Maternidade na adolescência

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Um olhar para os centros urbanos pobres.

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PESQUISA / ORIGINALRESEARCH / ORIGINAL

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MATERNIDADE DE ADOLESCENTES DE PERIFERIAS SOCIAISE URBANAS: ALGUMAS ANÁLISES À LUZ DA PSICOLOGIA

AMBIENTAL

MOTHERHOOD AMONG POOR TEENAGERS BELONGING TO SOCIAL ANDURBAN OUTSKIRTS: ANALYSIS UNDER THE LIGHT OF ENVIRONMENTAL

PSYCHOLOGY

Nancy Ramacciotti de Oliveira*

Oliveira NR Maternidade de adolescentes de periferias sociais e urbanas: algumas análises à luzda Psicologia Ambiental. Rev Bras Cresc Desenv Hum 2005; 15(1):69-77.

Resumo: Esse artigo apresenta reflexões sobre a procriação de adolescentes de periferias

sociais e urbanas de duas grandes cidades do Estado de São Paulo (BR), Santos e Santo

André, baseando-se em conceitos da Psicologia Ambiental, a partir de três estudos realizados

anteriormente com adolescentes grávidas e mães pobres. Naquelas condições sócio-ambientais,

a gravidez pareceu diretamente associada a carências advindas de modelos que apresentam

necessidades que aquelas adolescentes não podiam prover. A procriação de adolescentes

pobres numa sociedade globalizada, com desafios de busca de uma forma de desenvolvimento

que seja sustentável, é entendida como um fenômeno psicossocial, que deve ser tratado de

forma interdisciplinar, uma vez que alcança âmbitos maiores, de ordem ética e política.

Palavras-chaves: Gravidez na adolescência. Procriação de adolescentes pobres. PsicologiaAmbiental. Riscos ambientais para juventude. Procriação e protagonismo juvenil. Escola.Enraizamento.

Histórico

Neste artigo, são apresentadas algumasreflexões sobre o fenômeno da gravidez e damaternidade de adolescentes pobres que vivemem grandes centros urbanos. Essas reflexõesdecorreram de três estudos psicossociais sobregravidez, maternidade e sexualidade de adoles-centes pobres feitos em cidades da Baixada San-tista (SP) e na cidade de Santo André (SP) 1,2,3.Tais estudos tiveram como ponto de partida anossa prática profissional como psicóloga em umaunidade de serviço público de atendimento pré-natal e maternidade.

A partir desses estudos, o protagonismojuvenil e as condições contemporâneas da cha-mada juventude popular urbana mostraram arelevância da problemática sócio-ambiental fren-te à questão da gravidez e da maternidade ocor-ridas nesses contextos4.

No primeiro desses estudos, foram pes-quisadas adolescentes grávidas (com uso de 82questionários e 150 desenhos de auto-retrato)e mães (através de 36 entrevistas em profundi-dade, realizadas nos locais da moradia, quandoos bebês tinham menos de cinco meses). Esseestudo foi retomado num trabalho de seguimentolongitudinal, com a investigação dessas mães

* Psicóloga clínica e professora do curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos - UNISANTOS. End,:Av. Washington Luis, 553 ap.51. Santos - SP . CEP 11055-001. E-mail: [email protected]

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adolescentes, quando seus filhos já estavam comcerca de três anos e meio, também com entre-vistas propostas para realização nas própriascasas, apesar das mudanças de moradia ocor-ridas no intervalo das pesquisas de campo1, 2..

Para análise dos resultados desses doistrabalhos com mães adolescentes, foram usa-dos eixos temáticos como: histórias de vida,cotidiano, condições de moradia, subsistência,dependência e autonomia, trajetória escolar ede trabalho, aspectos de risco, avaliações daexperiência da gravidez e maternidade, proje-tos, amizades, lazer, maternagem†, condiçõesgerais de desenvolvimento do filho, questões desexualidade e gênero, condições do pai da cri-ança, aspectos emocionais, auto-imagem e iden-tidade.

