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Mídia e poder: uma perspectiva pós-positivista sobre o caso do Haiti
Natália Maria Félix de Souza∗
Resumo: Na tentativa de contribuir ao desenvolvimento de uma reflexão mais crítica a respeito do locus assumido pelos meios de comunicação na contemporaneidade, o presente ensaio busca problematizar sua atuação ao longo de um evento específico. Ao analisar o papel desempenhado pela mídia durante o processo de legitimação das missões das Nações Unidas no Haiti, elementos teóricos das mais diversas áreas das ciências sociais serão acionados. Indo além de uma análise puramente histórica, as teorias pós-positivistas de Relações Internacionais, em especial o Construtivismo, oferecem o substrato crítico para uma abordagem transformadora, que possa contribuir com debates que discutam como a formação discursiva da mídia é capaz de construir a realidade social. Palavras-chave: Mídia e modernidade; relações internacionais; pós-positivismo; construtivismo; intervenções. Abstract: In order to contribute with the development of a more critical reflection about the currently locus taken on by the mass communication, this essay tries to question its task during a given event. In the analysis of the role played by the media throughout the legitimization process of the United Nation’s missions in Haiti, theoretical elements of several social sciences are brought into question. Going beyond a solely historical investigation, the post-positivist theories of International Relations, specially the Constructivism, offer the critical basis for a transformational perspective, able to contribute with the debates that discuss how the discursive formation of the media is capable of constructing the social reality. Key words: Media and modernity; international relations; post-positivism; constructivism; interventions.
Introdução
Discutir a importância e abrangência da mídia é, hoje, um componente
fundamental para as mais diversas áreas de estudo. O entendimento do locus assumido
pelos veículos de comunicação nos permite compreender quaisquer relações objetivas
ou intersubjetivas que se desenrolam na modernidade. Todo e qualquer evento, seja ele
na esfera doméstica ou internacional, é perpassado pela atuação protagonista desses
atores, sempre empenhados em alguma causa.
É a partir dessa perspectiva que o projeto procura discutir a mídia enquanto uma
força nas relações de poder. Esse debate será travado no âmbito das teorias pós-
positivistas das Relações Internacionais, em especial a partir da abordagem
Construtivista. Tais paradigmas começaram a entrar em cena nos debates
epistemológicos das RI a partir dos anos 80 e 90, propondo uma verdadeira alteração na
pauta ontológica e metodológica até então vigente. Segundo alguns autores – como é o
caso do eminente teórico Steve Smith – o debate iniciado a partir de então com as
abordagens tradicionais representa o verdadeiro “terceiro grande debate”, capaz de
∗ Graduanda em Relações Internacionais pela Unesp/Franca. End. eletrônico: [email protected]
redefinir a própria disciplina das RI (YOUNGS, 1999). Ao entender que o senso comum
é o trunfo do poder político em sua incontornável tentativa de se perpetuar e ampliar sua
inserção no cenário mundial, esses autores propõem ir além do caráter meramente
explanatório da realidade, entendida até então como neutra e definitiva. Ao introduzir
uma perspectiva crítica que propõe a mudança, confere ao homem um papel de sujeito
histórico, pleno de possibilidades e capacidades.
O estudo proposto busca, portanto, a partir desse novo entendimento da
realidade, tecer críticas à atuação da mídia na contemporaneidade, enfocando, para
tanto, um evento específico. Ao analisar o papel desse ator na conformação das
intervenções humanitárias que atuaram ou atuam no Haiti, procura-se compreender até
que ponto ele representou – e ainda representa – um elemento fundamental de
sustentação da missão das Nações Unidas no território caribenho, bem como da difusão
do caráter legítimo dessa atuação entre toda a sociedade internacional. Indo além de
uma mera explicação dos fatos, argumenta-se que, através do entendimento desse
evento específico, pode-se identificar a participação midiática na perpetuação de uma
rede de poder hegemônica – liderada pelos Estados Unidos – que tem por fim absoluto
de sua atuação a reprodução ad infinitum de um sistema político-econômico-ideológico
opressor por todos os continentes do globo, a despeito de suas características e
especificidades.
