Meditação da Plena Atenção...
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Meditao da Plena Ateno (Mindfulness)
Neurocincias e Sade
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a Plena Ateno e o sistema cardio-respiratrio
Arthur Shaker
Tomaremos como ponto de partida, nestes captulos subseqentes, e de
modo resumido e simples, as bases fisiolgicas apresentadas pelo modelo da
cincia mdica moderna. A motivao oferecer ao leitor (e para uma reviso
a mim mesmo), um acesso introdutrio ao conhecimento fisiolgico do corpo
humano, e sobre essa base, examinarmos de um ponto de vista prtico como a
Meditao da Plena Ateno pode agir no benefcio do corpo (em suas
mltiplas funes) e da mente.
1. Fisiologia da respirao
A vida das clulas depende fundamentalmente de energia. Uma de suas
fontes o oxignio, obtido atravs da respirao celular. Podemos suportar por
certo tempo a falta de comida, gua e sono, mas sem oxignio no
resistiramos por mais de alguns pouqussimos minutos. Uma antiga histria
indiana conta que, em uma discusso dos sentidos sobre qual seria a mais
importante, casa sentido se retirou por certo tempo do corpo, e o corpo
suportou. To logo a respirao se afastou, os rgos e sentidos entraram em
colapso, pedindo que ela retornasse imediatamente.
Ocorrendo no interior de organelas citoplasmticas (mitocndrias), a
respirao tem a funo de suprir oxignio (O2) para os tecidos e remover o
gs carbnico (CO2). No metabolismo energtico das clulas com as
molculas de gs oxignio, a combusto produz energia trmica e energia
trabalho, gua (H2O) e gs carbnico. O transporte do oxignio pelo corpo
ampliado pela existncia de pigmentos respiratrios (hemoglobina e
hemocianina) no sangue, que se combinam com o oxignio. A hemoglobina
uma protena, que contm Ferro, e ao se combinar com o O2 produz a
oxiemiglobina [Hb(O2)4]; a hemocianina uma protena, que contm Cobre, e
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encontrada em moluscos e artrpodos. Caso no houvesse no sangue humano
a hemoglobina, somente 2% de O2 necessrio ao corpo seria transportado
pelo sangue humano (Amabis&Martho, 1998, p.381).
Neste breve introduo, podemos antever a interdependncia entre o
processo respiratrio e o circulatrio sanguneo. Sob o ngulo da respirao
externa, o ar captado do ambiente csmico, e atravs da hematose (processo
de troca entre o sangue e o ar) nos alvolos, o O2 passa do alvolo ao sangue,
combinando com os glbulos, e o gs carbnico, aps deixar o sangue e entrar
nos alvolos, sai para a atmosfera; ocorre, portanto, processos inversos de
entrada de O2 e sada de CO2.
Esses processos so possveis devido ao fenmeno de difuso, graas
s diferenas de concentrao (presses parciais). Qual um fole, o aparelho
respiratrio compe-se do nariz, faringe, laringe, traquia, brnquios,
bronquolos e pulmes. Estes possuem importante qualidade da elasticidade
que lhes permitem as distenses e contraes, atravs de processos
musculares no diafragma e intercostais, e com isso a distribuio do ar em sua
captao e envio, bem como a adaptao da perfuso sangunea dos capilares
dos alvolos com relao ao processo de ventilao dos pulmes. Filtrao,
umedecimento e aquecimento do ar nas fossas nasais fazem da respirao
nasal a via mais adequada.
Igualmente importante como o processo nutritivo do O2, a eliminao
do txico gs carbnico: cerca de 5-7% do CO2 liberado pelos tecidos
dissolvem-se diretamente no plasma sanguneo e so transportados aos
pulmes para eliminao. Outros 23% se associam hemoglobina e outras
protenas do sangue, sendo por elas transportados (...) 70% penetram as
hemcias, se transformando em cido carbnico (H2CO3) e depois se
dissociam nos ons H+ (que se associam hemoglobina e outras protenas) e
bicarbonato (que se difundem para o plasma sanguneo), auxiliando na
manuteno da acidez do sangue (...) J nos alvolos pulmonares o processo
inverso: os ons H+ se combinam ao bicarbonato, reconstituindo o cido
carbnico, que pela ao de um enzima (anidrase carbnica) decomposto em
gs carbnico e gua. (Amabis&Martho, 1998, p.382-3).
