MChauí - Convite a Filosofia.doc

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Pg. 122 U NI D A D E 5 O conhecimento CAPÍTULO 1 A preocupação com o conhecimento CAPÍTULO 2 A percepção CAPÍTULO 3 A memória CAPÍTULO 4 A imaginação CAPÍTULO 5 A linguagem CAPÍTULO 6 0 pensamento CAPÍTULO 7 A consciência pode conhecer tudo? CAPÍTULO 3 A memória Lembrança e identidade do eu Todos conhecem os belos versos do poeta Casimiro de Abreu: O que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais. Ou estes outros, de Gonçalves Dias: Eu me lembro, eu me lembro! Era pequeno e o mar bramia. A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais. É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contemporânea é dedicada a ela: Em busca do tempo perdido, do escritor francês Mareei Proust. Para Proust, como para alguns filósofos, a memória é a garantia de nossa própria identidade, o modo de podermos dizer "eu" reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos. Em sua obra Confissões, Santo Agostinho escreve:

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U NI D A D E 5

O conhecimento

Captulo 1 A preocupao com o conhecimento

Captulo 2 A percepo

Captulo 3 A memria

Captulo 4 A imaginao

Captulo 5 A linguagem

Captulo 6 0 pensamento

Captulo 7 A conscincia pode conhecer tudo?

Captulo 3 A memriaLembrana e identidade do euTodos conhecem os belos versos do poeta Casimiro de Abreu:O que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida Da minha infncia querida Que os anos no trazem mais.Ou estes outros, de Gonalves Dias:Eu me lembro, eu me lembro! Era pequeno e o mar bramia.A memria uma evocao do passado. a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrana conserva aquilo que se foi e no retornar jamais. nossa primeira e mais fundamental experincia do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contempornea dedicada a ela: Em busca do tempo perdido, do escritor francs Mareei Proust.Para Proust, como para alguns filsofos, a memria a garantia de nossa prpria identidade, o modo de podermos dizer "eu" reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos. Em sua obra Confisses, Santo Agostinho escreve:Chego aos campos e vastos palcios da memria, onde to tesouros de inumerveis imagens trazidas por percepes de toda espcie... Ali repousa tudo o que a ela foi entoam que o esquecimento ainda no absorveu nem sepultou.. A esto presentes o cu, a terra e o mar, com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que esqueci. l que me encontro a mim mesmo e recordo das aes que fiz, o seu tempo, lugar, e at os sentimentos que me dominavam ao pratic-las. l que esto tambm todos os conhecimentos que recordo, aprendidos pela experincia prpria ou pela crena no testemunho de outrem.Como conscincia da diferena temporal passado] presente e futuro , a memria uma forma de percepo interna chamada introspeco, cujo objeto interior ao sujeito do conhecimento: as coisas passadas lembradas,o prprio passado do sujeito e o passado relatado ou registrado por outros em narrativas orais e escritas.Alm dessa dimenso pessoal e introspectiva (interior da memria, preciso mencionar sua dimenso coletiva ou social, isto , a memria objetiva gravada nos monumentos, documentos e relatos da histria de uma sociedade.Os antigos e a memria Os antigos gregos consideravam a memria uma entidade sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, me das Musas, que protegem as artes e a histria. A deusa Memria dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembr-lo para a coletividade. Tinha o poder de conferir imortalidade aos mortais, pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras de um humano, este nunca ser esquecido e, por isso, tornando-se memorvel, no morrer jamais.Os historiadores antigos colocavam suas obras sob a proteo das Musas, escreviam para que no fossem perdidos os feitos memorveis dos humanos e para que servissem de exemplo s geraes futuras. Dizia Ccero: "A histria mestra da vida".A memria , pois, inseparvel do sentimento do tempo ou da percepo/experincia do tempo como algo que escoa ou passa.A importncia da memria no se limitava poesia e histria, mas tambm aparecia com muita fora e clare-

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za na medicina dos antigos. Um aforismo, atribudo a Hipcrates, o pai da medicina, dizia:A vida breve, a arte longa, a ocasio fugidia, a experincia traidora e o julgamento difcil. O mdico precisa estar sempre atento no s para fazer o que convm, mas tambm para conseguir a cooperao do paciente.Qual a ajuda ou cooperao trazida pelo paciente ao mdico? Sua memria. O mdico antigo praticava com o paciente a anamnese, isto , a reminiscncia. Por meio de perguntas, fazia o paciente lembrar-se de todas as circunstncias que antecederam o momento em que ficara doente e as circunstncias em que adoecera, pois essas lembranas auxiliavam o mdico a fazer o diagnstico e a receitar remdios, cirurgias e dietas que correspondiam necessidade especfica da cura do paciente.Alm de imortalizar os mortais e de auxiliar a arte mdica, para os antigos a memria ainda possua outra funo.Os antigos gregos e romanos desenvolveram uma arte chamada eloqncia ou retrica, destinada a persuadir e a criar emoes nos ouvintes por meio do uso belo e eficaz da linguagem. No aprendizado dessa arte, consideravam a memria indispensvel no s porque o bom orador (poeta, poltico, advogado) era aquele que falava ou pronunciava longos discursos sem ler e sem se apoiar em anotaes, como tambm porque o bom orador era aquele que aprendia de cor as regras fundamentais da eloqncia ou oratria.Assim, a memria era considerada essencial tanto para o aprendizado como para o momento em que o orador fosse falar, pois falaria sem ler. Para isso, os mestres de retrica criaram mtodos de memorizao ou "memria artificial", que constituam a "arte da memria", isto , tcnicas de ampliao do poder natural da memria, pois julgavam que, alm da memria natural, os seres humanos so capazes de deliberadamente desenvolver uma outra memria, que amplia e auxilia a memria espontnea.Os antigos justificavam a importncia da "arte da memria" narrando uma lenda sobre o criador da retrica, o poeta grego Simnides de Cos.Conta a lenda que Simnides foi convidado pelo rei de Cos a fazer um poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema em duas partes: na primeira, louvava o rei, na segunda, os deuses Cstor e Plux. O rei ofereceu um banquete no qual Simnides leu o poema e pediu o pagamento. Como resposta, o rei lhe disse que, como o poema tambm estava dedicado aos deuses, ele pagaria metade, e que a outra metade Simnides fosse pedir a Cstor e Plux.

