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ISSN 2317-661X Vol. 09 – Num. 01 – Janeiro 2016
www.revistascire.com.br
MEDIADORES DE LEITURAS: bordados de/na vida de alunos
de uma Pós-Graduação
Suzana Maria de Queiroz BENTO1
UVA/UNAVIDA - PROLER-CG
RESUMO: O presente artigo traz uma experiência desenvolvida com alunos de uma Pós-Graduação na cidade
de Campina Grande/PB, numa aula com o Professor Edmir Perrotti (professor da USP) sobre as experiências
adquiridas no convívio da família, da escola, da comunidade, de amigos que bordaram a história de leitura de
cada um, quer seja inicialmente pela literatura infantil, quer seja pelas cantigas de roda, quer seja pelas
brincadeiras, ou outro gênero. O objetivo deste trabalho foi o de apresentar as memórias de cada leitor com
relação a quem foi seu/sua mediador(a) de leitura e ainda traçar um perfil sobre quais autores da literatura
influenciaram a vida de cada um para a leitura. A metodologia foi baseada no estudo sistemático de cartas que
foram escritas por cada um desses alunos e foram analisadas à luz dos estudos de Perrotti (2008), Zilberman e
Lajolo (1991) e os resultados apresentados em gráficos para um estudo panorâmico de como foi a formação de
leitor de cada um deses alunos que tiveram pais, mães, avós, tios, como maiores mediadores de Leitura e a escola
pouco aparece como formadora de leitores.
Palavras-chave: Leitura; Mediadores; Experiências de Leitura; Cartas. ABSTRACT: This article presents an experience developed with students of Graduate in the city of Campina
Grande/PB, in a class with Professor Edmir Perrotti (USP professor) on experiences in family living, school,
community, of friends Embroidered reading history of each, whether initially for children's literature, whether by
nursery rhymes, whether for games or other gender. The objective of this study was to present the memories of
each player with respect to who his/her agent(a) read and also have a profile on which literature authors
influenced the lives of everyone for reading. The methodology was based on the systematic study of letters that
were written by each of these students and were analyzed in the light of Perrotti studies (2008), Zilberman and
Lajolo (1991) and the results presented in graphs for a panoramic study of how was the player training each
deses students who had fathers, mothers, grandparents, uncles, as major mediators of lecture and the school little
appears as forming readers. Key words: Lecture; mediators; Lecture experiences; Letters.
INTRODUÇÃO
(...) A vida se apresentava a nós, desafiando certezas a
cada nova leitura deixando clara a dimensão imensa
que o ato de ler pode ter quando vivido em sua
complexidade e plenitude (...)
Edmir Perrotti
1 Professora do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú há 15 anos e membro do
Proler-CG
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Muito se discute a importância da leitura na vida das pessoas, e que ela deve começar
desde cedo, ainda no seio da família através da contação de histórias, cantigas de ninar e das
brincadeiras de roda. Contudo, essa é uma realidade pouco praticada nos dias atuais. O
primeiro contato com a leitura, em geral, tem ou deveria ter a participação da família, que
direta ou indiretamente introduz a criança ao mundo mágico da leitura, quer seja pelas
histórias contadas, quer seja pelas cantigas e brincadeiras. É preciso efetivamente mostrar que
ler é, muitas vezes, brincar, divertir-se. Apontar o mundo lúdico que a leitura pode se
transformar, envolvendo a criança no universo da fantasia, e da invenção, a ponto de despertar
a curiosidade e desafiá-la a resolver problemas cujas soluções dependem de sua habilidade e
capacidade criativa para responder a situações novas.
No seio da família somos implicados nas mais diferentes descobertas. Com ela
aprendemos a falar, a nos comunicar, a caminhar, e consequentemente vamos copiando os
modelos, isto é, quando crianças tendemos a, normalmente, nos espelharmos pelas atitudes
dos pais. E é exatamente no âmbito familiar, que somos conduzidos, ou deveríamos ser, ao
mundo da leitura.