Os meios de comunicação e a modernidade
À primeira vista, pode parecer muito recente a preocupação dos teóricos sociais
com o estudo da mídia. O crescente debate contemporâneo sobre o tema da globalização
traz à tona uma multiplicidade de enfoques que buscam trabalhar tanto as características
técnicas desse fenômeno – dentre as quais a mídia representa um elemento chave –
como suas conseqüências sociais práticas. No que tange ao desenvolvimento técnico-
científico, o avanço dos meios de comunicação e informação representa a supressão dos
limites espaço-temporais que um dia impuseram barreiras ao progresso da sociedade
mundial. Por outro lado, as convulsões sociais observadas por todo o globo representam
um fracasso retumbante do atual modelo de desenvolvimento em abarcar o corpo social
em sua totalidade.
Diante da dificuldade cada vez maior de entender como esse processo se deu e
de como superar suas mazelas, são cada vez mais abundantes as teorizações que buscam
propor soluções para uma civilização em crise. Nesse sentido, o papel da mídia tem sido
analisado segundo diferentes perspectivas e enfoques, que não só a vêem como
fomentadora primordial desse processo globalizante, mas também como uma via para a
superação de diversos problemas nevrálgicos da sociedade moderna, haja vista sua
inserção e acesso ao mundo social.
A partir desse panorama geral, o presente trabalho defende a hipótese de que o
estudo da mídia possui uma relevância crescente no âmbito das relações internacionais,
em especial devido ao seu importante papel de formadora de significados e identidades
dentro das sociedades, o que a torna alvo de interesses não só político-militares, mas
também culturais e econômicos. Ademais, ressalta-se que o interesse por tais
entendimentos abrange as mais diversas áreas das ciências humanas que, de uma forma
ou de outra, buscam compreender a importância da informação e da comunicação na
construção social.
No âmbito da ciência política, a tentativa de entender a relação íntima existente
entre a produção do conhecimento e os processos de dominação social tem suas bases
com a Escola de Frankfurt. Ainda nas décadas de 1930 e 1940, dois de seus principais
representantes, Adorno e Horkheimer, foram os primeiros a se debruçar sobre os
estudos do que chamaram de “indústria cultural” e de "cultura de massa", tecendo
críticas bastante sistemáticas sobre seu caráter reprodutor da sociedade contemporânea.
Já na década de 1960, os estudos culturais britânicos, partindo de uma
perspectiva crítica, trabalharam a cultura enquanto produção e reprodução social, que
fornecia bases para o processo de dominação. Instituições dessa dominação eram
identificadas não só na mídia, mas na família, na Igreja, no trabalho, na escola e no
Estado. Para eles, a cultura da mídia era responsável pela formação de identidades e
significados nos indivíduos, que passavam a se integrar à cultura dominante.
Comprometíam-se, então, com um projeto político de transformação social através da
resistência a essas formas de dominação.
Outros autores mais relacionados à sociologia aprofundaram tais questões em
termos especificamente midiáticos. Para Thompson (2002), com o advento da imprensa,
o poder simbólico deixou de ser representado por instituições como o Estado ou a Igreja
e passou a ser utilizado progressivamente segundo interesses econômicos. Nesse
contexto, a utilização crescente de línguas vernáculas fez-se imprescindível enquanto
tentativa de atingir uma quantidade cada vez maior de indivíduos.
O autor argumenta que todo o processo de interação social foi profundamente
modificado com o desenvolvimento dos meios de comunicação, afetando de maneira
irreversível as chamadas sociedades modernas. Primeiro através de palavras impressas
e, gradualmente, com as inéditas realizações do rádio e da televisão, os relacionamentos
e formas de interação inter-pessoais foram profundamente afetados. A própria
transformação na dispersão dos eventos ao longo dos eixos temporal e espacial, que
significou a total distinção entre os contextos de produção e de recepção da informação,
foi fundamental para a modificação no âmbito das interações sociais. O que antes se
dava exclusivamente enquanto “interação face a face”, aos poucos passou por um
processo de “interação mediada” (telefones, cartas) e culminou no que o autor qualifica
enquanto “quase-interação mediada”, representada fundamentalmente pelos meios de
comunicação de massa (jornais, rádio, televisão). Nessa nova forma de relacionamento,
a interação passou a ser monológica, ou seja, pautada não na troca de informações, mas
na transmissão unilateral das mesmas. A partir dessa capacidade de veicular uma
diversidade de imagens e discursos, advindos de todas as partes do globo, a mídia influi
diretamente na construção do mundo social, definindo acontecimentos, formas de
conduta e atuação.