Pintura de Le Sueur, datada de 1652-55, das musas Clio, Euterpe e Tlia, trs filhas da Memria ou Mnemosyne, as quais inspiram a poesia pica, a dana e a comedia, respectivamente.

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Pouco depois, um mensageiro aproximou-se de Simnides dizendo-lhe que dois jovens o procuravam do lado de fora do palcio. Simndes saiu para encontr-los, mas no encontrou ningum. Enquanto estava no jardim, o palcio desabou e todos morreram. Assim, Cstor e Plux, os dois jovens que fizeram Simnides sair do palcio, salvando o poeta, afinal pagaram o poema. As famlias dos demais convidados desesperaram-se porque no conseguiam reconhecer seus mortos. Simnides, porm, graas "arte da memria", lembrava-se dos lugares e das roupas de cada um e pde ajudar na identificao dos mortos.Essa lenda, com a lembrana do palcio e dos lugares dos convidados, levou criao da arte da memria, na qual a memria era concebida como um palcio com lugares nos quais colocamos imagens e palavras e, passeando por ele, ordenadamente, recordamos as coisas, as pessoas, os fatos e as palavras necessrias para escrever e dizer discursos, poesias, peas teatrais. por isso que todo o texto de Santo Agostinho que citamos se refere aos "palcios da memria".A memria em nossa sociedadeA idia de memria artificial existe at hoje, quando nos referimos aos computadores e falamos de sua "memria". A diferena entre a memria artificial dos antigos e a atual consiste no fato de que a deles era desenvolvida como aumento da capacidade do sujeito do conhecimento humano para lembrar, enquanto a atual deposita a memria nas mquinas e quase nos despoja da necessidade de termos memria.Em nossa sociedade, a memria valorizada e desvalorizada. valorizada com a multiplicao dos meios de registro e gravao dos fatos, acontecimentos e pessoas (computadores, filmes, vdeos, fitas cassete, livros) e das instituies que os preservam (bibliotecas, museus, arquivos). tambm valorizada por algumas cincias, como o caso da biologia molecular, que no fala em "hereditariedade" mas em "memria gentica" para referir-se permanncia de propriedades, qualidades, traos e aspectos dos seres vivos e transmitidos por eles de gerao em gerao. desvalorizada porque no considerada uma capacidade essencial para o conhecimento podemos usar mquinas no lugar da nossa prpria memria e porque a publicidade e a propaganda nos fazem preferir o "novo", o "moderno", a "ltima moda", pois a indstria e o comrcio s tero lucros se no conservarmos as coisas e quisermos sempre o "novo".A desvalorizao da memria tambm aparece na proliferao de objetos descartveis, lanados fora logo aps o seu uso, bem como na maneira como a indstria da construo civil destri cidades inteiras para torn-las "modernas", destruindo a memria e a histria dessas cidades.A desvalorizao da memria aparece, por fim, no descaso pelos idosos, considerados inteis e inservveis em I nossa sociedade, ao contrrio de outras em que os idosos I so portadores de todo o saber da coletividade, respeitados e admirados por todos.O que e a memria IA memria uma atualizao do passado ou a presentificao do passado e tambm registro do presente para que permanea como lembrana. Alguns estudiosos julgaram que a memria seria um fato puramente biolgico,isto , um modo de funcionamento das clulas do crebro que registram e gravam percepes e idias, gestos e palavras. Para esses estudiosos, a memria se reduziria, portanto.ao registro cerebral ou gravao automtica pelo crebro de fatos, acontecimentos, coisas, pessoas e relatos.Essa teoria, porm, no se sustenta. Em primeiro lugar, porque, se a memria fosse mero registro cerebral dei fatos e coisas passados, no se poderia explicar o fenmeno da lembrana, isto , que selecionamos e escolhemos o que lembramos e que a lembrana tem, como a percepo, aspectos afetivos, sentimentais, valorativos (h lembranas alegres e tristes, h saudade, h arrependimento e remorso). Em segundo lugar, tambm no se poderia explicar o esquecimento, pois se tudo est espontnea e automaticamente registrado e gravado em nosso crebro, no poderamos esquecer coisa alguma nem poderamos ter dificuldade para lembrar certas coisas e facilidade para recordar outras tantas.Isso no significa que no haja componentes biolgicos, fisiolgicos ou cerebrais na memria, pois os estudos cientficos mostram no s as zonas do crebro responsveis pela memria, como tambm os estudos bioqumicos mostram o papel de algumas substncias qumicas na produo e conservao da memria. O que estamos dizendo que os aspectos biolgicos e qumicos da memria no explicam o fenmeno no seu todo, isto , como forma de conhecimento e de componente afetivo de nossa vida.Podemos dizer que, em nosso processo de memorizao, entram componentes objetivos e componentes subjetivos para formar as lembranas.So componentes objetivos: as atividades fsico-psicolgicas e qumicas de gravao e registro cerebral das