A família deve ser a primeira responsável por conduzir as crianças ao mundo da
fantasia pela contação de histórias. Havia sempre um avô, pai, mãe, tio ou tia, que através da
oralidade embalava o sono infantil com as mais variadas histórias. Assim, envolvia a criança
ao maravilhoso e encantado mundo da leitura, possibilitava momentos de pura magia e
descobertas, numa vivência das mais diversas emoções como o riso, o choro, o medo, o
suspense, a alegria e os desejos, descobrindo soluções para os próprios conflitos, vivendo
outros papéis, identificando-se com personagens.
A ambiência do lar e da escola precisa favorecer o contato da criança com a leitura,
esses espaços devem envolver e despertar a curiosidade. É importante que livros, brinquedos e
jogos estejam ao alcance da criança, para que a mesma tenha uma relação permanente com a
leitura. Ler é buscar respostas às nossas inquietações e descobrir um pouco de nós em cada
história.
Na fase escolar da criança, a literatura infantil deve estar ao alcance dos pequenos, eles
precisam ter contato com o livro, folhear, mesmo que não saibam ler a palavra, mas saberão
ler a imagem e criar histórias através da oralidade a partir das mesmas, e posteriormente
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passarão a ler a palavra, é quando a criança conhece o fantástico mundo da literatura infantil
pela palavra, que seduz e encanta, fazendo do entrelaçamento e do bordado das páginas um
sonho encantado de magia e fantasia, que só a criança é capaz de entender e inventar novos
rumos para as histórias infantis. “A criança encontra na leitura, nos seus heróis, os seus ideais,
os seus modelos. Assimila-os, identifica-se com eles, passa a vivê-los, quando mais não seja,
ao menos em sonho...” (PERROTTI, 1986). A leitura é interação.
Ler não é decifrar o código escrito, é interagir com o texto de modo a extrair vários
significados (LAJOLO e ZILBERMAN, 1991). Nessa visão, o leitor muitas vezes mergulha
nas palavras, vivencia o mocinho e/ou o bandido, toma para si a vida daquele personagem.
Perrotti (2008) confirma que
o leitor que se apaixona por uma história viaja por territórios que se colam a ele e que
ele não quer largar de jeito nenhum. Os sótãos de Proust, de Bastian são lugares
quase sagrados, especiais, superprotegidos e protetores. Estão longe dos incômodos
que às vezes atrapalham a gente no melhor da história (...)
Para Barthes (1996), o texto se produz em um entrelaçamento contínuo. O leitor
mergulha num “tecido” e constrói novas ideias a partir do diálogo constante com o texto. Nas
memórias de leitura de cada um, percebe-se que as histórias têm um tempo de permanência,
tempo este que segundo Perrotti (op. cit.) é “aquele que fica guardado não só na memória, mas
no coração, no sangue, nas entranhas feito um sopro (...)”. Nossas memórias ficam para
sempre guardadas em nosso coração, sejam elas boas ou ruins.
METODOLOGIA
Quando nos pusemos a costurar os bordados das nossas histórias de leitura,
percebemos o quanto a família foi importante na nossa formação de leitor. O professor Edmir
Perrotti ao ministrar uma disciplina sobre leitura (Sim!!! Aula de leitura, aula sobre leitura,
aula para leitura, enfim tudo leitura) solicitou aos alunos que “lembrassem suas histórias de
leitura e as narrassem por meio de uma carta dirigida a um mediador de leitura que tivesse
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sido essencial em suas vidas.” Ele pretendia com isso, identificar e discutir conosco o papel
dos diferentes autores que intervêm na formação de leitor: família, escola, biblioteca e, claro
os textos, em sua variedade e multiplicidade já que para este autor “os livros, a literatura e as
bibliotecas devem ser para o leitor um refúgio, um mundo pessoal que o proteja e acenda sua
humanidade”. Os livros e a biblioteca devem, então, ser um mundo de contato com o (ir)real
para despertar várias emoções.
Cartas, pra que te quero?
Para falarmos dos nossos sonhos, dos nossos desejos, dos nossos segredos, dos nossos
mistérios e também dos nossos sofrimentos, das nossas perdas... Ainda, dos nossos achados,
das descobertas, enfim, da nossa vida. São tantos “para” e essas cartas aqui foram produzidas
para rememorar nosso encontro com a leitura.