A despeito dessa consideração de que a mídia exerce um papel ativo no que
Thompson chama de processo de formação do self (ao fornecer novas bases para o
entendimento do mundo e das relações), o autor acredita que esse processo é parte de
um projeto simbólico construído ativamente pelos indivíduos. Isso significa dizer que a
interpretação – ou o caráter hermenêutico do entendimento das informações recebidas –
são elementos demasiado importantes ao longo da construção individual do self. Tal
visão procura desmistificar a idéia de que o papel dos meios de comunicação na
formação das identidades individuais seja autoritário, afirmando que eles são capazes,
na realidade, de ampliar a gama de recursos simbólicos que podem ser utilizados nos
processos de construção individual. No entanto, por entender que existe uma
distribuição muito desigual dos recursos simbólicos entre os indivíduos, o autor
argumenta a necessidade de modificar a forma de atuação dos meios de comunicação,
de modo que sejam capazes de contribuir para a “formação de um modo de vida
autônomo e responsável” (THOMPSON, 2002, p.15).
Douglas Kellner (2001), por sua vez, representa uma forma diferenciada de
entender o papel da mídia na construção das identidades na modernidade. Segundo essa
visão, a produção de identidades se tornou, hodiernamente, um processo de criação de
imagens, aparências. Enquanto para Thompson o indivíduo é responsável ativamente
pela construção do self, servindo-se da tradição hermenêutica, para Kellner a identidade
é antes definida a partir do reconhecimento que advirá do contato com o outro. E devido
à fluidez e transitoriedade das relações inter-pessoais modernas (fato contemplado
também nos estudos de Bauman sobre a modernidade), as próprias emoções são
forjadas através de imagens sem qualquer profundidade.
O discurso de Kellner se encontra em plena consonância com aqueles
apresentados por Guy Debord (1997), já que este se empenhou na especificação de uma
sociedade moderna que, para além do ser e do ter, está mais preocupada com o parecer.
Nessa perspectiva, a atenção dispensada à imagem se coloca enquanto centro das
relações sociais contemporâneas, e a própria essência da humanidade é perdida. Em sua
teorização de uma sociedade espetacularizada, a representação teria tomado o lugar da
coisa real e o poder assumido pela imagem estaria sendo definido através das próprias
relações sociais midiatizadas, fundadas na aparência e sustentadas pelo império do
consumo.
Mídia e relações internacionais: a virada do pós-positivismo
A abordagem proposta pelas relações internacionais não se afasta de maneira
significativa das perspectivas até então apresentadas. Durante as décadas de 1980 e
1990, os debates presentes nas RI representaram o surgimento de novas perspectivas e
conceitos, pautados pela tentativa de compreender as transformações na política
mundial. Seus autores ficaram conhecidos como pós-modernistas ou pós-estruturalistas
e se basearam em uma dura crítica ao método científico, por acreditar que a suposta
verdade científica era uma tentativa de impor uma estrutura dominante através de um
discurso de neutralidade (MESSARI; NOGUEIRA, 2005). O pós-estruturalismo
propunha que toda forma de entendimento do mundo parte de uma interpretação –
fundada em bases subjetivas – o que torna a idéia de uma realidade objetiva
insustentável. Desse panorama relativista, não existe neutralidade possível, e qualquer
olhar passa por um estágio interpretativo e valorativo.