Esses intercmbios e produes energticas aparecem sob perspectivas
com certas diferenas quando vistos do ngulo das medicinas tradicionais.
Segundo a fisiologia da medicina moderna, o oxignio e seu processo de
combusto com os alimentos que libera energia, que se armazena em
molculas chamadas ATP (trifosfato de adenosina), que degradados
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posteriormente em molculas ADP (difosfato de adenosina) e fosfatos,
fornecem a energia para os processos celulares. (Amabis&Martho, 1998,
p.376).
Na perspectiva da Yoga hindu, a sustentao da vida dada por uma
fora vital chamada prana (ou chi, na medicina tradicional chinesa, e que
embasa prticas corporais como o Tai Chi e o Qi Cong). Qual uma eletricidade
csmica invisvel, pervasiva e sustentadora de todas as formas vivas, a fora
vital csmica (referida como Plasma csmico na Yoga) no oxignio,
hidrognio ou nitrognio, mas o que d vida a estes elementos essenciais,
que mantm nossas clulas vivas (...) o corpo recebe a maior parte deste prana
atravs do processo respiratrio (...) Quantidades menores provm tambm
atravs da comida e gua, e circula por canais sutis (nadis), que permitem que
as fora vital chegue a todas as reas e clulas do corpo (...) Esses nadis
passam pelo maior nervo plxico (na coluna). Estes nervos plxicos esto
associados a centros de energia chamados chakras, os quais tm
caractersticas emocionais e psquicas associadas a ele. (Yogavacara Rahula,
2005, p. 7-8)
Posto isto, e embora no desconsiderando as diferenas de perspectiva
e conceitos sobre a respirao, nosso foco eminentemente prtico: alm do
sustento do corpo fsico, quais outras dimenses esto envolvidas na
respirao? Como a compreenso dessas dimenses enriqueceria o dilogo
entre as Neurocincias (principalmente no campo das atividades do crebro) e
a Meditao da Plena Ateno, para prticas de incremento da sade corpo-
sistema nervoso-mente?
Uma primeira dimenso a questo do volume de O2. Em mdia, um
homem jovem aspira e expira cerca de meio litro de ar a cada movimento
respiratrio, sendo o valor em mdia um pouco menor para as mulheres; por
dia 10 mil litros de ar entram e saem dos pulmes, que absorvem cerca de 450-
500 l de O2 e liberam 450-500 l de CO2.
O volume mximo do ar que pode ser inalado e exalado em uma
respirao forada denominado capacidade vital, algo em torno de 4 a 5 l,
para um homem jovem. Os pulmes, no entanto, contm mais ar que sua
capacidade vital, pos impossvel expirar a totalidade do ar contido nos
alvolos. Mesmo quando se foca ao mximo a expirao, ainda resta cerca de
1,5 l de ar nos pulmes; esse o ar residual.
(Amabis&Martho, 1998, p.386).
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Cerca de79% do ar inspirado nitrognio (a mesma porcentagem
expirada, pois embora necessrio, o organismo s aproveita desse elemento
pelo que recebe dos alimentos proticos, atravs do tubo digestivo); 20.9%
O2 (14% no ar expirado, a diferena combina-se com a hemoglobina dos
glbulos vermelhos); 0,03% de CO2 (5,6% no ar expirado, provindo, pelo
sangue, da combusto nos tecidos).
A quantidade e qualidade do O2 que inspiramos, incluindo a oxigenao
no crebro, condiciona a qualidade da vida do nosso corpo. Devido poluio
urbana e aos nossos hbitos de respirao pobre e superficial, muitos
distrbios fsicos e mentais decorrem. Em dois importantes sutras
(ensinamentos legados pelo Buddha), que orientam a prtica da Meditao da
Plena Ateno (Vipassana, a meditao do insight), a respirao aparece como
um dos focos estratgicos de treinamento. Como ampliar nossa capacidade e
qualidade respiratria?