Essa relação entre os aspectos sócio-ambientais de jovens moradores de periferiassociais e urbanas e a sexualidade foi retomadanum terceiro estudo que incluiu um inventáriosobre a vida sexual de adolescentes, homens emulheres, com ênfase em aspectos da procria-ção3.

As análises tiveram como referência oprotagonismo infantil e a juventude atual urba-na, conforme Costa4.

OBJETIVO E MÉTODO

No presente artigo, alguns elementos re-tirados desses três trabalhos são discutidos soba ótica de psicologia ambiental, incluída aí umainterseção com a geografia e com a sociologia.Para tanto, foram usados: a) o conceito de es-

paço total como construção de fragmentos deuma história e de uma geografia6; b) o conceitode busca de sanidades enquanto uma formade ambientalismo7; e c) referências ao desen-

volvimento sustentável, em uma visão crítica

desse desenvolvimento8.Para abarcar, nessa ótica, a questão da

gravidez e maternidade de adolescentes pobresde centros urbanos, isto é, a inter-relação des-se fenômeno com condições sócio-ambientaisespecíficas, as reflexões propostas caminharamnos seguintes temas: características dos territó-rios de risco, dos prejuízos escolares e do de-senvolvimento da crítica; problemas de enrai-zamento; questões de saúde e/ou sanidades.Finalizando o artigo, apresenta-se uma brevediscussão da temática da sustentabilidade emrelação à procriação de adolescentes pobres.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Aspectos de território: as adolescentes, osriscos e os fragmentos simbólicos dasociedade globalizada

O ambiente, visto como espaço total dosjovens das periferias sociais e urbanas de algu-mas cidades brasileiras, é composto por umaforma de pobreza contemporânea e urbana,permeada dos riscos da criminalidade e do trá-fico de drogas, e de trânsito de símbolos e va-lores que não se encontram ali disponíveis parausufruto e realização. A subjetividade de jovensdesses espaços emerge no inter-jogo de suascondições internas – de suas histórias familiarese sociais, principalmente vividas na luta por so-brevivência, e de sua convivência com os ris-cos do território - com a incorporação de umacultura de necessidades, mitos, ídolos, idéias eimagens de uma sociedade fora de suas condi-ções de pobreza. Eles vivem e crescem numterritório - um espaço total que é, concomitan-temente, uma junção de fragmentos, geográfi-cos e históricos, do planeta e da humanidade6 -de fragmentos próprios de uma sociedade glo-

† A “maternagem” está sendo entendida como uma interação adulto-criança que inclui acolhimento, compreensão,paciência, orientação e suporte por e com a criança, em suas angústias.5 (p.157).

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balizada que constantemente expõe, pela mí-dia, seus valores de consumo de riquezas.

Em dois estudos feitos com grávidas emães adolescentes dessas periferias de gran-des cidades, todas as entrevistadas referiramdireta ou indiretamente situações concernentesà pobreza e à convivência com riscos, princi-palmente os do tráfico e do uso abusivo de dro-gas, da violência urbana e da criminalidade. Asfalas sobre roubos, ameaças e juramentos demorte, fugas, mortes com crueldade, prostitui-ção, abuso sexual e violência doméstica, de for-ma quase banal, faziam parte do cotidiano doambiente no qual viviam.

A convivência cotidiana com os perigosdo território parecia promover a construção derecursos de defesa para a administração dos ris-cos. Estar alerta, não manifestar confronto, obe-decer às ordens dos traficantes, separar-se docompanheiro traficante após um sinal de aumen-to de risco, conviver com as regras do tráfico eda criminalidade, em especial com as fugas apósjuramentos de morte e a submissão à violênciadoméstica foram circunstâncias trazidas nos de-poimentos como exemplos de formas de lidarcom os perigos daqueles ambientes.