Um dos principais autores a inspirar os pós-modernos, o filósofo Michel
Foucault via o conhecimento e o poder como inextricavelmente articulados. Para este
autor, a modernidade é:
(...) um tempo em que a dominação passa a ser exercida por meio de mecanismos de disciplina e vigilância muito mais sofisticados e eficazes, uma vez que o nexo poder/conhecimento produz sujeitos que internalizam as normas e os códigos morais que os tornam indivíduos socialmente funcionais (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p.195).
Somando-se a essa nova perspectiva, os construtivistas deram uma importância
ainda maior ao papel das idéias e dos valores na conformação dos eventos sociais. Essas
idéias seriam responsáveis por estruturar o conhecimento que os agentes têm do próprio
mundo e da realidade – que só existem a partir daquilo que utilizamos para nos referir a
eles. Para construtivistas como Onuf e Kratochwil1, o discurso, a linguagem, são
fundamentos da ação, ou seja, representam a própria ação política. “Para Kratochwil, os
processos de comunicação social e de intersubjetividade são centrais para o
entendimento do processo por meio do qual as decisões e as ações dos atores são
analisadas” (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p.171).
A compreensão central dos construtivistas de que as ciências sociais diferem
essencialmente das naturais simplesmente por ter nos homens – e não nos fenômenos
naturais – seu objeto de análise, traz consigo uma perspectiva muito mais reflexiva, na
qual a identidade assume grande relevo. Assim, toda ação é entendida enquanto um
fenômeno intersubjetivo, representando muito mais do que uma simples decisão
baseada em interesses imediatos. Para tal perspectiva, torna-se necessário observar uma
relação fundamental: aquela existente entre o mundo social e a construção social de
significados (GUZZINI, 2000).
Os enfoques supracitados referentes às RI compõem uma pauta ampla e com
muitas divergências, mas enquadram-se coletivamente dentro de uma perspectiva que
ficou conhecida como pós-positivismo. Tal assimilação funda-se, justamente, na idéia
compartilhada pelos autores dessas e de outras vertentes (teoria crítica, pós-
colonialismo, feminismo) de que o uso exclusivo do método positivista para o estudo
das Relações Internacionais empobrece sua produção teórica ao determinar não só
aquilo que existe nas RI, como tudo aquilo que pode ser por ela estudado. Assim, esses
teóricos compreendem a importância das percepções e entendimentos subjetivos – dos
valores e processos cognitivos – para os debates na disciplina. Por entenderem que por
trás de toda teoria existe uma ideologia e que paradigmas epistêmicos são capazes de
influenciar a forma que enxergamos o mundo (díade poder/conhecimento), propõem
novas pautas para a disciplina, de modo a ampliar sua capacidade de análise da
realidade.
Apesar de muitos desses teóricos não se pautarem especificamente no
entendimento da mídia enquanto forma de poder dentro da sociedade, é bastante clara
sua preocupação com as questões da informação e da comunicação como responsáveis
pela elaboração de conhecimentos e discursos conformadores de uma realidade social.
1 Tais autores são importantes à presente discussão, haja vista seu enquadramento na virada lingüística, que coloca a análise de discurso em relevo como forma de proceder qualquer estudo dos eventos sociais, em especial nas Relações Internacionais. É justamente esta, dentre as variadas perspectivas que se enquadram no Construtivismo, a que se utiliza para proceder a análise aqui proposta.
Mídia e poder: o caso do Haiti
Tendo sido a primeira colônia latino-americana a alcançar a independência
formal – obtida pelos escravos – o Haiti jamais deixou de lutar por uma soberania real,
já que as intervenções externas foram uma constante em seu desenvolvimento histórico.
No momento imediatamente posterior à independência, a separação entre os dois
principais grupos étnicos, negros e mulatos, tornou-se cada vez mais patente,
culminando na divisão do país, em 1916, em dois Estados rivais. Após a reunificação,
em 1820, os interesses conflitantes entre a massa negra e a elite mulata foram obrigados
a se acomodar em um mesmo país que estava em evidente declínio econômico. Tal
quadro favoreceu a escalada da violência, introduzindo elementos que contribuíram para
o completo colapso do sistema econômico-político-social.