Exerccios fsicos so fundamentais, ainda mais considerando-se a forte
tendncia sedentria de nossa vida na sociedade moderna. Posturas curvadas,
comprimindo o trax e fechando os pulmes, estresse, estados mentais
aflitivos e confusos levam as pessoas a terem uma respirao curta, superficial
e acelerada. Prticas da respirao yguica (os pranayamas), do Tai Chi, do
Qi Gong, da natao ou de outras formas aerbicas visam, por um lado,
aumentar a capacidade respiratria. Precisamos reaprender a respirar nas trs
partes dos pulmes (respirao completa chamada na Yoga de vibhaga
pranayama):
Os pulmes tm trs lbulos principais: o inferior ou lbulos abdominais,
o mdio ou lbulos intracostais e o superior ou lbulos claviculares. Cada um
desses lbulos afeta o fluxo da fora prnica vital para uma parte especfica do
corpo. O ar nos lbulos inferiores afeta o fluxo do prana para a plvis, quadris e
pernas; a respirao no lbulo mdio afeta toda a parte do tronco do corpo e os
rgos vitais ali alocados; a respirao no lbulo superior envia para o
pescoo, cabea/crebro e os braos. Se ns no respirarmos suficientemente
nestes trs lbulos, estas partes corporais correspondentes no recebem fora
vital suficiente para um funcionamento conveniente. Como resultados, muitos
problemas associados podem surgir.
fato que a maioria das pessoas, em condies normais, respira
usando apenas um dcimo da capacidade pulmonar; usualmente apenas uma
pequena poro nos lbulos inferiores e mdios. Raramente o ar chega at os
lbulos superiores, a no ser que se esteja fazendo um forte esforo. (...) Por
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causa da respirao curta e superficial, o corpo precisa respirar rapidamente,
de modo a trazer mais oxignio para manter as clulas vivas. De um ponto de
vista da yoga, isto no saudvel. A respirao saudvel a lenta, profunda e
completa, a qual irriga uniformemente todo o corpo (incluindo o crebro) com
ondas suaves de eletricidade csmica. O ritmo ideal de respirao : quatro a
oito segundos para inspirar nos trs lbulos, prender a respirao por trs
segundos (para permitir a completa absoro do oxignio no sangue),
permitindo a expirao entre quatro e oito segundos, e pausando entre um e
dois segundos antes de inspirar novamente.
Treinando-se a respirar desse modo, mesmo que por trs ou cinco
minutos, permite trazer mais oxignio e fora vital, e melhor distribuio pelo
corpo de uma maneira mais relaxada e branda. Como resultado, o ritmo da
respirao e do corao diminui. Esta uma das principais razes pela qual os
yogis praticam a respirao pranayama para regular, purificar e diminuir a
respirao, de modo a facilitar a prtica da meditao profunda. Respirar nesta
maneira regular tambm ajuda, enquanto uma tcnica inicial de concentrao,
a trazer a ateno para dentro, tirando a mente do mundo exterior e dos
nossos pensamentos. (Bhante Rahula, 2005, p. 9-10)
Existe uma conexo ntima entre a respirao e os estados mentais.
Respiraes aceleradas e superficiais tendem a produzir estados mentais
aflitivos, angustiantes, e vice versa. Angstia provm de angustus
(estreitamento), angere (apertar), e tende a ser experienciado na regio da
garganta e epigstrica (regio superior do ventre) como um aperto-sufco. O
problema que raramente percebemos essas manifestaes de sofrimento
fsico em nosso prprio corpo. O corpo envia sinais, mas estamos cegos e
surdos, porque a mente est quase sempre desconectada do corpo, dispersa
em pensamentos e focada nos objetos exteriores. Por isso, para a reverso
dessa tendncia, o desenvolvimento da qualidade mental da Plena Ateno
(sati) importante. E a respirao um dos valiosos focos do treinamento. Isso
tambm porque a respirao um fenmeno universal, que independe de
ideologia, crenas religiosas ou laicas. Todos respiramos, ela est sempre ali
presente, sensorialmente simples de contatarmos. a base da vida do corpo,
do crebro e da mente, e est intimamente vinculada aos estados mentais,
como um censor refinado.