Nesses estudos, entretanto, pode-se ob-servar que os riscos da criminalidade e do tráfi-co, que rondavam os ambientes das mães ado-lescentes, não pareciam atingi-las diretamente(com exceção de uma entrevistada, vítima deviolência doméstica, espancamentos, agressõese ameaças sofridas do companheiro traficante).Esse dado concorreu para a sugerir a hipóteseda existência de alguma proteção diante dos ris-cos próprios desses territórios - proteção ad-vinda da gravidez e da maternidade, por contada menor disponibilidade para freqüência a de-terminados espaços, que uma mãe adolescentepobre dispõe, pelo menos quando tem um filhoainda pequeno.

Os riscos das periferias urbanas não es-tão localizados em espaços com fronteiras cla-ras. Ao contrário, eles espalham-se por todo o

ambiente, pelas casas, ruas, escolas e nos pou-cos espaços de lazer, em especial, nos bares ebailes. As diversões oferecidas nesses ambien-tes, em geral coletivas, são muito ligadas ao trân-sito de drogas e tráfico.

Justamente a perda da disponibilidadepara essas diversões era a principal queixa dasjovens pesquisadas - indisponibilidade claramen-te entendida por elas como um prejuízo advin-do da gravidez e da maternidade. No entanto,o “estar presa” pela criança, isso é, pelo tempodedicado ao filho, retirava as adolescentes mães,em graus e formas diferentes, dos espaços de“zoar”, gerando uma situação de certa prote-ção pelo distanciamento dos riscos desses es-paços. Essa situação foi sugerida em todos oscasos pesquisados, e foi freqüentemente expres-sa por muitas das jovens ao lamentarem a per-da desse tipo de lazer.

Os maiores riscos psicossociais aparen-tes, em algumas das jovens pesquisadas (pros-tituição, surto psiquiátrico, violência, delinqüên-cia e tráfico), foram associados especialmenteaos prejuízos na inserção familiar, com situa-ções de abandono, precariedade, turbulência edanificação. Entretanto, nos casos em que arelação com a família de origem apresentava-se melhor instalada, com maior segurança econfiança nos vínculos, foram mais evidentes osperigos relacionados ao ambiente em que elasmoravam: aqueles bairros muito pobres.

Nesses bairros, a pesquisa de campo ébastante difícil. Os espaços pobres de periferi-as urbanas, especialmente as favelas domina-das pelo tráfico, constituem-se territórios comfronteiras por vezes invisíveis, mas rígidas. Sãoterritórios permeados pelos riscos, mas isola-dos e pouco decifráveis, apesar de abrangidosextensa e intensamente pela comunicação demassa (principalmente pela televisão).

Pelo aumento da violência e da criminali-dade, esses territórios acabam por se tornar quaseque impenetráveis para estudo e compreensão,já que apresentam grandes riscos para a segu-

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rança dos pesquisadores. Ali, para penetração einvestigação, é preciso contar com permissão eintermediação de forças locais, muitas vezes li-gadas à violência e à contravenção.

Num dos trabalhos de campo, realizadoem 2001, por exemplo, a disponibilidade dasjovens para ocorrência de entrevistas nas suaspróprias residências foi bem menor do que noestudo anterior, feito cerca de três anos e meioantes.

Esse fato foi analisado com uso das se-guintes hipóteses:

- a ocorrência, proporcionada pelo de-senvolvimento da adolescente, do um aumentode percepção crítica diante da situação de po-breza, condição evidente nas moradias e ambi-entes em que elas viviam e pouco visível em seustrajes e imagens pessoais††;

- o perigo dos ambientes ter aumentadoou se tornado mais visível para as jovens entre-vistadas, se comparado à situação anterior.Nesse sentido, elas estariam tentando protegera entrevistadora, evitando sua entrada em terri-tório de risco;

- as jovens que expressaram maior re-sistência da ida à casa pela entrevista não ti-nham mais bebês pequenos (um segundo fi-lho), cuja presença poderia protegê-las de ris-cos relacionados à pesquisa (pelo depoimen-to) e também proteger a entrevistadora, já quenão havia mais uma identificação direta da pes-quisa com serviços de pré-natal ou materni-dade (etapa do trabalho de campo quando obebê era bem pequeno).