As cartas sempre serviram para levar e trazer coisas boas e coisas ruins. Elas têm
origem há muitos anos, pois
os primeiros registros foram criados, provavelmente para que os mercadores
fizessem contas. A origem da carta é relacionada à própria necessidade de o homem
se comunicar. As tabuinhas de argila tiveram um papel importantíssimo no início da
história. Foram encontrados em Tell Brank, na Mesopotâmia, tábuas de argila
contendo material escrito, data dos em 3200 a. C., sendo provavelmente as inscrições
mais antigas. Ao redor do ano 2800 a.C, as inscrições tinham-se reduzido a símbolos
convencionais feitos em tábuas de argila em forma de cunha(daí o nome
cuneiforme). Logo esta escrita começou a ser usada em Sumer e em outras partes ,
como o Egito em UR , em Mari. Os textos cuneiformes da antiga Babilônia, os
textos escritos em estátuas de pedra do império de Mari, são indícios de o alto
interesse na troca de escritas. (In.: http://br.answers.yahoo.com)
Houve também um tempo em que os pombos-correios levavam as mensagens de alerta
para os que estavam nas Guerras. E até hoje a carta vem se resguardando, mediante um
turbilhão de novos suportes e dos gêneros midiáticos que aparecem a todo instante, tais como
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os e-mails, o chat, os scraps, as mensagens instantâneas, enfim, as atualizações das novas
tecnologias.
As cartas, hoje, assumem vários papéis: são pessoais, são de reclamação, de opinião,
são abertas ao público... São injuntivas, narrativas, descritivas, dissertativas. Ou simplesmente
de memórias, como estas nossas que não têm um destinatário marcado. Embora sejam
dirigidas àquela pessoa que nos incentivou para a leitura, essas cartas produzidas por nós
chegarão a leitores distantes que também serão levados a rememorar suas histórias de leitura.
É por meio delas (das cartas) que faremos algumas análises para descobrirmos quem
foi o sedutor de cada um desses leitores.
DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS
AS CARTAS
Análise de trechos das cartas
Legenda C 1- Carta 1
C2 - Carta 2
C3 - Carta 3
C4 - Carta 4
C5 - Carta 5
C6 - Carta 6
C7 - Carta 7
C8 - Carta 8
C9 - Carta 9
C1
Meu amado Pai,
Foi a partir das tuas histórias e leituras que iniciei minha viagem pelo mundo da LITERATURA.
Lembro-me que tua chegada (como representante que eras, sei que precisavas viajar muito) era motivo de
expectativa, minha e também das três irmãs mais novas, porque sempre trouxeste destas viagens histórias e
livros. Os Contos de Fada foram os primeiros a chegar, para, em seguida, conhecermos os inesquecíveis
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personagens de Monteiro Lobato, de quem, além da leitura, tínhamos o prazer de interpretar e sonhar com os
habitantes daquele Sítio do Pica-pau Amarelo.
C2
Queridos pais,
Rememorando a minha vida, nem sabia que vocês eram personagens tão importantes. As músicas de
ninar cantadas por você, meu pai, ainda na minha primeira infância, certamente ajudaram a desabrochar em mim
uma sensibilidade para a arte da vida. Devo agradecer a vocês que não viram apenas riscos e rabiscos na parede
lá de casa, mas enxergaram a minha necessidade de expressão do mundo. Os cadernos que vocês me compraram,
eu os enchi com meus símbolos, códigos totalmente inteligíveis para mim.
C3
À Mamãe
(...)Das lembranças que tenho, a imagem que se mostra mais clara é da Senhora cantando canções de
ninar – na verdade, a imagem é auditiva – para a Eliane. Trechos de algumas canções ecoam agora com uma
nitidez que chega a arrepiar....Zum zum, lá no meio do mar. Zum zum, lá no meio do mar...como pode um peixe
vivo viver longe d’água fria...como pode um peixe vivo viver longe d’água fria?...e por aí vai. Lembro também
de quando a meninada se juntava no meio da rua para brincar e que a Senhora unia-se a nós para brincar junto,
sobretudo quando se tratava da Boca de forno...a Senhora quase sempre era o mestre. Depois se cansava da
gritaria da molecada e saía da brincadeira. Há ainda situações em que, envolvida em alguma atividade doméstica,
sempre encontrava jeito de nos contar alguma história, sobretudo histórias de meninas pobres que, de forma
mágica, tornavam-se belíssimas e ricas princesas. Com todas essas artimanhas, a Senhora estava,
inconscientemente, me inserindo no mundo da leitura.