A prpria ampliao da capacidade respiratria se beneficia do
treinamento da Plena Ateno, pois a Plena Ateno ajuda o crebro a fixar
pouco a pouco os novos padres respiratrios desenvolvidos nos treinamentos
aerbicos. Isto nos remete a um outro aspecto importante: a determinao dos
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padres cerebrais, tanto em termos da capacidade pulmonar quanto no
importante aspecto do ritmo respiratrio. Esquecemos de viver segundo ritmos
saudveis, incluindo os ritmos respiratrios saudveis. Muita oxigenao, mas
em ritmos desarmoniosos pode ser to prejudicial quanto baixa oxigenao. A
modulao do ritmo respiratrio tambm condicionada e viabilizada pelo
treinamento da Plena Ateno.
verdade que, por um lado, a inervao respiratria regida por
impulsos nervosos emanados do sistema nervoso, e, segundo os livros de
Fisiologia, esse processo independeria da nossa vontade:
O centro nervoso que controla a respirao localiza-se na medula
espinal. Em condies normais, o centro respiratrio medular produz, a cada 5
segundos, um impulso nervoso que estimula a contrao da musculatura
torcica e do diafragma, fazendo-nos inspirar.
Quando nos exercitamos, as clulas musculares passam a respirar mais,
produzindo assim, maior quantidade de energia apara a contrao dos
msculos. O aumento da respirao celular leva liberao de maiores
quantidades de gs carbnico, aumentando o nvel de acidez do sangue. A
acidez estimula o centro respiratrio medular, levando ao aumento dos
movimentos respiratrios.
Se houver diminuio pronunciada da concentrao de gs oxignio no
sangue, o ritmo respiratrio tambm aumentado. A diminuio no teor de gs
oxignio detectada por receptores qumicos localizados nas paredes da aorta
e da artria cartida. Esses receptores enviam, ento, mensagens ao centro
respiratrio medular para que este aumente o ritmo respiratrio.
(Amabis&Martho, 1998, p.386).
Por outro lado, no Sistema Nervoso Perifrico Autnomo, o sistema
simptico e parassimptico participam nesse processo de mobilizar energias e
atividades relaxantes, o que pode indicar que o treinamento da Plena Ateno
pode recondicionar, at certo ponto, pela vontade consciente, um novo padro
respiratrio mais saudvel. E, tambm, pela Plena Ateno, estamos mais
prximos dos sinais da respirao, podendo acalm-la e retraz-la a nveis e
ritmos harmnicos e serenos. Podemos experienciar o quanto o relaxamento
do corpo atravs da respirao consciente traz benefcios sade do corpo,
do crebro e da mente.
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Respirao consciente. Significa cultivar a qualidade mental da Plena
Ateno focada na respirao, que por sua vez significa cultivar a vontade-
deciso (chanda), outra importante qualidade da mente. Como na maior parte
do tempo nossa mente est dispersa, emaranhada nos objetos exteriores ou
pensamentos distrativos, muita energia desperdiada nesses estados
distrativos.
Um dos temas atualmente em foco o dos recursos de energia
planetria. O represamento dos rios para as hidroeltricas, a explorao do
petrleo, as usinas nucleares trazem muitas questes sobre o equilbrio da
terra. Pensamos solues de energias sustentveis, mas quase sempre no
princpio de expanso da explorao das fontes energticas para o
desenvolvimento da produo material, mas por razes de cobia econmica,
pouco se implementa na substituio por energias renovveis menos
deletrias, como a energia solar e elea. E, raramente, se reflete sobre a
reduo da dependncia s energias materiais.
Isto tem significaes importantes sobre a ecologia em seu duplo
aspecto: a externa (o crescente apego da mente aos bens de consumo que
tornam a vida mais confortvel, esquecendo que isto tem um peo sobre a
ecologia do planeta) e nossa ecologia interna. Este apego, alm de nos tornar
crescentemente dependente e aumentar esse apego-cobia na mente, refora
o dispndio infrutfero de nossa energia mental. Ao invs de buscarmos nossa
fonte de riqueza e felicidade em nosso ntimo mental, moderando nossa
cobia-dependncia aos recursos externos, projetamos e corremos atrs dos
objetos externos asa custas de boa parte de nossa energia mental, e, o que
trgico, numa busca que amplia as conseqncias danosas para o corpo e a
mente, com o estresse e outros sintomas de sofrimento. Pouco se fala sobre a
necessidade de conteno, no caso, a conteno dos sentidos e suas
voracidades insaciveis. Compreender essa dinmica base para o
redirecionamento da vontade. Isso nos traz de volta ao tema da respirao
consciente.