Por tudo isso, e pela constatação de que,atualmente, um enorme contingente de jovensbrasileiros vive e sobrevive em territórios po-bres e urbanos dominados pelo tráfico - na for-ma de crime organizado em nível internacional -, a problemática da procriação de dessas ado-lescentes deve ser tratada por políticas públi-

cas que não apenas enfatizem a prevenção dacontracepção e das DSTs (com informaçõessobre práticas sexuais consideradas seguras),mas que, sobremaneira, articulem seus mode-los de intervenção com as condições dessesambientes marcados pela insegurança.

Os prejuízos escolares e a(im)possibilidade de crítica dasadolescentes acerca de seus ambientes ede seus cotidianos

Segundo Ferrara9, a crítica do cotidiano écondição necessária para o sujeito transformarsua história, construir seu presente e futuro.

Nos relatos sobre suas histórias, as jo-vens pesquisadas falavam de suas vicissitudesnas ligações amorosas e familiares e de suas lu-tas por sobrevivência. Com percepções frag-mentadas e um pouco confusas acerca do coti-diano, elas descreviam a vida quase como umdestino, do qual a primeira gravidez transfor-mava-se em epicentro.

As mudanças de endereço e uma quaseausência de pertinência a instituições escolaresou sociais (clubes, associações, igrejas) eramas condições presentes nas vidas das entrevis-tadas, principalmente após o nascimento de seusbebês. Elas cuidavam das crianças em suas ca-sas, faziam poucas e fracassadas tentativas devolta à escola, além de algumas tentativas es-porádicas de inserção no mercado profissional.

Para a subsistência, elas dependiam de suasfamílias de origem, ou de seus companheiros edas famílias deles. Seus projetos e expectativasvoltavam-se para as necessidades materiais, quecareciam de potencial para realização - conse-guir um bom emprego e ter uma casa própria.Também queriam terminar os estudos (sem iden-tificar ou delimitar o limite do término) e pensa-

† † No estudo de seguimento longitudinal, as adolescentes que não deram entrevistas em suas casas, vieram ao encontro dapesquisadora para as entrevistas, vestidas com roupas da moda, usando batom e perfume.

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vam em ter outro filho num futuro (aquelas entre-vistadas que tinham tido apenas um filho).

Acerca desse cotidiano, elas mostravampouca condição de reflexão ou crítica. Os pre-juízos escolares pareciam ser determinantes paraa dimensão dessa falha.

Em geral, as adolescentes não estavammais na escola quando haviam engravidado, ouali estavam com dificuldades de pertinência.Durante a gravidez e principalmente depois donascimento do bebê, as tentativas de re-inser-ção eram poucas e difíceis. Após algum tempodo nascimento da criança, as adolescentes ma-nifestavam desejos de voltar a estudar, mas ha-via obstáculos para as re-matrículas. As cons-tantes mudanças de endereço, e até de cidade,ocorridas nas tentativas de construir uma novafamília, exigiam providências para o retorno àescola, quanto a vagas e documentação, queteriam que ser feitas sem ajuda de adultos. Amaternidade fazia com que elas fossem encara-das como adultos que teriam que tomar contada própria vida e da de seus filhos - fazer matrí-culas, arranjar vagas em creches e em escolas,enfim, tornar a se inserir, quase sempre às pró-prias custas, na trajetória para um melhor de-senvolvimento.