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lembranas, bem como a estrutura do objeto que ser lembrado. Assim, por exemplo, a psicologia da gestalt mostra que temos maior facilidade para memorizar uma melodia do que sons isolados ou dispersos; que memorizamos mais facilmente figuras regulares (crculo, quadrado, tringulo, etc.) do que um conjunto disperso de linhas.So componentes subjetivos: a importncia do fato e da coisa para ns; o significado emocional ou afetivo do fato ou da coisa para ns; o modo como alguma coisa nos impressionou e ficou gravada em ns; a necessidade para nossa vida prtica ou para o desenvolvimento de nossos conhecimentos; o prazer ou dor que um fato ou alguma coisa produziram em ns, etc. Em outras palavras, mesmo que nosso crebro grave e registre tudo, no isso a memria e sim o que foi gravado com um sentido ou com um significado para ns e para os outros.As modalidades ou tipos de memriaO filsofo francs Bergson distingue dois tipos de memria:1. a memria-hbito; e2. a memria pura ou memria propriamente dita.A memria-hbito um automatismo psquico que adquirimos pela repetio contnua de alguma coisa, como, por exemplo, quando aprendemos alguma coisa de cor. A memria uma simples fixao mental obtida fora pela repetio da mesma coisa. Assim, basta iniciar um gesto ou pronunciar uma palavra para que tudo seja lembrado automaticamente: recito uma lio, repito movimentos de dana, freio o carro ao sinal vermelho, piso na embreagem para mudar a marcha do carro, risco uma palavra errada que escrevi, giro a chave para a direita ou para a esquerda para abrir uma porta, etc. Todos esses gestos e essas palavras so realizados por ns quase sem pensarmos neles ou at mesmo sem pensarmos neles. O automatismo psquico se torna um automatismo corporal.A memria pura ou a memria propriamente dita aquela que no precisa da repetio para conservar uma lembrana. Pelo contrrio, aquela que guarda alguma coisa, fato ou palavra nicos, que no podem ser repetidos e que so mantidos por ns por seu significado especial afetivo, valorativo ou de conhecimento. por isso que guardamos na memria aquilo que possui maior significao ou maior impacto em nossa vida, mesmo que seja um momento fugaz, curtssimo e que jamais se repetiu ou se repetir. por isso tambm que, muitas vezes, no guardamos na memria um fato inteiro ou uma coisa inteira, mas um pequeno detalhe que, quando lembrado, nos traz de volta o todo acontecido.Podemos, ento, distinguir duas formas principais de memorizao: aquela que se d por repetio e por ateno deliberada para fixar alguma coisa; e aquela que se d espontaneamente pela fora ou pelo impacto de alguma coisa ou de algum acontecimento dotado de significado importante em nossa existncia. Aqui, o interesse por alguma coisa ou algum fato mais decisivo do que a ateno voluntria que lhe damos.Existem seis grandes tipos de memria:1. a memria perceptiva ou reconhecimento, que nos permite reconhecer coisas, pessoas, lugares, etc. e que indispensvel para nossa vida cotidiana;2. a memria-hbito, que adquirimos por ateno deliberada ou voluntria e pela repetio de gestos ou palavras, at grav-los e poderem ser repetidos sem que neles tenhamos que pensar;3. a memria-fluxo-de-durao-pessoal, que nos faz guardar a lembrana de coisas, fatos, pessoas, lugares cujo significado importante para ns, seja do ponto de vista afetivo, seja do ponto de vista de nossos conhecimentos. Fala-se num "fluxo de durao" para indicar que se trata de um processo temporal contnuo e interior, que faz parte de nossa existncia e de nossa histria pessoal;4. a memria social ou histrica, que fixada por uma sociedade por meio de mitos fundadores e de relatos, registros, documentos, monumentos, datas e nomes de pessoas, fatos e lugares que possuem significado para a vida coletiva. Excetuando-se os mitos, que so narrativas fabulosas do passado lendrio de uma comunidade e portanto s existem na mente ou imaginao da coletividade, a memria social e histrica objetiva, pois existe fora de ns, conservada em objetos (textos, monumentos, inscries, instrumentos, ornamentos, obras de arte, etc);5. a memria biolgica da espcie, gravada no cdigo gentico das diferentes espcies de vida e que permitem a repetio da espcie pela transmisso de suas qualidades, propriedades, traos e aspectos;6. a memria artificial das mquinas, baseada na estrutura do crebro humano.As quatro primeiras fazem parte da vida de nossa conscincia individual e coletiva; a quinta inconsciente e puramente fsica; a ltima uma tcnica.

