Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

121
8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 1/121  

Transcript of Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

Page 1: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 1/121

 

Page 2: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 2/121

 

Mauro Rasi

PÉROLA

Page 3: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 3/121

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. 

Rasi, Mauro 

R175p Pérola / Mauro Rasi. — Rio de Janeiro :Record, 1995. 

1. Teatro brasileiro (Literatura). I. Título. 

CDD — 869.9295-0842 CDU — 869.0(81)-2 

Copyright © 1995 by Mauro Perroca Rasi

Foto da capa: Lívio Campos

Direitos exclusivos desta edição reservados pela 

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — 20921-380 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 585-2000 

Impresso no Brasil

ISBN 85-01-04392-3 

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL

Caixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922-970 

Page 4: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 4/121

CONTRA CAPA 

“O aspecto mais notável de Pérola é o fato de Rasi ter escapado do

piegas em sua grande declaração de amor: a glorificação de Pérola

é um memorável canto de alegria, no qual não foram esquecidos

nem os defeitos nem os pequenos ridículos — até estes, no

entanto, cuidadosamente envoltos em imensa ternura.”

BARBARA HELIODORA — O Globo

“Com rara sensibilidade, o autor dispõe de lembranças que com

uma ironia sutil transforma em bem-urdidas situações teatrais.Pérola é a crônica de morte de uma mãe, de um tempo, de uma

rebeldia. Mas com o humor de quem sabe que o teatro é um

fingimento, tal qual os papéis que cada um assume na vida. Pérola

escolheu o seu papel e o viveu até o fim. Mauro Rasi mostrou o

fascínio que esta escolha exerce sobre ele.”

MACKSEN LUIZ — Jornal do Brasil

“Em resumo: uma peça admirável deste dramaturgo de exceção

que é Mauro Rasi, que consegue atingir o coração da platéia e

simultaneamente diverti-la, possibilitando a salutar convivência

entre risos e lágrimas.”

LIONEL FISCHER — Tribuna da Imprensa

“Mauro Rasi é um verdadeiro mestre em fazer acontecimentos

corriqueiros ganharem uma alegria contagiante com as palavras

de seus diálogos. Há muito tempo que uma platéia não é

convidada a participar de tanta felicidade.”

 TELMO MARTINO — IstoÉ

“É tão divertido ver os personagens girarem em torno de si

Page 5: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 5/121

mesmos em meio a frases engraçadíssimas...”

MARIA SILVIA CAMARGO — Veja

“Pérola é sonhadora, exuberante, atrapalhada. Tem, na medidaperfeita, uma soma de defeitos e virtudes que a torna fascinante.

Pérola sai da vida não para entrar na história, mas para entrar na

imaginação. Depois de Nelson Rodrigues o teatro brasileiro não

reencontrou uma voz vigorosa capaz de guiá-lo. Agora, Mauro Rasi

pode tomar esse lugar.”

 JOSÉ CASTELLO — O Estado de S. Paulo

Foto da capa: Lívio Campos

http://groups.google.com/group/digitalsource

Page 6: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 6/121

Agradeço à Shell, a João Madeira, Marcos Ribas de

Faria, Ali Kamel, Luis Erlanger, meu elenco e minha

equipe técnica, Casa da Gávea, Fafá de Belém,

Roberto e Erasmo Carlos, Olavo Leite Jr., Ana (Any)

Accioly, e àquela que me ajudou a enxergar um

horizonte realmente sem limites, Madalena Meachan.

Muito obrigado. 

Page 7: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 7/121

Isto não é uma biografia. É a transfiguração de uma

realidade. Como observou o jornalista e escritor JoséCastello, “o método de Rasi é a mentira”, — trabalho com

a memória afetiva, “mas essa não é uma memória de

fatos, e sim de sonhos, memória imaginária que remete a

acontecimentos que nunca existiriam”. Os nomes e

acontecimentos aqui relatados pertencem ao mundo da

minha ficção. 

O AUTOR 

Page 8: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 8/121

Aos meus pais e aos meus alter-egos: 

Marcos Frota, Daniel Dantas, Paulo Betti e, 

naturalmente, EMÍLIO de Mello, 

o mais constante. 

Page 9: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 9/121

Pérola estreou no Teatro Leblon no dia 24 de março de 1995 com o

seguinte elenco:

Pérola VERA HOLTZVado SERGIO MAMBERTIEMÍLIO EMÍLIO DE MELLONorma SONIA GUEDESElisa ANNA DE AGUIARDanilo EDGARD AMORIMVoz SONIA ZAGURY

Direção MAURO RASIAssist. de Direção FLAVIO ANTONIOCenários GRINGO CARDIAIluminação MANECO QUINDERÉFigurinos BETH FILIPECKI

 Trilha sonora MARCOS RIBAS DE FARIAFotografia LÍVIO CAMPOSCabelo SÉRGIO STYLE

Direção de produção MÁRCIA DIASMÁRCIA HALFIN

Divulgação JOÃO PONTESPatrocínio SHELLRealização CASA DA GÁVEA

Page 10: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 10/121

Uma verdadeira Pérola 

O teatro é, paradoxalmente, a arte da mentira. Inventam-se

tramas para contar histórias que se pareçam com a vida, mas que

não são a própria vida. A simulação do que se vive ganha no palco

a dimensão da realidade, quanto maior for a capacidade do teatro

de se fazer arte. Pérola, a peça de Mauro Rasi, trata de maneira

crepuscular do modo de vida de uma família do interior paulista

que parece ser de ficção — afinal este modo de vida não passa de

uma interminável forma de recriar a vida —, mas que na verdade,

se sabe, é o universo familiar do autor. Não importa que Pérola,

Vado, Emílio sejam mãe, pai ou filho da família Rasi. Cada um,

verdadeiramente, é personagem de um teatro doméstico que foi

sendo encenado ao longo de suas existências. A arte da mentiraestá em retirar esses personagens tão cheios de vida da sua rotina

delirante e trazê-los para os olhos do espectador de teatro como

uma forma de partilhar, de lembrar que os pequenos sentimentos

são aqueles que nos chegam individualmente. A universalidade

desta família do interior do Brasil alcança os que, da solidão de

suas emoções banais, conhecem os sentimentos que chegam da

cozinha. Pérola finge que é uma invenção, mas se apropria da

memória familiar coletiva para deixar que as lembranças sejam o

material essencial de um teatro confessional sem mentiras. 

Em Pérola, Mauro Rasi volta-se para essa mãe onipresente

no sobradinho de Bauru, que toma conta das vidas que a cercam

de uma forma muito peculiar. Uma garagem é mais do que um

símbolo de status, é a própria vitória sobre as frustrações. Apiscina, uma fantasia que realiza a Ester Williams interiorana. A

Page 11: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 11/121

bebida, o prazer que disfarça a consciência. A estrela do lar, para

quem Mauro Rasi criou um ritual de adeus numa vã tentativa de

se separar dela, e ao lado de quem empreendeu uma viagem a

Forli, à procura das origens, agora ganhou o seu réquiem. A morteé que desenha o perfil de Pérola, e o narrador, que antes se

chamava Juliano, agora ganha o nome de Emílio e conduz o

espectador pelos seus afetos. Este alter ego de Mauro Rasi tem o

humor de quem olha para aquele mundo com o sorriso triste da

separação, mas ao mesmo tempo com a melancolia do passado.

Pérola, uma comédia crepuscular, em que o humor às vezes

delirante se junta a um melodrama suburbano, provoca um efeito

de reconhecimento que pode ser resumido na frase tantas vezes

ouvida de quem assistiu à montagem apresentada no Teatro

Leblon, no Rio de Janeiro: “Igualzinho à minha família.” Mais uma

prova de que a mentira do teatro é tão mais verdadeira quando

sabe extrair do real a sua substância ficcional. Os diálogos

remetem às lembranças familiares do espectador, retrabalhadascom humor — em alguns momentos de uma grande crueldade — e

emoção — como num melodrama outonal. 

Pérola toca na vida todo o tempo, mas não se pode esquecer

que a peça tem na sua gênese a morte. O fim desta mãe teatral,

que faz o mundo a seu modo, é também o fim de um tempo (o

amadurecimento do autor). Mas como Mauro Rasi sabe tão bem

que o teatro é um fingimento — tal qual os papéis que cada um

assume na vida —, ele sabe brincar com a verdade da dor. Pérola,

a personagem, escolheu o seu papel na vida e o viveu até o fim.

Mauro Rasi mostra na vida e no teatro o fascínio que esta escolha

exerceu sobre ele. 

Macksen Luiz  

Page 12: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 12/121

Um sobradinho espremido à esquerda por duos velhas

casinhas geminados, e à direita pela casa vizinha, de

onde brota um enorme abacateiro. Este sobrado,

construído em terreno estreito e de pouca frente, tem a

 forma de um funil, abrindo-se nos fundos para um

magnífico quintal onde está instalada uma moderna

 piscina. É o espaço nobre da residência, onde ela

respira. Tudo nesta casa gira em torno do quintal e da piscina. 

CENA 1 — Época atual

Emílio acende uma vela. Está vestido como quem está chegando

 — ou partindo.

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Mamãe morreu. Seu enterro foi ontem.

Esta é a primeira manhã sem ela. (COMEÇA A

AMANHECER)

VADO — (DE PIJAMA, COM UMA XÍCARA NA MÃO) Tô tão

acostumado a fazer o café e levar pra sua mãe na cama...

Não sei como vou fazer sem aquela baixinha...

EMÍLIO — Todo dia ele acordava cedinho, fazia o café, pegava uma

flor e levava pra ela. Mesmo que estivesse acordada, ela

fingia que estava dormindo. Ele assoviava.

VADO — (OFF — ASSOVIA) Benhê... Cafezinho.

Page 13: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 13/121

 

EMÍLIO  — Do meu quarto eu ficava ouvindo.

PÉROLA — (OFF) Oh, benhê, você me acordou! Eu tava dormindotão gostoso...

EMÍLIO — Diariamente essa cena se repetia; sempre com o mesmo

texto.

PÉROLA  — (OFF) Oh, benhê, eu tava dormindo tão gostoso!...

EMÍLIO — A única vez que ele não fazia o café era no dia do seu

aniversário. Nesse dia quem fazia era ela. Ele então ficava

na cama fingindo que dormia. Ela descia, fazia o café,

subia e passava pelo nosso quarto.

PÉROLA — (OFF) Emílio, Elisa, vêm cantar Parabéns pro seu pai.

EMÍLIO — Eu e minha irmã pegávamos os presentes e íamos

“acordá-lo”.

OS DOIS — (OFF) “Parabéns pra você, nesta data querida, muitas

felicidades, muitos anos de vida.” Viva o papai!

VADO — (OFF) Oh... mas que surpresa!

ELISA — (OFF) Esse é o meu.

EMÍLIO — (OFF) Esse é o meu.

Page 14: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 14/121

PÉROLA  — (OFF) E esse é o meu.

OBS.: A AÇÃO DESTA PEÇA DESENVOLVE-SE NO

INSTANTE EM QUE EMÍLIO, APÓS O ENTERRO DAMÃE. LEMBRA MOMENTOS DE SUA VIDA E TENTA

RESGATÁ-LOS. EMÍLIO TRANSITA PELA PRÓPRIA

MEMÓRIA COM TOTAL LIBERDADE DE TEMPO E

ESPAÇO, OBRIGANDO A AÇÃO ORA A RECUAR, ORA A

AVANÇAR.

MUITOS ANOS ATRÁS...

(PÉROLA ABRE AS JANELAS, DEIXANDO ENTRAR A

LUZ DO DIA. FICA PARADA, IMÓVEL NA CONTRALUZ)

EMÍLIO — Nossa casa! Que mamãe chamava de chalé ou bangalô,

é na verdade... (NORMA SURGE NUMA CADEIRA DERODAS)

NORMA — (CORTANDO)... um sobradinho sem estilo definido,

onde nada combina com nada: pedra-portuguesa, pedra

são-tomé, azulejos, pastilhas, cerâmicas, lajotas! Tem de

tudo. Parece uma exposição de material de construção.

(NORMA É VÍTIMA DE FORTE ENXAQUECA; TEM

FOTOFOBIA, A LUZ INCOMODA-A PROFUNDAMENTE.

USA ÓCULOS ESCUROS)

EMÍLIO — Tia Norma!

NORMA — A Lola me trouxe de carro, não quis entrar porque não

Page 15: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 15/121

se dá com a sua mãe. Mandou um abraço, um beijo pra

você... (BAIXO,  PARA  PÉROLA  NÃO  OUVIR) Falou pra

você ir lá visitar ela. Que ela não pode vir aqui te ver...

(OLHA DE SOSLAIO PARA PÉROLA, QUE SEMOVIMENTA)

PÉROLA — Suas tias têm um ciúme de mim; não se conformam

que eu tenha uma bela casa, um marido bom que me dá

de tudo, que me adora.

NORMA — Essa enxaqueca tá me matando. A luz me incomoda

tanto! Ontem eu tive que amarrar a cabeça. Não sei mais

o que fazer da minha vida, viu? Tem horas que tenho

vontade de explodir.

PÉROLA — Chá de picão é bom.

NORMA — Ih, já tomei tanto picão, casca de abacaxi... (OUVE-SE

GEMIDO DA VELHA) A mamãe não melhorou?

PÉROLA — Tava boa; é só chegar visita que começa a gemer, pra

chamar atenção. (GRITA) Pára de gemer, mamãe! Ela já

vai. (RESMUNGA) Vocês são umas belas de umas

comodistas, isso sim; jogaram a mamãe pra cima de

mim.

NORMA — (INDIGNADA) Pérola, como é que você tem coragem de

falar uma coisa dessas?

PÉROLA — Só gostam de fazer farol; na hora de cuidar de gente

Page 16: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 16/121

velha, todo mundo foge.

NORMA — Acha que eu tenho condições de cuidar da mamãe

nesse estado? Nem a Lola, coitada, tá lá doida com osexames do Galvãozinho; tão até comendo de pensão que

ela não tem tempo nem pra respirar. A Wanda mora em

São Paulo; a Irene com aquele menino que tá cada vez

mais levado, tá deixando ela louca — pois não é que eles

foram viajar e o menino não me guarda o gato dentro da

geladeira? Disse que era pra conservar, pra não estragar

o gato. Ficaram quinze dias fora quando voltaram, a Irene

abre a geladeira... E agora ainda a Marisa vai casar! Com

quem que a mamãe vai ficar? Só pode ser com você,

Pérola, que mora aqui do lado.

PÉROLA — O abacaxi sempre acaba na minha mão.

VADO  — Pérola, viu o saca-rolha?

PÉROLA — Tá na segunda gaveta.

VADO — Cadê o de peixinho?

PÉROLA  — Tá aí, Vado. Você nunca acha nada. Cuidado que caju

mancha.

NORMA — (A VELHA GEME) Tô indo, mamãe.

VADO — Quer tomar uma bomba, Norma? Essa é especial, de

caju.

Page 17: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 17/121

 

NORMA — Não, Vado, obrigada. Não posso beber nada que tô

tomando um remédio que tô urinando pouco. O dr.

Henrique pediu pra eu medir quanto eu urinava, me deuuma garrafa enorme, eu urinei uma xicrinha de café.

PÉROLA — Eu quero, benhê; vê uma de maracujá pra mim. Com

só um pouquinho de vermute. Pouquinho, benhê;

pouquinho. Senão não tempero os bifes.

EMÍLIO — A hora do aperitivo, que antecedia o almoço, era o

momento mais esperado do dia. Era a hora em que papai

brilhava!

VADO — (MODESTO) Tenho trinta e cinco tipos de aperitivos.

(EMÍLIO EMPURRA A CADEIRA DE NORMA PARA PERTODO BAR)

EMÍLIO — A família toda ia chegando...

NORMA — Trinta e cinco!? Vado!!!

VADO — Faço de banana, laranja, maçã, groselha... agora pitanga

aí tá dando, já tô com um litro pronto. Agora, se você

quiser fazer um aperitivo gostosinho, simples, compra

bala Pipper...

NORMA — Bala Pipper?!

Page 18: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 18/121

VADO — ...põe mais ou menos quinze balas dentro de um litro e

você faz uma pinga de hortelã que o cara se baba todo. É

só a bala e a pinga. Aqui a primeira coisa que o pessoal

faz quando chega é vir no meu barzinho tomar uma balaPipper... Agora, eu faço uma pinga calmante! De erva-

cidreira, que, minha nossa senhora! Na hora de dormir

você toma um calicezinho, você dorme feito tijolo.

NORMA — Eu vou experimentar um pouquinho dessa pinga

calmante... que eu ando num estado de nervos...

PÉROLA — Ah! Experimenta, Norma; é uma beleza! Acalma! Eu

nem posso tomar que depois não faço mais nada.

NORMA — (ACENDE UM CIGARRO E PEDE PARA ELISA, QUE

BRINCA COM A BONECA) Vê um cinzeiro pra titia, vê.

Como ela tá moça, não, Pérola? Como ela cresceu!

VADO — Vai um amendoinzinho aí? Acabei de torrar.

NORMA — Não, Vado, obrigada. Não posso comer amendoim que

tem muito óleo...

PÉROLA — Elisa, tira esse cachorro da cozinha. Lugar de cachorro

é no quintal.