Em geral, após a procriação, uma ado-lescente pobre não é mais tratada como filha aser educada, mas sim como mãe, que deve cui-dar de seus filhos - um degrau de crescimentobastante grande para ser transposto sem ajudaexterna. Entretanto, para as adolescentes pes-quisadas, isso parecia natural, ou inevitável. Emseus relatos, havia a sugestão de que esse rápi-do “desmame” (da condição de filha adoles-cente / dependente, para a condição de mãe /independente) era decorrência de dois fatores.Primeiro, uma clarificação de fronteira causadapela procriação: a saída de um mundo de privi-légios de filho para entrada no mundo de pais,dos quais se espera autonomia e responsabili-dade. Em segundo lugar, mas não menos im-portante, essa retirada da condição de depen-

dência podia funcionar como uma descargapara a responsabilidade psicológica, social eeconômica da família, com a liberação de ummembro que não mais necessitaria de acompa-nhamento em seu desenvolvimento, ser cuida-do e educado para a vida.

Com essas condições, era muito difícil oretorno aos estudos. Ao lado disso, todas asentrevistadas manifestaram valorização da es-cola, como passagem necessária para um in-gresso bem sucedido no mercado profissional,e associavam a não disponibilidade para os es-tudos com a ocorrência da gravidez. Assim, elaspareciam apenas reproduzir parte do discursopolítico e da saúde pública acerca da gravidezde adolescentes, sem alcançar uma expressãocrítica sobre esse fato e sobre suas vidas. Asdificuldades com a escola ficavam restritamen-te explicadas pelo problema de ter filhos cedo,não incluindo outros fatores, como os proble-mas familiares e sociais, ou até, as dificuldadespróprias das escolas e das creches. Apenashavia a afirmação de que a escola precisava ser“terminada” algum dia (como nos vários relatosda possibilidade de “eliminar matérias” e de ser“dispensada”), não sendo entendida como umdireito a um espaço/tempo de e para o desen-volvimento.

Problemas de “enraizamento” paraadolescentes grávidas e mães

O “enraizamento” concreto ou simbóliconum território, o interesse pelo local e pelo lugar,criam as condições de desenvolvimento da iden-tidade relacionada aos sentidos de pertinência,de modelos de identificação e possibilidade detrocas de conteúdos e continentes psicológicos.

A instabilidade quanto à moradia, comconstantes mudanças comuns às populaçõesurbanas mais pobres, é acentuada pelo eventoda gravidez de adolescentes. Engravidar e terfilhos são fortes motivos para mudar de casa,de bairro e até de cidade (para morar com um

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companheiro, ou com sua família).Essas mudanças acarretam problemas de

“enraizamento” no tocante a grupos de amigos,“turmas”, família de origem e instituições, prin-cipalmente quanto às referências para pertinên-cia em escolas e inclusão dos filhos em crechesdo bairro. Quanto aos domicílios, muitas dasadolescentes mães indicavam viver provisoria-mente nas casas em que habitavam, seja por-que desejavam sair dali para lugares melhores,ou porque assim precisavam.

Com isso, as jovens tinham dificuldadesna integração com a vizinhança, perdiam ami-gos em vez de fazê-los, criavam poucas raízesporque iriam ou queriam ir embora.

A carência e o empobrecimento de con-tatos de amizade observados em diferentesmomentos das pesquisas pareciam diretamenterelacionados a: saída da escola; descolamentode espaços de lazer (já que eles são pratica-mente inexistentes nos bairros pobres); e o cui-dado com a criança, que restringia as saídas decasa, ou de seus arredores. As adolescentesinvestigadas indicaram ter poucos amigos navizinhança; em geral, tinham algumas colegas,jovens também mães, mas os contatos pareci-am pouco estimulantes ou valorizados.

As atividades do cotidiano em geral de-senrolavam-se dentro do campo doméstico,destacando-se as tarefas da casa, o cuidado comos filhos e companheiros, o envolvimento comalguns serviços esporádicos ou a sua procurae, basicamente, assistir televisão – um veículopoderoso na criação, manutenção e reprodu-ção de modelos e ideais quase nunca possíveisde serem atingidos por essas adolescentes, ain-da mais, sendo mães.

As adolescentes grávidas e mães pareci-am prisioneiras daquelas condições sócio-am-bientais, mais ainda do que as adolescentes nãomães, e do que os adolescentes homens.