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Memria e teoria do conhecimentoDo ponto de vista da teoria do conhecimento, a memria possui as seguintes funes: reteno de um dado da percepo, da experincia ou de um conhecimento adquirido; reconhecimento e produo do dado percebido, experimentado ou conhecido numa imagem, que, ao ser lembrada, permite estabelecer uma relao ou um nexo entre o j conhecido e novos conhecimentos; recordao ou reminiscncia de alguma coisa como pertencente ao tempo passado e, enquanto tal, diferente ou semelhante a alguma coisa presente; capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que j no atravs do que atualmente.Por essas funes, a memria considerada essencial para a elaborao da experincia e do conhecimento cientfico, filosfico e tcnico. Por esse motivo, Aristteles escreveu, na Metafsica:E da memria que os homens derivam a experincia, pois as recordaes repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma nica experincia.Graas memria, somos capazes de lembrar e recordar. As lembranas podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente como por um trabalho deliberado de nossa conscincia. Lembramos espontaneamente quando, por exemplo, diante de uma situao presente nos vem lembrana alguma situao passada. Recordamos quando fazemos o esforo para lembrar.Assim como h perturbaes e problemas perceptivos (cegueira, surdez, perda de tato), tambm existem problemas ou perturbaes da memria, indo desde uma dificuldade momentnea para recordar alguma coisa at a amnsia, perda total ou parcial da memria.Quando perdemos a capacidade para lembrar palavras ou construir frases, sofremos de afasia. Quando perdemos a capacidade para lembrar e realizar gestos e aes, sofremos de apraxia. Essas perturbaes podem ser causadas por leses fsicas (no crebro ou no sistema nervoso) ou traumas psicolgicos, isto , por situaes de grande sofrimento psquico que nos foram a esquecer alguma coisa, algum fato, alguma situao.Seja por leso fsica, seja por sofrimento psquico, seja por uma perturbao momentnea e passageira, o esquecimento a perda de nossa relao com o passado e, portanto, com uma dimenso do tempo e com uma di so de nossa vida. Na amnsia, perdemos a relao com o todo de nossa existncia. Na afasia perdemos a relao com os outros atravs da linguagem ou da comunicao, Na apraxia, perdemos a relao com o nosso corpo e cora o mundo das coisas. Esquecer ficar privado de memria e perder alguma coisa. Algumas vezes, porm, essa um bem: esquecer alguma coisa terrvel ultrapassar para poder viver bem novamente.A memria no um simples lembrar ou recordar, revela uma das formas fundamentais de nossa existe que a relao com o tempo, e, no tempo, com aquilo est invisvel, ausente e distante, isto , o passado. Ame ria o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esper-lo e compreendeA imaginaoCotidiano e imaginaoCom freqncia, ouvimos frases como: "Que faltada imaginao!", "Por favor, use a sua imaginao!", "Cuidado! Ela tem muita imaginao!", "Que nada! Voc andou imaginando tudo isso!", "No comece a imaginar coisas!" "Imagine se tivesse sido assim!".Essas frases so curiosas porque indicam maneiras bastante diferentes de concebermos o que seja a imaginao. Nas frases "Que falta de imaginao!" e "Por favor, use a sua imaginao!", a imaginao tomada como algo positivo, cuja falta ou ausncia criticada. Imaginar, nesse caso, aparece como capacidade mais alargada para pensar, para encontrar solues inteligentes para algum problema,) para adivinhar o sentido de alguma coisa que no est muito evidente. Ela aparece, tambm, como algo que ns lemos e que podemos ou no usar.J nas frases "Cuidado! Ela tem muita imaginao! "Que nada! Voc andou imaginando tudo isso!" ou "No comece a imaginar coisas!", a imaginao tomada como risco de irrealidade, invencionice, mentira, exagero, excesso. Agora, imaginar inventar ou exagerar, perder o p realidade. Temos agora, portanto, um sentido bastante diverso do anterior.

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Na frase "Imagine se tivesse sido assim!", ou em outra como "Imagine o que ele vai dizer!", a imaginao tomada como uma espcie de suposio sobre as coisas futuras, uma espcie de previso ou de alerta sobre o que poder ou poderia acontecer como conseqncia de outros acontecimentos.Apesar de diferentes, essas frases possuem alguns elementos comuns. Em todas elas: positiva ou negativamente, a imaginao est referida ao inexistente. Dizer "Use sua imaginao!" significa "faa de outro modo ou invente alguma coisa". Exclamar "Que falta de imaginao!" significa "poderia ter feito muito melhor, poderia ter dito uma coisa muito mais interessante". Alertar com a frase "Cuidado! Ela tem muita imaginao!" significa "ela inventa e exagera". Supor "Imagine o que nos teria acontecido!" significa "criar a imagem de uma situao que no aconteceu"; a imaginao aparece como algo que possui graus, isto , pode haver falta ou excesso; a imaginao se apresenta como capacidade para elaborar mentalmente alguma coisa possvel, algo que no existiu, mas poderia ter existido, ou que no existe, mas poder vir a existir.A imaginao parece, assim, ser algo impreciso, situada entre dois tipos de inveno criao inteligente e inovadora, de um lado; exagero, invencionice, mentira, de outro. No primeiro caso, ela faz aparecer o que no existia ou mostra ser possvel algo que no existe. No segundo, ela incapaz de reproduzir o existente ou o acontecido. Com isso, nossas frases cotidianas apontam os dois principais sentidos da imaginao: criadora e reprodutora.A imaginao na tradio filosfica