(NORMA SE ASSUSTA COM O CACHORRO)

NORMA — Tenho medo, Pérola, que ele me avance...

Page 19: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 19/121

VADO — Sai, Bolinha.

ELISA — Vem, Bolinha!

PÉROLA — Não viu um cinzeiro pra sua tia?

EMÍLIO — Todos falando ao mesmo tempo... da esquina a gente já

podia ouvir os gritos.

PÉROLA — (CANTAROLA, FRITANDO OS BIFES) Luna que te

quieeero... 

NORMA  — Chega, Vado! Chega!

VADO — O dr. Henrique diz que faz bem...

PÉROLA — Se o dr. Henrique disse... me vê mais um, benhê.

VADO — Não quer um veneninho, não, filho?

PÉROLA — Não dá aperitivo pra ele que ele fica bêbado e dá show. 

EMÍLIO — Ela morre de medo que eu volte a beber. Fui alcoólatra-

mirim. Aos treze anos já era viciado em conhaque...

(ENGOLE O APERITIVO E FICA INSTANTANEAMENTE

BÊBADO)

PÉROLA — Pronto. Já vai dar espetáculo.

(EMÍLIO, BÊBADO, AGARRA A BONECA COM QUE A

Page 20: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 20/121

IRMÃ ESTÁ BRINCANDO)

ELISA — Larga! Larga ela!

PÉROLA  — Que é que você vai fazer com a boneca da sua irmã?

 Já destruiu a Laura, destruiu a Cristina e agora quer

destruir a Kátia também?

VADO — Mas, viu, Norma...

EMÍLIO — Vou fazer um penteado nela...

VADO — Tem que usar pinga da boa...

ELISA — Não vai fazer penteado, não. Mãe!

VADO — Das engarrafadas a melhor é a Pitu...

PÉROLA — Vado, ele pegou a boneca da menina.

VADO — ...Pirassununga... (GRITA) Larga a boneca da sua irmã!

Seu palhaço!

PÉROLA — Em vez de namorar, sair com as moças, fica enfurnado

dentro de casa, me provocando...

EMÍLIO — Eu era um demônio! (AGARRA A IRMÃ E BEIJA-A NA

BOCA)

ELISA — (GRITA) Pai!

Page 21: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 21/121

 

VADO — Solta a sua irmã. Tá querendo levar uma surra?

PÉROLA — Começou! Tava demorando. Tava demorando...

EMÍLIO — Cê tá com um bafo!

PÉROLA — Não sabe beber.

EMÍLIO — Ela era a “linda” da família.

VADO — Olha, não é porque é minha filha, não, mas vocês já

viram coisa mais bonita?

ELISA — Pára, pai. Pára.

VADO — Boneca do papai!

NORMA — Ela é a cópia da sua mãe.

EMÍLIO — Já eu puxo de você, papai. Por isso que sou feio... que

raiva, viu! (CHORA)

VADO — “A beleza masculina, não é o físico que ostenta/ no

homem, o que fascina, é o caráter que apresenta.”

NORMA — Homem não tem que ser bonito; mulher, sim.

PÉROLA — Esse aí tem um ciúme da irmã!

Page 22: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 22/121

EMÍLIO — (A SI MESMO) Ela não sabe nada sobre mim, e eu não

sei nada sobre ela. Será que isso é que é ser irmão?

NORMA — Que que você está falando, Emílio? A titia não táentendendo...

VADO — (A NORMA) Mas, viu Norma, o segredo de tudo é a pinga

boa. Tem que ser de engenho, que essas engarrafadas

eles põem muito produto químico pra... (EMÍLIO AFASTA

A CADEIRA DE NORMA, DEIXANDO O PAI FALANDO

SOZINHO. A LUZ CAI NA COZINHA)

EMÍLIO — Mas nos últimos tempos a cozinha foi ficando vazia,

ninguém mais aparecia pra tomar aperitivo.

VADO — Parece até que a gente tá com lepra...

EMÍLIO — Mas quando chego para visitá-los, é aquela festa. (A

LUZ RETORNA)

PÉROLA — EMÍLIO! Ohhhh! Meu filho! (GRITA) Vado! (VADO NÃO

OUVE) Vado! Seu filho tá aqui.

VADO — Oh, seu malandrão! Lembrou da gente, hein! (ABRAÇOS

E BEIJOS. VÃO CADA UM PRUM CANTO)

EMÍLIO — Cinco minutos depois já se acostumaram e nem

prestam mais atenção. Fico vagando pela casa, feito alma

penada, esbarrando nos fantasmas do passado — que

estão por toda parte.

Page 23: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 23/121

 

VADO — Você critica muito a gente, filho. Relaxa.

EMÍLIO — É que tenho tanto medo de apertar um botão e voltarao passado. Já pensou, recomeçar tudo outra vez? (VADO

PEGA UMA LATA DE QUEROSENE)

PÉROLA  — Vado... (PREOCUPADA) Oh, meu Deus, seu pai...

EMÍLIO — Papai se aposentou; quer dizer, fica em casa, de

pijama, matando formiga.

PÉROLA — Precisa ver que susto ele me pregou ontem: quase pôs

fogo na casa. Foi tacar querosene nas formigas, quando

eu vi já tavam aquelas labaredas; eu gritei Vado! Pelo

amor de Deus, tá pegando fogo! Mas ele não ouve...

Quase que queima tudo. (VADO PEGA O JORNAL E VAISENTAR-SE COM PÉROLA PARA VER TV)

EMÍLIO — Elisa, a geladeira está vazia; os armários estão vazios.

Só tem latas de cerveja. Olha esse copo como está

engordurado. Que aconteceu?

ELISA — Ela não cozinha mais; não lava mais um prato. Diz que

ninguém dá valor... Não saem mais de casa, não recebem

visitas, nada. Vou esquentar a marmita, tá, mamãe?

(PÉROLA E VADO ENVELHECEM. A DECADÊNCIA

COMO QUE TOMA CONTA DA CASA. MUDANÇA DE

LUZ)

Page 24: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 24/121

 

NORMA — Eu vim aqui uma vez, a Lola me trouxe, que a gente

tava aqui do lado, que eu vim no Dr. Henrique, que eu

não ando boa, sabe; a Lola também não tá boa, coitada.Só sei que tocamos, tocamos, eu ainda gritei: (VADO

LIGA A TV, ALTÍSSIMA, E INSTALA-SE NO SOFÁ.

NORMA GRITA) Pérola! Vado! E eu sei que eles estavam

aí porque o carro tava na garage! Deviam estar vendo

televisão.

(DURANTE A FALA DE NORMA, EMÍLIO TEN-TA LIGAR

PARA OS PAIS. O TELEFONE TOCA, TOCA... ELES

ESTÃO DORMINDO DIANTE DA TV. PÉROLA ACORDA)

PÉROLA — Vado, atende, é o telefone.

VADO — Alô.

EMÍLIO — Oi, pai.

VADO — Oi, filho...

PÉROLA — (RESMUNGA, FAZENDO SINAL QUE NÃO VAI

ATENDER) Tanta hora pra ligar... tem que ligar bem na

hora da novela?

VADO — Sua mãe pegou num sono! Tá aqui do meu lado,

dormindo tão gostoso... Tá tudo bem aí, filho?

EMÍLIO — Tá tudo bem.

Page 25: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 25/121

 

VADO — Então um beijo, filho. (DESLIGA E ENROSCA-SE COM

PÉROLA PARA ASSISTIR TV)

EMÍLIO — ...Alô! Pai! Pai!? (REPÕE O TELEFONE NO GANCHO)

Não fazem mais nada além de passar o dia inteiro

grudados diante da TV. Assistem tudo: desenho animado,

novela das sete, novela das oito, Tela Quente, Sessão de

Gala, Corujão, tudo! Até aqueles filmes de Kung-fu. E o

som num volume altíssimo, porque papai é meio surdo...

PÉROLA — Não quer usar aparelho. Eu já falei; sua irmã já

falou...

ELISA — Papai, por que você não usa aparelho? Tem aqueles

pequenininhos que a gente nem nota.

VADO — (OFENDIDO) Não adianta; eu não quero. Não vou usar

aparelho. Cuidem da vida de vocês e me deixem em paz.

(VOLTA-SE PARA A TV E DORME)

PÉROLA — O telefone toca, ele não ouve; daí ele cisma que o

telefone tocou, vai lá e atende.

VADO — Alô! Alô!

ELISA — Papai, não tocou.

PÉROLA — Vado... Desliga.

Page 26: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 26/121

VADO — Mas eu ouvi.

(PÉROLA SUSPIRA)

PÉROLA — Quando o telefone toca ele não ouve; quando não toca

ele atende. Ele vai me deixar louca! (TORNAM A DORMIR

DIANTE DA TV)

EMÍLIO — Eles assistem televisão pra dormir. Mas se a gente

tenta desligar... (TENTA DESLIGAR A TV. PÉROLA ABRE

O OLHO)

PÉROLA — Que que cê tá fazendo?

EMÍLIO — Mas vocês não estão dormindo?

VADO — Não; nós estamos assistindo. Deixa aí.

PÉROLA — Deixa alto que seu pai não ouve. (TORNAM A DORMIR.

A TV SAI DO AR, FICA AQUELE SOM DE FORA DO AR)

EMÍLIO — E quando eles iam me visitar no Rio de Janeiro? Meu

apartamento é pequeno, eles faziam uma bagunça! Papai

lia os jornais e deixava tudo jogado em cima do sofá. Eu

tenho um sofá branco, um dia imprimiu o jornal. Mamãe

leu que não sei quem tinha...

PÉROLA — Morreu, Vado. Tá escrito aqui no sofá.

EMÍLIO — Ficava tão preocupado quando eles saíam e demoravam

Page 27: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 27/121

a chegar. Saiam pra ir pro Rio Sul, que eles adoram o Rio

Sul!, às sete horas da manhã. Falei, o shopping só abre

às dez!

VADO  — A gente dá um rolé por lá...

EMÍLIO — (NERVOSO) Diz que vão dar um “rolé”.

PÉROLA  — Vamos, Vado, a gente toma um cafezinho na rua, vê as

vitrines...

EMÍLIO — Que vitrine, que tá tudo fechado. Vocês vão ser é

assaltados, isso sim, vão ser mortos!

VADO — Que é isso, filho! Esta é a “cidade maravilhosa, cheia de

encantos mil, cantada em verso e prosa, orgulho do meu

Brasil”!

EMÍLIO — Não vem com as suas trovinhas, não. Vai, tira esse

relógio! (TIRA O RELÓGIO DO PAI ENQUANTO ESTE

RECITA SUA TROVINHA) Pelo amor de Deus, cuidado pra

atravessar a rua, olha bem dos lados...

VADO — “Ipanema, Copacabana, Méier e Leblon, paisagem tão

bacana de um tempo que era bom.”

PÉROLA — É o seu pai, né? Eu digo pra ele: Vado, tem que olhar.

Mas ele não olha.

VADO — (CONTINUANDO, INDIFERENTE) “E o Cristo Redentor,

Page 28: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 28/121

no alto do Corcovado, como santo protetor deste Rio

abençoado, lindo cartão-postal daquele tempo tão feliz...”

EMÍLIO — Aqui é um perigo!

VADO — (COMPLETANDO A TROVINHA)... “hoje, cidade mortal

envergonhando o país!”

EMÍLIO — Vocês vão ser atropelados!

VADO — Calma, filho. Cadê o meu relógio? Quer alguma coisa de

lá?

EMÍLIO — Não, não quero nada, não. Tá com o telefone aí anotado

na carteira? (VADO FINGE QUE OUVE MAS NÃO OUVE)

PÉROLA — (ALTO) Pôs o telefone anotado na carteira? (MAISALTO) O telefone aqui do Emílio!

VADO — Eu sei de cor. É 327...

EMÍLIO — Que 327...

VADO — Ué, não é 327? Eu sempre ligo 327...

PÉROLA — Que 327, Vado! Emílio, que número é aqui? Não é 2-3-

5...

EMÍLIO — 2-7-4...

Page 29: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 29/121

PÉROLA — É 3-7-4...

VADO — Não foi o que eu disse? 374...

PÉROLA — Não, você disse que era...

EMÍLIO — Chega! (ANOTA) Toma. Enfia no bolso.

PÉROLA — Não põe no bolsinho, não, Vado, que você vai tirar o

lenço e deixa cair. Põe no bolsão. Isso. Pegou a carteira?

(OLHA PARA EMÍLIO E FAZ CARA DE QUEM TEM QUE

VIGIAR O MARIDO) Seu pai é uma criança grande.

EMÍLIO — Se acontecer qualquer coisa liga pra cá, imediatamente,

hein.

PÉROLA — Oh, até parece que a gente vai pra Europa. (SAEM)

EMÍLIO — Enquanto eles não chegam eu não consigo fazer nada.

Fico andando pra lá e pra cá, ao lado do telefone,

esperando uma chamada do Instituto Médico-Legal, do...

(ELES CHEGAM, FELIZES, CHEIOS DE PACOTES)

OS DOIS — (VADO ASSOVIA) EMÍLIO, filho, u-u... chegamos!

PÉROLA — Oh, tô morta. Seu pai fez eu andai pra chuchu.

VADO — (FELIZ DA VIDA)  Peguei a baixinha aí, batemos aquele

shopping inteiro! Ha-ha! Vai querer alguma coisa, benhê?

Page 30: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 30/121

 

PÉROLA — Um camparizinho. (AO FILHO) Precisa ver,

encontramos um senhor tão educado.

EMÍLIO — E ainda faziam amizade!

PÉROLA — ...ele e a mulher, nos deu o endereço, moram no

Flamengo, né, benhê? Falou pra da próxima vez que

viermos (EMÍLIO BATE NA MADEIRA, ISOLANDO,

DISCRETAMENTE) irmos lá fazer uma visita. Precisa ver

que gente boa.

VADO — Tomamos um chops!  

PÉROLA  — Tava uma delícia aquele chops, né, Vado? Era da

Antártica ou da Brahma?

EMÍLIO — E o dia que disseram que queriam conhecer a Rocinha?

PÉROLA — A gente ouve tanto falar...

VADO — Qual o ônibus que vai até lá, na Rocinha?

EMÍLIO — E de ônibus, ainda! Eu ficava tão tenso, mas tão tenso

que as sobrancelhas chegavam a grudar. Não via a hora

deles irem embora.

(PÉROLA ARRUMA AS MALAS) Ué, já vão? Não querem

ficar mais uns dias?

Page 31: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 31/121

PÉROLA — Não podemos ficar; seu pai tem compromissos...

EMÍLIO — Quando eles finalmente iam embora, ohhhhhh! eu tava

um caco! A última vez que eu fui buscá-los, peguei amala, falei, nossa como tá pesada, que é que vocês

puseram aí dentro?

PÉROLA — É o terno do seu pai.

EMÍLIO — Mas esse terno é de quê? Só porque eu pedi pra que

viessem mais bem-vestidos, que nos últimos tempos eles

 já não estavam mais ligando pra nada...

PÉROLA — Vado... você pôs um sapato marrom e outro preto! Seu

pai tá com a cabeça... (VADO FAZ CARA DE

INDIFERENTE. ELA PROTESTA FRACAMENTE E LOGO

ESQUECE)

ELISA — Outro dia ela foi tirar o lixo, tava tão malvestida, de

short, camiseta, ela não faz mais o cabelo, as unhas...

EMÍLIO — (À MÃE) Mãe, você era tão vaidosa! (ELA OLHA PARA

ELE COMO SE DISSESSE “ISSO NÃO IMPORTA MAIS”)

ELISA — (CONT.) ...aí bateram no portão e perguntaram pra ela: a

patroa está?

PÉROLA — (RESPONDE) Não, não tem ninguém. Só tem eu.

EMÍLIO — Mas por que ela ficou assim?

Page 32: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 32/121

 

ELISA — Disse que nunca mais vai perdoar a tia Lola, nem a tia

Wanda, nem a tia Norma...

DANILO — (LENDO UM JORNAL EVANGÉLICO) Ela não consegue

esquecer, belo, só pensa nisso.

EMÍLIO — “Belo”?!

ELISA — É o Danilo que tá aqui, falando.

DANILO — Virou uma idéia fixa, “belo”.

ELISA — E arrastou o papai junto. Anda num pessimismo...

DANILO — (PEDE O TELEFONE PRA ELA) Dá aqui. (ELA DÁ ELE

FALA) Tá duro de agüentar o velho, viu, belo. Tem horasque... (DEVOLVE O TELEFONE E VOLTA A LER O

 JORNAL)

ELISA — Só fala em desgraça, reclama de tudo, nada pra ele dá

certo...

EMÍLIO — Ela continua bebendo?

DANILO — Sempre com o copinho na mão, viu, belo.

ELISA — O médico falou que ela tem que parar com esses

aperitivos.

Page 33: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 33/121

DANILO — (PEGA O TELEFONE) É o dia todo! É o dia todo com o

copo na mão. E de noite ela ainda toma uísque, antes de

dormir.

ELISA — Disse que o dr. Henrique mandou, que é bom pra

pressão... e ela é diabética, né? Olha, você tá aí longe,

mas o que estamos agüentando, eu e o Danilo...