Em 1915, teve início a ocupação americana da ilha. Era um momento em que os
interesses imperialistas norte-americanos estavam em franca ascensão na busca por
estabelecer áreas de influência por todo o globo, em especial na América Latina e
Caribe. Durante os 19 anos em que os EUA estiveram no comando da política e das
finanças do país, os negros foram deixados completamente à margem do processo
político, acentuando as rivalidades internas.
Com um discurso liberal e que elevava os valores da negritude, François
Duvalier foi eleito em 1957, quando o povo haitiano exercia de maneira inédita o
sufrágio universal. No entanto, suas práticas logo desmentiram seu discurso, e o
governante, conhecido como Papa Doc, instalou uma das mais sanguinárias ditaduras
que ocorreram no continente americano. Durante os 14 anos em que permaneceu no
poder, o ditador tratou de neutralizar as Forças Armadas, tendo montado uma milícia
encarregada pessoalmente da defesa e perpetuação de seu governo – os tontons
macoutes. O desenvolvimento de tais políticas foi assegurado pelo apoio angariado de
Washington que, em plena Guerra Fria, prezou acima de tudo por salvaguardar seus
interesses pessoais representados na posição anticomunista do Papa Doc.
Seguindo na mesma linha de atuação que o governo anterior, Jean-Claude
Duvalier sucedeu seu pai no poder, implementando as mesmas medidas autoritárias e
reprimindo violentamente todos os seus opositores. Foi só quando saiu de cena que as
idéias democratizantes passaram a encontrar terreno fértil no bojo da sociedade haitiana,
ameaçando as forças duvalieristas que ali permaneceram mesmo após a retirada de Baby
Doc.
Após a promulgação pelo governo do General Henri Namphy de uma
Constituição com caráter democrático, previu-se a realização das eleições ainda no ano
de 1987. No entanto, o grupo duvalierista conseguiu desarticular tal movimento,
promovendo absoluto terror entre os eleitores e pondo fim ao processo iniciado. Em
uma nova articulação das eleições, que previa o pleito para dezembro de 1990, a
comunidade internacional foi acionada pelo governo haitiano para auxiliar o processo e
garantir sua efetivação. Nesse contexto, a Organização dos Estados Americanos (OEA),
mais do que a ONU, ficou responsável por garantir a transição plenamente democrática
no Estado caribenho.
Tendo se destacado no período pós-duvalierista, o padre Jean-Bertrand Aristide,
o Père Titid, saiu representativamente vitorioso daquela que ficou conhecida como a
primeira eleição plenamente democrática em dois séculos de história do Haiti
independente. Esse novo governo – a favor de uma reforma social e democrática –
entrou em confronto direto com o Exército e as elites. Frente a tais medidas, um novo
golpe de Estado, orquestrado pelas Forças Armadas, derrubou Aristide – que partiu para
o exílio.
Em um contexto que abarcava o fim da Guerra Fria e a conseqüente
multilateralização dos eventos, o golpe perpetrado no Haiti teve repercussão
internacional e clamou por resposta dos organismos multilaterais. A OEA representou a
primeira força a exigir a restituição imediata da ordem democrática e do governo
legítimo. Dentre outras tentativas, uma missão planejada entre a OEA e representantes
diplomáticos de diversos países americanos, apoiada pela ONU – a OEA/DEMOC – foi
criada sob os auspícios do Secretário-Geral da Organização regional, tendo sido enviada
em algumas missões ao território caribenho (entre novembro de 1991 e fevereiro de
1992) para auxiliar um entendimento entre o Parlamento legítimo, o governo
constitucionalmente eleito de Aristide e o governo de fato. No entanto, os esforços não
alcançaram os objetivos almejados devido à resistência incessante das partes envolvidas
em ceder a quaisquer acordos.
As sucessivas tentativas concebidas no âmbito da OEA não encontraram sucesso e, em
10 de novembro de 1992, a ONU foi chamada formalmente à atuação no contexto
haitiano. Nesse momento, a crise até então tratada em âmbito regional foi
universalizada: a OEA atuava em defesa da democracia; a ONU agia amparada pela
égide dos direitos humanos. Assim, foi instituída uma missão civil internacional, a
MICIVIH, que, com um escopo de atuação bastante semelhante àquele atribuído à
OEA/DEMOC, representava um trabalho unificado das duas organizações na busca de
uma solução negociada à crise instaurada.