A tradio filosfica sempre deu prioridade imaginao reprodutora, considerada como um resduo da percepo, isto , a imagem o que sobrou do objeto percebido, que permanece retido em nossa conscincia. A imagem seria um rastro ou um vestgio deixado pela percepo.Os empiristas falam das imagens como reflexos mentais das percepes ou das impresses, cujos traos foram gravados no crebro. Desse ponto de vista, a imagem e a lembrana difeririam apenas porque a primeira atual enquanto a segunda passada. A imagem seria, portanto, a reproduo presente que fao de coisas ou situaes presentes.Por exemplo, se nesse momento eu fechar os olhos, posso imaginar o computador, a mesa de trabalho, os livros nas estantes, o quebra-luz, a porta, a janela. A imagem seria a coisa atual percebida quando ausente. Seria uma percepo enfraquecida, que, associada a outras, formaria as idias no pensamento.Os filsofos intelectualistas tambm consideravam a imaginao uma forma enfraquecida da percepo e, por considerarem a percepo a principal causa de nossos erros (as iluses e deformaes da realidade), tambm julgavam a imaginao fonte de enganos e erros. Tomando-a como meramente reprodutora, diziam, por exemplo, que a imaginao dos artistas nada mais faz do que juntar de maneira nova imagens de coisas percebidas: um cavalo alado a juno da imagem de um cavalo percebido com a imagem de asas percebidas; uma sereia, a juno de uma imagem de mulher percebida com a imagem de um peixe percebido; um romance seria a reunio de imagens de pessoas percebidas que, realmente, nunca estiveram juntas, e de acontecimentos percebidos que no se deram na forma e na seqncia narradas; etc.A imaginao seria, pois, diretamente reprodutora da percepo, no campo do conhecimento, e indiretamente reprodutora da percepo, no campo da fantasia.Por isso, na tradio filosfica, costumava-se usar a palavra imaginao como sinnimo de percepo ou como um aspecto da percepo. Percebemos imagens das coisas, dizia a tradio.A tradio, porm, enfrentava alguns problemas que no podia resolver: em nossa vida, no confundimos percepo e imagem. Assim, por exemplo, distinguimos perfeitamente a percepo direta de um bombardeio da imagem do que seria uma exploso atmica; em nossa vida, no confundimos perceber e imaginar. Assim, por exemplo, distinguimos o sonho da viglia; distinguimos um fato que vemos na rua da cena de um filme; em nossa vida, somos capazes de distinguir nossa percepo e a imaginao de uma outra pessoa. Assim, por exemplo, percebemos o sofrimento psquico de algum que est tendo alucinaes, mas no somos capazes de alucinar junto com ela.Dessa maneira, a suposio de que entre a percepo e a imaginao, entre o percebido e a imagem haveria apenas uma diferena de grau ou de intensidade (a imagem seria uma percepo fraca e a percepo seria a imagem forte) no se mantm, pois h uma diferena de natureza ou uma diferena de essncia entre ambas

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o), uma metfora (dizer "a primavera da vida" criar uma figura de linguagem para referir-se juventude), uma ilustrao (a foto de algum junto a uma notcia de jornal ou uma paisagem num livro de contos), um esquema (a planta de uma casa ou de uma mquina), um signo (vejo a luz vermelha do semforo e ela o signo de uma ordem: "Pare!"), um sentimento (a emoo que sinto ao ouvir uma sinfonia a imagem da sinfonia em mim), um substituto (um armrio imaginado como um navio pela criana que brinca).Embora sejam diferentes pela natureza da analogia, as imagens novamente possuem algo em comum: raramente ou quase nunca a imagem corresponde materialmente coisa imaginada. Por exemplo, a bandeira e a nao so materialmente diferentes, os sons da sinfonia e meus sentimentos so diferentes, a fotografia e a pessoa fotografada so materialmente diferentes, um mmico que imita uma janela ou uma locomotiva no nem uma coisa nem outra, etc. Notamos, assim, que prprio das imagens algo que suporamos prprio apenas da fico, isto , as imagens so irreais, quando comparadas ao que imaginado atravs delas. Um quadro real na condio de quadro percebido, mas irreal se comparado paisagem da qual imagem.Apesar de irreal e justamente por ser irreal, a imagem dotada de um atributo especial: ela tem o poder de tornar presente ou de presentificar algo ausente, seja porque esse algo existe e no se encontra onde estamos, seja porque inexistente. No primeiro caso, a imagem ou o anlogo testemunha irreal de alguma coisa existente; no segundo, a criao de uma realidade imaginria, ou seja, de algo que existe apenas em imagem ou como imagem. Nos dois casos, porm, o objeto-em-imagem imaginrio.As modalidades ou tipos de imaginaoPartindo da diferena entre imaginao reprodutora e imaginao criadora, podemos distinguir vrias modalidades ou tipos de imaginao:1. imaginao reprodutora propriamente dita, isto , a imaginao que toma suas imagens da percepo e da memria;2. imaginao evocadora, que presentifca o ausente por meio de imagens com forte tonalidade afetiva;3. imaginao irrealizadora, que torna ausente o presente e nos coloca vivendo numa outra realidade que s nossa, como no sonho, no devaneio e no brinquedo. Essa imaginao tem forte teor mgico;4. imaginao fabuladora, de carter social ou coletivo, que cria os mitos e as lendas pelos quais uma sociedade, um grupo social ou uma comunidade imaginam sua prpria origem e a origem de todas as coisas, oferecendo uma explicao para seu presente e sobretudo para a morte. Nesse caso, a imaginao cria imagens simblicas para o bem e o mal, o justo e o injusto, o puro e o impuro, o belo e o feio, o mortal e o imortal, o tempo e a natureza pela referncia s divindades e aos heris criadores; explica os males desta vida por faltas originrias cometidas pelos humanos e promete uma vida futura feliz aps a morte. a imaginao religiosa;5. imaginao criadora, que inventa ou cria o novo nas artes, nas cincias, nas tcnicas e na filosofia. Nela, combinam-se elementos afetivos, intelectuais e culturais que preparam as condies para que algo novo seja criado e que s existia, primeiro, como imagem prospectiva ou como possibilidade aberta. A imaginao criadora pede auxlio percepo, memria, s idias existentes, imaginao reprodutora e evocadora para cumprir-se como criao ou inveno. As utopias so expresses literrias e polticas da imaginao criadora.Imaginao e teoria ao conhecimentoDo ponto de vista da teoria do conhecimento, a imaginao possui duas faces: a de auxiliar precioso para o conhecimento da verdade e a de perigo imenso para o conhecimento verdadeiro.Quando lemos relatos dos cientistas sobre suas pesquisas e investigaes, com freqncia eles se referem aos momentos em que tiveram de imaginar, isto , criar pelo pensamento a imagem total ou completa do fenmeno pesquisado para, graas a ela, orientar os detalhes e pormenores da pesquisa concreta que realizavam.Essa imagem negadora e antecipadora. Negadora: graas a ela, o cientista pode negar ou recusar as teorias j existentes. Antecipadora: graas a ela, o cientista pode antever o significado completo de sua prpria pesquisa, mesmo que esta ainda esteja em andamento; a imaginao orienta o pensamento. O filsofo Gaston Bachelard atribui imaginao a capacidade para encorajar o pensamento a dizer "no" a teorias existentes e propor novas.Muitas vezes, lendo um romance ou vendo um filme, compreendemos e conhecemos muito melhor uma realidade do que se apenas lssemos livros cientficos ou jornais. Por qu? Por que o artista, pela imaginao, capta' essencial e rene o que estava disperso na realidade, fa-

