MEDICINA TRADICIONAL PRATICADA POR REZADEIRAS, …medicina, o sistema de saúde é também um...
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MEDICINA TRADICIONAL PRATICADA POR REZADEIRAS, PAJÉS E
HERBORISTAS: OUTROS SABERES A SER RESPEITADOS PELO SABER
ACADÊMICO.
Maria Conceição de Lacerda1
Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre as contribuições da antropologia da saúde e da doença para o diálogo entre as diversas formas de ver a saúde e a doença e a construção de novas práticas em saúde. Para tal, apontamos os conflitos e intercâmbios entre os saberes da biomedicina e dos terapeutas populares, mostrando a importância da antropologia da saúde/doença neste debate. A análise aborda também o desenvolvimento dessa área do conhecimento, e sua contribuição para a prática mais consciente dos profissionais de saúde, a partir do reconhecimento da saúde e doença enquanto processos socioculturais. Portanto, a antropologia da saúde e da doença apresenta possibilidades de se repensar em políticas de saúde mais humanitárias, além de possibilitar a ressignificação das atividades cotidianas dos profissionais de saúde. O poder do etnoconhecimento e a eficácia simbólica são alicerces das práticas relacionadas com a cura e são concebidos e mantidos com a força da fé da comunidade local.
Palavras-chave: Etnomedicina; Xamanismo; Benzedeiras; Saúde/doença; Dimensão
religiosa da cura.
1 Doutora em Antropologia pela Universidade de Salamanca - ES (2014). Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997). Trabalha como Assistente Pedagógico no Athenas Grupo Educacional com as Faculdades: FAP, FAMETA; UNIJIPA, FSP e FAPAN, e é professora no Magistério Intercultural Tupi Mondé.
Abstrat: This article presents a reflection on the contributions of anthropology of health and disease for dialogue between different ways of seeing the health and disease and the construction of new health practices. For this purpose, we point out the conflicts and exchanges between the knowledge of biomedicine and popular therapists, showing the importance of anthropology of health / disease in this debate. The analysis also addresses the development of this area of knowledge, and their contribution to the more conscious of health professionals practice, from the recognition of health and disease as sociocultural processes. Therefore, the anthropology of health and disease has possibilities to rethink in more humanitarian health policies, and enable the redefinition of the daily activities of health professionals. The power of ethnic knowledge and the symbolic effectiveness are foundations of practices related to healing and are designed and maintained with the strength of the local community faith.
Keywords: Ethnomedicine; shamanism; healers; Cheers/disease; Religious healing dimension.
INTRODUÇÃO
Temas de saúde que envolvem fé e religiosidade fazem parte dos mais
diversos cenários culturais dos diversos povos do mundo. As expressividades das
práticas de cura parecem mesclar religião e misticismo. O papel dos determinantes
culturais (cultura entendida aqui no seu sentido de sistema simbólico) do processo
saúde-doença pode ser examinado em dois níveis. O primeiro é aquele em que os
fatores culturais revestem-se, sobretudo, de uma apresentação empírica, podendo-se
identificar percepções distintas das doenças e padrões de comportamento na clientela
que interferem no comportamento das doenças ou têm implicações de natureza
etiológica. O segundo nível refere-se às representações e categorias cognitivas dos
agentes sociais do conhecimento.
Durante décadas e até à atualidade, a medicina científica conviveu do lado de
diferentes práticas tradicionais de cura, tentando impor seu saber como o único capaz
de explicar a etiologia e cura para as enfermidades. Portanto, médicos, intelectuais e
cientistas, conviviam muitas vezes, de forma pouco harmoniosa com práticas
populares dos pajés, benzedeiras, homeopatas, boticários, feiticeiros, parteiras,
sangradores, espíritas, práticas estas consideradas como “charlatanismo” pelos
médicos.
A medicina acadêmica de tradição europeia que se constrói a partir de meados
do século XVIII, e que se baseia no racionalismo e na observação, era algo bastante
“novo” se comparado às outras práticas de cura, as quais se baseavam nas tradições
culturais e na experiência empírica da população (WITTER, 2001).
No Brasil, a monopolização das artes de curar foi um empreendimento do início
do século XIX a partir da categorização dos demais conhecimentos de saúde, doença
e medicina como charlatanismo. Conceito que não está apenas associado aos
agentes de cura populares, mas é usado também no interior da classe médica, contra
qualquer um que demonstrasse uma séria concorrência, o que evidencia as
divergências entre os tipos de terapêutica médica. Medicina do Rio de Janeiro (1829),
e da implantação do ensino médico pelo governo imperial em 1832 (PIMENTA, 2004).
Atualmente, apesar da biomedicina ainda se justificar como saber hegemônico,
foi com o fortalecimento da antropologia da saúde e da doença nas últimas duas
décadas no Brasil que se passou a defender um relativismo relacionado ao processo
saúde/doença e às práticas de saúde, onde os saberes e práticas de qualquer sistema
médico são percebidos como construções socioculturais (LANGDON, 2009).
Em outras palavras, o fenômeno saúde doença não pode ser entendido à luz
unicamente de instrumentos anátomofisiológicos da medicina (MINAYO, 2015), mas
deve considerar a visão de mundo dos diferentes segmentos da sociedade, bem como
suas crenças e cultura. Significa dizer que nenhum ser humano deve ser observado
apenas pelo lado biológico, mas percebido em seu contexto sociocultural.