DANILO — (PEGA O TELEFONE E DIZ, GRAVEMENTE) Tô falando

sério agora, belo, estamos esperando um desenlace a

qualquer momento. É bom você ficar preparado pra vir

pra cá. Só não sei quem vai primeiro, se é ele ou ela. Ou

se vão os dois juntos. (ELISA OLHA PARA O MARIDO COM

CARA DE CENSURA LOGO ABRANDADA)

(A LUZ INDICA UMA MUDANÇA NO TEMPO E PÉROLA

VOLTA A FRITAR OS BIFES, REJUVENESCIDA)

PÉROLA — (CANTA) “Ao sair do avião...”

EMÍLIO — (CORRIGE) Que “sair do avião”, mãe. É “açaí guardiã”...

açaí é uma fruta.

PÉROLA  — Que fruta o quê. Quer deixar eu cantar do meu jeito?

(CANTA) “Ao sair do avião... às três da manhã...”

NORMA — O pessoal parou de vir aqui tomar aperitivo porque a

sua mãe briga com todo mundo; brigou com a Lola,

brigou com a Wanda, brigou com a Irene, brigou com a...

Page 34: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 34/121

PÉROLA — Não gosto de gente falsa, que na frente é uma coisa,

depois por trás...

NORMA — Só não briga comigo porque eu não ligo, entra por umouvido, sai pelo outro.

PÉROLA — Vocês têm um ciúme de mim, desde pequena!

NORMA — A Pérola se sente injustiçada... O que foi que nós te

fizemos? Vai, desabafa!

PÉROLA — Vocês pisavam em cima de mim, judiavam de mim

porque eu era a caçula. Não saíam lá do Grêmio, iam no

baile com a mamãe; e a mamãe fazia eu ficar em casa,

cuidando do papai que tava doente, coitado, que quando

ele morreu eu tive que sair correndo pra chamar elas lá

no baile que elas tavam tudo lá pulando carnaval.(CHORA) Papai morreu sozinho, nos meus braços.

 Também não via hora, quando casei que fomos morar em

 Tupã, só eu e o Vado... foram os melhores anos da minha

vida. Por mim eu teria ficado em Tupã, mas o Vado quis

voltar pra cá... porque não queria ficar longe dos

irmãozinhos dele. Por que o teu pai não pensa na família

dele; só pensa na dos outros...

VADO — Que é que eu posso fazer? Puxei do seu avô: sou um

idealista.

PÉROLA — “Idealista”, o que é que os outros te deram?

Uma banana, que hoje estão tudo aí, ricos, milionários,

Page 35: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 35/121

passam pela gente e nem cumprimentam.

(EMÍLIO TENTA ACALMAR A MÃE)

(NORMA PEDE LICENÇA E SAI)

VADO — (EXALTADO, DISPARA A FALAR) Seu pai podia ter ficado

rico, milionário, porque o que recebi de proposta pra...

mas eu nunca me vendi! Que que cê quer que eu faça?

Fui educado assim, pelo seu avô. Seu avô tinha caráter,

tinha fibra.

PÉROLA — Se não fosse eu segurar um pouquinho hoje não

teríamos nada.

VADO — Seu avô nunca se curvou pra homem nenhum. Ele dizia:

“Só me curvo diante de Deus e da minha mãe!”

EMÍLIO — Esse “diante de Deus” deve ser criação póstuma, né,pai, porque... o vovô não era comunista?

VADO — Seu avô não era comunista, ele era...

PÉROLA — Comunista!!! Seu pai era comunista!!!

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Tenho um tio chamado Lenin. Que eles

chamam de “Lenin”.

VADO — Isso é coisa dos fascistas aqui de Bauru, que a italianada

aqui era tudo fascista, marchavam aí na rua Batista

cantando, la Giovinezza... 

Page 36: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 36/121

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Era o hino dos fascistas.

VADO — E o papai tinha um retrato do Matteotti...

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Deputado socialista assassinado pelo

Mussolini.

VADO — (IRRITADO COM AS INTERVENÇÕES) Posso continuar?

Mas que coisa, eu nunca posso falar...

PÉROLA — (AO FILHO) Deixa ele contar senão... 42

EMÍLIO — É que eu já sei essa história de cor.

(PÉROLA SUSPIRA)

PÉROLA — E eu, que ouço isso desde que me casei!

VADO — Mas viu, filho, o retrato do Matteotti ficava pendurado na

parede da sala... e ele, então, deixava a janela aberta que

era pra provocar os camisas-pretas, que queriam

empurrar o Getúlio pra apoiar a Alemanha na guerra. Ih,

os fascistas ficavam!... eles passavam cantando Faccetta

nera, bell ’ Abissina, aspetta e spera che già l ’ ora

s ’ avvicina... Paravam lá na frente da oficina e gritavam:

Viva l’Italia, il Duce e Giovinezza! Daí tinha que segurar o

seu avô, que ele queria ir lá fora, tomar satisfação,

passava a mão numa chave-inglesa... Aí tinha que pular

um no pescoço, outro segurava a perna, sua avó fechava

a porta da oficina, senão não tinha jeito. Tinha que

prender ele lá dentro; que seu avô era alto, forte,

Page 37: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 37/121

musculoso, tinha um queixo largo, as feições viris...

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Um operário visto pelo realismo

socialista!

VADO — Ih, o que eles infernizaram a vida do papai; eles queriam

dar um jeito de mandar o papai de volta pra Itália, e se

ele fosse ele seria fuzilado. Armavam todo tipo de

armadilha pra comprometer o papai. A polícia do Getúlio

vivia prendendo ele; ele, então, descia a rua Batista a pé,

até a cadeia, cumprimentando todo mundo, de chapéu,

cabeça erguida, levando o colchão e a escova de dentes.

Mas não arredava pé. Um dia o cônsul da Itália veio aqui

pra Bauru...

EMÍLIO — (BAIXO, PRA MÃE) Essa história já não foi mais curta,

não?

PÉROLA — Que que eu posso fazer? Ele vai aumentando,

aumentando...

VADO — ...aí todo mundo só queria saber qual seria a reação do

papai. Foram lá falar com ele pra ele receber o cônsul,

mas ele disse que não, era irredutível, com fascista ele

não queria nada. Daí o cônsul veio, teve uma recepção lá

na Sociedade Italiana, a colônia tava toda lá, menos o

papai. Papai não punha os pés na Sociedade Italiana, que

era tudo fascista. No dia seguinte, depois da festa, o

cônsul apareceu lá na loja. Estendeu a mão pra

cumprimentar o papai e o papai nada, e o cônsul lá, com

Page 38: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 38/121

a mão estendida. E papai nada. E o cônsul lá...

PÉROLA — Ai, Vado, isso já tá uma angústia! Daqui a pouco vou

lá eu, cumprimentar esse cônsul.

VADO — E todo mundo lá querendo pôr pano quente, a turma do

deixa-disso, mas papai disse que não, que de um esbirro

do Mussolini ele não apertava a mão. E não teve jeito.

Que o teu avô quando punha uma coisa na cabeça...

EMÍLIO — Falta muito ainda?

PÉROLA — Vai logo, Vado; termina logo essa história que o

menino tem que voltar pro Rio.

VADO — Daí, ele chamou o papai num canto, ele era um

diplomata, né, um homem inteligente, e disse: “E de umitaliano, simplesmente, você aperta a mão?” — disse isso

pro papai: “De um italiano você aperta a mão?” Aí o papai

disse: “Para um italiano eu estendo a minha mão.” E

apertou a mão do cônsul! (MÃE E FILHO SUSPIRAM DE

ALÍVIO) Mas só assim, viu? Só assim. Esse era o seu avô,

meu filho. Mire-se nele. Orgulhe-se dele. Ele nunca teve

medo de falar a verdade, filho, e nessa terra os homens

que falam a verdade, ó, não têm valor. Não têm valor!

PÉROLA — (EMPURRANDO-O PARA O BAR) Vai, Vado, me vê um

campari.

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Quando meus pais voltaram de Tupã

Page 39: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 39/121

construíram esta casa, no centro da cidade.

VADO — Tínhamos um terreninho; só quatro metros e meio de

frente. (NORMA ENTRA)

NORMA — Sem frente desvaloriza muito; que que adianta ter

fundo?

PÉROLA — O carro entra assim, ó, raspando.

VADO — É uma ginástica.

PÉROLA — Eu tenho que descer do carro, abrir o portão, entrar

pela porta da frente e correr para abrir a porta da saleta,

que dá pra garage, que é pro Vado poder abrir a porta do

carro e sair. Senão ele fica preso lá dentro.

VADO — Outro dia ela me deixou preso na garage. Eu fiquei

buzinando, buzinando... ela me esqueceu lá dentro; fiquei

uma hora dentro do carro.

PÉROLA — Esqueci nada! Eu tava apertada, tava com a bexiga

estourando... tive que correr pro banheiro.

VADO — Uma hora! Uma hora!

NORMA — Olha que chique, o carro deixa vocês dentro de casa!

PÉROLA  — E quando chove? Eu fico en-so-pa-da!!!

Page 40: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 40/121

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Com a morte do meu avô, houve a

divisão, e mamãe preferiu ficar com os fundos, abrindo

mão do direito às duas casinhas aqui do lado, que agora

são das minhas tias.

PÉROLA — Vou comprar essas duas casinhas, pôr elas abaixo e

ficar com... (SONHADORA) quatorze metros de frente! Já

pensou, que fachada!

EMÍLIO — Desde que me entendo por gente que ouço ela dizer que

vai comprar essas duas casinhas.

PÉROLA — Dá até um pouquinho mais; quase quinze, né, Vado?

 Já tô com a planta pronta. Precisa ver que maravilha! Só

assim vou poder ter uma garage decente; Quero deixar

pra vocês, meus filhos; esta casa será a minha herança!

 Também é a única coisa que eu vou deixar; que dinheiroeu não vou deixar. Vão trabalhar, eu trabalhei...

NORMA — (SUSPIRA) É, papai foi dono do quarteirão todo; mas foi

vendendo, vendendo, olha aí o que sobrou, só essas duas

casinhas.

PÉROLA — Tô até oferecendo muito mais do que elas valem. Por

mim eu já teria comprado. O Vado, uma vez, fez uma

oferta, mas a Lola disse que não, que não era direito, que

tem que esperar a mamãe morrer, que é usufruto dela;

imagine se a mamãe for viver com essa porcaria de

aluguel que a inquilina nem paga, tá devendo três

meses... e aqui em casa ela não gasta um centavo. (A

Page 41: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 41/121

VELHA GEME. PÉROLA GRITA) Pára

de gemer, mamãe, ela já vai.

NORMA — Já vou, mamãe.

PÉROLA — O dr. Henrique já esteve aqui de manhã cedinho, tirou

a pressão dela...

VADO — Ih, quando ela vê o dr. Henrique a velha fica que fica

doida. Toda hora ela me pede: “Vai chamar o dr.

Henrique, Vado, que eu tô morrendo, Vado... depressa

que eu não passo de hoje... tô male, molto male!” Fiteira

que só ela, viu. Daí ele vem: “Que tá morrendo o quê,

dona Chiara... a senhora ainda vai enterrar todos nós...”

PÉROLA — ...disse que ela tá ótima pra idade dela, que quisera ele

ter um coração como o dela.

VADO — (A VELHA GEME. VADO GRITA) Já vou chamar o seu

namorado...

PÉROLA — Vado, não faz isso...

VADO — Você tem de quem puxar, meu filho: sua avó faz um

teatro!

NORMA  — Oh, que coração que ele tem — o dr. Henrique é um

santo!

PÉROLA — Tá procurando terreno pra construir uma clínica...

Page 42: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 42/121

mas ele quer aqui no centro. Aqui vai ser difícil

encontrar.

(FALAM SIMULTANEAMENTE UM NÃO OUVINDO O QUEO OUTRO ESTÁ DIZENDO)

PÉROLA — Acha que ele vai encontrar, Vado? Aqui no Centro?  

VADO — Aqui no Centro? De jeito nenhum. 

NORMA — Começou a me nascer uma pipoquinha, fui lá, ele na

mesma hora me atendeu, fez eu passar... Não quis cobrar.

Eu disse: dr. Henrique, quanto é a consulta? “Ah, deixa,

 pra lá, depois a gente acerta...”

PÉROLA  — Ih, eu também, quando vou lá ele faz uma festa! O Vado

mandou uma garrafa de pinga pra ele. Nossa, ele ficou tãocontente... 

VADO  — Dei daquela especial, de fruta-de-conde. Ih, ele adorou!

Quando for época vou fazer uma de moranguinho pra ele. 

PÉROLA — Fui lá, né, que a minha vesícula tá me atacando de

novo... 

NORMA — A Lola tem vesícula preguiçosa; como a sua. 

PÉROLA — Sabe o que ele mandou eu tomar? Cola-Cola! Diz que

Cola-Cola dissolve até prego. 

Page 43: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 43/121

NORMA — Dissolve as gorduras... 

PÉROLA — Imagine, se fosse outro médico mandava operar, já

queria logo enfiar a faça; que eles adoram operar vesícula. 

(A VELHA GEME)

NORMA — Já tô indo, mamãe. Volta pra cama que eu já tô indo.

PÉROLA — A Pautilla esteve aqui, ontem, visitando ela...

NORMA — A Pautilla esteve aqui?

PÉROLA — Tá com o nariz cada vez mais empinado — ô mulher

orgulhosa! Acho que aquela mulher nunca olhou pra

baixo.

(FALAM SIMULTANEAMENTE SOBRE SUAS

RESPECTIVAS ENXAQUECAS)

NORMA — Então ela melhorou, que ela tava que não podia nem

andar, que a enxaqueca dela quando ataca é igual a

minha, tem até que mandar a empregada ficar na rua

 pedindo pra não deixar passar carro que ela não pode

ouvir barulho nenhum. É uma coisa horrível!  

PÉROLA — E a minha, então? Outro dia me deu uma crise, pensei

até em jogar a cabeça fora; e pra piorar ainda não me

aparece aquele homem que compra garrafas e começa a

gritar no portão: garrafeeeeiro! Quase joguei uma garrafa

Page 44: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 44/121

na cabeça dele. 

PÉROLA  — Ela agora cismou de chamar a Pautilla de “Pastilha”.

NORMA — Quem chama de Pastilha?!

PÉROLA — A mamãe! Eu digo, mamãe, pelo amor de Deus, não é

Pastilha; é Pa-u-ti-lla. A Missisa, filha da Ireni, ela não

chama de Mitida?  

NORMA — Aquela é metida, mesmo.

PÉROLA — Eu digo: mamãe, não é Mitida, é Mis-si-sa. Sabe o que

ela diz? “Ah, Mitida, Pastilha, é tudo a mesma coisa...

também que nome ela se foi arranjar...”

NORMA — Eu vou lá ver a mamãe, que ainda tenho que passar nolaboratório pra pegar o exame de urina...

PÉROLA — A Pautilla ficou impressionada com o tamanho da

casa. Falou: nossa, mas que mansão que você tem! E

quando ela viu o quintal...

EMÍLIO — A parte mais importante da casa é o quintal, onde foi

construída a piscina, origem de toda a tragédia que veio a

seguir.

NORMA — A piscina de Pérola! (ILUMINA-SE A PISCINA, QUE

EXERCE SOBRE TODOS UMA ESPÉCIE DE

ENCANTAMENTO. NORMA AFASTA-SE, ENTRANDO

Page 45: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 45/121

PARA VER A MÃE)

EMÍLIO — Tudo em casa girava em torno dela. Hoje está

completamente abandonada; ninguém mais cuida dela.

(EMÍLIO E O PAI PASSEIAM PELO QUINTAL

SEMIDESTRUÍDO. HÁ MUITAS FOLHAS PELO CHÃO.

VADO CATA ALGUMAS FOLHAS. TENTA REPARAR UMA

MESINHA COM CADEIRAS E GUARDA-SOL RASGADO;

HÁ TAMBÉM UMA ESPREGUIÇADEIRA, UM COLCHÃO

INFLÁVEL)

VADO — Furado... (DESANIMADO) Precisa pôr um pouquinho de

cola... (HÁ UM BANCO-BALANÇO COM UMA DAS

CORRENTES PARTIDAS. O CHÃO DE LAJOTAS ESTÁ

CORROÍDO PELO DESCUIDO E PELA EROSÃO) Olha aí,

tudo quebrado! Cheia de folhas... as formigas estãodando cabo de tudo!

EMÍLIO — Aqui tá solto, pai.

VADO — O mato crescendo, a piscina cheia de limo... quem é que

vai limpar tudo isso?

(A CENA RECOBRA A VIDA)

PÉROLA — Aqui não pára empregada. A última que apareceu,

diziam que era ótima, mas, quando ela viu a piscina, saiu

correndo.

Page 46: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 46/121

EMÍLIO — Mas por que será? Será que elas pensam que vão ter

que fazer o serviço a nado?

PÉROLA — Não querem é trabalhar! Pensam que é uma casinhapequena, que não vão ter que fazer nada, mas quando

vêem que é essa mansão, fogem.

(ELISA ARRANHA UMA MÚSICA DO ROBERTO CARLOS

AO VIOLÃO, ERRANDO SEMPRE NO MESMO PONTO)

PÉROLA  — Elisa, não tem qualquer coisa errada ai, não? Ih, eu

tenho um ouvido! Lembra quando você estudava piano?