Nesse contexto, a atuação dos EUA se mostrava bastante questionável, já que,
apesar do comprometimento político assumido nos âmbitos multilaterais, o governo de
Bush acionou medidas bastante particulares, ignorando muitas decisões acordadas
internacionalmente. Parecia que o interesse maior era em “um Haiti estável e afinado
com os interesses norte-americanos, do que em um país redemocratizado, mas em mãos
de um mandatário populista” (CÂMARA, 1998, p. 136).
Amparada sob o capítulo VII de sua Carta – que qualificava a crise enquanto
uma ameaça à paz e segurança regionais – a ONU deu início a um processo de
crescentes pressões sobre o governo inconstitucional, permitindo que os próprios
Estados membros tomassem medidas individuais de pressão segundo acreditassem
necessárias. Durante os anos de 1992/93 as tensões escalaram, contribuindo ao
endurecimento das posições internacionais. Foi somente após a ameaça de sofrer uma
intervenção militar composta por uma força multinacional que o posicionamento do
governo de fato se afrouxou, dando margem ao estabelecimento de um acordo que
previa uma intervenção pacífica no território visando à promoção de um ambiente
propício à volta do presidente Jean-Bertrand Aristide, a qual ocorreu no dia 15 de
outubro de 1994.
Tendo concluído seu mandato em 1996, Aristide voltou ao poder através das
eleições de 2000. No entanto, acusações de fraude durante o processo eleitoral geraram
novo clima de instabilidade e violência, levando à renúncia do presidente em fevereiro
de 2004. Diante da interminável instabilidade econômica, política e social que assola a
história do país caribenho, ainda em 2004 foi autorizada pela ONU a entrada de uma
missão de caráter humanitário para a estabilização do Haiti, a MINUSTAH. Seu
mandato objetiva essencialmente garantir a transição do governo após a renúncia de
Aristide – promovendo um ambiente pacífico, auxiliando o desarmamento de grupos
guerrilheiros e protegendo a população civil – e estabilizar as bases políticas para uma
transição plenamente constitucional e democrática, suportando acima de tudo as
instituições dos direitos humanos. Frente aos diversos problemas enfrentados pela
missão em garantir suas premissas básicas, seu mandato tem sido prorrogado inúmeras
vezes. Assim, sua legitimidade e popularidade têm decrescido ao longo dos anos, em
especial devido às diversas denúncias de violação dos direitos humanos contra os
próprios capacetes azuis.
O papel dos meios de comunicação
Tendo por base os elementos supra-apresentados, intenta-se proceder uma breve
discussão da atuação midiática ao longo desse processo de intervenções internacionais
no Haiti, em especial a partir da crise iniciada em 1990.
Com uma perspectiva análoga à desenvolvida neste projeto, Chomsky (2003),
em seu livro Contendo a Democracia, discute de maneira bastante crítica a relação
existente entre os meios de comunicação e a viabilização dos conflitos internacionais.
Tendo em vista a proposta desse trabalho, que assume a ausência de neutralidade e
identifica um vínculo estreito entre as fontes de poder e a posse da informação,
argumenta-se que os meios de comunicação foram, em grande medida, responsáveis
pela legitimação das intervenções que se processaram no Haiti no período pós-Guerra
Fria, bem como dos argumentos que as embasaram. Apesar de muitas vezes ressaltarem
os fracassos, problemas e críticas dispensados aos organismos internacionais e seus
mecanismos de atuação, seu empenho maior sempre foi o de evidenciar o caos e a
incapacidade dos governos e população locais de retomarem as rédeas de seu próprio
desenvolvimento a fim de superar a desordem e instabilidade.