O título deste ensaio Medicina tradicional praticada por rezadeiras, pajés e
herboristas: Outros Saberes a ser respeitados pelo saber acadêmico aponta para
o sentido da saúde, da doença e da cura no cotidiano das aldeias, dos moradores da
zona rural e de algumas práticas periféricas que ainda se mantém no imaginário dos
moradores das cidades de pequeno e médio porte. Instiga-nos a compreender a
construção da identidade cultural a partir das relações estabelecidas e dos
conhecimentos médicos tradicionais. Este ensaio busca analisar e interpretar através
da discussão antropológica a experiência de curar com as ervas medicinais e a
ajuda da oração e dos espíritos, e as relações interculturais que se dá neste
contexto.
Por isto, o presente artigo apresenta uma reflexão antropológica sobre
saúde/doença para contribuir para a construção de novas práticas em saúde. Tendo
em vista a pluralidade cultural dos pacientes brasileiros, a falta de capacitação ou
mesmo pelo descaso, com os mesmos, por parte de alguns profissionais de saúde –
que ainda reproduzem um ideal positivista, impondo um modelo teórico fechado, onde
o usuário do serviço não participa ativamente do processo, além de dissociar a saúde
e a doença dos aspectos e dimensões históricas, sociais, antropológicas e culturais
dos indivíduos.
CONCEPÇÕES DE SAÚDE E DE DOENÇA E A DIMENSÃO RELIGIOSA DA
CURA
As concepções de medicina tradicionais, também chamadas de
primitivas são qualitativamente distintas da medicina científica. As visões das
medicinas tradicionais durante muito tempo eram estáticas ou folclorista,
ignorando a dinâmica reconhecida hoje como essencial ao conceito simbólico
da cultura.
As novas discussões sobre a relação saúde/doença trabalham com um
conceito de cultura fundamentalmente diferente daquele presente nos trabalhos de
Ackerknecht, Rivers e Clementsi. Segundo eles, a cultura existe a priori da ação.
Consiste em normas, práticas, e valores vistos como anteriormente estabelecidos e
fixos que determinam os pensamentos e as atividades dos membros de uma cultura.
Assim, a cultura é vista como um sistema fixo e homogêneo, no qual todos os
membros compartilham as mesmas idéias e agem igualmente.
Considerando a cultura em sua expressiva interação social, onde os
atores comunicam e negociam os significados. Aplicando ao domínio da
medicina, o sistema de saúde é também um sistema cultural, um sistema de
significados ancorado em arranjos particulares de instituições e padrões de
interações interpessoais. É aquele que integra os componentes relacionados à
saúde e fornece aos indivíduos pistas para a interpretação de sua doença e as
ações possíveis.
A cultura emerge da interação dos atores que estão agindo juntos para
entender os eventos e procurar soluções. O significado dos eventos, seja doença ou
outros problemas, emerge das ações concretas tomadas pelos participantes. Esta
visão reconhece que inovação e criatividade também fazem parte da produção
cultural. Cultura é não mais um unidade estanque de valores, crenças, normas, etc.,
mas uma expressão humana frente à realidade. É uma construção simbólica do
mundo sempre em transformação. É um sistema simbólico fluído e aberto. Também
central neste conceito da cultura é o enfoque no indivíduo como um ser consciente
que percebe e age. A doença é vista dentro desta perspectiva. E é vista como uma
construção sociocultural, inclusive por sua própria subjetividade e experiência
particular.
Reconhecer a subjetividade implica, que nem todos os indivíduos de uma
cultura são iguais no seu pensamento ou na sua ação. É uma visão que permite
heterogeneidade, não só porque as culturas sempre estão em contato com outras que
têm outros conhecimentos, mas também porque os indivíduos dentro de uma cultura,
por serem atores conscientes e individuais, têm percepções heterogêneas devido a
sua subjetividade e experiência que nunca é igual à dos outros.
CONCEPÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA
A relação íntima entre saúde e cultura acompanha a história da antropologia,
diversos autores entre eles, W.H.R. Rivers (1979, original 1924)ii. Com formação em
medicina, se preocupava com a caracterização ou a classificação da medicina
primitiva segundo categorias de pensamento, identificado na época como pensamento
mágico, religioso, ou naturalista. Estabelecidas por Frazer, Tylor, e outros, estas
categorias foram comuns nos vários debates sobre o pensamento primitivo. Rivers
empregou-as para classificar as crenças sobre etiologia das outras culturas, afirmando
que “Partindo da etiologia, nos encontraremos guiados naturalmente ao diagnóstico e
tratamento, como é o caso no nosso próprio sistema de medicina” (Rivers 1979: 7).
Assim, Rivers se preocupava em identificar as medicinas primitivas como
manifestações de modos de pensamento lógico no qual o tratamento da doença
logicamente seguiria a identificação da causa (1979: 29 51). Rivers não escapou das
influências de seu tempo no que se refere à visão evolucionista do pensamento
primitivo. Afirmava que os modos de pensamento da medicina primitiva eram opostos
ao pensamento que fundamenta a medicina moderna (1979:120). Assim, ele
conceituou a medicina primitiva como sendo qualitativamente distinta da medicina
científica. Para Rivers, se há mudança nas práticas médicas pela incorporação de
elementos empíricos e racionais, esta mudança é o resultado da difusão; porém,
acreditou que quando estes elementos são introduzidos numa cultura primitiva,
freqüentemente são degenerados numa interpretação mágica ou religiosa.