C4
Meu avô
Foi o meu avô quem mais incentivou para a leitura, pois na sua casa havia um livro sobre plantas
medicinais e ele vivia lendo-o para mim.
C5
Mãe
Antes do re-início da aula fui obrigado a revirar as “gavetas” do passado e tentar buscar nas lembranças
o início da minha relação com a leitura e que de forma direta a senhora é a culpada. Nossa como foi trabalhoso
fazer esse resgate. Tive que recordar de uma tia avó e os bons momentos em que elas nos contava todas aquelas
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histórias (lenda, parlenda, cordel, clássicos da literatura e tantas outras) sempre do seu jeito, da sua maneira e
dentro dos seus propósitos.
C6
Os livros me chegaram graças à minha mãe (in memorian), que me levou ao fantástico mundo da
Literatura de Cordel e à M., N. (in memorian) e F. (in memorian), minhas irmãs mais velhas, que desde cedo me
apresentaram clássicos da literatura infantil e mais tarde fizeram-me conhecer Jorge Amado, Machado de Assis,
Érico Veríssimo, José de Alencar, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, entre muitos outros.
(...)
Quando lia ou ouvia as histórias de cordéis contadas por minha mãe, quando via as telenovelas ou ouvia
uma boa música, me deparava sonhando. Nos sonhos eu sempre fazia parte das narrativas: ora eu era o Bentinho,
ora o Capitão Rodrigo ou mesmo a Rita Baiana; em outros sonhos eu era Aritana ou o Coco Verde ou até o
personagem central de uma canção da Bethânia.
Cresci, e o gosto pela literatura me acompanhou, como também o hábito de ver telenovelas e
principalmente o amor à música brasileira. Adulto, já não mais sonhava em ser os personagens dos livros, mas o
desejo de sair de mim e me encontrar no outro permanecia. Eu queria ser ator.
Ao chegar em Campina Grande, casualmente fui convidado a integrar um grupo de teatro e, sob a
direção de Álvaro Fernandes, estreei, em 2002, o espetáculo Arribação(...)
C7
(...)
Já em casa era diferente, pois nosso pai costumava nos contar histórias de antigamente, sempre muito
engraçadas ou mal-assombradas, especialmente nas noites em que faltava energia elétrica, e isto para nós era
ótimo! De ti, lembro-me que sentavas na praça da pequena cidade onde morávamos para ler e eras muito
criticado por isto, as pessoas achavam que querias te mostrar, e mal sabias que o teu gesto estava semeando algo
em mim: o desejo de ler aquilo que, durante dias e dias, tão concentrado lias. Depois, quando já estavas nas
universidades e podias comprar livros, o meu encanto só aumentou, pois eles estavam ali, ao alcance da minha
mão, e para descobri-los foi só um passo.
C8
Há pessoas que, por mais simples que sejam, marcam as nossas vidas. Dona L., foi uma dessas pessoas,
primeiro por ter despertado em mim a curiosidade e o desejo de ler um livro, aliás, a minha primeira experiência
de leitura literária; depois, por me fazer perceber que através da literatura é possível encontrar pessoas e histórias
da nossa realidade (...)
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(...)
Um dia mexendo nas gavetas do armário do meu tio encontrei um livro que me deixou, além de
surpresa, alegre, pois na minha inventividade e inocência de menina achava ter encontrado a história da nossa
vizinha, a Dona L. O nome do livro? “LUZIA - HOMEM”, de Domingos Olimpio, a minha curiosidade foi
enorme, queria saber como aquela mulher simples e de hábitos diferentes tinha ido parar no livro.
(...)
Fiquei encantada com os relatos e imagens que o narrador ia descrevendo, algumas coisas me deixavam
triste e dizia: - Isso não pode acontecer com Dona L. A surpresa do narrador ao descobrir que por trás daquele
jeito diferente de vestir-se, se escondia uma mulher de corpo exuberante e curvas acentuadas, me deixava
maravilhada. Foi a partir dessas imagens que eu desejava, sempre que voltava ao Riacho do Jardim, ver a Dona L
tomando banho, só para confirmar a descrição do livro, pois na minha imaginação, a Luzia do livro era a mesma
Luzia do Riacho do jardim.