Assim se inicia um dos importantes ensinamentos do Buddha sobre o
treinamento da plena ateno, no Maha Satipathana sutra, os Fundamentos da
Plena Ateno:
Assim eu ouvi:
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Certa ocasio, o abenoado estava vivendo entre os kurus em um vilarejo chamado
Kammasadamma. L o Abenoado se dirigiu aos bhikkhus dessa maneira: Bhikkhus, e os
bhikkhus responderam: Venervel. Ento, o Abenoado falou:
Bhikkhus, este o nico caminho para a purificao dos seres, para superar a tristeza
e a lamentao, para o desaparecimento da dor e do pesar, para alcanar o Nobre Caminho,
para a realizao do nirvana, isto , os Quatro Fundamentos da Plena Ateno.
Quais so eles?
Neste ensinamento, bhikkhus, um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo
de forma ardente, atento e com clara compreenso, removendo a ganncia e o pesar pelo
mundo. Ele permanece contemplando a sensao nas sensaes de forma ardente, atento e
com clara compreenso, removendo a ganncia e o pesar pelo mundo. Ele permanece
contemplando a conscincia na conscincia de forma ardente, atento e com clara
compreenso, removendo a ganncia e o pesar pelo mundo. Ele permanece contemplando o
Dhamma nos objetos mentais de forma ardente, atento e com clara compreenso, removendo
a ganncia e o pesar pelo mundo. (U Silananda, 2002, p. 175-6)
O sutra se abre apresentando a sintomtica a ser superada (a tristeza e
a lamentao, para o desaparecimento da dor e do pesar, para alcanar o
Nobre Caminho), e o treinamento para a superao, atravs da plena ateno
aos quatro fundamentos-focos da prtica: o corpo, as sensaes, a conscincia
e os objetos mentais. Ou seja, os cinco agregados, que compem nossa
experincia humana existencial. Embora o termo bhikkhu se refira usualmente
aos monges, nesse contexto se aplica a todo aquele que busca a superao do
sofrimento pela transformao das tendncias mentais no-saudveis.
Comeando com a contemplao do corpo no corpo.
Contemplao significa ver/investigar a natureza do corpo como ele ,
pois tendemos a ver o corpo com uma percepo distorcida: como algo sempre
prazeroso, como algo que nos pertence, como algo que deveria ser
permanente, servio de nosso confuso e imaginrio modelo de felicidade.
O treinamento se inicia com o foco da plena ateno na respirao, aps
ter colocado o corpo na postura sentada ereta. A postura ereta tem qualidades
psicofsicas importantes para o treinamento da plena ateno, pois ela a que
permite um melhor fluxo energtico e respiratrio:
Bhikkhus, como um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo? Aqui, um
bhikkhu dirige-se a uma floresta, ao p de uma rvore ou a um local isolado, senta-se com as
pernas cruzadas, mantm o corpo ereto e dirige a plena ateno na direo do objeto de
meditao. Sempre atento, inspira; sempre atento, expira.
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Ao fazer uma inspirao longa, reconhece: fao uma inspirao longa; ao fazer uma
expirao longa, reconhece: fao uma expirao longa.
Ao fazer uma inspirao curta, reconhece: fao uma inspirao curta; ao fazer uma
expirao curta, reconhece: fao uma expirao curta.
Treina a si mesmo: inspiro vivenciando todo o corpo da respirao; treina a si mesmo:
expiro vivenciando todo o corpo da respirao.
Treina a si mesmo: inspiro tranqilizando as funes do corpo; treina a si mesmo:
expiro tranqilizando as funes do corpo. (U Silananda, 2002, p. 176-7)
No treinamento da meditao da plena ateno, no induzimos a
respirao. Ao fazer uma inspirao/ expirao longa ou curta significa que
cuidamos apenas de reconhecer qual a qualidade da respirao a cada
momento. Para isso, treinamos a concentrao (sustentao do foco da mente
no objeto respirao) e a plena ateno (investigando as qualidades do objeto,
e retrazendo o foco sempre que notarmos a fuga distrativa do foco na
respirao). No momento da meditao no induzimos exerccios respiratrios,
mas a qualidade de nossa respirao condicionar muito a qualidade dos frutos
de nossa prtica meditativa, pelas razes que j nos referimos anteriormente.