Eu ficava aqui na cozinha só ouvindo...

(O TELEFONE TOCA. ELISA JOGA O VIOLÃO, DÁ UM

PULO E GRITA)

ELISA — Deixa que eu atendo. Eu ateeeeendo!!!

PÉROLA  — Nossa! Deixa ela atender.

ELISA — (ATENDE COM VOZ DOCE E SUAVE) Alô... oi... não,

nada... tô estudando violão...

(NORMA SURGE COM UMA COMADRE)

NORMA — Pérola, tem que esvaziar a comadre da mamãe; não

pode deixar cheia desse jeito.

PÉROLA — Oh, meu Deus, eu sou uma só!

Page 47: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 47/121

 

NORMA — Tá sem empregada de novo?

PÉROLA — Aqui não pára... Quando elas vêem a piscina... ficamdois, três dias e não aparecem mais.

NORMA — Tem que esconder essa piscina, Pérola, senão você

nunca mais vai ter empregada.

PÉROLA — Vado, você não tá pondo muito cloro nessa piscina,

não? (SAI PARA DESPEJAR A COMADRE)

VADO — (LIMPANDO A PISCINA, DIZ AO FILHO) Uso sulfato de

alumínio de noite. De manhã, todas as impurezas estão

assentadas no fundo da piscina.

NORMA — A mamãe disse que a roupa de cama dela tá suja...

VADO — (CONT.) Todo final de semana, ao anoitecer, eu jogo

sulfato de alumínio, mexo bem a água, né? No dia

seguinte vou encontrar a sujeira toda lá no fundo.

(PASSA A FALAR COM NORMA) Se quiser que a água

fique mais bonita, depois de adicionar o cloro,

dependendo do tamanho da piscina, pode pôr barrilha...

um pozinho branco... a barrilha limpa totalmente a

água... (NORMA COMEÇA A CHORAR)

EMÍLIO — Tia Norma...

NORMA — Não é nada, não; quando me ataca a menopausa, eu

Page 48: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 48/121

choro à toa...

PÉROLA  — (ENTRANDO) Pra mim me dá um calor! (ABRE UM

LEQUE E ABANA-SE) O dr. Henrique diz pra evitaraborrecimento, pra me distrair... Mas como é que eu

posso me distrair com essa piscina?

(BARULHO DE ALGO CAINDO NA ÁGUA)

PÉROLA  — Vado! Outro abacate na piscina!

(VADO NÃO ESCUTA. ELA GRITA ESCANDINDO BEM AS

SÍLABAS PRA ELE ENTENDER)

Va-do!! Outro a-ba-ca-te.

VADO — Outro? Caiu? Oh, meu Deus... hoje já é o segundo. O

segundo!

PÉROLA — Tira lá depressa antes que apodreça. Outro dia caiu

um, a gente não viu, apodreceu dentro d’água, fez uma

sujeira... teve que trocar a água toda.

ELISA — (TAPA O BOCAL COM A MÃO E BERRA MAL-

EDUCADAMENTE) Droga! Querem falar baixo, por favor!

EMÍLIO — Nossa! Ela ainda tá no telefone?

ELISA — (TORNA A FALAR DOCEMENTE) Não, benzinho, pode

falar... fala...

PÉROLA — (PEGANDO A BONECA QUE ELISA DEIXOU NO

Page 49: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 49/121

CHÃO) Olha a Kátia aqui no chão; depois a gente pisa na

Kátia...

NORMA — (BAIXO, A PÉROLA) Tá falando com o namorado?

PÉROLA — (LEVA A BONECA DA FILHA PRO QUARTO) O filho da

Isolda, lá dos Rino, casada com o Arduíno. (NORMA FAZ

CARA DE PREOCUPADA, MAS SORRI PARA ELISA)

NORMA — Tomara que não puxe o pai, que é um sem-vergonha.

(TEM NOVA CRISE DE CHORO POR CAUSA DA

MENOPAUSA) Coitada da Isolda, depois de quarenta

anos de casada descobrir que o marido tinha outra

família: mulher, sogra, filhos...

PÉROLA — A Isolda não quer ver ele nem pintado.

NORMA — Cafajeste! O que me espanta é como é que ele

conseguiu esconder que tinha outra mulher e três filhos

durante todos esses anos, numa cidade tão pequena

como Bauru. Mas sabe que eu desconfiava? Esse homem

nunca me enganou; com aquela cara de conquistador

barato...

(DANILO ASSOVIA NÃO QUERO VER VOCÊ TRISTE

ASSIM. ELISA FICA DESCONTROLADA)

ELISA — “Querido Diário, hoje acordei pensando nele... você sabe

quem é ele, não é? Eu já te contei. Seu nome é Danilo.

Danilo Rino. Ele tem um carro envenenado e passa todas

Page 50: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 50/121

as tardes aqui pela porta da minha casa, cantando

pneu... oh, ele é lindo! Lindo! Danilo! Danilo!”

EMÍLIO — Danilo foi seu primeiro namorado. Foi amor à primeiravista. Ele estava passando pela esquina a 120 por hora,

cantando pneu, ela estava no portão, se olharam e... se

apaixonaram como numa canção do Roberto.

DANILO — “Se você pensa que vai fazer de mim, o que faz com

todo mundo que te ama...

ELISA — “Eu sei que eu tenho um jeito tão estúpido de ser, e de

dizer coisas que podem magoar e ofender, mas...

DANILO — ...acho bom saber que pra ficar comigo, vai ter que

mudar...

ELISA — ...cada um tem o seu jeito, todo próprio, de amar e de se

defender...

DANILO — ...daqui pra frente tudo vai ser diferente, você tem que

aprender a ser gente,

ELISA — ...você me acusa e só me preocupa,

DANILO — ...seu orgulho não vale nada...

ELISA — ...agrava mais e mais a minha culpa...

DANILO — ...nada ...nada!”

Page 51: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 51/121

 

ELISA — (CHORA) “...eu faço e desfaço contrafeita, o meu defeito é

te amar demais!...”

EMÍLIO — Mamãe tentou impedir.

PÉROLA — Elisa, tanto estudante em Bauru, tanto moço bom

fazendo Direito, Odontologia, Medicina... você tem que

arrumar essa porcaria!

DANILO — “Cartas já não adiantam mais, quero ouvir a tua voz,

vou telefonar dizendo que eu estou quase morrendo, de

saudade de você...

ELISA — ...eu te amo...

DANILO — ...eu te amo...

OS DOIS — ...eu te amo...

PÉROLA — (GRITA) Elisa, saia já desse portão! Você está

terminantemente proibida de ver esse rapaz! (ELISA FICA

DESESPERADA. CHORA)

ELISA — (AO DIÁRIO) Querido Diário, meus pais dizem que ele

não presta, que eu preciso estudar, entrar pruma

faculdade, e que não devo me amarrar num rapaz sem

futuro... mas se eu não puder me casar com ele prefiro

morrer! Morrer! (ENGOLE UNS COMPRIMIDOS)

Page 52: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 52/121

EMÍLIO — Elisa tentou suicidar-se tomando uma dose cavalar de

Melhoral.

(ELISA CAMBALEIA, MEIO IDIOTIZADA)

PÉROLA — (GRITA) Elisa!!!

VADO — Minha filha!!!

EMÍLIO — Meus pais não tiveram outro remédio senão consentir

no casamento.

(AO SOM DE OS SEUS BOTÕES, DE ROBERTO E

ERASMO, ELISA E DANILO TORNAM-SE MARIDO E

MULHER. VADO CELEBRA O CASAMENTO RECITANDO

SUAS TROVINHAS)

VADO — “Que Deus o seu lar ilumine/ e lhes dê boa proteção/ e

que, no ato sublime/ una os dois num só coração.” (O

CASAL SE ATRACA NUM TREMENDO BEIJO. VADO

IMEDIATAMENTE EMENDA COM OUTRA) “O primeiro

beijo é momento de grande mudez sensual/ quatro lábios

em movimento/ expressam um amor total.” (DANILO

CARREGA ELISA NOS BRAÇOS. VADO VAI ATRÁS,

RECITANDO) “Casar é muito bom/ quando o par nele se

afina... se não acertam o tom, tudo se desafina...”

(PÉROLA O DETÉM. O CASAL ENTRA NO QUARTO. DO

QUARTO OUVEM-SE RISADAS, GRITOS E GEMIDOS. A

FAMÍLIA TENTA SE COMPORTAR COM NATURALIDADE)

Page 53: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 53/121

VADO — Esse cara hipnotizou ela.

NORMA — Olha aí o Vado com ciúmes.

VADO — Com a gente, xinga, grita, esperneia, parece uma gata-

do-mato; com ele se derrete toda...

(GRITOS VINDOS DO QUARTO)

VADO — Não gosto quando ele grita assim com ela.

PÉROLA — Deixa, Vado; não implica.

VADO — Ela tá com medo dele... Eu vou até lá.

PÉROLA — (DETENDO-O) Vado, não!!!

(ELISA SURGE NA PORTA ENGATINHANDO DE BABY- 

DOLL. ELES OLHAM HORRORIZADOS MAS FINGEM

QUE NÃO VÊEM. VADO ABRE O JORNAL. PÉROLA

ESCONDE-SE ATRÁS DA GELADEIRA. NORMA FINGE

QUE BORDA.. ELISA VAI ENGATINHANDO ATÉ A

GELADEIRA. ABRE-A E REFRESCA-SE. NISSO SURGE

DANILO, NA PORTA, DE CUECA. MAIS UM CHOQUE

PARA A FAMÍLIA, QUE CONTINUA FINGINDO QUE NÃO

VÊ. DANILO VAI PÉ ANTE PÉ, DE MANSINHO, ATÉ

ELISA E AGARRA-A POR TRÁS. ELA GRITA E DERRUBA-

O NO CHÃO. CORRE PARA SE PROTEGER ATRÁS DA

CADEIRA DE NORMA, USANDO-A COMO ESCUDO.

NORMA GRITA.)

Page 54: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 54/121

 

NORMA — Pérola!... Pérola!!

PÉROLA — (GRITA) Parem. Parem com isso. Sua tia temlabirintite!!!

(DANILO JOGA-SE NO SOFÁ E ELISA COMEÇA A VESTI-

LO)

PÉROLA — (PREOCUPADA) Elisa está virando uma gueixa!

NORMA — A gueixa e o samurai.

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Mamãe chamava-a de Suzuki, a mulher

 japonesa ideal.

PÉROLA — De antigamente! Porque hoje, no Japão, não tem maismulher assim, não.

VADO — Que gueixa, o quê! Ele tá fazendo ela de boba, isso sim...

(ELISA RI)

EMÍLIO — Olha só a risadinha dela, de gueixa, olha: Suzuki!

Suzuki!

ELISA — (AO IRMÃO) Não enche!!

VADO — (HORRORIZADO) Onde foi parar a minha bonequinha!?

NORMA — Tá ficando até corcunda...

Page 55: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 55/121

 

EMÍLIO — Cinco anos de casada e já está uma velha.

NORMA — Pior que estão dizendo que ele tá pulando a cerca.Bem, eu ouvi falar, viu... que ele tem uma outra lá pelos

lados da caixa d’água.

PÉROLA — (NERVOSA) Quem tem outra lá na caixa d’água?

(NORMA OLHA PARA EMÍLIO. PÉROLA ADVERTE) Já

pensou se o Vado ouve isso?...

VADO — Alguém quer água aí? A Norma quer água?

PÉROLA — Não, Vado, ninguém quer água não. Volta pra lá.

NORMA — Tô repetindo o que me contaram.

EMÍLIO — Por que eles não se separam?

PÉROLA — (QUASE PULA NO PESCOÇO DELE, MAS EM

SURDINA) Imagine! Não diz besteiras! Não vem com as

suas idéias, não. Que mania que você tem de querer ser

diferente. Quer deixar nós aqui viver do nosso jeito?

(APÓS VESTI-LO COMPLETAMENTE E ENTREGAR-LHE

UMA BÍBLIA, ELISA AMARRA O SAPATO DO MARIDO E

OUVE O QUE ELE TEM A LHE DIZER)

DANILO — (LÊ TRECHO DA BÍBLIA) “A esposa deve submissão a

seu marido, chefe natural da família, o que porém não

Page 56: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 56/121

significa inferioridade. São Paulo comparou as relações

entre a esposa e o marido com as da Igreja com Cristo.”

 Tá aqui, ó, na Bíblia. Página 1.104.

ELISA — Amém, amor!

EMÍLIO — (AO PÚBLICO) Elisa tornou-se evangélica por causa do

marido. Ele não deu certo em profissão alguma.

PÉROLA — O Danilo já tentou de tudo, mas não tem sorte. O

Vado arrumou emprego pra ele no SESC...

VADO — Arrumei pra ele lá no SESC...

PÉROLA — ...tava indo bem, de repente não sei o que houve, saiu.

VADO  — Saiu, não sei o que houve.

PÉROLA  — Depois na Prefeitura, era cargo de confiança, mudou o

prefeito, tirou todo mundo; agora tá com representação

de...

VADO — De quê?

PÉROLA — Também não sei do quê. Mas tá aí metido nessa

igreja!...

VADO — Mas dinheiro que é bom, neca!

EMÍLIO — Não se preocupe, ele nasceu pra ser pastor! Vai ficar

Page 57: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 57/121

rico.

VADO — Deus te ouça.

EMÍLIO — Diz que dar dinheiro pro pastor é como emprestar a

Deus; que é um investimento garantido.

PÉROLA — Cobram dez por cento do que você ganha!

NORMA — Eu tive uma empregada que não agüentou, me

perguntou: dona Norma, a senhora não conhece uma

igreja mais barata? A minha tá pela hora da morte.

VADO — (RESMUNGA) Dinheiro que é bom, neca! Neca!

PÉROLA — (BAIXO) Calma, Vado, ele ainda não é pastor.

EMÍLIO — Diz que tá esperando um sinal divino.

DANILO — (SEM TIRAR OS OLHOS DA BÍBLIA) Não depende de

mim. Sou apenas um instrumento. Se Jesus me falar ao

coração e me chamar, eu irei. (ELISA SURGE,   JÁ

 TRANSFORMADA EM EVANGÉLICA. OLHA PARA O

MARIDO E SORRI)

VADO — Parece até papo de político; político é que diz: “Se o

partido me convocar, eu me sacrifico”...

EMÍLIO — Não há dúvida de que Jesus vai chamá-lo. Jesus

precisa dele. Deve estar só esperando o melhor momento

Page 58: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 58/121

de oficializar a convocação.

(DANILO APROXIMA-SE DELES)

DANILO — Quando Moisés disse ao Senhor que muitos não

acreditariam nele, o que foi que o Senhor lhe perguntou?

VADO — O que foi, hein, Emílio?

EMÍLIO — Sei lá. O que foi?

DANILO — (PEGA UMA VASSOURA) “Que é isso que tens na

mão?” Moisés respondeu-Lhe: “Uma vara.”

PÉROLA  — Vara nada, que é minha vassoura nova. Que é que

você vai fazer com ela?

DANILO — O Senhor disse: “Lança-a na terra.” Ele lançou (LANÇA

A VASSOURA AO CHÃO) e ela virou uma cobra!!!

ELISA — (EMOCIONADA) Amém! (OLHA EMOCIONADA PARA A

VASSOURA)

DANILO — Amém!

EMÍLIO — (IRÔNICO) Amém!

PÉROLA — Amém. Agora tira essa “cobra” aqui do meio da sala,

que não é bom deixar “cobra” atravessada no meio da

sala.

Page 59: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 59/121

 

NORMA — É, não é bom não, tira. (ELISA PEGA A VASSOURA

COM CERTO RECEIO, E GUARDA-A. DANILO SAI.

ANTES QUE VADO POSSA ESCAPAR, ELISA O SEGURAE COMEÇA A LER A BÍBLIA PARA ELE)

PÉROLA — Não sei a quem essa menina puxou. Nós somos

católicos, mas eu nunca fui de ficar agarrada em saia de

padre.

EMÍLIO — Se ela tivesse se tornado Hare-Krishna eu até

entenderia; mas crente...

PÉROLA — Não gosto de fanatismo. Eu sou católica, ué. Cada um

tem a sua religião. Mas eles acham que a deles é que é

certa.

EMÍLIO — Agora, tão com uma mania de chamar um ao outro

de...

DANILO — “Mãezinha!”

ELISA — (VOZ SUAVE E DOCE) Tô aqui, “paizinho”.

PÉROLA  — Hum, que antipatia.

DANILO — “Mãezinha”, viu o que a senhora fez no banheiro?

ELISA — Que foi, “paizinho”?

Page 60: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 60/121

DANILO — Deixou o gás aberto, “mãezinha”. Tá querendo matar

todo mundo? Tá? Tá querendo explodir a casa?

ELISA  — Desculpa, “paizinho”.

VADO  — Que exagero, Danilo...

DANILO — Precisa dar um jeito nessa cabecinha. (DÁ-LHE UM

BEIJO NA TESTA. DANILO FALA NORMALMENTE ALTO,

PARA TODOS OUVIREM. MAS COM VADO ELE

CAPRICHA NA INTENÇÃO, PORQUE SABE QUE VADO É

SURDO) E você também, Vado. Deixou o filtro ligado a

noite toda, hein. (VADO NÃO ENTENDE. FAZ CARA DE

“DEIXEI O QUÊ?”)