Outro pesquisador importante na História da antropologia da saúde é
Clementsiii (1932), realizou um estudo comparativo sobre os conceitos da
doença na medicina primitiva através das crenças etiológicas. Sua
preocupação maior foi mapear a distribuição destas crenças entre os povos
primitivos no mundo. Reduziu-as a cinco categorias de causas: feitiçaria,
quebra de tabu, intrusão de um objeto no corpo, intrusão do espírito, e perda
da alma. Sua preocupação era mapear estes traços para uma reconstrução
histórica, e sua análise é alvo das críticas do método difusionista. Os traços
são tratados como unidades independentes que passam de uma sociedade
para outra, sem consideração pelo seu significado ou sua integração na cultura
como um todo. Assim sua pesquisa resultou num estudo puramente descritivo
da distribuição destes traços. Clements ignora o princípio importante de Rivers,
de que estes elementos estão ligados ao resto da cultura e da sociedade onde
são encontrados.
Para Malinowskiiv a medicina mágica seria um sistema de crenças que
atribuem as causas das doenças à manipulação mágica por parte de seres humanos
(feiticeiros, bruxos, etc.) e as técnicas de tratamento também se caracterizam como
manipulações mágicas (feitiçaria e contra feitiçaria) humanas. A medicina religiosa
teria como causas das doenças as forças sobrenaturais, e o tratamento seriam feito
através de apelos ou propiciações às entidades sobrenaturais para que interviessem.
Finalmente, a medicina naturalista se caracteriza pelo raciocínio empírico que explica
e trata a doença como fenômeno natural, ou seja, baseado na observação empírica da
operação das forças naturais. Suas técnicas de cura, consequentemente, envolvem o
tratamento da causa específica natural com uma técnica igualmente natural (plantas,
cirurgia, etc.). Este conceito de sistema natural não é tão diferente da afirmação de
Malinowski de que os primitivos têm um sistema de conhecimento "baseado na
experiência e modelado pela razão" (Malinowski 1948: 26).
Na década de 70, vários antropólogos começaram a propor visões alternativas
à biomedicina sobre o conceito da doença (Fabrega, 1974; Good 1977; Kleinman
1980; Hahn 1983; Young 1976. Juntando o campo da etnomedicina com as
preocupações da antropologia simbólica, a semiótica, a psicologia, e considerações
sobre a questão da eficácia da cura, estes estudiosos se preocuparam com a
construção de paradigmas onde o biológico estivesse articulado com o culturalv
(Bibeau 1981: 303). Segundo eles, a doença não é um evento primariamente
biológico, mas é concebida em primeiro lugar como um processo experienciado cujo
significado é elaborado através de episódios culturais e sociais, e em segundo lugar
como um evento biológico. A doença não é um estado estático, mas um processo que
requer interpretação e ação no meio sociocultural, o que implica numa negociação de
significados na busca da cura (Staiano 1981).
Mais recentemente nas décadas de 80 e 90 os proponentes da Antropologia
Médica Crítica pressupondo “o conhecimento como dependente das condições
políticas e econômicas de uma sociedade”, alertaram para a necessidade de integrar a
cultura nos seus contextos econômicos e históricos (Frankenberg, R.1988, Soheir
Morsy, 1996). Seguindo este paradigma os antropólogos passaram a olhar tanto a
etnomedicina como a biomedicina como produtos sociais, historicamente situados. A
biomedicina passou a ser conceitualizada como um sistema social e a ser estudada
como tal. Ao mesmo tempo é feita a crítica do paradigma antropológico anterior que
colocava as sociedades estudadas num espaço intemporal imaginário, negligenciando
os conflitos e as variações históricas e sociais.
Conforme Kleinmanvi as definições concernentes à saúde e a doença
constituem representações cultural e socialmente edificadas. A comunicação
entre os profissionais da saúde e a comunidade tem um papel importante na
diagnostificação da doença, bem como, métodos adequados de cura.
(Kleinman, 1980). Cabe aqui citar alguns fatores culturais específicos, a
severidade da doença, as relações entre o pessoal de saúde e o grupo,
experiências anteriores com os tratamentos, acessibilidade, etc. Esta
receptividade às curas da biomedicina talvez se manifeste mais claramente na
questão de remédios. Os fármacos não são somente aceitados em várias
instâncias, mas também eles se tornam o símbolo do poder da biomedicina até
tal ponto que: médico, enfermeiro, ou assistente de saúde que não os distribui
em situações nas quais o profissional não os julga necessários, numa tentativa
de prestar um atendimento mais holista e/ou de incorporar a fitoterapia do
próprio grupo é criticado severamente pela comunidade tradicional. (Langdon
2009) vii.