C9
Não tive muito exemplo da parte de meus pais para ler, mas tive o incentivo deles para gostar de livros.
Aos cinco anos, devorava gibis que minha mãe comprava, criando e recriando histórias do meu jeito, pois ainda
não havia decifrado aquele código escrito, mas as imagens falavam tudo.
Analisando as cartas, observamos que a mãe (26%) teve participação efetiva na
formação desses leitores. É ela que, muitas vezes sem ter escolaridade, conta as histórias aos
filhos, compra livros, incentiva o filho a ler e está sempre por perto acompanhando este
processo. As cartas C3, C5, C6 e C9 mostram a figura da mãe como maior incentivadora para
a leitura e, inclusive, na C3 e C6 é ela quem conta as histórias, principalmente as de príncipes
e princesas (os contos de fada) e as da literatura popular e por estas histórias, ao nosso ver,
não serem motivo para execução de nenhuma atividade com caráter didático-pedagógico,
parecem cumprir a “função primeira” da obra literária para crianças: “como no adulto (ela
deve ser) objeto de ‘contemplação’ ou de função estética, para o deleite do espírito, fonte de
sugestão, recreação, ou evasão e catarsis” (PERROTTI, 1986). E, nesse sentido, a leitura é
‘recreação’, na significação etimológica do termo – a de ‘criar de novo’, a de ‘renascer’”. É
essa impressão que temos quando das primeiras experiências com a leitura destas crianças no
seio familiar. Na C6, a autora fala de seu encontro e encanto com a literatura de cordel, com
as histórias orais advindas da cultura popular e cita que suas irmãs também foram importantes
na sua formação de leitora, apresentando além da literatura infantil, os autores clássicos como
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Jorge Amado, Machado de Assis, Érico Veríssimo, José de Alencar, Guimarães Rosa e José
Lins do Rego.
As C1 e C7 mostram que o pai foi o impulsionador para a arte de leitura, através dos
clássicos, das histórias engraçadas ou mal-assombradas. Na C1, o pai parece ser o “caixeiro
viajante” que traz livros e histórias para contar para suas quatro filhas. O mundo lobatiano é
apresentado e a imaginação corre solta para estas pequenas leitoras, que idealizavam os
personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Outros protagonistas na iniciação dos autores das cartas: na C4, surge a figura do avô,
que comprava livros contendo informações nutricionais e prevenção de doenças, temas que
envolviam o autor desta carta; na C5, surge uma tia avó com bons momentos em que ela
contava histórias (lenda, parlenda, cordel, clássicos da literatura e tantas outras). Na C2, as
cantigas de ninar aparecem para deleite da autora desta carta.
A C8 mostra que a criança mistura fantasia e realidade, pois como diz a autora desta
carta “através da literatura é possível encontrar pessoas e histórias da nossa realidade” e às
vezes, mergulhamos tanto no texto que pensamos que os personagens da vida real vão parar
dentro dos livros, como a vizinha da autora da C8 que por ser tão parecida com “Luzia
Homem”, fez com que a pequena leitora “desconfiasse” que as duas fossem a mesma pessoa.
E a obra ganha vida e desperta emoções de tal modo que queremos participar das histórias e
nos intrometermos nos enredos dialogando com o autor, conforme vemos no pensamento da
autora da C8: “Fiquei encantada com os relatos e imagens que o narrador ia descrevendo,
algumas coisas me deixavam triste e dizia: - Isso não pode acontecer com Dona L.”.
Na maioria das cartas analisadas, é a família quem insere as crianças nas práticas
letradas. A figura do professor pouco aparece como aquele que foi agente mediador das
práticas de leitura na vida destas crianças.
A seguir, citamos algumas experiências de leitura que os autores tiveram na escola.
Experiências estas que, em sua maioria, foram bem negativas, haja vista que a leitura foi
trabalhada com fins utilitaristas ou até mesmo de forma traumatizante como foi para a autora
da C1 (a professora pediu que a criança fizesse uma cópia inteira de um livro).