PÉROLA — Oh, meu Deus! Vado!

NORMA — Que foi, Pérola?

PÉROLA — O Vado deixou o filtro da piscina ligado a noite toda!

Vado, você vai ver a conta de luz esse mês!

VADO — Não sei o que tá acontecendo comigo... ando com a

cabeça...

DANILO — Isso é cachaça, viu, Vado. E você também, viu,

sogrinha, larga desse copinho na mão que eu tô de olho,

ó, tô de olho.

PÉROLA — Vá-vá, só porque você não bebe... Sabe o que é isso

Page 61: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 61/121

aqui? A-pe-ri-ti-vo!!!

VADO — (ARRASADO) Que cachaça o quê. Tô precisando é de um

saravá. (ELISA DÁ UM GRITO: “PAPAI!!!”) Tudo que eufaço dá errado.

DANILO — (HORRORIZADO) Saravá nada, Vado!!! “Mãezinha”, me

vê a Bíblia. (ELA LHE PASSA A BÍBLIA) Olha aqui, eu vou

abrir em qualquer lugar. Vamos ver o que é que Jesus vai

nos dizer. (ABRE E LÊ) “Vós sois o filho da promessa.

Aquele que crer em mim será salvo!” Amém.

ELISA — Amém.

NORMA — Amém.

EMÍLIO — (IRÔNICO) Amém.

PÉROLA — Amém. Fala amém, Vado. (GRITA) Vado!

VADO  — Que é?

PÉROLA — Fala amém.

VADO — Amém, pronto.

(DANILO VOLTA-SE PARA PÉROLA. ELA PENSA QUE

ELE VAI LER A BÍBLIA PARA ELA)

PÉROLA — Eu não posso parar pra rezar senão vocês não comem.

Page 62: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 62/121

(CANTAROLA, PROVOCATIVA) “Quanto riso, ohhhh,

quanta alegriiia... mais de mil palhaços no salããão...”

(ELES ENTÃO DIRIGEM-SE PARA VADO, QUE MAIS

UMA VEZ NÃO CONSEGUE ESCAPAR)

DANILO — (FALANDO SEMPRE ALTO) Por que você não bate um

papo com o pastor Elias?

VADO — Papo com quem?

ELISA — Vai, papai, o pastor Elias é tão bom, ajuda tanta gente...

precisa ver.

VADO — (PEDINDO SOCORRO) Pérola, o pastor Elias...

PÉROLA — Cismaram, agora, que querem levar o Vado para falar

lá com um pastor japonês...

NORMA — Falar em japonês, Pérola, a filha de Mirtes, a mais

nova, não casou com um agricultor japonês? Olha que a

gente avisou, a cultura deles é muito diferente, hein. Diz

que ele fazia experimentos, Pérola, enxertava melão com

abóbora, com repolhinho-de-bruxelas... Quando começou

a nascer abacaxi com três cabeças ela pediu o boné.

PÉROLA — Ué, o Oda não inventou a melancia sem caroço? Eu

parti a melancia, falei: Vado, cadê os caroços? Pra mim

perdeu a graça, viu, porque o bom da melancia é cuspir

os caroços. Danilo, você não ficou de ver a geladeira? Tá

com um barulho esquisito. Essa geladeira vai levantar

Page 63: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 63/121

Page 64: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 64/121

 

ELISA — Um fio desencapado. Danilo tá consertando.

VADO — Tem força aí?

PÉROLA — (GRITA) Pera, mamãe! Já vai voltar.

NORMA — Que foi, Pérola? Foi “fuzil”?

PÉROLA — Oh, meu Deus, parece que tem um fio... Achou a

margarina, Danilo?

ELISA — Trouxe o óleo também, mamãe. 76

VADO — Viu aquele problema do freio pra mim?

ELISA — Já trocou a pastilha. Não trocou, “paizinho”?

PÉROLA — Danilo, você comprou o reparo da descarga?

ELISA — Comprou e já trocou. Olha só como tá funcionando.

(ELISA RELIGA A CHAVE GERAL. A LUZ VOLTA,

REVELANDO TODOS COM EXPRESSÃO MUITO

CARREGADA)

VADO — Voltou! (A VELHA GEME)

DANILO — (DE CIMA DA CADEIRA ELE VÊ ALGO E GRITA) Não!

Não! Assim não, sogrinha!!! (PULA)

Page 65: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 65/121

PÉROLA — Oh, que susto! Assim não o quê, Danilo?

DANILO — Que é que você tá fazendo? Não faz assim com o bife,

não.

PÉROLA — Vai querer me ensinar a fritar bife, agora?

DANILO — Desse jeito você queima todas as propriedades da

carne. Vou te ensinar um segredo pra deixar a carne

tostar só por fora e...

PÉROLA  — Solta, Danilo! Solta essa frigideira.

ELISA — Que coisa, mamãe. Custa aprender?

PÉROLA — Era só o que faltava, ensinar o padre-nosso pro

vigário. Sai daqui!

EMÍLIO — Ele tá sempre ensinando ou corrigindo os outros. Um

dia eu tava amarrando o sapato, quando vi ele já tava

pegando no meu pé.

DANILO — Vou te ensinar um jeito de amarrar que você não vai

precisar ficar toda hora...

EMÍLIO — Larga que eu te dou uma sapatada, hein! Larga do meu

pé!

DANILO — Não perde o bom humor, não, hein, “belo”.

Page 66: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 66/121

NORMA — (A EMÍLIO) Tá com ciúmes?

EMÍLIO — Eu? Ciúmes?

NORMA — Você precisa vir mais pra cá, pra marcar presença;

senão vai acabar perdendo o seu lugar.

EMÍLIO — Acho que já perdi, tia. Eu me afastei, fui embora. No

fundo eles não me querem mais aqui; não precisam mais

de mim.

NORMA — Será?

DANILO — (ABRAÇA-O COM CINISMO) Esse aqui se desligou da

família; já não conta mais.

PÉROLA — (PREOCUPADA, TENTA AFASTÁ-LOS) Nossa! (ABANA-SE) Tá um forno, hoje, não?

NORMA — Vai chover. Quando sinto essa dor nos ossos... (VADO

GEME)

PÉROLA — Vado, pára um pouco de tirar folha dessa piscina,

ninguém vai nadar hoje.

VADO — Hum, essa dor nas costas tá me matando.

NORMA — É bico-de-papagaio, Vado, já te falei!

PÉROLA — Também, coitado, passou o fim de semana todo

Page 67: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 67/121

tirando folha da piscina, que o vento bate aí no

abacateiro da espanhola, traz tudo pra cá.

VADO — É só bater um ventinho...

PÉROLA — Você subiu tanto nesse abacateiro, Emílio, lembra?

EMÍLIO — Pra roubar abacate.

VADO — É só bater um ventinho, ó! ó! Aiiiii!

EMÍLIO — Pai, a Pepa e a Maria Cristina ainda estão morando aí?

VADO — Estão. Infelizmente!

PÉROLA — O Vado foi lá, falar com elas...

VADO — Fui lá, mesmo. Eu disse: já que vocês não querem cortar

esse maldito abacateiro, vocês podiam ao menos podar

um pouco os galhos que dão aqui pro nosso lado.

PÉROLA — Ih, precisa ver o escândalo que a Pepa fez!

VADO — Fez um escarcéu.

PÉROLA — Tudo que a dona Amélia tinha de meiguinha, de

delicadinha, essas aí são o oposto. Conta, como é que ela

falou, Vado?

VADO — (IMITANDO-A) “¡Para por la mano no mio aguatero solo

Page 68: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 68/121

Page 69: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 69/121

que ela me contou que já está comendo fígado cru de

manhã... E ele gritava assim, que nem o Danilo: “Amélia!

Amélia! Onde você está?” Um dia a Pepa falou: eu vou no

lugar dela, vou me sacrificar pela minha irmã.

NORMA — A Pepa queria se sacrificar, é ?!?

PÉROLA — Eu falei: Pepa, não senhora; você não é mulher dele. A

Maria Cristina...

NORMA — A Maria Cristina também queria se sacrificar?!?!

PÉROLA — ...disse: então vou eu, pra ele dar um pouco de

sossego pra minha irmã, pra ela poder descansar,

coitada. Acha que tá certo isso, Norma? Tá certo?

NORMA — Era só o que faltava agora, ele se acostumar com trêsmulheres dentro de casa... Que é que ele quer? Fazer um

harém?

VADO — (ENTRA GRITANDO) Pérola! Pérola! Parece que estão

querendo mesmo vender a casa da espanhola.

PÉROLA — Duvido! Tão pedindo tanto que duvido que encontrem

comprador.

VADO — Que nada! Tão dizendo que tem um banco interessado

em construir um prédio enorme aí.

PÉROLA — Um prédio?

Page 70: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 70/121

 

VADO   — Só assim mesmo pra acabar com esse maldito

abacateiro. (GEME)

PÉROLA — (ASSUSTADA) Vado, um prédio?!

NORMA — Já pensou um espigão bem aqui do lado? Vai fazer

sombra em todo o seu quintal... (SATISFEITA, DÁ UMA

GUINADA BRUSCA COM A CADEIRA)

PÉROLA — Norma! Cuidado. A piscina!!! Não vai cair na piscina!

NORMA — Oh, meu Deus!!!

VADO — Trouxe maiô, Norma?

NORMA — (FURIOSA) Mas essa piscina já ficou pronta?!

PÉROLA — Graças a Deus! Já não agüentava mais ver pedreiro.

Agora só mexo na casa quando for pra derrubar essas

duas casinhas e aumentar a frente.

NORMA — Sua mãe não pára de aumentar essa frente...

PÉROLA — Acabar com essa casa em formato de funil, só sobra

esse quintal pra gente poder respirar. Tô pensando em

trazer aquela parede pra cá, empurrar aquela outra pra

lá...

EMÍLIO — Mamãe, você pensa que parede tem roda?

Page 71: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 71/121

 

PÉROLA — ...e vir com aquelas duas até ali perto do tanque, pra

esticar o jardim até aqui! Lá da rua a gente vai poder ver.

Se ficar muito devassado eu faço um muro vivo, debuganvílias. Não vai ficar lindo?

EMÍLIO — Vai sim, mamãe; vai ficar lindo.

NORMA — Vai virar um clube, isso sim, num ponto desses, bem

no centro, vai valer uma fortuna.

PÉROLA — Só de saber que não vou mais ter que descer e abrir a

porta pro Vado poder sair do automóvel... (SONHADORA)

Quero tanto poder entrar e sair com ele da garage, os

dois juntos. Ao mesmo tempo!

(A VELHA GEME)

NORMA — Que será que ela quer, coitadinha?

PÉROLA  — Quer nada, é fita.

NORMA — Elisa, vai lá ver o que a sua avó quer, vai, faz isso pra

titia, faz.

(ELISA SAI)

PÉROLA — Também depois disso não faço mais nada. Quero mais

é aproveitar a vida, só eu e o Vado. Dei pra eles uma boa

educação, não podem se queixar; já vou deixar esse

Page 72: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 72/121

casarão, que não me peçam mais nada. Agora quero

aproveitar, viajar com o meu marido, que entre o marido

e os filhos eu fico com o meu marido! que os filhos casam

e dão uma banana pra gente.

EMÍLIO — Eu fico arrasado com essa franqueza.

NORMA — Pelo menos ela é honesta, nunca te enganou.

EMÍLIO — Mesmo assim, tia...

VADO — (CHAMA) Pérola! Pérola! Vem ver.

PÉROLA — (CONTEMPLA A PISCINA, ABRAÇADA AO MARIDO)

Vado, como ficou grande! Tá enorme!

VADO — Já tá enchendo, ó.

PÉROLA — (PREOCUPADA) Será que não vai gastar muita água?

EMÍLIO — Claro que vai, né, mamãe? Quer que ela fique vazia?

NORMA — (A EMÍLIO, RECORDANDO) Aqui era o pomar do papai.

Como ele gostava desse quintal! Sua mãe destruiu tudo

pra construir essa piscina. Era um verdadeiro jardim do

Éden. Tinha laranja lima, goiabeira, jabuticabeira, lima-

da-pérsia, que faz um bem pros rins...

EMÍLIO — Cajueiro! Pé de romã...

Page 73: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 73/121

NORMA  — Aqui tinha duas mangueiras, manga-espada e manga-

bourbon.

EMÍLIO — Pé de figo...

NORMA — Aqui era o pé de pêssego, quanto doce que eu não fiz! O

Ranulfo era louco por doce de pêssego.

VADO — E a parreira de uva? Esqueceu da parreira de uva, que

era o xodó do seu pai?

NORMA — Ele próprio que plantou. Trouxe a mudinha da Itália.

Dava três tipos de uva: rosada, branca e moscatel.

PÉROLA — Hum, doce doce, chegava a ser enjoativa!

NORMA — (COM RAIVA) Você destruiu tudo pra encher de lajota!Ainda bem que papai tá morto pra não ver o que você fez

do pomar.

(A VELHA GEME)

PÉROLA — Que será que ela quer?

VADO — Quer ver a piscina.

NORMA — Não! É melhor que ela não veja; é capaz dela ter um

troço.

EMÍLIO — Mamãe, o papai vai acender a luz da piscina.

Page 74: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 74/121

 

PÉROLA — (EXCITADA) Já vai acender? Oh, meu Deus... (CHAMA)

Elisa! Danilo! (SURGE DANILO, SEM ELISA) Cadê a

Elisa, Danilo? (AO FILHO) Vá chamar a sua irmã!

DANILO — (CHAMA) Elisa!!!

EMÍLIO — (CHAMA) Elisa!

VADO — Atenção! É um... é dois...

NORMA — Vou falar tchau pra mamãe que a Lola deve estar

chegando. (AFASTA-SE EM DIREÇÃO AO INTERIOR DA

CASA. ACENDE-SE A LUZ DA PISCINA. PÉROLA FICA

ENCANTADA. DIZ AO FILHO, COMO SE ESTIVESSE

LENDO O PRÓPRIO DESTINO NA ÁGUA) Eu fui

assassinada. Sabia?

EMÍLIO — ...Quê?

PÉROLA — Pelas costas.

EMÍLIO — ...Quem te assassinou?

(OUVEM-SE BUZINAS)

NORMA — (OFF) É a Lola; chegou. Vou indo, mamãe. (A VELHA

CHORA) Se me sobrar um tempinho na semana que vem

eu volto. Eu volto, mamãe. Prometo que eu volto...

(CHORA) Tadinha! (PÉROLA OLHA NOVAMENTE PARA A

Page 75: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 75/121

ÁGUA DA PISCINA TENTANDO LER O FUTURO. ELISA

SURGE REFLETIDA NA ÁGUA. VESTE UM MAIÔ ANOS

50 E UMA TOUCA. POR UM MOMENTO PÉROLA PENSA

QUE É REFLEXO DELA PRÓPRIA)

VADO — (PENSANDO VER A MULHER REJUVENESCIDA)

Pérola!!!

ELISA — Tchan tchan tchan tchan! (ELISA FAZ POSE DE PIN UP

NA BEIRA DA PISCINA)

VADO — Como você está parecida com a sua mãe, minha filha!

ELISA — Como eu gostaria de ser você, mamãe, e que meu

casamento também durasse meio século!

PÉROLA — Onde você achou esse maiô? É tão velho. Deve tá atécheirando a naftalina.

ELISA — É tão lindo!

PÉROLA — Era a última moda. Igual a um que a Esther Williams

usou num filme em que ela nadava...

EMÍLIO — Ela nadava em todos os filmes, mamãe.

ELISA — Sabia, Danilo, que a mamãe foi “Rainha das Piscinas” lá

em Tupã?

PÉROLA  — Você foi remexer, de novo, nas minhas coisas?

Page 76: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 76/121

 

ELISA — “Rainha das Piscinas, Tamoyo Sport Club, Tupã.” Olha

só a pose.

(FAZ POSE TRIUNFAL DE ESTHER WILLIAMS SOBRE

UM TRAMPOLIM)

EMÍLIO — (TIRANDO A FOTO DO BOLSO) Nossa, mãe! Você

parecia uma pin up!  

VADO — Sua mãe era de fechar o comércio. Que é que cê tá

pensando? Quando ela surgia na piscina, que subia

naquele trampolim, deixava todo mundo de boca aberta!

PÉROLA — Seu pai era capitão do time de pólo aquático. Tinha

um bigodinho, parecia o Clark Gable. As moças davam

tudo em cima dele...

ELISA — Oh, como eu gosto dessa história de Tupã, mamãe,

quando você se casou com o papai... conta de novo?

PÉROLA — Oh, minha filha, eu já te contei isso tantas vezes...

ELISA — Já ouviu, Danilo?

PÉROLA — Até parece que... Não tem nada demais. Nos casamos e

nos mandamos pra Tupã. Só de pensar que eu ia deixar

tudo isso pra trás... ficar livre da sua avó, das suas tias...

VADO  — (CONFESSANDO) Se não tivessem nos segurado a gente

Page 77: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 77/121

não teria parado nem em Tupã, viu; teríamos atravessado

o rio Paraná e...

ELISA — (COMPLETA) ...invadido Mato Grosso!