A contribuição de Arthur Kleinman na área da antropologia médica, para
distinção da medicina tradicional do conhecimento de saúde científico e dos
distintos povos é notável. Segundo esse autor, um sistema etnomédico e/ou a
medicina folk, distingue-se da – medicina popular, familiar praticada por todos
os membros de uma comunidade e da medicina profissional científica,
ocidental /cosmopolita ou mesmo da medicina alternativa e complementar
resultante da profissionalização das práticas indígenas e tradicionais (Chinesa
Ayurvédica ou Européias medievais não hegemônicas, tipo: quiropraxia,
hidroterapia, apitoxinoterapia, etc.).
George Armelagos (1992) refere que a Antropologia Médica
desenvolveu duas abordagens distintas no estudo da saúde e da doença: uma
cultural e outra biológica. A cultural corresponde aos estudos etnomédicos
tradicionais que olhavam a doença como categoria cultural e estudavam as
respostas sociais à doença. A biológica teria uma perspectiva ecológica e
estudaria a doença como o resultado de uma interação entre a população, o
agressor e o ambiente, utilizando as categorias biomédicas. George
Armellagos e outros autores (Kleinman e Mendelshon 1978) consideram
importante a integração destas duas perspectivas, cultural e biológica,
propondo uma síntese biocultural, considerando que “a ausência de uma
integração biocultural, impediu a análise sistemática da saúde e da doença em
grupos sociais contemporâneos, tradicionais e não ocidentais” (George
Armellagos, 1992).
O conhecimento médico de um indivíduo tem sempre uma história particular,
pois é constituído de e por experiências diversas. Assim, é de se esperar que este
conhecimento exista em um fluxo contínuo e que mesmo seja passível de mudanças,
tanto em termos de extensão como em termos de estrutura. A interpretação da
enfermidade tem uma dimensão temporal não apenas porque a doença, em si mesma,
muda no decorrer do tempo, mas também porque a sua compreensão é
continuamente confrontada por diferentes diagnósticos construídos por familiares,
amigos, vizinhos e terapeutas. O conhecimento médico de um indivíduo está
continuamente sendo reformulado e reestruturado, em decorrência de processos
interativos específicos. Assim, como argumenta Youngviii (1981, 1982), é esperado que
o indivíduo produza mais do que um tipo de explicação sobre sua enfermidade, porque
seu conhecimento é sempre recorrente e processual.
Para Sanchesix a medicina tradicional se reflete em uma sabedoria
ilustrada de arquétipos Jungianos pertencentes ao inconsciente coletivo,
presentes em diferentes continentes e culturas. (Sanches. 115).
No entanto o trabalho dos antropólogos a nível internacional tem tido
constrangimentos vários, dado que a ajuda internacional freqüentemente tem uma
perspectiva etnocêntrica baseada no modelo biomédico, priorizando os aspectos
tecnológicos e “científicos”, e desvalorizando freqüentemente o contributo da
investigação antropológica para o sucesso dos programas que se pretendem
programar: “A assunção de que perguntar às pessoas sobre as suas crenças e
comportamentos na área da saúde, bem como observar esses mesmos
comportamentos, não é ciência, a não ser que os dados sejam utilizados para testar
hipóteses, muitas vezes é um constrangimento grave para o desenho de um projeto de
investigação e para os seus resultados” (Foster, 1987)
Berta Nunes fala da importância dos conceitos de etnocentrismo e relativismo
cultural relacionados com a necessidade de compreender as diversas crenças e
comportamentos das pessoas sem as julgar segundo a nossa própria cultura. Esta
atitude que é central na antropologia contrasta com a orientação universalista e
pragmática da biomedicina e pode assustar alguns profissionais de saúde. No entanto
estas são lições fundamentais que os antropólogos podem trazer aos clínicos. Uma
forma interessante de operacionalizar o relativismo cultural é inquirir sobre as
perspectiva dos doentes e os seus modelos explicativos, no encontro clínico. (Nunes,
2005)
Herzlich e Pierret percebem que a busca pelo significado da doença envolve
invariavelmente vários aspectos da vida pessoal e comunitária do indivíduo. (Herzlich
& Pierret. 1993:75)
Para Verani o tratamento epidemiológico dos dados sobre a categoria
tradicional evidencia relações com acontecimentos de ordem cultural, afetos à
conjuntura sócio-política e das relações de contato. Essa “síndrome cultural”
representa um desafio aos métodos utilizados pela medicina ocidental moderna, em
particular para a abordagem clínica e epidemiológica. Finalmente, os autores
apresentam consideração de ordem metodológica, explicitando aspectos de dimensão
cultural específicos da sociedade moderna, contidos nos procedimentos das
disciplinas científicas envolvidas. (Verani & Morgado. 1992)x.
Para Laplatine a percepção e resposta de um grupo social pode ser
pensada através da elaboração e análise de modelos etiológicos e
terapêuticos. Um modelo é: uma construção teórica, caráter operatório e
também uma construção metacultural ou seja que visa fazer surgir e analisar
as formas elementares da doença e da cura - sua estrutura seus invariantes
tornando-o comparável a outros sistemas (Laplatine).
Kunstadter (1976), no seu estudo comparativo dos sistemas médicos
nas sociedades asiáticas, resume os seus achados afirmando que
provavelmente todos os sistemas de saúde são pluralísticos, contendo
múltiplos pontos de escolha para decidir entre opções terapêuticas diversas e
que conseqüentemente é errado falar do sistema médico de uma sociedade
como se fosse único e imutável. Kunstadter (1976) defende que os sistemas
médicos são mais bem compreendidos como sistemas locais de saúde,
potencialmente relacionados com um grande número de variáveis, num
contexto específico, podendo diferir consoante os contextos culturais.