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A fenomenologia e a imaginaoDistanciando-se da tradio, a fenomenologia fala na conscincia imaginativa como uma forma de conscincia diferente da conscincia perceptiva e da conscincia memoriosa, isto , parte da diferena da imaginao com respeito percepo e memria. O ato da conscincia imaginativa o imaginar e seu contedo (ou correlato) o imaginado ou o objeto-em-imagem. A imaginao a capacidade da conscincia para fazer surgir os objetos imaginrios ou objetos-em-imagem.Pela imaginao, relacionamo-nos com o ausente e com o inexistente. Perceber este livro relacionar-se com sua presena e existncia. Imaginar um livro relacionar-se com a imagem do livro, isto , com um livro existente, mas ausente (guardado numa biblioteca) ou com um livro ausente porque ainda inexistente e porque ainda no escrito e que apenas um-livro-possvel. Graas imaginao, abre-se para ns o tempo futuro, isto , o tempo do que ainda no existe, e o campo dos possveis ou das coisas possveis, isto , do que poderia ou poder vir a existir.Qual a diferena entre perceber e imaginar? H pelo menos duas, que so as principais.Uma primeira diferena consiste em que a percepo observa as coisas, as pessoas, as situaes, mas a imaginao no observa.Observar, como vimos ao estudar a percepo, jamais ter uma coisa, pessoa ou situao percebidas de uma s vez e por inteiro. A percepo observa porque alcana as coisas, as pessoas, as situaes por perfis, perspectivas, faces diferentes que vo sendo articuladas umas s outras, num processo sem fim, podendo sempre enriquecer nosso conhecimento porque podemos perceber aspectos novos, ir "completando" o percebido com novos dados ou aspectos.A imaginao, ao contrrio, no observa o objeto: cada imagem pe o objeto por inteiro. O filsofo francs Sartre d um exemplo: quando imagino uma rua ou um edifcio, tenho de uma s vez a rua-em-imagem ou o edifcio-em-imagem, cada um deles possui uma nica face e essa que existe em imagem. Podemos ter muitas imagens da mesma rua ou do mesmo edifcio, mas cada uma delas uma imagem distinta das outras. Uma imagem, diz Sartre, inobservvel.Tomemos um outro exemplo. Um turista pode ir cidade francesa de Rouen para conhecer sua famosa catedral (ligada, entre outros fatos, histria de Joana d'Arc). Para v-la ou perceb-la exteriormente, ele precisa observ-la, isto , dar a volta ou andar volta dela, vendo suas diferentes faces e seus diferentes perfis. Depois de completar uma volta, o turista dir que est percebendo a catedral e que, em outras voltas, perceber novos aspecto dela. Esse mesmo turista poder, a seguir, ir ao museu onde ver uma seqncia de quadros, pintados pelo pintor! Monet, que ilustram a fachada da catedral de Rouen em horas diferentes do dia. So vrias imagens da mesma catedral e cada uma delas uma imagem diferente e completa, isto , o espectador no poder dar-lhes a volta, no poder passear sua volta para observ-las, pois cada uma delas possui uma nica face, aquela que o pintor nos mostrou. A catedral percebida observvel; a catedral em imagem no observvel.