VADO — A gente tinha tanta pressa de viver, de conquistar o

mundo, eu e a minha baixinha aqui, nós arregaçamos as

mangas...

PÉROLA — (AO FILHO) Que eu nunca tive medo de trabalho, viu?

VADO — ...e abrimos uma loja de ferragens: “Dona porca e seus

dois parafusos!”

PÉROLA — Lá não tinha nada, só tinha mato... a cidade estava

começando... Eu me sentia que nem aquelas mocinhas

de filme de cowboy... porque lá tinha até índio, sabia?

EMÍLIO — Tinha índio, mãe?

PÉROLA — (NOSTÁLGICA) ...os índios aimorés, lembra, Vado?

Viviam invadindo a cozinha pra roubar biscoito. Eu

 jogava água quente neles.

EMÍLIO — O quê?!

PÉROLA — Ih, joguei tanta água quente em índio...

EMÍLIO — Se te ouvem falar isso, mãe... te crucificam!

Page 78: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 78/121

PÉROLA — Eram abusados! Precisa ver. Tinha um japonês, ele

odiava os índios, pegou a espingarda, falou: “Querem

biscoito, é? Índio vai é morê, ele dizia. Índio vai morê.” Daí

é que eles começaram a ser chamados de aimorés... vejaque coisa. Oh, como eu fui feliz em Tupã! Minha vida

parecia que ia ser um longa-metragem da Metro.

VADO  — Se tivéssemos ficado lá em Tupã... (OLHA PARA PÉROLA,

COMOVIDO)

PÉROLA — Agora guarda, Elisa. Guarda tudo isso.

ELISA — (DECIDIDA) Eu vou inaugurar a piscina!

PÉROLA — (ADVERTINDO-A) Olha lá a cara do seu marido.

VADO — Isso, filhinha, cai. Passei o aspirador a tarde toda. Caique a água tá limpinha.

ELISA — Será que tá fria? (PÕE O DEDÃO DO PÉ NA ÁGUA) Hum,

tá fria!

EMÍLIO — Vai, Elisa, cai logo de uma vez.

PÉROLA — Sai, Bolinha. Tudo ele pensa que é brincadeira. Vado,

prende o Bolinha. (VADO SAI COM BOLINHA)

ELISA — Vocês querem crawl ou de costas?

DANILO — Tá querendo se exibir? Tá? Então cal. Vai de

Page 79: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 79/121

Page 80: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 80/121

 

DANILO — E não vai ter festa?

VADO — Claro que vai.

DANILO — Eu faço o churrasco. (VESTE O AVENTAL DE PÉROLA)

EMÍLIO — Eu cuido do som.

PÉROLA — E eu quero um cordão de luzes coloridas atravessando

todo o quintal, passando bem aqui por cima da minha

piscina, que nem num filme que eu vi, que se passava em

Acapulco. A piscina ficava lá no alto dos rochedos, cheios

de palmeiras, tinha aquelas lanternas japonesas que

refletiam no mar lá embaixo... (VADO SOBE NA ESCADA

PARA INSTALAR O CORDÃO DE LUZES COLORIDAS E

LANTERNAS JAPONESAS. NESSE PONTO A CASA, QUEINICIALMENTE ESTAVA DESTRUÍDA, JÁ ESTÁ

RECONSTRUÍDA. ELES FORAM AO LONGO DESSE

 TEMPO RECONSTRUINDO E REPARANDO TUDO. À

MEDIDA QUE PÉROLA VAI FALANDO, AS LUZES E AS

ESTRELAS NO CÉU VÃO SE ACENDENDO. EMÍLIO

COLOCA O MAMBO N° 5, COM XAVIER CUGAT, NA

VITROLA) ...era de noite, precisa ver, o céu estava

estrelado, havia uma lua! (ANIMADA) Benhê, me vê um

campari. (VADO PREPARA OS DRINQUES AO SOM DO

MAMBO, DANILO ACENDE A CHURRASQUEIRA,

PÉROLA ARRISCA UNS PASSOS DE MAMBO, QUANDO

ELISA RETORNA, VESTIDA SOBRIAMENTE)

Page 81: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 81/121

ELISA — Mamãe! Mamãe! A vovó tá passando mal, diz que é pra

chamar o dr. Henrique.

PÉROLA — Oh, meu Deus, mamãe. Vai amolar o dr. Henriqueagora? (A VELHA GEME)

VADO — É manha dela! (FAZ A COQUETELEIRA DE MARACA E

GRITA) Mambo! (TENTANDO REANIMAR PÉROLA)

PÉROLA — É só ouvir a gente rir, ver que a gente tá alegre, se

divertindo, que já quer estragar tudo. Que é, mamãe? Já

tô indo.

VADO — (TENTA RETÊ-LA) Pérola...

PÉROLA — Que que cê quer que eu faça, Vado? É minha mãe.

VADO — Leva uma cervejinha pra ela que ela pára de amolar.

(PÉROLA SAI PARA O INTERIOR DA CASA)

ELISA — Tá melhor assim, Danilo?

DANILO — Cadê a minha escumadeira importada?

ELISA — Tá aqui.

VADO  — Mas será possível que aqui em casa ninguém mais

atende telefone, só eu?!

(VADO ATENDE O TELEFONE QUE NÃO TOCOU)

Page 82: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 82/121

 

VADO — Alô! Pode falar. É o Vado. Pode falar. Fala!!!

EMÍLIO — (CARINHOSAMENTE) Não, pai. Não,

VADO — Não, o quê?

EMÍLIO — Nessa época você ainda ouvia. Pouco, mas ouvia. (TIRA

O TELEFONE DA MÃO DELE E PÕE NO GANCHO) Deixe

pra não ouvir mais tarde. (EMÍLIO COLOCA BESAME

MUCHO CANTADO POR CARMEM McRAE)

ELISA — Vamos dançar, Danilo? (ELE OLHA PARA ELA COM

ESPANTO E CENSURA) Que foi?

DANILO — E a comida? Quem faz? Vai, pega o tempero ali pra

mim. (ELA PEGA. ELE JOGA SOBRE A GRELHA,LEVANTANDO FUMAÇA. PARECE UM SACERDOTE DE

MOLOCH) Sai de perto. (JOGA. MAIS FUMAÇA.

COLORIDA)

ELISA — Então eu vou dançar com o Bolinha. (CHAMA) Bolinha!

Bolinha! Vamos dançar, vem.

DANILO — Tira ele daqui que ele tá bifando carne... Olha lá o

pedação que ele pegou. Vem cá, Bolinha. Devolve!

Devolve!!! (SAI CORRENDO ATRÁS DE BOLINHA. ELA

FAZ MENÇÃO DE IR ATRÁS DO CACHORRO, MAS VADO

PUXA-A PARA DANÇAR)

Page 83: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 83/121

VADO — Vem dançar comigo, filha. Vem. (PASSA DANÇANDO

POR DANILO E DÁ-LHE UMAS BUNDADAS)

DANILO — Vado!!! Eu te espeto, hein!! (AMEAÇA-O COM OESPETO EM TOM DE BRINCADEIRA. VADO PASSA

DANÇANDO NOVAMENTE, E MAIS UMA VEZ APLICA-

LHE UMA BUNDADA) Vado!!

ELISA — Pára, pai.

DANILO — (SEM HUMOR) Olha que eu te furo, hein! Vem de novo,

vem. Vem...

VADO — É melhor você dançar com seu irmão, antes que o Danilo

me fure. Eu vou fechar o registro... (SAI. ELISA DANÇA

COM EMÍLIO)

DANILO — Elisa, vai pegar mais carvão.

EMÍLIO — Posso te fazer uma pergunta?

ELISA — (MEIO TEMEROSA) Faz.

DANILO — Aproveita e traz o álcool, que esse aqui tá no fim.

EMÍLIO — Você é feliz?

DANILO — Não tô achando...

ELISA — Que que você não tá achando, Danilo?

Page 84: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 84/121

 

EMÍLIO — Você é feliz?

ELISA — Claro que eu sou feliz. Por que você tá perguntando isso?

EMÍLIO — Por nada.

DANILO — Elisa, cadê o sal grosso? Eu aqui, trabalhando, e

você...

ELISA — Pronto, “paizinho”. Eu tô aqui, eu tô aqui.

DANILO — Vira essa bisteca aí pra mim, que tá queimando...

EMÍLIO — Quer que eu descasque as batatinhas, “paizinho”?

VADO — (RETORNANDO) Ué, acabou o baile? Por que a sua irmãnão tá mais dançando com você? (EMÍLIO FAZ UMA

CARETA E APONTA DANILO)

DANILO — Pega aquela panela ali, mas com cuidado, hein. Com

cuidado, Elisa, olha que você vai derrubar, vai derrubar,

vai... (ELISA DEIXA CAIR A PANELA) Não disse? (VADO E

EMÍLIO TROCAM OLHARES) Lascou a minha panela de

ágata.

ELISA — Desculpe, Danilo!

VADO — Eu vou tomar bicarbonato, que esses dois estão me

dando uma azia... (VAI ATÉ O BAR E TOMA UM

Page 85: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 85/121

Page 86: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 86/121

Page 87: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 87/121

caia bem e não nos faça nenhum mal. Amém.

ELISA — Amém!

VADO — Amém!!!

PÉROLA — Aleluia!!!

VADO — Agora pode-se comer?

DANILO — Tem picanha, maminha, coração, lombo, lingüiça,

frango...

PÉROLA — Hum, como tá macia, Danilo. Dissolve na boca!

(MURMURAM HUM... HUM... ESTÁ DIVINO!)

VADO — Hum, mas essa maionese tá...! Aposto que foi você que

fez, não é, filha? Tá uma delícia.

DANILO — Fui eu que fiz, Vado. Eu que fiz. Tá boa?

ELISA — Danilo é o rei da maionese!

DANILO — Experimentou a farofa? É minha especialidade, Vado.

EMÍLIO — Danilo fez tudo. Minha irmã comprou as bebidas, vai

lavar os pratos e, ah, fez a gelatina.

PÉROLA — Ficou mole, Elisa.

Page 88: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 88/121

 

ELISA — É, fui experimentar outra marca, ficou mole...

DANILO — Experimenta a musse que eu fiz, Vado. É de goiaba.

ELISA — Danilo faz uma musse de goiaba...

PÉROLA — Benhê, tá na hora do nosso remédio. (ENFIA UM

COMPRIMIDO NA BOCA DE VADO E TOMA UM,

 TAMBÉM)

EMÍLIO — (EXAMINA A CAIXA) Mãe, você tá tomando Mandrix?

PÉROLA — Foi o dr. Henrique que deu, que eu ando muito

nervosa...

EMÍLIO — Mas, mãe, você mistura com álcool... (ELA FAZ UMGESTO DE QUE NÃO TEM IMPORTÂNCIA) Se eu ou

(VOLTA-SE PARA A PLATÉIA) qualquer um de vocês aí,

na hora do almoço tomar duas caipirinhas, um remédio

pra pressão, um copo de vinho, um analgésico e um

calmantezinho... vai ficar louco pro resto do dia. Ou não

vai?

PÉROLA — Alguma vez você viu a sua mãe bêbada?

EMÍLIO — (NÃO SABE O QUE RESPONDER) Sabe que eu não sei?

Naquela época eu também misturava essas coisas todas,

ficava completamente doido. (AO PÚBLICO) Acho que só

eu que não via — ou não queria ver — que meus pais

Page 89: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 89/121

eram... bêbados e drogados. Ou, pelo menos, viviam

bêbados — e drogados! Quando voltamos do enterro da

minha mãe, Elisa abriu a geladeira... (ELISA ABRE A

GELADEIRA E COMEÇA A SOLUÇAR, OLHANDO PARA OINTERIOR DO CONGELADOR) Que foi?

ELISA — (PEGA A GARRAFA PELA METADE) A vodca da mamãe!

EMÍLIO — Quem perde uma mãe normal lembra-se dela quando

vê o seu casaquinho, a sua pantufa, o seu missal... Mas

no nosso caso...

ELISA — (COMOVIDA) O pegador de azeitonas da mamãe!...

(ABRAÇAM-SE E CHORAM JUNTOS, SEGURANDO A

GARRAFA DE VODCA E O PEGADOR DE AZEITONAS. A

VELHA GEME)

PÉROLA — Emílio, vê se a sua avó não quer um pedacinho de

frango. (EMÍLIO FAZ MENÇÃO DE IR MAS PÁRA) EMÍLIO,

foi ver se a sua avó não quer um pedacinho de frango?

(EMÍLIO OLHA PARA A MÃE)

PÉROLA — Que foi? (COMO SE A MEMÓRIA DELE ENTRASSE

EM PANE, AS CENAS COMEÇAM A SE REPETIR EM

 TORNO DELE, TODOS FALANDO AO MESMO TEMPO.

NORMA SURGE)

NORMA — “Aqui era o pomar do papai. Como ele gostava desse

quintal! Um verdadeiro jardim do Éden. Sua mãe

destruiu tudo pra construir essa piscina! Tinha goiabeira,

Page 90: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 90/121

 jabuticabeira... aqui tinha duas mangueiras: manga-

espada e manga-bourbon...” (AFASTA-SE)

VADO — “Agora pitanga aí tá dando, já tô com um litro pronto.Agora se você quiser fazer um aperitivo gostosinho,

simples, compra bala Pipper... põe mais ou menos quinze

balas dentro de um litro e você faz uma pinga de hortelã

que o cara se baba todo.”

ELISA — “Já te contei? Seu nome é Danilo. Tem um carro

envenenado e passa todas as tardes aqui pela porta

cantando pneu. Oh, ele é lindo! Danilo! Mas a mamãe diz

que ele não presta, que eu preciso estudar, entrar pruma

faculdade e que não devo me amarrar num rapaz sem

futuro... mas se eu não puder me casar com ele prefiro

morrer! Morrer!”

DANILO — “Tô falando sério agora, belo, estamos esperando um

desenlace a qualquer momento. É bom você ficar

preparado pra vir pra cá. Só não sei quem vai primeiro,

se é ele ou ela. Ou se vão os dois juntos.”

VADO — Alô! É o Vado! Pode falar. Tô ouvindo...

NORMA — A Pautilla esteve aqui? Eu não sabia que a piscina

tinha ficado pronta... Oh, essa menopausa... (CHORA) 

Não é que o menino me coloca o gato dentro da geladeira?

(EMÍLIO AFASTA A CADEIRA DE NORMA, FAZENDO

CESSARA CONFUSÃO. A MÚSICA PÁRA. TODOS OLHAM

Page 91: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 91/121

PARA ELE. ELE SE APROXIMA DA MÃE)

EMÍLIO — Quero que saiba quem eu sou.

PÉROLA  — Ué, você não é o Emílio?

EMÍLIO — Meus amigos me conhecem melhor do que você.

PÉROLA — Duvido.

EMÍLIO — A gente nunca conseguiu se comunicar.

PÉROLA  — Você só me xingava, só...

EMÍLIO  — Lembra do piano? Eu cheirei ele!

PÉROLA — O quê?

EMÍLIO — Vendi! Há vinte anos, pra comprar cocaína! Sabe que

eu já tentei suicídio?

PÉROLA  — Você sempre escolhe os piores momentos para... vê se

agora é hora de tocar nesse assunto.

EMÍLIO  — Tenho tanta mágoa de você, tanta queixa...

PÉROLA — Você já me magoou tanto, meu filho, tanto! Se eu fosse

me queixar...

EMÍLIO — Não me dava dinheiro...

Page 92: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 92/121

 

PÉROLA  — Você não queria trabalhar! Acha que eu ia sustentar

vagabundo?

EMÍLIO — Sempre preferiu a Elisa. Quando ela nasceu, você não

quis mais saber de mim, me relegou a terceiro plano...

PÉROLA — Não diz besteira. Por que você tem tanto ciúme da sua

irmã, coitadinha...

EMÍLIO — Você me abandonou, me soltou pelo mundo...

PÉROLA  — Você que me deixou, não foi embora de casa?

EMÍLIO — Você não vivia dizendo que a porta estava aberta?

PÉROLA — E era pra acreditar?!

EMÍLIO  — Somos dois estranhos. Você não sabe nada sobre mim.

PÉROLA — Você se engana, meu filho; posso escrever um

romance sobre você.

EMÍLIO — Você complicou a minha relação com as mulheres...

PÉROLA — Eu?!

EMÍLIO — Por que acha que eu não me casei?

PÉROLA — Porque ainda não encontrou a mulher certa. A hora

Page 93: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 93/121

que encontrar... (EMÍLIO RI) Família é importante, meu

filho. Se você ficar doente, quando ficar velho, quem é

que vai cuidar de você?

EMÍLIO — É pra isso que serve? Oh, mãe, por que não foi

diferente? Tem tanta coisa que eu queria te dizer...

PÉROLA — Se não falou quando eu estava viva, agora é tarde.

Quer me matar duas vezes? Vamos falar de coisas mais

importantes. Vado, prendeu o Bolinha? Vado... Vado,

onde você está? Elisa... Danilo! Aonde foram todos? Por

que me deixaram aqui sozinha?