Respiraes deficientes enfraquecem o corpo e as possibilidades mentais da
concentrao e plena ateno necessrias para penetrar e transformar os
padres mentais no saudveis. Desenvolver a qualidade respiratria
importante e corre paralelo ao treinamento mental. Por isso, trs grandes
fatores do cultivo sadio devem ser incentivados: o controle e regulao da
respirao, a vitalidade nos movimentos e posturas corporais e o controle da
mente. So benficas as prticas como o Hatha Yoga, Tai Chi e por extenso
as vrias opes aerbicas como a natao. Qi Gong, etc.
Neste balanceamento corpo-mente, o ritmo respiratrio tem efeitos
evidentes sobre os vrios sistemas corporais. No por acaso que as cincias
tradicionais tinham no ritmo um destaque marcante. da apalavra ritmo que
derivava a Aritmtica, cincia dos ritmos contidos nos nmeros, objeto de
investigao de Pitgoras, cincia que se perdeu e se reduziu a operaes
apenas quantitativas; talvez por isso a Matemtica seja hoje uma fonte de
sofrimento para muitos estudantes, pois a lgica profunda dessa cincia se
tornou opaca aos nossos olhos.
Respirao consciente rtmica. Do ponto de vista fisiolgico, a
respirao ritmada traz uma harmonia no funcionamento interdependente dos
sistemas corporais, pois todo o corpo vive segundo processos rtmicos,
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pulsaes de vibraes sutis de expanso e contrao: o sangue enviado pelo
corao at as extremidades do corpo recolhido de volta ao corao; o ar
inspirado nos pulmes enviado pelo sangue s clulas recolhido de volta
aos pulmes; as correntes sinpticas no crebro; os fluxos hormonais.
A respirao regular e profunda essencial para a sade do
sistema nervoso, do crebro, e das glndulas endcrinas, e segundo a cincia
yguica, o Prana no ar que respiramos preenche diversas funes no corpo
humano, cada qual com seu nome especfico:
Prana (aqui o termo geral ganha um significado especfico) circula na
rea em volta do corao e controla a respirao.
Apana circula nas partes inferiores do abdmen e controla as funes
excretoras (urina e fezes).
Samana estimula os sucos gstricos, facilitando assim a digesto.
Udana permanece na caixa torcica, controla a absoro do ar e
alimento.
Vyana difunde-se pelo copo e distribui a energia do alimento e
respirao.
Naga alivia a presso abdominal provocando o arroto.
Kurma controla as plpebras para prevenir a entrada de corpos
estranhos e luz forte que ferisse os olhos.
Krkara previne a entrada de certas substancias pelas cavidades nasais
ou descendo pela garganta, causando espirro e tossimento.
Devadutta garante a absoro de oxignio suplementar para o copo
cansado, causando o dilatamento.
Dhanamjaya permanece no copo, mesmo aps a morte, e algumas
vezes faz o cadver inchar. (Sri Ananda, 1989, p. 30-31)
Respirao e sistema circulatrio
Composto pelo sangue, vasos sanguneos e o corao, o sistema
circulatrio tem a funo de transportar nutrientes, hormnios, clulas e
anticorpos do sistema imunolgico e oxignio [removendo o gs carbnico e as
excrees (como a uria, a amnia, etc.)]. O sangue humano constitudo de
plasma (gua 92%, protenas [como a gamaglobulina, que constituem os
anticorpos; fibrognio, para a coagulao], sais, nutrientes, gases, excrees e
hormnios), hemcias (glbulos vermelhos, produzidos no interior dos ossos,
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para o transporte do O2) e os leuccitos (glbulos brancos, para a defesa do
corpo).
Dos capilares sanguneos, extravasa lquido sanguneo (fluido tissular)
que oxigena as clulas prximas aos capilares; o fluido tissular capta CO2 e
excrees e reabsorvida pelos capilares e volt ao sangue pelas veias, agora
pobre em nutrientes e O2 e rico em CO2 e excrees. Vlvulas nas veias
impedem o refluxo do sangue e garantem sua circulao em um nico sentido.