Atualmente a Sociedade para a Antropologia Médica
(www.medanthropo.net) da Associação Antropológica Americana, define a
antropologia médica como uma “sub-disciplina” da área da antropologia que
utiliza os conhecimentos e métodos da antropologia social, cultural, biológica e
lingüística, para melhor compreender os fatores que influenciam a saúde e o
bem estar (definidos em sentido lato), a experiência e a distribuição da doença,
a sua prevenção e tratamento, os processos de cura, as relações sociais e a
gestão da terapêutica bem como a importância cultural da utilização dos
sistemas médicos pluralísticos.
DIMENSÃO RELIGIOSA DA CURA
Numa comparação entre as proposições de Peter Berger e seu “dossel de
símbolos” que compõem a pluralidade dos sistemas simbólicos alternativos do mundo
moderno e a “eficácia simbólica” do xamanismo e psicanálise Levi Strauss, Figueiraxi,
1976 contribui para compreensão da organização simbólica das sociedades
complexas propondo o uso do termo “terapêuticas” para todos os recursos que uma
sociedade põe à disposição de sujeitos que estão doentes ou que, por diversos
motivos, atravessam períodos críticos de vida.
Compreendendo a religião/religiosidade como parte da natureza humana,
procuramos relacionar alguns elementos que contribuam para a compreensão
dessa religiosidade, a partir de algumas práticas populares de cura, no
contexto das crenças do domínio do sagrado sobre a natureza da saúde e da
doença, crença esta, que coloca a religião a cima da ciência.
A fé e a religião sempre exerceram um papel importante na vida individual e
coletiva nas comunidades tradicionais, nelas se encontra os valores e as crenças a
serem seguidas e difundidas. Quantas vezes fazem referência ao “Sobrenatural” para
explicar as causas e encontrar a cura de determinadas doenças (de modo particular
das doenças de foro psiquiátrico), cujas interpretações estão relacionadas com o
universo espiritual: Deus, Santos, espíritos dos mortos e demônios; outras explicações
para as causas das doenças são vinculadas à magia e superstição como “mal olhado”,
“bruxaria”, “susto” e “feitiço”.
Há muitos estudos sobre as doenças mentais que apontam para as
dimensões espirituais e religiosas da cultura como fator mais importante que
estruturam a experiência humana, as crenças, os valores, o comportamento e
os padrões de doenças (Lukoff y Turnerxii 1992; Sims, 1994; Weaver et al,
1998). Acrescenta-se a essa situação os sistemas de diagnósticos da
psiquiatria com sua teoria e sua prática clínica que propende a ignorar ou
considerar patológicas as dimensões religiosas e espirituais da vida (Lukoff y
Turner 1992; King, 1998).
Assim como a religiosidade é tradicionalmente encarada de forma
negativa pela psiquiatria, também as experiências místicas e espirituais são
muitas vezes consideradas como evidências de perturbações mentais. As
representações religiosas da doença e de algumas técnicas mágicas de cura
aparecem muitas vezes como um universo alternativo ao saber médico oficial,
e acreditar que muitos pajés, bruxos, médiuns e curandeiros são portadores de
uma sabedoria divina, e de um “Dom” capaz de igualar e inclusive superar ao
conhecimento médico na arte de curar determinadas doenças. (Rodriguesxiii,
2006).
Movendo-se no âmbito do sagrado e do profano a religiosidade popular
das comunidades tradicionais de confissão religiosa católica cerca-se de
objetos simbólicos como: (crucifixo, círios, cruzes, imagens dos santos, etc. ...),
e se assumem como verdadeiros crentes, pessoas de fé em Deus e no poder
da salvação e se vêem com o poder de rezar para curar as doenças de seus
semelhantes, são pessoas que em determinadas culturas são chamadas de
benzedeiras ou rezadeiras.
Cremos que essas pessoas buscam estas propostas de cura porque
encontram nelas uma ressonância cultural, que pertence ao seu imaginário
coletivo.
OS AGENTES DE CURA
No tocante ao fenômeno saúde/doença, atualmente muitos estudiosos
acreditam que não se pode separar as noções e práticas de saúde dos outros
aspectos da cultura dos indivíduos. O modelo biomédico, apesar de possuir ainda
muitos adeptos, atua lado a lado com um sistema cultural de saúde que inclui
especialistas não reconhecidos pela biomedicina (LANGDON; WIIK, 2010), como por
exemplo, benzedeiras, curandeiros, xamãs, pajés, pastores, padres, pais de santo,
dentre outros, cujas terapêuticas de cura são produtos de variados tipos de bricolage
que têm raízes em práticas milenares de diferentes tradições filosóficas, teóricas,
mágicas e de misticismo (MAUÉS, 2009, p. 125).
Atualmente, apesar dessas práticas populares de cura ainda não serem aceitas
pela biomedicina, acredita-se que estes embates já foram bem maiores no passado,
quando agentes populares de cura eram proibidos de exercer suas terapêuticas.
Segundo Almeida (http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br), o nascimento das Faculdades
de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador em 1832, bem como a transformação da
então Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia Imperial de Medicina,
foram processos decisivos para a institucionalização e fortalecimento da medicina
acadêmica, enquanto saber hegemônico.