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Experiências escolares
C1
Nos anos escolares as experiências dessa viagem foram bem diferentes, pois a leitura já não tinha aquele
mistério, aquela magia de antes, tudo era muito determinado, os textos e as histórias presentes nos livros
didáticos não tinham o mesmo sabor que os livros trazidos por você, meu amor, meu pai. Uma lembrança triste e
marcante desse momento foi uma professora, cujo nome tratei de esquecer, obrigou-me a fazer uma cópia de um
livro, e ele era enorme, eu chorei tanto que amarrotei o pobre livro, que com certeza também chorou junto
comigo. Mesmo com essa desmotivação na escola eu não desisti da minha viagem pela leitura. Sempre que
possível, procurava algo novo para ler, nesse percurso tinha espaço para outras leituras como: revistinha
(Amiguinhos), gibis, Jornalzinho da escola; na adolescência: Sabrina e Bianca, literatura espírita, e tantos
outros...
C5
No momento em que as recordações me tomavam, lembrei também de Margarida Brito (professora da 1ª
série) no processo de alfabetização, das cartilhas do processo – “Ivo comeu a uva” ou “O tatu entrou na toca”.
Lembra?! Claro. O resto à senhora conhece. O tempo foi passando, comecei a escolher meus livros, fiquei
independente, autônomo, pois não ficava preso ao que “Tia” pedia. Ia a secretaria da escola e escolhia o que
queria ler, como também pegava com meus colegas.
C7
A lembrança que tenho dos textos lidos no primário não é das melhores: a professora me mandava fazer
copias enormes, que não serviam para nada, ou então fazia com que lêssemos os textos do livro, mas o medo de
ler errado era tão grande, que a leitura perdia totalmente o encantamento.
C9
(...) Num banquinho da professora S., professora de reforço, num pequeno lugarejo do Rio Grande do
Norte (Pau dos Ferros), comecei a juntar as letras e a minha história de amor com a leitura teve seu primeiro
encontro. As escolas (todas públicas) por onde passei não tinham muitos livros, nem os professores, talvez por
não saberem, liam com fascínio para nós. Timidamente, escolhia um ou outro livro de Lobato (por incentivo do
Programa Sítio do Pica-pau Amarelo na televisão) e na escola, já nas séries ginasiais, quando muito líamos, eram
os livros dos autores clássicos como Machado de Assis, Olavo Bilac e Érico Veríssimo, tão somente para
respondermos as lições gramaticais. Uma tal de Poliana Menina (e depois Moça) me ajudou a jogar o jogo do
contente e procurar entrar no mundo das palavras para ler o mundo.
(...)
Foi quando em 1993, cheguei à Campina Grande e encontrei você, A., uma das maiores divulgadoras de
leitura que eu já conheci. Puxa, ora Fada, ora Bruxa (boa, é claro), pela arte com que você abria os nossos olhos
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(a nossa vida para o mundo), a leitura passou a ser mais prazerosa. As suas aulas na Especialização eram tão
maravilhosas que eu juntava “a fome com a vontade de comer”, devorando histórias lindas e querendo mais e
mais. Parecia que eu era Laurinha de A Curiosidade Premiada. O seu trabalho com inferências levava-nos a
interagir com os textos, tão intensamente, que eu queria entrar nos livros, pular nas linhas e me intrometer nas
palavras.
Nas C1 e C7, a leitura era vista como uma obrigação e perdia todo o encantamento,
pois a imposição era tanta que as lembranças não são as melhores. As cartilhas aparecem na
C5 e não despertavam nenhuma motivação nesta criança. Pelo contrário, o ato repetitivo de
juntar letras e sílabas do tipo “Ivo viu a uva” parece não ter criado nenhum desejo para o
aluno ler.
A C9 mostra a problemática que as escolas públicas enfrentavam: “As escolas (todas
públicas) por onde passei não tinham muitos livros, nem os professores, talvez por não
saberem, liam com fascínio para nós”. Hoje até que as escolas possuem muitos livros em suas
bibliotecas, mas será que os professores sabem utilizá-los exercendo um fascínio nos leitores?