O excesso de lquido tissular captado entre as clulas dos tecidos pelo
sistema linftico, em cujo interior de seus vasos circula a linfa (constituio
semelhante do sangue, mas no contm hemcias), que contm glbulos
brancos (99% de linfcitos, um tipo de leuccito que no sangue 50% dos
glbulos brancos). A linfa circula por gnglios linfticos, onde filtrada; nesses
gnglios, linfcitos fagocitam vrus, bactrias e resduos celulares, atravs de
um processo de multiplicao ativa e combate para a defesa do corpo.
Por meio de uma extensa rede capilar, o sangue vai, atravs da artria,
aos pulmes, recebe O2, volta ao corao pelas veias pulmonares, e atravs
das artrias, esse sangue arterial, rico em O2, bombeado para todo o corpo;
de l o sangue venoso, pobre em O2, volta pelas veias ao corao. Atravs de
impulsos eltricos, clulas musculares especializadas (ndulo sinoatrial e
ndulo atrioventricular, localizados no corao) controlam a freqncia do
batimento cardaco, num incessante processo de contraes e relaxamentos
(sstole-distole) das cmaras cardacas.
Este bombeamento opera segundo presses exercidas pelo sangue
contra as paredes arteriais (presso arterial), em pulsaes de contrao e
distenso, regulando os volumes de sangue enviados e as presses que
permitem enviar o sangue e relaxar a presso interna, e quando a presso
sangunea diminui, a musculatura arterial se contrai, equilibrando a presso, e
assim sucessivamente (Amabis&Martho, 1998, p.358-368).
Como plena ateno-respirao-circulao sangunea se inter-
influenciam?
A plena ateno na respirao tem ntima conexo com a qualidade da
circulao sangunea. Quando meditamos tendo o foco na respirao, a
tendncia de acalmar a respirao, que vai se tornando mais breve, profunda
e consciente. Isso leva diminuio da tenso cardaca, e com isso, a um certo
equilbrio na presso sangunea. possvel usar o batimento cardaco como
foco da ateno, com os mesmos efeitos benficos. Por outro ngulo, a plena
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ateno, ao possibilitar uma certa desacelerao e arrefecimento das tenses
emocionais, atua na desacelerao do ritmo cardaco quando desritmado
(hipertenso). Isto devido a um importante ponto: o ritmo cardaco
interdependente com a respirao, mas por sua vez o ritmo cardaco depende
dos impulsos eltricos do ndulo sinoatrial (chamado tambm de marcapasso),
que por sua vez est ligado ao reguladora da rea do Sistema Nervoso
Central chamada medula oblonga (bulbo raquidiano): Esta regio , chamada
de medulla oblongata, conecta a medula espinhal ao crebro e contm
aglomerados de clulas ou ncleos que controlam funes crticas como
presso sangunea, batimentos cardacos e respirao (Ramachandram,
2004, p.32). Localizado no tronco enceflico, o bulbo (...) abriga grupos de
ncleos que so centros para o monitoramento e controle respiratrio, cardaco
(freqncia cardaca) e vaso motor (presso arterial), assim como para o
vmito, o espiro, a deglutio e a tosse. (O livro do crebro, 1, p.63).
A medula oblonga, por sua vez, influenciada pelo sistema nervoso
perifrico autnomo (simptico e parassimptico), atravs do nervo vago. H
uma complexa e vasta interconexo do sistema nervoso com o sistema
respiratrio e circulatrio, mas de todo modo, observa-se na prtica da
meditao da plena ateno efeitos saudveis da tranquilizao da mente
sobre o processo cardio-respiratrio, em virtude das interrelaes entre os
estados mentais-atividades cerebrais-processos respiratrios e circulatrios.
Ainda que as pulsaes respiratrias e cardacas aconteam em boa
parte como impulsos involuntrios, relatos de meditadores experientes
mostram que h uma influncia positiva da qualidade mental da vontade
consciente nesses processos. Estas relaes merecem pesquisas cientficas
mais acuradas. O grau e qualidade da participao da vontade consciente
devem variar de acordo com mltiplos fatores pessoais (histrico, fase da vida,
tempo de prtica meditativa, etc.) Alm disso, tenses emocionais tendem a
descarregar adrenalina no sangue, para o enfrentamento de situaes de
estresse, estimulando a acelerao cardaca e respiratria, e o aumento da
presso sangunea e da concentrao de acar no sangue. Reiteradas
descargas de adrenalina tendem a levar o organismo a um desgaste danoso.