(TODOS SE AFASTAM. PÉROLA FICA SOZINHA. VADO

RECOBRA A EMOÇÃO DO INÍCIO DA PEÇA)

VADO — Morreu nos meus braços, Emílio. Eu ainda tentei tirar ocarro da garage, mas um maldito estacionou bem na

frente do portão, eu não pude tirar o carro da garage...

EMÍLIO — Você não pôde fazer nada, pai...

VADO — Fui correndo chamar um guarda pra tirar o carro... nisso

vi o dr. Henrique que tava chegando... ele correu até o

quarto mas... ela já estava morta. Cinqüenta e cinco anos

 juntos... que é que vai ser de mim, agora sem a sua mãe?

EMÍLIO — Sei que é difícil, mas você tem que tentar, pai. Não pode

se entregar.

Page 94: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 94/121

VADO — Eu não sei, viu, mas se eu tivesse corrido pra chamar o

dr. Henrique, talvez...

EMÍLIO — Foi fulminante, pai. Você não podia fazer nada.

VADO — Ela não me disse que tava se sentindo mal, não falou

nada. Dei um cafezinho pra ela... ela tomou e disse que ia

subir pro nosso quarto. Ainda disse pra ela: “Não quer ler

o jornal, Pérola?” Ela disse: “Não, não tem nada que me

interessa.” Eu tive um pressentimento, não sei, alguma

coisa me fez subir para o nosso quarto. Falei: “Pérola, que

foi?” Ela falou: “Tô sentindo uma dor!...” e caiu na cama.

Eu ainda tentei fazer respiração boca a boca, fiz

massagem, desci correndo pra tirar o carro da garage,

mas um maldito estacionou aí na frente... Oh, filho, não é

mole, não. Não é mole... (CHORA. PÉROLA SE

APROXIMA)

PÉROLA — Vado! Vado! (ELE OLHA PARA ELA) Hoje não é dia de

falar de coisas tristes, Vado. Hoje é dia de festa. (EMÍLIO

COLOCA O TANGO EL CHOCLO NA VITROLA. ELA PUXA

VADO) Vem, Vado, vamos dançar.

(DANÇAM. VOLTA O CLIMA DE FESTA, DO CHURRASCO

EM COMEMORAÇÃO AO ANIVERSÁRIO DE

CASAMENTO. O TANGO É INTERROMPIDO POR UMA

 TEMPESTADE QUE DESABA, DESSAS TÍPICAS DE

VERÃO, COM VENTOS E TROVÕES. TODOS GRITAM E

FALAM AO MESMO TEMPO, TENTANDO RECOLHER AS

COISAS E SE PROTEGER DA CHUVA)

Page 95: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 95/121

 

PÉROLA — Nossa, que temporal! Elisa, tira a roupa do varal.

Depressa.

DANILO — Elisa, corre pra fechar a janela do carro que tá aberta.

PÉROLA — Vado, tira as almofadas etc. (ENTRAM CORRENDO

PRA DENTRO. EMÍLIO ASSISTE À CENA DIANTE DA

VITROLA. A LUZ CAI EM RESISTÊNCIA AO SOM DO

 TANGO E DA TEMPESTADE, FICANDO APENAS UM

FOQUINHO SOBRE ELE. ELE TIRA O DISCO)

MANHÃ DO DIA SEGUINTE...

(APÓS A TEMPESTADE O QUINTAL ESTÁ UM CAOS. UM

GRANDE GALHO ESTÁ CAÍDO. AS LANTERNAS

 JAPONESAS ESTÃO DECOMPOSTAS; O CORDÃO DELUZES CAIU NA PISCINA E ESTÁ DANDO CURTO NA

ÁGUA. HÁ FOLHAS E GALHOS POR TODA PARTE. VADO

ESTÁ ENTRANDO, VINDO NA DIREÇÃO DAS DUAS

CASINHAS)

PÉROLA — Enterrou ele?

VADO — Enterrei perto das roseiras da sua mãe.

(ELISA ENTRA. SUSPEITA IMEDIATAMENTE DE ALGO)

ELISA — Enterrou o que? Que foi que...? (DESCONFIADA,

CHAMA) Bolinha! Bolinha!

Page 96: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 96/121

 

PÉROLA — Ele deve ter visto algum gato, quis pegar e... caiu

n’água. E não conseguiu sair.

EMÍLIO — Nesse dia Elisa esqueceu que era evangélica e fez o

maior escândalo.

ELISA — Nããããoooo! Nããããoooo!!! Bolinha! Boliiiiiinha!!! Cadê ele?

Onde e que ele tá?

VADO — Elisa, o Bolinha morreu...

PÉROLA — Seu pai já enterrou no jardinzinho da vovó.

ELISA — Nãããooo!!! Nãããooo!!!

EMÍLIO — Eu não tava lá na ocasião, mas se estivesse teria feitocomo o cinema faz com as mulheres histéricas: dava-lhe

umas boas bofetadas! (SACUDINDO-A) Calma, Elisa!

Calma!

ELISA — Danilo! O Bolinha!... (ABRAÇA-O CHORANDO)

DANILO — Que que aconteceu?

PÉROLA — Ele uivou quase que a noite toda...

DANILO — Morreu?

PÉROLA — ...eu ainda fui ate a janela do banheiro e gritei aqui

Page 97: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 97/121

pra fora: “Bolinha! O que e, Bolinha?” Tava chovendo

tanto, aqueles trovões, e ainda a sua avó me chamando,

fui la ver o que ela queria e quando voltei... (VADO ESTÁ

RETIRANDO O CORDÃO DE LUZES QUE CAIU DENTRODA PISCINA)

VADO — (CULPANDO-SE) Se eu não tivesse prendido o Bolinha na

corrente, ele teria nadado e saído ali, pela muretinha...

ELISA — (TRANSTORNADA) Voce matou o Bolinha! Voce matou o

Bolinha!

VADO — Elisa tem razão, a culpa foi minha...

ELISA — Monstro!!!

DANILO  — (CARINHOSO) Vem comigo, benzinho, vem...

PÉROLA — Dá um copo d’água com açúcar pra ela, Danilo; depois

volta pra ajudar o Vado.

ELISA — Eu nunca mais entro nessa piscina! Nunca mais! (SAEM.

PÉROLA RECO-LHE TOALHA, PRATOS E OUTROS

OBJETOS ENCHARCADOS)

PÉROLA — Esquecemos a farofa aqui fora, virou sopa. Olha as

lanternas japonesas!

(ENTRA NORMA)

Page 98: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 98/121

NORMA — Nossa, que aconteceu aqui?

PÉROLA — Choveu granito!

EMÍLIO — Granizo, mãe. Se fosse granito nós estaríamos ricos.

NORMA  — Olha o tamanho desse galho... se pega na cabeça de

alguém!

(VADO TENTA TIRAR O GALHO)

PÉROLA — Vado, é pesado... (CHAMA) Danilo! Vem aqui dar uma

mão pro Vado.

DANILO — Sogrinha, você tem que resolver: ou dou água pra ela

ou ajudo o Vado; que eu sou um só. Um só!

EMÍLIO — Pera aí, pai, que eu te ajudo.

PÉROLA — Emílio!!!

EMÍLIO — Que foi?

PÉROLA — (ASSUSTADA) Mas você não estava aqui nesse dia,

Emílio!...

EMÍLIO — Mãe, não sou eu que estou contando esta história? A

memória é minha, posso fazer com ela o que quiser. Tá?

Pica calminha. Vamos lá, pai, pega aí. (PÉROLA FICA

INTRIGADA. ELES EMPURRAM O GALHO PARA UM

Page 99: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 99/121

CANTO)

(A LUZ CAI, FICANDO APENAS O REFLEXO DA ÁGUA.

PÉROLA APROXIMA-SE E OLHA, CAUTELOSA, COMOSE TENTASSE ENXERGA O FUNDO DO SEU ABISMO. A

LUZ SOBE NOVAMENTE. NORMA RETORNA)

NORMA — Pérola, achei a mamãe tão abatida...

PÉROLA — Tem um sapo na piscina. Deve ter sido a chuva.

NORMA — Não é melhor chamar o dr. Henrique?

PÉROLA — Por quê? Por causa do sapo?

NORMA — Não, Pérola; da mamãe. Tô achando ela muito abatida.

PÉROLA — Ainda nem tive tempo de ir lá ver ela, com tudo que tá

acontecendo aqui...

(OUVE-SE BARULHO DE SERRA ELÉTRICA)

NORMA — Que é isso? Que barulho é esse? (VADO SURGE COM

A NOVIDADE)

VADO — Pérola, estão cortando o abacateiro!

PÉROLA — (NERVOSA) Vado, as espanholas venderam a casa?

VADO — Puseram uma tabuleta lá na frente; parece que vão

Page 100: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 100/121

construir aí um prédio de oito andares.

PÉROLA — Oito andares!

(UMA SOMBRA COMEÇA LENTAMENTE A CRESCER

VINDA DO LADO DIREITO DO PALCO, COMO SE UM

EDIFÍCIO ESTIVESSE SENDO ERGUIDO. ESSA

SOMBRA CRESCERÁ LENTAMENTE ATÉ OCUPAR TODA

A METADE DIREITA DO PALCO)

NORMA — Pior quando começar aquela bateção de estaca...

(COMEÇAM A BATER AS ESTACAS.  TUDO TREME) Vai

ser aquele tuuummm tuuummm tuuummm o dia todo

na sua cabeça...

PÉROLA — Oito andares!!

NORMA — Ih, acabou o seu sossego, Pérola. Pelos próximos seis

meses. Pelo menos. Vai ter que deixar as janelas sempre

fechadas. Você não vai poder mais ficar à vontade.

Acabou a sua privacidade.

(CESSAM OS RUÍDOS DE CONSTRUÇÃO. A SOMBRA

OCUPA TODA A METADE DIREITA DO PALCO, COMO

SE O PRÉDIO TIVESSE FINALMENTE FICADO PRONTO)

VADO — (TENTANDO CONSOLÁ-LA) Pelo menos até as três horas

da tarde pega bastante sol...

NORMA — (SATISFEITA) Vou ver a mamãe. (SAI. FICAM APENAS

Page 101: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 101/121

PÉROLA E EMÍLIO)

PÉROLA — Veio muita gente no meu enterro?

EMÍLIO — A Rovani veio de Tupã...

PÉROLA — A Rovani veio?

EMÍLIO — Com a Violeta e a Vera.

PÉROLA — A Vera veio?

EMÍLIO — Papai sentou-se num banquinho, botou a cabeça no

seu peito e ficou abraçado com você a noite toda.

PÉROLA — Ah, Vado!

EMÍLIO — Elisa não queria nem tomar banho... tava com a

mesma roupa ainda; eu disse pra ela: mamãe não iria

gostar.

PÉROLA — Não iria mesmo. Não gosto de ver ela malvestida.

EMÍLIO  — Foi o que eu disse. Principalmente na frente da família

do papai.

PÉROLA — Eles vieram?

EMÍLIO — Todos.

Page 102: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 102/121

PÉROLA — E do meu lado? Suas tias vieram?

EMÍLIO — Tia Norma, tia Wanda...

PÉROLA  — (SURPRESA) A Wanda veio?

EMÍLIO — Tia Lola não veio ao enterro; mas mandou dizer que vai

na missa.

PÉROLA  — Depois que me mataram vão na igreja, rezar.

(NORMA ENTRA)

NORMA  — Tô preocupada com a mamãe. Ela não tá nada boa...

Pensou que eu fosse a Lola...

PÉROLA — Ela anda trocando as bolas já faz tempo.

NORMA — Falou que esteve com a Rosália... imagine! Ela morreu

há mais de quarenta anos! (PÉROLA  COMEÇA  A 

ESTENDER ROUPA NO VARAL. NORMA VOLTA-SE PARA

EMÍLIO) Escuta aqui, Emílio. Por que você fica tanto

tempo sem aparecer, hein? A titia fica com saudade.

PÉROLA — Esse aí não se acostuma mais com cidade pequena.

NORMA — Não quer deixar as garotas, né? (EMÍLIO  SORRI

AMARELO) E aí, casamento à vista?

PÉROLA — Exigente do jeito que ele é, nenhuma mulher serve.

Page 103: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 103/121

 

NORMA — Também, hoje em dia, casar pra quê, né? Elas tão tudo

aí dando sopa. Se bem que mesmo no nosso tempo, não

é, Pérola, a mulher, quando não é direita, sempre arrumaum jeito de enganar o marido. Você tem de quem puxar,

Emílio. Suas tias, elas são minhas irmãs, mas foram

umas pinta-bravas! Ah, foram. Isso a gente tem que

reconhecer. (PÉROLA NO INÍCIO FICA SURPRESA, MAS

DEPOIS COMEÇA A SE SENTIR DESCONFORTÁVEL

COM A FALA DA IRMÃ. TROCA OLHAR COM O FILHO.

NORMA PROSSEGUE)

NORMA — A Wanda não foi a primeira mulher desquitada de

Bauru? Se apaixonou pelo Olavo, deu um pontapé no tio

 João, coitado... e se mandou pra São Paulo.

EMÍLIO — É verdade que a tia Lola foi a primeira mulher emBauru a fumar em público?

NORMA — Lola fumava enquanto esperava o... como é que era o

nome daquele namorado dela, Pérola? Ih, ela teve

tantos... andava ela e a filha da Ireni, a “Mitida”, como diz

a mamãe, ih, aquela era da pá-virada, “pegava carro” ali

na esquina. A sua mãe...

PÉROLA — Que é que tem eu?

NORMA — Não usava calça comprida e dirigia automóvel? A mãe

do Vado não foi falar pra ele que você era homem?! A

Irene não ia ao cinema sozinha? E a Rovani? que não

Page 104: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 104/121

pulou a janela na noite de núpcias, que não queria casar

com um italiano rico que a tia Mariúcha tinha arrumado

pra ela, se mandou com o tio Amedeo, que era vinte anos

mais velho do que ela. Olha, se eu fosse falar...

PÉROLA — Você é a única que não pode falar nada, Norma.

NORMA — Que é que você está querendo insinuar?

PÉROLA — Não estou insinuando, Norma; estou afirmando. Já tô

cheia de ouvir você, com perdão da palavra, cagar

virtude!

NORMA — Pérola! Eu estou estupefata!

PÉROLA — Agora eu vou falar: se alguém aqui se comportou como

uma vagabunda, foi você, Norma. E Deus te castigou,Norma; e como!

(NORMA VESTE A CARAPUÇA E CALA-SE. ELISA ENTRA

E ANUNCIA, EMOCIONADA)

ELISA — ELE  finalmente se manifestou, mamãe.

PÉROLA — Quem...?

ELISA — Jeová falou com Danilo! Convidou-o para ser seu

ministro. E Danilo aceitou. (ABRAÇA A MÃE,

EMOCIONADA) Oh, mamãe.

Page 105: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 105/121

PÉROLA — Oh, Elisa, nem sei o que dizer...

ELISA — Diga Aleluia, mamãe.

PÉROLA — Aleluia.

ELISA — Já está preparando seu primeiro sermão. Aleluia.

PÉROLA — Aleluia. (ELISA SAI)

NORMA — Aonde você está querendo chegar, Pérola?

PÉROLA  — Não banque a santa! Tô até aqui de você. Acha que

tem o direito de enfiar o dedo no nariz de todo mundo? Já

esqueceu do que aconteceu com você? Já esqueceu?

EMÍLIO — Eu sempre quis saber essa história. O que queaconteceu?

PÉROLA — Conta pra ele, Norma, o que aconteceu aquela noite na

represa! Valeu a pena? (NORMA  FAZ  MENÇÃO  DE  SE 

AFASTAR. PÉROLA  IMPEDE) Agora eu vou falar. Eu vou

falar: ele era gerente da Drogasil aqui de Bauru.

Chamava-se... (NORMA VOLTA-SE, LANÇA-LHE UM

OLHAR TERRÍVEL E GRITA)

NORMA — Ernani!!!

PÉROLA — Norma era apaixonada por ele. Queriam se casar, mas

sua avó achou que ele não estava à altura dela e não

Page 106: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 106/121

permitiu o casamento.

NORMA — Ela não permitiu.

(A VELHA GEME. NORMA GRITA, COM ÓDIO)

NORMA — Cale essa boca, mamãe!!! Cale essa boca!!!

PÉROLA — Daí arrumaram o casamento dela com o seu tio

Ranulfo; naquela época mulher não podia falar nada, os

casamentos eram arranjados, e ele era muito rico. Mas

ela não queria casar, de jeito nenhum. Ela ainda tinha

esperança de que... mas daí veio a notícia de que o

Ernani havia se casado com uma moça lá de Campinas;

ela ficou louca! Chamou o papai e mandou marcar o

casamento pra dali a uma semana. O Ranulfo tratava ela

como uma princesa! Coitado, era louco pra ter um filho,mas ela nada de engravidar, não tinha jeito.

NORMA — Nunca quis ter filhos com o Ranulfo. Nunca! Você sabe

disso.

PÉROLA — Mas ele tanto fez que ela acabou concordando em

fazer um tratamento. E engravidou.

NORMA — Não foi o tratamento. Quis me vingar; ter um filho com

outro.

PÉROLA — Que “outro”! Ele era seu marido!

Page 107: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 107/121

NORMA — ...com um homem que eu não amava, pra jogar na cara

do Ernani, que havia feito dois filhos naquela outra

mulher! Naquela imunda!