Ainda na C9, aquela professora da escola particular surge lá nos bancos de um lugar não
institucionalizado e consegue firmar marcas nesta leitora, pois é através desta professora que a
criança aprende a decodificar e a ter um segundo contato com a leitura (a mãe já comprava
livrinhos e gibis e essa criança já “lia” as imagens). O terceiro contato da autora da C9 ocorre
já quando esta cursa a Pós-graduação, com uma professora que incentivava tanto a leitura que
a autora desta carta diz, referindo-se à professora: “O seu trabalho com inferências levava-nos
a interagir com os textos, tão intensamente, que eu queria entrar nos livros, pular nas linhas e
me intrometer nas palavras”.
Ratificando o pensamento da autora da C1: “Nos anos escolares as experiências dessa
viagem foram bem diferentes, pois a leitura já não tinha aquele mistério, aquela magia de
antes, tudo era muito determinado, os textos e as histórias presentes nos livros didáticos não
tinham o mesmo sabor que os livros trazidos por você (...)” (referindo-se à figura do pai)
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OS GRÁFICOS
De forma clara e objetiva, apresentamos alguns dados analisados a partir das
CARTAS contidas neste artigo em que evidenciamos os seguintes pontos: quem motivou os
escritores das cartas para a leitura (as pessoas mais presentes); quem motivou os escritores das
cartas para a leitura (por sexo); percentual do número de vezes em que os gêneros ou suportes
foram citados; número de vezes em que autores ou suportes são citados.
GRÁFICO 1
Quem motivou os escritores das cartas para a
leitura
13%
13%
26%7%
13%
7%
7%7% 7%
Pai Pais Mãe Avô Professora Tia Irmãs Irmão Vizinha
GRÁFICO 2
Quem motivou os escritores das cartas para a
leitura, por sexo
60%
40%
Sexo feminino Sexo masculino
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GRÁFICO 3
Número de vezes em os Gêneros ou suportes
foram citados
21%
6%
6%
6%
6%6%6%10%
6%
6%
21%
Lendas Gibis Fábulas
Canções Brincadeiras cantadas Biografias
Receitas medicinais Cordel Parlenda
Peças teatrais Contos
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GRÁFICO 4
Número de vezes em que Autores ou suportes são
citados pelos escritores das cartas
0 1 2 3 4 5 6
Autores dos contos de Fada
Monteiro Lobato
Revista (amiguinho)
Revista ( Sabrina/Bianca)
Jornalzinho da Escola
Machado de Assis
Lima Barreto
Graciliano Ramos
Carlos Dumond
Clarice Lispector
Manoel Bandeira
Guimarães Rosa
José Lins do Rêgo
José de Alencar
Jorge Amado
Érico Veríssimo
Cecília Meireles
Lygia Bojunga
Ana Maria Machado
Ruth Rocha
Vinicius de Moraes
Mario Quintana
Sylvia Orthof
Ziraldo
Domingos Olimpio
Aluísio Azevedo
Tatiana Belinky
Bartolomeo Campos Queirós
Elias José
Lenice Gomes
Jessier Quirino
Laerte
Shakespeare
Moliére
Nelson Rodrigues
Lourdes Ramalho
Série1
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CONCLUSÕES
É importante observarmos que para esses pequenos leitores das cartas, as experiências
com a leitura aconteceram e, em sua maioria, foram experiências que ficaram num “tempo de
permanência”. As histórias quando nos acompanham pelo resto da vida ganham o selo de
fantasias bem sucedidas que, de alguma forma se fortalecem, pois como dizia o personagem
Proust (PERROTTI, 2008) “não existe nada mais forte que as lembranças da leitura da
infância”. A infância marca a vida de cada um e as memórias são muito fortes. E é na infância
que a leitura deve ser livre e não atender a propósitos utilitaristas (CUNHA, 1986)
Os autores das cartas citam a mãe, o pai (ou os dois), as irmãs (ou irmão), avô, tia
como sendo os principais mediadores nos seus encontros com a leitura. Contos de fada,
lendas, canções, receitas medicinais, fábulas, literatura de cordel, biografia, parlendas foram
gêneros que permearam a infância desses autores que, nos seus escritos, deixam bem claro o
papel que essas primeiras leituras exerceram em suas vidas. Há agradecimentos explícitos
tanto aos familiares, como a professores que, já numa fase adulta, fizeram a diferença para a
formação de leitor.