Uma das pinturas que Monet fez da catedral de Rouen, em 1894. De um apartamento na frente do portal da igreja o pintor observou a mudana nas cores de acordo com a iluminao. Esta foi pintada em um dia cinzento.Passemos, agora, a uma segunda diferena entre percepo e imaginao.Se uma pessoa apaixonada tem diante de si a pintura ou a fotografia da pessoa amada, tem a imagem dela. Ao olh-la, no olha para as manchas coloridas, para os traos reproduzidos no papel, no presta ateno no trabalho do pintor nem do fotgrafo, mas torna presente a pessoaPg. 146

amada ausente. O amante de pintura que foi ao museu ver a srie de Monet sobre a catedral de Rouen no olha para manchas e linhas coloridas, mas para a fachada da catedral, para a imagem que presentifica a catedral. Com isso podemos apontar a segunda diferena entre o percebido e o imaginado: a imagem diferente do percebido porque ela um anlogo do ausente, sua presentificao.Porque um anlogo? Essa palavra vem do grego analogon, de onde vem uma outra palavra grega, analogia, que significa "proporo, existncia de algo comum em coisas diferentes que permite que haja alguma relao entre elas, apesar de suas diferenas".Dizer que a imagem um anlogon significa dizer que no h desproporo entre ela e aquilo de que ela imagem, que ela guarda alguma proporo ou semelhana com aquilo de que imagem, que entre ela e aquilo de que imagem h algo comum, apesar da diferena entre eles. por esse motivo que um apaixonado pode dizer "Esta a foto de minha amada",ou um visitante de um museu poder dizer"Esta a catedral de Rouen".Em outras palavras, percebemos e imaginamos ao mesmo tempo, embora perceber e imaginar sejam diferentes. 0 visitante do museu percebe os quadros de Monet e por isso imagina a catedral de Rouen. O apaixonado percebe a fotografia e imagina a pessoa amada. Percebe a fisionomia da pessoa fotografada (o olhar, o sorriso, as mos, a roupa) e imagina a seduo do olhar, a doura do sorriso, a sutileza dos gestos, a preferncia por certas roupas. So dois estados de conscincia simultneos e diferentes.Quando a criana brinca, sua imaginao desfaz a percepo: todos os objetos, todas as pessoas e todos os lugares nada tm a ver com seu sentido percebido, mas remetem a outros sentidos, criam sentidos inexistentes ou presentificam o ausente. Um armrio um navio-em-imagem, um tapete o mar-em-imagem, uma vassoura uma espada-em-imagem, uma folha de jornal um mapa-em-imagem, um avental preso s costas uma capa-em-imagem. A imaginao , assim, uma capacidade irrealizadora.A fora irrealizadora da imaginao significa, de certo modo, que ela capaz de tornar ausente o que est presente (o armrio deixa de estar presente), de tornar presente o ausente (o navio torna-se presente) e criar inteiramente o inexistente (a aventura nos mares). por isso que a imaginao tem tambm uma fora prospectiva, isto , consegue inventar o futuro, como na cano de John Lennon, Imagine, ou como na inveno de uma teoria cientfica ou de um objeto tcnico. Pelo mesmo motivo, a imaginao pode criar um mundo irreal que julgamos melhor do que o nosso, a ponto de recusarmos viver neste para "viver" imaginariamente naquele, perdendo todo contato com o real. o que acontece, por exemplo, na loucura, quando passamos definitivamente para o "outro lado". Mas tambm o que acontece todos os dias, quando sonhamos ou entramos em devaneio. Embora viglia e sonho sejam diferentes, a viglia pode ser sentida como intolervel e insuportvel, e somos arrastados pelo desejo de ficar no sonho e de, embora acordados, viver como se o sonho fosse real, porque nossa imaginao o faz real para ns. Irrealizando o mundo percebido e realizando o sonho, a imaginao pode ocupar o lugar da percepo e passamos a perceber imaginariamente.Quando o fazemos para criar um outro mundo ao qual os outros seres humanos tambm podem ter acesso, a imaginao passa do sonho obra de arte. Quando o fazemos para criar um outro mundo s nosso e ao qual ningum mais pode ter acesso, a imaginao passa do sonho loucura. Assim, a diferena entre sonho, arte e loucura muito pequena e frgil: a imaginao aberta aos outros (arte) ou fechada aos outros (loucura).Descrevendo a imagemQuando falamos em imagens, referimo-nos a coisas bastante diversas: quadros, esculturas, fotografias, filmes, reflexos num espelho ou nas guas, fices literrias, contos, lendas e mitos, figuras de linguagem (como a metfora e a metonmia), smbolos, sonhos, devaneios, alucinaes, imitaes pela mmica e pela dana, sons musicais, poesia.Embora sejam todas imagens, elas so diferentes em dois aspectos principais:1. Uma primeira diferena entre essas imagens pode ser logo notada: algumas se referem a imagens exteriores nossa conscincia (pinturas, esculturas, fotos, filmes, mmica, smbolos, etc), outras podem ser consideradas internas ou mentais (sonhos, devaneios, alucinaes, etc), enquanto algumas so externas e internas ao mesmo tempo (no caso da fico literria, por exemplo, a imagem externa, pois est no livro, e interna, pois leio palavras e com elas imagino).No entanto, algo comum a todas elas: oferecem-nos coisas, situaes, pessoas que guardam alguma semelhana com outras coisas, situaes, pessoas reais. Por oferecer alguma parecena, diz-se que uma imagem oferece um anlogo das prprias coisas, situaes ou pessoas. As imagens oferecem um anlogo seja porque esto no lugar das prprias coisas (como na fotografia ou numa pintura, por exemplo), seja porque nos fazem imaginar coisas atravs de outras (como a bandeira de um pas, uma poesia ou uma msica, por exemplo).2. Uma segunda diferena entre as imagens decorre do tipo de anlogo que cada uma delas prope. Um anlogo pode ser um smbolo (a bandeira um smbolo da na-Pg. 147