Por serem as principais, senão únicas, fontes de informação de amplo alcance e
confiabilidade, os meios de comunicação acabam sendo essenciais à definição dos
entendimentos e impressões da opinião pública internacional. Desse modo, passam a
existir dois acontecimentos: o real e aquele produzido pela mídia. Esta, além de
informar sobre os fatos, serve ao propósito de fabricar um consentimento (CHOMSKY,
2003). Devido a essa característica, a mídia tem sido utilizada historicamente por
Estados que buscaram, por motivos diversos – fossem eles culturais, econômicos ou
político-estratégicos – qualificar ou legitimar suas atuações não só perante seu público
doméstico como frente à opinião pública internacional.
Foi durante a Guerra Fria que os meios de comunicação alcançaram vertiginoso
crescimento, já que seu uso se tornou um imperativo estratégico para as duas
superpotências em conflito. Tendo em vista que já na década de 1970 podia-se
vislumbrar a eminente vitória norte-americana, a mídia passou a ser o mecanismo
fundamental para justificar as intervenções e posicionamentos dos EUA –
extremamente controversos, tendo patrocinado diversas ditaduras na América Latina –
sempre rotulados segundo a defesa frente ao “perigo comunista”.
É justamente essa função que a mídia continuou a desempenhar no pós-Guerra
Fria. Nesse contexto, em que a superpotência norte-americana já era absoluta e a defesa
contra o comunismo não mais se justificava, um controle ainda maior dos meios de
comunicação se fez necessário de maneira a legitimar as atuações do governo
estadunidense, as quais não sofreram qualquer alteração significativa. As incursões
norte-americanas no pós-Guerra Fria continuaram a acontecer, à imagem dos
acontecimentos ocorridos durante o conflito bipolar. No entanto, esse novo momento
clamaria por uma nova rotulagem das ameaças: o ideal democrático da liberdade e
pluralidade desempenhou de maneira triunfal tal função, já que encontrou na
comunidade internacional o reconhecimento que lhe era necessário.
Assim, a idéia central aqui defendida é a de que foi através do domínio dos mais
diversos e importantes meios de comunicação social que os EUA conseguiram
perpetuar sua influência na América Latina, implantando nela seu modelo de
democracia e de desenvolvimento. Colocando-se em uma posição diametralmente
oposta daquela representada outrora pela URSS (com seu desejo de dominação e
incorporação dos demais Estados ao seu padrão de desenvolvimento), a nação
americana bradava aos quatro cantos seu mais absoluto comprometimento com a
liberdade, o pluralismo e a democracia, em defesa dos direitos humanos e contra
qualquer forma de imposição e autoritarismo. A partir dessa posição “neutra” e
“benevolente”, os EUA se colocam enquanto os responsáveis por levar aos pobres do
mundo o caminho certo e a felicidade – estes representados claramente por sua
democracia, aquela que prevê um “sistema político com eleições regulares, mas sem
nenhum questionamento sério da dominação empresarial” (CHOMSKY, 2003, p.411).
E foi justamente para esses governos democráticos que o controle da opinião
pública se tornou tão fundamental, não só como maneira de garantir o afastamento
popular das questões públicas, mas também para fabricar o consentimento necessário à
legitimação de suas atuações. Como expressa Edward Bernays, figura de destaque nas
relações públicas dos EUA, “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e
opiniões organizados das massas é um componente importante da sociedade
democrática. (...) São as minorias inteligentes que precisam servir-se da propaganda, de
maneira contínua e sistemática” (CHOMSKY, 2003, pp. 454-455).
Conclusão
Tais elementos apresentados incitam questionamentos. Em especial porque foi
depois da instauração da bem aventurada democracia por todo o continente latino-
americano que os índices sociais apresentaram piora substantiva. No caso haitiano, o
desenrolar dos eventos permite o questionamento sobre a própria ideologia dos direitos
humanos e seus principais propulsores.
Longe de exaurir o assunto, o presente artigo propõe, a partir destas reflexões,
que se passe a um posicionamento mais crítico quanto às informações e discursos
veiculados pela mídia hegemônica, em especial no que tange à promoção da democracia
estadunidense e sua díade inseparável liberdade-controle. Afinal, é no sentido de uma
perspectiva transformadora que ele se dirige, podendo contribuir com debates que
discutam como a formação discursiva da mídia é capaz de construir a realidade social.
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