PÉROLA — E foi nesse clima que ela concebeu o Dinzinho,

pobrezinho. Como foi que você conseguiu ter uma criança

tão linda? Ele parecia um anjinho. Até comentei com o

Vado, que com o nascimento do Dinzinho você tinha mu-

dado completamente. O Ranulfo tava numa felicidade!

Não cabia em si de contente. Não sabia o que fazer pra

não deixar faltar nada pra ela, pro filho, um cuidado! Mas

aí, quando ele completou um aninho...

NORMA — Morreu de meningite! Achei que Deus tava me

castigando. Mas o castigo apenas começara. (VINDO DE

ALGUM LUGAR DA LEMBRANÇA DE NORMA OUVE-SE

ANÍSIO SILVA CANTANDO ABRAÇA-ME)  

PÉROLA — Ela enlouqueceu.

NORMA — Quem não enlouqueceria?

PÉROLA — Voltou a encontrar-se com Ernani. Era só o Ranulfo

dar as costas pra ela imediatamente ir encontrar-se com

ele. Iam lá pros lados da represa de Barra Bonita; que lá

tem muito lugar.

EMÍLIO — Como é que a senhora sabe?

PÉROLA — Eu imagino... Ia com o carro dela até o Country Clube,

Page 108: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 108/121

nessa época o Ranulfo havia comprado um Simca

Chambord pra ela; ela deixava o carro lá e entrava no

dele.

EMÍLIO — Mas ninguém comentava nada?

PÉROLA — A cidade toda sabia. Eu tenho por mim que o Ranulfo

também sabia... Mas era aquela hipocrisia! Aquele tipo de

segredo que todo mundo sabe mas finge que não sabe,

até a hora que alguém toma uma atitude. E foi o que

fizeram. Ligaram pra mulher dele e contaram tudo.

Disseram até onde eles iam se encontrar naquela noite.

(EMÍLIO OLHA ESPANTADO PARA A MÃE) Quando eles

chegaram a mulher dele já estava lá.

EMÍLIO — Mas e aí, o que aconteceu?

PÉROLA — O que aconteceu?... Ah, meu filho, isso só eles e Deus

sabem!

EMÍLIO — Mas não é possível, mãe. O que aconteceu? Alguém tem

que saber!

PÉROLA — Ela não conta! Não conta! Encontraram ela quase

morta, com a espinha quebrada. Sua avó abafou tudo,

com a ajuda de um juiz que era muito amigo do papai,

tanto é que os jornais aqui de Bauru não noticiaram

nada, nem uma linha. Ele foi embora com a mulher e os

filhos, parece que mora hoje...

Page 109: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 109/121

NORMA — (GRITA) ...em Garça!!! Ernani está em Garça!!

PÉROLA — (FURIOSA) Olha, o Ranulfo não merecia isso, viu?

Esse homem realmente te amava. Recebeu você de volta,cuidou de você até morrer do coração, te deixando muito

bem de vida. Muito bem!!

NORMA — Sim, estou bem. Muito bem. Melhor do que todas

vocês. Muito melhor. (SOLUÇA) Oh, essa menopausa...

(ABRAÇA-SE EM EMÍLIO)

(DANILO ENTRA, SEGUIDO POR ELISA. APONTA O

DEDO PARA ELES)

DANILO — “Afasta! Afasta o teu caminho da mulher adúltera! E

não te aproximes da porta da sua casa!!!” (NORMA OLHA

ASSUSTADA PARA EMÍLIO)

EMÍLIO — Calma, tia Norma, calma que é só o Danilo ensaiando o

sermão.

DANILO — “Os lábios da mulher adúltera destilam favos de mel...

mas o seu fim é amargoso como o absinto... os seus

passos conduzem-na ao inferno!” (NORMA ESTREMECE)

ELISA — Vamos fazer uma oração e pedir ao Senhor para inspirá-

lo, para ele falar bem bonito esta noite e emocionar a

todos.

PÉROLA — Vamos rezar mesmo, que ele precisa ter uma

Page 110: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 110/121

profissão.

DANILO — “Como homem de Deus, meu Pai, eu estendo as

minhas mãos: abençoai essa gente, tanto aqueles queaqui estão como os que estão nos hospitais, nos leitos de

dor, nas cadeiras de rodas (NORMA VOLTA-SE

VIOLENTAMENTE PARA ELE), nas penitenciárias.

Abençoa, meu Pai. Faça coisas que os nossos olhos

nunca viram, que nossos ouvidos nunca ouviram e Seu

nome será glorificado.

ELISA — Jesus! Eu quero renascer na Tua luz!!!

DANILO — E todos aqueles que estão de acordo digam graças a

Deus... e amém... e amém...”

ELISA — Amém.

DANILO — Palmas para Jesus. Vamos dar uma salva de palmas

para Jesus. Aplausos para Jesus. Mais forte, Elisa. Mais

forte. Aleluia!!! (SAEM. PÉROLA, ARREPENDIDA, FAZ

GESTO EM DIREÇÃO A NORMA, QUE DESVIA O

OLHAR)

NORMA — Vou ver o que está acontecendo com a mamãe, que ela

tá muito quieta... muito quieta... (SAI)

EMÍLIO — Duas irmãs, dois destinos. Não parece filme?

PÉROLA  — Por que comigo foi tão diferente? Eu também podia ter

Page 111: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 111/121

ficado com a vida entrevada, como a dela. Sua avó era

uma egoísta, só pensava nela; o papai, coitado, não tinha

voz ativa, fazia tudo o que ela queria. Eu só pensava em

sair de casa. Olha, se o seu pai não tivesse aparecido euteria me casado com qualquer um só pra sair daquela

casa. Todas faziam isso. Saiam de uma prisão pra cair

em outra. Mas qualquer prisão era melhor do que

agüentar a sua avó... Mas daí, apareceu O seu pai...

(VADO ENTRA E SE ESCONDE ATRÁS DO LENÇOL QUE

ESTÁ ESTENDIDO NO VARAL) Quando eu pensei que ia

ter o mesmo destino das outras, apareceu o meu príncipe

encantado! Meu Romeu! Tão sensível, tão delicado... me

fazia todas as vontades, me dava presentes, pintou o meu

retrato, me fez tanta serenata! Acordava todos os

cachorros da vizinhança! (VADO CANTA BOA NOITE

AMOR, A LA FRANCISCO ALVES, ATRÁS DO LENÇOL)

VADO — “Quando a noite descer, insinuando um triste adeus,

olhando nos olhos teus, irei beijar seus dedos e dizer...

(EMÍLIO ABRE LENTAMENTE O LENÇOL COMO SE

FOSSE UMA CORTINA, REVELANDO O PAI)  Boa noite

amor, meu grande amor, contigo eu sonharei... e a minha

dor esquecerei...

OS DOIS — se eu souber que o sonho seu foi o mesmo sonho

meu.

VADO — Boa noite, amor, e sonhe enfim, pensando sempre em

mim,

Page 112: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 112/121

OS DOIS — na carícia de um beijo... que ficou no desejo... boa

noite, meu grande amor.

PÉROLA  — Boa noite, amor.” (A SERENATA É INTERROMPIDAPELA ENTRADA DE NORMA)

NORMA — (AGITADA) Pérola! Vado! Mamãe acaba de falecer!

(CORREM TODOS PARA O INTERIOR DA CASA,

FICANDO APENAS EMÍLIO)

EMÍLIO — Quando vovó morreu eu estava em Nova York. Meu pai

me escreveu. Tinha por ela um carinho de memória. Foi

ela que me levou ao cinema pela primeira vez. Brigava

com os porteiros pra fazer eu entrar quando o filme era

proibido... (PAUSA) Naquela época eu não pensava que

um dia eu poderia estar aqui para o enterro da minhamãe.

(ENTRAM ELISA E DANILO. ELISA ESTÁ MUITO

ABATIDA, COMO SE TIVESSE PASSADO A NOITE EM

CLARO)

EMÍLIO — Elisa, você tá muito malvestida. Mamãe não iria

gostar... (ELISA FAZ GESTO DE QUE NÃO TEM ÂNIMO

PARA NADA) Toma um banho, veste uma roupa melhor...

é a nossa despedida. É a última imagem que ela vai levar

da gente. (ENTRA NORMA)

NORMA — Não acha que é bom chamar um padre? (EMÍLIO OLHA

Page 113: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 113/121

PARA ELISA QUE OLHA PARA DANILO)

EMÍLIO — (À IRMÃ) Acha que ela gostaria?

ELISA — Acho...

NORMA — Então vai, Danilo. Vai você, que o Emílio já não

conhece mais nada aqui...

ELISA — Vai na Matriz, “paizinho”, que ela era da Matriz...

NORMA — É, nós todas somos da Matriz do Divino Espírito

Santo... (FAZ O SINAL-DA-CRUZ. DANILO SAI)

ELISA — Vai depressa, “paizinho”, que tá quase na hora. (A

EMÍLIO) Vou pôr uma roupa... (SAI)

EMÍLIO — O padre que chegou usava  jeans, camiseta e tênis

Reebok. Colocou aquela faixinha em volta do pescoço,

pegou um livrinho, leu algumas palavras em aramaico,

porque me soaram absolutamente incompreensíveis...

Daí sacou um recipiente do bolso traseiro, que eu jurei

ser um frasco de desodorante. Será possível? Desses de

plástico. Me aproximei para ver melhor e consegui ler por

entre os seus dedos a letra A... Será que já estão

industrializando água benta? Mas não pode ser, e a

liturgia, onde é que fica? Será que a alma de minha mãe

está sendo encomendada a Deus levando umas

borrifadas de Alert limão?! Não posso ficar com essa

dúvida. Tentei correr atrás dele pra ver do que se tratava

Page 114: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 114/121

mas nisso...

(ENTRA ELISA. TROCOU DE ROUPA)

ELISA — EMÍLIO, já está saindo... vem. (EMÍLIO COMEÇA A

CAMINHAR EM DIREÇÃO AO INTERIOR DA CASA

QUANDO TODOS VOLTAM DO ENTERRO. A

ILUMINAÇÃO AGORA É SURREAL. APENAS PÉROLA

VESTE LUTO. ENTRA FALANDO)

PÉROLA — (TIRANDO OS SAPATOS) Ah, tô louca por um

cafezinho. Benhê, faz um cafezinho, faz? Só de pensar

que vou ter que enfrentar uma obra de novo, agüentar

pedreiro... Elisa, você vai ter que me dar uma mão, hein.

Me ajuda a tirar uns lençóis pra proteger os móveis aqui

de baixo. (HÁ UM MAL-ESTAR ENTRE ELES, MAS QUE

ELA NÃO PERCEBE OU NÃO QUER PERCEBER ELES TENTAM DIZER-LHE QUALQUER COISA MAS ELA NÃO

QUER OUVIR) Oh, meu Deus, vai dar um trabalho, só de

pensar já dá vontade de desistir... (VADO FAZ SINAL

PARA DANILO FALAR)

DANILO — Sogra...

PÉROLA — (PASSANDO POR ELE, SEM VÊ-LO) Vado, eu acho que

a gente pode aumentar ainda mais a garage, sabia? Eu

tava vendo a planta; gente, isso vai virar um castelo! Já

tô até vendo a cara das suas tias, ciumentas do jeito que

elas são...

Page 115: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 115/121

ELISA — Mamãe!...

PÉROLA — Vado, você aproveitou pra discutir com a Wanda a

forma de pagamento? Elas bem que podiam fazer maisparcelado, né? Pelo menos em quatro, cinco vezes...

VADO — Pérola!...

PÉROLA — Vai dar trabalho, mas vai valer a pena! Não tá pronto

ainda esse cafezinho? (OUVEM-SE RUÍDOS DE OBRA.

ALGUMA COISA ESTÁ SENDO DESTRUÍDA, POSTA

ABAIXO) Ué, que barulho é esse?

(NORMA ENTRA. TODOS OLHAM PARA ELA. ANUNCIA)

NORMA — Já estão derrubando as casinhas.

PÉROLA — Que...!

NORMA — Foi o último pedido da mamãe, Pérola. Antes de morrer

ela pediu para que vendêssemos pro dr. Henrique.

(PÉROLA MURMURA: “NÃO PODE SER”, “NÃO PODE

SER”. VOLTA-SE PARA VADO, PARA A FILHA PARA O

CUNHADO, SEMPRE MURMURANDO: “NÃO PODE SER..

EU NÃO POSSO ACREDITAR”) Eu ainda tentei impedir,

eu sei como você precisa desse terreno, mas a Lola e a

Wanda quiseram respeitar o desejo da mamãe, você sabe

como ela adorava ele, o dr. Henrique sempre foi tão bom

pra ela... Ele vai construir uma clínica aqui do lado. (DO

LADO ESQUERDO DO PALCO INICIA-SE UMA SOMBRA

Page 116: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 116/121

QUE CRESCE EM DIREÇÃO AO CENTRO DO PALCO

COMO SE FOSSE UM PRÉDIO SUBINDO)

PÉROLA — Vocês não fizeram isso, Norma! Vocês não seriamcapazes de fazer isso comigo...

NORMA — Foi seu último pedido, Pérola. Tava com a voz tão

fraquinha, tadinha... “Vendam pro dr. Henrique!” Disse

isso e morreu. Como é que podíamos negar? (O

BARULHO DA CONSTRUÇÃO AUMENTA PÉROLA FICA

FORA DE SI. TENTA LUTAR CONTRA A SOMBRA QUE

VAI TOMANDO CONTA DO PALCO)

PÉROLA — Nããããooo! Parem! Parem com isso! Pareeeemm!!!

(DETRITOS, LASCAS DE  TIJOLOS CAEM SOBRE ELA)

VADO — Pérola!!! (O BARULHO CESSA. A SOMBRA PASSASOBRE ELA E VAI JUNTAR-SE COM A OUTRA,

ESCURECENDO O PALCO. QUANDO ELAS SE TOCAM,

OUVE-SE O SOM DE UMA PESADA PORTA DE BRONZE

FECHANDO. PÉROLA ENCARA A IRMÃ. NORMA ENTÃO

LEVANTA-SE DA CADEIRA DE RODAS E OFERECE-A

PARA PÉROLA. PÉROLA ANDA LENTAMENTE ATÉ A

CADEIRA E DEIXA-SE CAIR NELA. NORMA AJEITA-A E

BEIJA-A NO ROSTO. SAEM DE CENA, EM CORTEJO

FÚNEBRE, NORMA EMPURRANDO A CADEIRA,

SEGUIDA DE ELISA E DANILO. EMÍLIO ASSISTE À

CENA. VADO PERMANECE, IMPOTENTE. PEGA A

XÍCARA DE CAFÉ)

Page 117: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 117/121

VADO — Tô tão habituado a levar o café pra sua mãe na cama...

Que faço com isso...? (TOMA O CAFÉ, CHORANDO.

EMÍLIO ANDA ATÉ O BAR E PEGA A PLAQUINHA QUE

VADO DEU DE PRESENTE A PÉROLA E LÊ)

EMÍLIO  — “Se o destino lhe der um limão, faça uma caipirinha...”

Onde quer que ela esteja, deve estar agora tomando um

campari...

VADO — Tá na sua hora?

EMÍLIO — Tá. (VADO BEIJA O FILHO) Eu te ligo...

VADO — Pode ligar a qualquer hora que eu vou estar por aqui...

limpando a piscina. (CATA ALGUMA COISA DO CHÃO)

Eles jogam tanta sujeira aí das janelas dessa clínica...

acho que eles pensam que aqui é terreno baldio. Voulimpar a piscina, ninguém vai nadar mesmo, mas pelo

menos eu me distraio. Tchau, filho. Vai com Deus...

(CATA ALGUMA COISA DO CHÃO E AFASTA-SE. EMÍLIO

CAMINHA EM DIREÇÃO À VELA QUE FOI ACESA NO

INÍCIO DA PEÇA E APAGA-A. PÉROLA SURGE)

PÉROLA — EMÍLIO!

(ELE PÁRA, VOLTA-SE. ELA PERGUNTA)

PÉROLA — A água está limpa?

EMÍLIO — Está, mamãe.

Page 118: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 118/121

 

(A LUZ DA PISCINA COMEÇA LENTAMENTE ACRESCER.

ELA DIRIGE-SE PARA A BORDA, DEIXA CAIR A ROUPA

 — POR BAIXO ESTÁ COM O MAIÔ QUE USOU EM TUPÃQUANDO FOI “RAINHA DAS PISCINAS” E QUE ELISA

VESTIU NO PRIMEIRO ATO, FAZ PARA O FILHO A POSE

DA FOTO, À LA ESTHER WILLIAMS, COMO SE FOSSE

SALTAR DO TRAMPOLIM E... MERGULHA NA PISCINA)

Page 119: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 119/121

 

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

http://groups.google.com/group/digitalsource

Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar,

de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem

comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a

 venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é

totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é

a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.

 Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois

assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure :

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-loem nosso grupo.

Page 120: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 120/121

 

Impresso no Brasil pelo

Sistema Cameron da Divisão Gráfica da

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 — 20921-380 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 585-2000

Page 121: Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

8/16/2019 Mauro Rasi - Pérola (pdf)(rev).pdf

http://slidepdf.com/reader/full/mauro-rasi-perola-pdfrevpdf 121/121