zendo-nos compreender o sentido profundo e invisvel de alguma coisa ou de alguma situao. O artista nos mostra o inusitado, o excepcional, o exemplar ou o impossvel por meio dos quais nossa realidade ganha sentido e pode ser mais bem conhecida.Outras vezes, porm, sobretudo quando se trata da imaginao reprodutora, somos lanados no mundo dos dolos de que falava Francis Bacon, ou no mundo da preveno e dos preconceitos de que falava Descartes.Agora surge um tecido de imagens, isto , muitas imagens presas umas nas outras formando uma realidade imaginria ou um imaginrio, que desvia nossa ateno da realidade ou que serve para nos dar compensaes ilusrias para as desgraas de nossa vida ou de nossa sociedade, ou que usado como mscara para ocultar a verdade e bloquear nosso conhecimento, inventando para a realidade aspectos sedutores, mgicos, embelezados, cheios de sonhos que j parecem realizados. Desse aspecto, a imaginao reprodutora se ope imaginao utpica.Utopia uma palavra grega que significa "em lugar nenhum e em tempo nenhum". A imaginao utpica cria uma outra realidade para mostrar erros, desgraas, infmias, angstias, opresses e violncias da realidade presente e para despertar, em nossa imaginao, o desejo de mudana. Assim, enquanto o imaginrio reprodutor procura abafar o desejo de transformao, o imaginrio utpico procura criar esse desejo em ns. Pela inveno de uma outra sociedade que no existe em lugar nenhum e em tempo nenhum, a utopia nos ajuda a conhecer a realidade presente e a buscar sua transformao.Em outras palavras, o imaginrio reprodutor opera com iluses enquanto a imaginao criadora e a imaginao utpica operam com a inveno do novo e da mudana, graas ao conhecimento crtico do presente.pg. 147Captulo 5 A LINGUAGEMA importncia da linguagemNa abertura da sua obra Poltica, Aristteles afirma que somente o homem um "animal poltico", isto , social e cvico, porque somente ele dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristteles, possuem voz (phon) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (lgos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores o que torna possvel a vida social e poltica e, dela, somente os homens so capazes.

Na luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos, Martin Luther King apostou no poder poltico da palavra. At hoje ecoa seu famoso discurso "Eu tenho um sonho", proferido durante a Marcha pela Liberdade, em 1963, em Washington.

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1. deve conhecer que idias existem, isto , que idias so;2. deve conhecer quais so as qualidades ou propriedades essenciais de uma idia, isto , o que uma idia , sua essncia.As idias ou formas inteligveis (ou essncias inteligveis), diz Plato, so seres perfeitos e, por sua perfeio, tornam-se modelos inteligveis ou paradigmas inteligveis perfeitos que as coisas sensveis materiais tentam imitar imperfeitamente. O sensvel , pois, uma imitao imperfeita do inteligvel: as coisas sensveis so imagens das idias, so No-Seres tentando inutilmente imitar a perfeio dos seres inteligveis.Cabe Filosofia passar das cpias imperfeitas aos modelos perfeitos, abandonando as imagens pelas essncias, as opinies pelas idias, as aparncias pelas essncias. O pensamento, empregando a dialtica, deve passar da instabilidade contraditria das coisas sensveis identidade racional das coisas inteligveis, identidade das idias que so a realidade, o ser, o f on.Os dilogos de Plato pem em marcha a dialtica, isto , o caminho seguro (mthodos) que nos conduz das sensaes, das percepes, das imagens e das opinies contemplao intelectual do ser real das coisas, idia verdadeira, que existe em si mesma no mundo das puras idias ou no mundo inteligvel.Tomemos um dilogo para acompanharmos o procedimento platnico. O Banquete busca a idia ou a essncia do amor.Numa festa, oferecida por um poeta que ganhou um prmio por sua poesia, conversam cinco amigos e Scrates. Um deles afirma que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor, mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses, Eros, o amor. Prope, ento, que cada um faa uma homenagem a Eros dizendo o que o amor.Para um deles, o amor o mais bondoso dos deuses, porque nos leva ao sacrifcio pelo ser amado, inspira nosso devotamento e o desejo de fazer o bem. Para o seguinte. I preciso distinguir dois tipos de amor: o amor sexual e grosseiro e o amor espiritual entre as almas, pois o primeiro breve e logo acaba, enquanto o segundo eterno. J o terceiro afirma que os que o antecederam tinham limitado muito o amor, tomando-o apenas como uma relao entre duas pessoas. O amor, diz ele, o que ordena, organiza e orienta o mundo, pois ele que faz os semelhantes se aproximarem e os diferentes se afastarem. O amor uma fora csmica de ordem e harmonia do Universo.

No centro de Londres, em Picadilly Circus, foi erigida uma escultura de Eros em homenagem ao conde de Shaftesbury (1671 -1713), Ifilsofo ingls que sustenta o pensamento que se tornou conhecido como moral do sentimento.

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