Nesse contexto, era necessário desautorizar qualquer prática de cura realizada
por terapeutas populares, os quais não possuíam nenhuma formação científica, e por
isso, não poderiam atuar como os médicos letrados.
Um aspecto interessante destacado por Witter (2005) aponta para a
inferioridade do trabalho manual em relação às chamadas artes liberais. Nos
oitocentos, as atividades dos terapeutas populares como os barbeiros e cirurgiões
estavam associadas com o sangue, o corpo e as suas partes “sujas”, o que sempre
depreciava o ofício deles. Ao contrário dos médicos que se identificavam com as artes
liberais, as quais exigiam maior estudo e menor grau de trabalho manual.
Segundo Francisca Santos (2001), ao tratar sobre o discurso médico-higienista
em Belém do Pará no início do século XX, os médicos acreditavam ter a verdade, e
por isso, deveriam ensinar tanto ao governo quanto à população ignorante, guiando-os
“sob as luzes da razão”, orientando-os para terem uma conduta que os levem a
alcançar o progresso da civilização. Nesse sentido, a política médica vem para efetivar
o controle, intervindo na sociedade, policiando todas as possíveis causas de doenças,
destruindo os espaços sociais perigosos.
Além de reivindicações ao governo sobre as restrições e a regulamentação do
ofício de curandeiros, os médicos diplomados também contavam com o apoio da igreja
católica e das Ordenações do Reino. A igreja estabelecia a fronteira cultural entre o
universo demoníaco e a cura médica associada aos saberes universitários. A medicina
procurava desvalorizar o conhecimento terapêutico popular, distinguindo os
procedimentos 'científicos' das crenças consideradas “supersticiosas” (EDLER, 2010,
p. 21).
E, enquanto a fala dos médicos indicava preceitos, a fala dos padres indicava a
graça alcançada, contudo, ambos tinham o objetivo de desautorizar as práticas
terapêuticas realizadas por agentes populares.
EXORCISMO: UMA TÉCNICA RELIGIOSA DE CURA
Cada cultura fornece aos seus membros formas e padrões de doenças de
modo que o sofrimento identifica a enfermidade, explica suas causas e as formas de
tratamento. As doenças mentais podem ser explicadas pela possessão espiritual,
feitiçaria, violação de tabus religiosos, e outros malefícios.
O fenômeno da possessão segundo Lewisxiv é uma experiência normativa,
pessoas possuídas apenas acreditam que estejam quando outros membros da
sociedade endossam a afirmação. Mas não significa que todos vão fazer esta
experiência. Para Lewis a possessão é uma forma anormal de comportamento, mas
que está em conformidade com os valores culturais com normas e estabelecidas sobre
quem pode ser possuído, em quais circunstancias ocorre a possessão e como esta é
sinalizada para outras pessoas.
Em muitas partes do mundo, as pessoas admitem livremente que são
“possuídas” por forças sobrenaturais e que, os espíritos, falam e agem através
delas, elas têm visões, sonhos reveladores desta possessão. Diante da crença
na realidade sobrenatural das doenças; a maioria dos casos tidos
primeiramente como possessão demoníaca ou da alma de algum falecido, e
não a entendendo como distúrbio psiquiátrico, a cura, muitas vezes passa pelo
exercício do exorcismo.
O exorcista cura através dum combate de verdadeira guerra contra a
doença. Ele procura extrair do corpo ou do espírito de seu paciente o mal
(doença) e anula-lo.
Para Laburthe-Tora e Warnierxv os espíritos malignos existem e são
objetos de exorcismos, isto é, de procedimentos para expulsá-los e livrar-se
deles. Os termos empregados neste caso revelam a concepção de espaço que
se faz do mundo invisível e trajetória que nele se desenvolve. Na possessão,
por exemplo: o espírito “maligno” ou do “falecido” se apossa da pessoa sob a
forma de doença ou outros infortúnios, prendendo a si tal pessoa.
Na tradição católica o exorcismo foi historicamente praticado por mulheres e
homens (rezadores, benzedeiras) e pelos sacerdotes. Nos documentos pontifícios
sobre exorcismo encontra-se a seguinte nota: “somente o sacerdote autorizado por
seu bispo pode exorcizar, os leigos podem, com prudência, rezar pela libertação
privadamente”. Segundo o Cardeal Jorge Medina Estevezxvi, o novo ritual é uma
edição atualizada da versão do texto de 1614. E as orações oficiais reconhecem a
realidade do demônio “que em sua forma substancial, é o maligno, o inimigo de Deus".
(cf. CIC can. 1172).
ANTROPOLOGIA DA SAÚDE E DA DOENÇA
Anterior aos estudos de antropologia da saúde e da doença, Lévi-Strauss
(1970), ao estudar os povos ditos primitivos, contestando o racismo e a noção de
primitivo, contribuiu veementemente para que a ideia de que os chamados selvagens
são atrasados e “menos evoluídos”. Para ele, esses povos apenas operam com o
pensamento mítico (magia), que em termos de operações mentais é comparável ao
pensamento científico, diferindo quanto a questões do determinismo causal, global e
integral para o primeiro e em níveis distintos, não aplicáveis uns aos outros, no
pensamento científico (p. 31-32).