Imaginemos as crianças e os jovens de hoje não tendo a sorte de encontrar nos
familiares o porto seguro para as primeiras aventuras no mundo da leitura. Como terão acesso
aos personagens, à fantasia e ao imaginário? Segundo Corso e Corso (2006, apud
VERUNSCHK, 2008), “as crianças mantêm uma relação sólida com essas histórias
fantásticas e agem como garimpeiros que tiram do cascalho que a vida oferece a pedra mais
resplendente. Em geral, a força dessas narrativas marca também sua vida adulta.” Tomara que
essas crianças e esses jovens tenham acesso aos autores de contos de fada, a Monteiro
Lobato, Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Carlos Drumond, Clarice
Lispector, Manoel Bandeira, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, José de Alencar, Jorge
Amado, Érico Veríssimo, Cecília Meireles, Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Ruth rocha,
Vinicius de Morais, Mário Quintana, Sylvia Orthof, Ziraldo, Domingos Olimpio, Aluísio
Azevedo, Tatiana Belinky, Bartolomeu Campos Queirós, Elias José, Lenice Gomes, Jessier
Quirino, Laerte Menezes, Shakespeare, Molière, Nelson Rodrigues, Lourdes Ramalho. Todos
esses autores, dos clássicos aos menos conhecidos, foram citados nas cartas dos nove autores
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ISSN 2317-661X Vol. 09 – Num. 01 – Janeiro 2016
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que resgataram suas pequenas/grandes memórias de leitura. Esperamos que os leitores de
hoje tenham algum contato, pelo menos, com alguns desses mestres da literatura e outros que
aqui não foram citados. Freire (1986) defende que a leitura é um ato importante que liberta os
sujeitos.
E a escola? Qual o papel dela? Formar leitores é um gesto de mediação que envolve
afetos, sensibilidade e, portanto uma pedagogia que seja fundamentada em elemento de
apropriação. Cabe, então, à escola e às instituições públicas criarem políticas de apropriação,
políticas públicas de leitura e não de livros, em que todos se envolvam com o ato de ler para
que consigamos inscrever a leitura nos repertórios culturais do nosso povo.
É de pequeno leitor que nos tornamos grandes leitores. A leitura deve entrar em
nossas vidas e ficar para sempre nos nossos corações. As Reinações de Narizinho,
os Meninos Maluquinhos, as Fadas, os Príncipes, as Princesas (como também as
Bruxas, os Vilões), os Personagens Lendários e muitos outros que moram nos livros
devem fazer parte de nossas memórias de leitura. E isso só acontece por meio do
incentivo à leitura que as famílias e a escola dão às crianças. É a família quem conta
as primeiras histórias para as crianças, quem canta as músicas de ninar. A escola
deve, portanto, continuar com estas práticas de leitura, encantando o leitor, fazendo-
o interagir com o texto nos seus múltiplos sentidos. Um livro é para ir para a sala de
aula como arte, isento de trabalhos estritamente linguísticos naquele sentido de
explorar apenas as questões gramaticais com apelos para o bom uso das palavras.
Um livro é mais que um amontoado de palavras, de frases, de períodos. É, acima de
tudo, um construtor de sentidos. Não basta decodificar, é preciso imprimir à leitura,
interação (...) ( BENTO, In.: Projeto Eu Leio. E Você?, 2008)
A escola deve, pois, cumprir seu papel e apresentar propostas de leitura que marquem
a vida dos leitores e levem-nos a entender os diversos propósitos da leitura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BENTO, Suzana Maria de Queiroz. Projeto de Leitura: “Eu Leio. E Você?” Escola Pequeno
Príncipe. Campina Grande/PB, 2008.
CORSO & CORSO (2006) In.:Verunschk,. Discutindo Literatura (Edição Especial). São
Paulo: Escala Educacional. Ano 1 Nº 3, 2008.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil – teoria e prática. São Paulo: Ática,
1986.
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FREIRE, Paulo Freire. A importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez, 1986.
LAJOLO, M., ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita, livro e literatura no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
PERROTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
_____. Como as Mimoseiras! Discutindo Literatura (Edição Especial). São Paulo: Escala
Educacional. Ano 1 Nº 3, 2008, pp. 62-63. Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com>
Acesso em 12 de janeiro de 2016.