Observa-se que, depois das doenas de origem neuropsquica (como a
depresso, adices em alcoolismo, drogas, etc.), as doenas de ordem
cardiovasculares e respiratrias ocupam o segundo e terceiro lugar.
As chamadas doenas podem ser vistas como sinais-alertas de
desequilbrios na harmonia corpo-mente. E no ser que esta harmonia teria
graus ou nveis, de acordo com uma vida mais prxima, ou afastada, de um
horizonte espiritual mais profundo de significaes da condio humana?
Assim, as doenas seriam alertas funcionais para revermos e realinharmos
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nosso modo vida fsico e mental a uma perspectiva mais genuna, espiritual. As
doenas do aparelho circulatrio (como a arteriosclerose, infartos, hipertenso)
e respiratrio (rinite, asma, bronquite, etc.) poderiam ter na Meditao da Plena
Ateno certo suporte para, se no sua superao completa, certa diminuio
de sua destrutividade, e um melhor lide.
A meditao da plena ateno no deve ser vista como uma panacia
mgica que cura tudo, visto que h determinaes de causa mltiplas nos
problemas corporais, mas o princpio bsico o da interconexo entre essas
dificuldades do corpo e os estados da mente. E este o foco central do
treinamento meditativo: os padres mentais no-saudveis, que esto na base
do funcionamento do sistema nervoso e demais sistemas do nosso corpo.
Preparando-se para meditar
Coloque-se numa postura corporal confortvel, seja sentado numa
almofada com as pernas cruzadas, seja num banquinho ou na cadeira.
Sobre essa base, coloque a coluna ereta, mas sem tenses
desnecessrias. As mos podem estar descansando nos joelhos, ou em forma
de concha, as costas de uma mo sobre a palma da outra, os polegares se
tocando levemente.
Alinhe a cabea com a coluna, de modo a ficar com o queixo paralelo ao
cho. Boca fechada, respirao pelas narinas, olhos levemente abertos sem
nada fixar fora, ou simplesmente fechados, porm sem cair em sonolncia.
Relaxe todo o corpo, fazendo algumas respiraes longas, lentas e
profundas, nas trs partes dos pulmes, energizando corpo e mente.
Deixe de lado, durante a prtica, seus problemas cotidianos; oferea a si
mesmo o tempo da prtica para seu desenvolvimento interior.
Faa um compromisso de no deixar a mente fugir para o passado, que
j se foi, nem se projetar para um futuro, que ainda no existe. Tudo que temos
o momento presente, neste corpo, nesta mente, aqui e agora.
Traga um ensejo de bondade-amizade amorosa para com voc.
Podemos usar silenciosamente breves palavras: Que eu esteja bem, sadio e
pacfico. Estenda o mesmo ensejo para todos os seres: Que todos os seres,
sem exceo, estejam bem, sadios e pacficos.
Traga a ateno da mente para o foco da respirao no abdmen.
Procure fix-la nesta rea, atento expanso-contrao do abdmen a cada
inspirao e expirao.
-
Sempre que perceber que a mente fugiu em pensamentos distrativos,
imagens, memrias, no se irrite. Faa uma notao mental silenciosa:
Pensando, pensando. Relaxe, acolha, aceite. No se envolva com eles, no
necessrio analis-los. Deixe-os ir, so apenas distraes, como bolhas ou
nuvens. Faa uma pausa, e com gentileza, traga a ateno da mente de volta
para sua respirao.
Quando puder, procure colocar a ateno nas batidas do corao. Veja
o que voc percebe sobre seu ritmo cardaco. Como ? constante, varia?
Relaxado? Tenso?
Perceba o que acontece com sua respirao, momento a momento.
Perceba como ela muda incessantemente. Compreendendo que ela
impermanente, cultive um estado mental de desapego.
Reveja o contedo deste captulo. Anote as dvidas, procure as
respostas esclarecedoras, pesquisando ou perguntando a quem possa lhe
responder. Cuide de si mesmo/a.
Referncias
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http://www.casadedharmaorg.org/