Esta mesma ideia de selvagem enquanto primitivos e atrasados, a qual Lévi-
Strauss contesta, é aplicada aos agentes de cura populares por meio dos relatos dos
folcloristas. Porém, não se pode desconsiderar o fato de que são trabalhos pensados
em uma época e em um contexto histórico bem diferente de hoje, cujos discursos no
meio científico, pelo menos boa parte deles, estavam voltados a uma ideologia de
valorização negativa dos saberes e práticas populares, mas que apesar disso, não se
tornam menos importantes, pois nos deixaram um rico legado de registros e inúmeros
dados que, sujeitos a cuidados, podem ajudar em estudos sobre fontes bibliográficas
(IBÁÑEZ-NOVIÓN, 1982).
No Brasil, nos últimos vinte anos, os estudos e pesquisa sobre saúde, cultura e
sociedade têm se multiplicado, e na última década, a antropologia da saúde/doença
vem se consolidando como espaço de reflexão, formação acadêmica e profissional de
médicos, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde no país (GARNELO;
LANGDON, 2009).
Este estudo têm ampliado nosso entendimento das matizes culturais sobre as
quais se erguem os conjuntos de significados e ações relativos a saúde e doença,
característicos de diferentes grupos sociais, e tem servido, em grande medida, de
contraponto aos estudos epidemiológicos que tendem a tratar o tema "doença e
cultura" em termos de uma relação externa, passível de formulação na linguagem de
"fatores condicionantes". Antropólogos tem produzido conhecimentos sobre os temas
alimentação, saúde, doença, que afligem principalmente as classes trabalhadoras ou
outras minorias. Isto é, são estudos preocupados em investigar e analisar de forma
mais conscienciosa os distintos saberes e práticas de cura, bem como suas
instituições e especialistas, além da preocupação em refletir sobre os confrontos e/ou
complementaridade dos cuidados médicos com outras práticas de cura.
Estes estudos são fundamentais para se começar a pensar em práticas de
saúde mais humanas, e por isso, a antropologia da saúde e da doença não pode ficar
desvinculada de outras disciplinas que compõe a grade curricular, em especial dos
cursos que formam profissionais de saúde, pois traz inúmeras contribuições que
envolvem as reflexões em torno do processo saúde/doença, cultura e sociedade, bem
como são fundamentais para se repensar em formulação de políticas públicas e
planejamento dos serviços de saúde.
Acredita-se, contudo, que não existem práticas genuinamente médicas ou
genuinamente mágico-religiosas, mas, no máximo, recursos distintos que se
complementam. De acordo com Laplantine (1986, p. 220). Enquanto a intervenção
médica oficial pretende apenas fornecer uma explicação experimental dos
mecanismos químicobiológicos da morbidez e dos meios eficazes para controlá-los, as
medicinas populares associam uma resposta integral a uma série de insatisfações
(não apenas somáticas, mais psicológicas, sociais, espirituais para alguns, e
existenciais para todos) que o racionalismo social não se mostra, sem dúvida, disposto
a eliminar.
As interpretações que os agentes populares de cura fazem no tocante às
desordens corporais, o fazem sempre em referência às regras sociais e culturais, ou
seja, cada indivíduo, no tocante ao processo saúde/doença leva em consideração uma
organização social, religiosa ou simbólica específica da qual faz parte. O que não
significa dizer que há a ausência de um saber elaborado.
Em estudo desenvolvido por Wawzyniak (2009) com agentes comunitários de
saúde (ACS) no Tapajós (Pará), observou-se que esses profissionais de saúde lidam
com comunidades ribeirinhas cujas concepções de saúde/doença se relacionam com
crenças e imaginários como o “assombro de olhada de bicho”, em que um “bicho” ou
"assombro de bicho" tem a capacidade de causar doenças nas pessoas. Neste
trabalho o autor mostra a importância da atuação do ACS nessas comunidades, cujo
trabalho transita entre o modelo biomédico e o sistema terapêutico tradicional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O complexo fenômeno saúde/doença, o qual deve ser entendido não de forma
isolada, mas agregando aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, bem como
a necessidade do olhar de diferentes atores sociais em torno de um bem comum:
assegurar a saúde das pessoas, está posto à mesa da discussão, diante de todos.
A medicina científica sempre se apresentou como detentora do monopólio do
saber médico, tentando desautorizar práticas populares de agentes como pajés,
benzedeiras, parteiras, curandeiros, dentre outros. Todavia, médicos diplomados e
agentes de cura popular apesar de conviverem de forma pouco harmoniosa – cada um
dentro de suas limitações – interagem enquanto saber e prática.
A intolerância por parte de muitos profissionais da saúde os quais ainda
conservam o modelo biomédico no exercício de suas atividades cotidianas, as
terapêuticas populares, mágico-religiosas, permanecem vivas nas raízes dos mais
variados povos, afinal quem nunca recorreu ao chá de erva-doce ou do boldo a fim de
aliviar problemas digestivos ou intestinais? Ou quem nunca recorre à espiritualidade
quando têm algum problema seja de ordem física, psíquica ou emocional?
Claramente, vivemos e recriamos crenças e tradições milenares de acordo com o
contexto cultural e social em que estamos inseridos.
