ser aproveitado, uma vez que no contemplava as atuais perspectivas e discusses da rea de Histria; 7. encaminhada a consolidao dos projetos (em anexo) ao deputado Paulo Rocha, desta Comisso, a Associao Nacional de Histria aguardava parecer favorvel, quando foi informada que o presidente Freire Jr. havia avocado a si todos os pedidos de regulamentao existentes na Comisso; 8. aps audincia com o deputado Freire Jnior, presidente da Comisso do Trabalho, de Administrao e Servio Pblico, da Cmara dos Deputados, em 20 de junho de 2001, fomos informados do novo procedimento da presidncia em relao aos pedidos de regulamentao de profisses; como nossa entidade percorreu longo caminho de debate sobre o tema e construiu um consenso nacional em torno da proposta final (PL. 2047/99 do deputado Wilson Santos e PL 3492/2000 do deputado Ricardo Berzoini), solicitamos a Vossa Excelncia que se disponha a pedir vistas do projeto, para que se possa, com apoio da consultoria jurdica da Cmara, elaborar novo parecer. Certos da sensibilidade de Vossa Excelncia para problema de tal relevncia nacional colocamo-nos disposio para quaisquer esclarecimentos, agradecendo a ateno a ns dispensada. Presidncia da ANPUH/Nacional Prof. Dr. Zilda Mrcia Grcoli Iokoi PROJETO DE LEI DE REGULAMENTAO DA PROFISSO: Dispe sobre o exerccio da Profisso de Historiador e d outras providncias. O Congresso Nacional decreta: Wilson Santos Art. 1 - A designao profissional de Historiador regulamentada nos termos desta lei. Ricardo Berzoini Art. 2 - Historiador o profissional responsvel pela realizao de anlises, de pesquisas e de estudos relacionados compreenso do processo histrico, bem como pelo ensino da Histria nos diversos nveis da educao. Ricardo Berzoini Art. 3 - Podero exercer a profisso de Historiador no Pas: I - os possuidores de diplomas de nvel superior em Histria, expedido no Brasil, por instituies de educao oficiais ou reconhecidas pelo Governo Federal.

  • II os portadores de diplomas de nvel superior em Histria, expedidos por escolas estrangeiras, reconhecidas pelas leis de seu pas e que revalidarem seus diplomas de acordo com a legislao em vigor. III os diplomados em cursos de mestrado ou de doutorado em Histria, devidamente reconhecidos. IV - os que, na data da entrada em vigor desta lei, tenham exercido, comprovadamente, durante o perodo mnimo de 05 (cinco) anos, no mnimo, a funo de historiador. Pargrafo nico. Os profissionais de que trata o inciso IV deste artigo, para exercerem as funes relativas ao magistrio em Histria, devero comprovar formao pedaggica exigida em lei. Wilson Santos Art. 4 - Os profissionais de que trata o art. 3, itens I, II e III, somente podero exercer sua profisso aps haverem registrado seus diplomas na forma da lei. Pargrafo nico: O certificado de registro referido no caput deste artigo ser obrigatoriamente exigido pelas entidades pblicas que admitirem historiador em seus quadros de pessoal. Wilson Santos Art. 5 - da competncia privativa do Historiador, o exerccio das seguintes atividades: I - planejamento, organizao, implantao, direo e execuo de trabalhos de pesquisa histrica; II - assessoramento para planejamento, organizao, implantao, direo e execuo de trabalhos de documentao