O culto dos santos, a fé nos espíritos das florestas e dos rios, nos pajés e nas
parteiras, a confiança nas orações e nos encantamentos, o conhecimento e fé nos
remédios caseiros, enfim, todas as crenças sobre a saúde e doença mantidas por
diferentes povos no mundo, devem ser consideradas pelos profissionais de saúde que,
dentro de suas possíveis limitações, precisam recriar sua prática cotidiana,
aproximando-se da linguagem e realidade simbólica dos indivíduos.
Há um momento em que as exigências da saúde engendram uma preocupação
dominante para os técnicos de saúde e exige tal conhecimento que sua prática seja
validade cientificamente. Todavia algumas doenças só podem ser explicadas e
compreendidas se estes técnicos forem capazes de entender a dimensão cultural e
social do paciente e de sua comunidade de origem.
No conhecimento de saúde perceber a dimensão social e cultural da
doença, poderá ajudar ao profissional da saúde a perceber como a cultura, as
crenças e os valores podem interferir na percepção e na interpretação das
doenças. Compreender os processos de auto-reconhecimento da doença deve
ser o passo na relação técnico de saúde paciente bem como a busca de
resolução adequada para tal.
Talvez seja importante repensar a questão da saúde como um resultado
de vários fatores que originam dentro do grupo local, sua cultura e suas
relações sociais, ou que são resultados das forças externas do grupo, mas que
acabam sendo vivenciados e experienciados pelo próprio grupo. O desafio é
criar um modelo mais abrangente que respeite e dialogue com os modelos
tradicionalmente empregados para melhorar a saúde.
É bom lembrar que a cura mágica não é um ato isolado, mas uma etapa de
adesão ao ethos religioso capaz de alterar o sentido da própria doença e refazer a
explicação de sua etiologia. Este ethos não informa apenas a relação com a doença,
com o sofrimento e com a dor, informa também a relação com o mal, com o dinheiro,
com os afetos, com o trabalho, com a morte, com os outros, com os estranhos e com o
próprio eu. As comunidades tradicionalmente acostumadas à busca da cura pela
oração e intervenção dos santos ou dos espíritos apesar de modernizada, não perdeu
a variante religiosa na busca de respostas pragmáticas e utilitárias para as aflições do
dia-a-dia, sobretudo das doenças.
Além disso, a antropologia da saúde e da doença oferece possibilidades de se
repensar em políticas de saúde menos segregacionistas e voltadas particularmente, às
necessidades das classes mais desprovidas. Para tanto, é essencial compreender o
contexto social e cultural em que o indivíduo está inserido, considerando que estes
usuários transitam de forma tranquila entre os diferentes setores de atenção à saúde,
seja a biomédica ou a medicina popular.
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NOTAS.
i CLEMENTS. ii O livro de Rivers, Magic, Medicine and Religion, é composto de uma série de palestras que ele apresentou para o Royal College of Physicians de Londres entre 1915 e 1916. As palestras foram publicadas em forma de livro após sua morte em 1922.
iii Clements. Não é o objetivo aqui dar uma história completa do desenvolvimento da antropologia da saúde nos Estados Unidos. A visão da superioridade da biomedicina como fonte de técnicas universalmente verdadeiras aparece em várias obras, inclusive no primeiro texto em antropologia médica a aparecer nos Estados Unidos, o de Foster e Anderson (1978). Talvez a área mais relativista na sua visão da biomedicina e a que tem procurado aprender dos curandeiros nativos seja a antropologia psicológica ou a psicologia transcultural, como foi chamada nos anos 60, onde as técnicas terapêuticas de outras culturas eram vistas como possivelmente eficazes e não tão diferenciadas de nossas técnicas (Kiev 1974; Frank 1973; LaBarre 1947). iv Malinowiski. v Bibeau 1981: 303. vi KLEINMAN, H. Culture, Health Care Systems and Clinical Reality. 1980. Seguindo Hahn e Kleinman (1983: 306) adotamos o termo "biomedicina" em vez de "medicina científica" para designar a nossa tradição médica, querendo evitar a implicação que outros modelos médicos não são ou não possam ser científicos.
vii Veja-se Langdon 1992, para uma crítica maior dos problemas das categorias de magia e religião na história da antropologia. Augé (1986) também aponta os aspectos preconceituosos destas preocupações com a lógica do pensamento.
viii Young (1981, 1982). Veja-se, por exemplo, Evans-Pritchard (1937), Foster (1976), Janzen e Prins (1981), Langdon (1988), Buchillet (1991), Young (1982), Augé e Herzliche (1984) e Zempléni (1985).
ix SANCHES, El trapazo Generacional y Familiar. x VERANI & Morgado. xi FIGUEIRA, 1976. xii Lukoff y Turner 1992; King, 1998. xiii xiii RODRIGUES, Donizete. 2006. Medicina Popular: La enfermedad mental y la dimensoión religiosa en el proceso de cura. p. 10. xiv Lewis, I M (1971). Ecstatic Religion, pp.178-205.Penguin. xv LABURTHE-TOLRA Philippe e WARNIER Jean-Pierre. Etnologia Antropologia, 3ª ed. Petrópolis, Vozes, 2003. p. 200. xvi MEDINA ESTEVEZ, Jorge. (Cardenal) cf. CIC canon. 1172.