Era a ocupação com os filhos que asmantinha fora, ou nas fronteiras da rede esco-lar. Além disso, também estavam fora da rede

institucional, fosse de projetos culturais, de cre-ches para os filhos, ou de atividades de lazer oude esporte. Enfim, elas pareciam presas comos filhos - frutos e raízes biológicas - , mas nãoenraizadas, na casa e nos seus arredores, comrestrições e limites para ir e vir, para pertencera outros e diversificados espaços.

Questões de sexualidade e procriaçãonuma sociedade globalizada: aspectos desanidades

Adolescentes pobres e urbanos possu-em fragmentos de permissão para suas vidassexuais, como referência ao grande valor do sexoe à valorização da “liberdade sexual” da socie-dade contemporânea.

Ao lado disso, eles são chamados à res-ponsabilidade para prática de sexo seguro (comuso de prevenção diante de DSTs e especial-mente da Aids) e para a contracepção, atravésdo discurso de um modelo de saúde pública,ou de seus fragmentos, com referências a queas pessoas devem aumentar suas competênciaspara administrar seus destinos em saúde (comoprevenção de doenças) e procriação.

A questão problemática que se colocadiante desses modelos sociais - que incluemerotismo, responsabilidade para sexo seguro ecompetência para a contracepção - é a dificul-dade da articulação desses modelos com ascondições psicológicas e sócio-ambientais es-pecíficas de jovens pobres. Eles têm que ma-nejar suas condições do âmbito da sexualidade(pouca experiência na genitalidade; liberdadesocial para vida sexual; exposição maciça aoerotismo pela mídia), com carências graves noâmbito social (grandes prejuízos para alternati-vas gratificantes no cotidiano; falta de suportepara angústias, em especial as ligadas aos sen-timentos de solidão; envolvimento com situa-ções de risco provenientes da proximidade coma criminalidade, as drogas e o tráfico).

Nessa circunscrição psicossocial, as

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questões de sexualidade e procriação tomamcaracterísticas próprias que não podem ser iso-ladas no campo geral do desenvolvimento e,especificamente, do desenvolvimento da sexu-alidade num sentido psicológico e/ou genético.

O conceito de busca de sanidades7, pró-prio das reflexões do ambientalismo, pode serútil para a discussão dessa temática, pois am-plia limites do pensamento clássico da saúdepública. Nesse sentido, a procriação de ado-lescentes pobres passa a ser tratada não sócomo um problema da ordem da saúde da ado-lescente e a de seu filho, como da sanidade doseco-sistemas em que está inserida.

As primeiras discussões canadensesacerca da questão ambiental incluíram essa idéiade “sanidades” e fizeram parte da própria ori-gem dessa questão. Qualquer problema relaci-onado com a sanidade do ambiente teria queser considerado através de um lado técnico ede um lado de integração com outros sistemas,já que todos os problemas ambientais relacio-nam-se com a organização humana que estánaquele espaço.

A palavra “sanidade”, do latim sanare,tem o sentido de curar e tratar. Nas primeirasdiscussões ambientais, tratava-se de curar e tra-tar a água, o solo, o ar, e os sistemas agrários,por exemplo, tanto tecnicamente como em suaintegração com os outros eco-sistemas.

Tratar a questão da gravidez e da mater-nidade de adolescentes pobres dentro das temá-ticas ambientais decorre de se pensar as sanida-des das cidades, de seus metabolismos, das pes-soas, e de suas relações interpessoais e sociais.

Foi a partir do século XX que a gravidezde adolescentes passou a ser considerada umproblema de saúde pública10, atingindo em suasultimas décadas uma maior dimensão no que

tange a intervenções voltadas a seu tratamentoe prevenção†††.

Já na ótica mais ampliada do conceitoambientalista de sanidades, a procriação de ado-lescentes pobres e urbanas fica mais diretamenterelacionada a questões sócio-políticas. Na orga-nização dos eco-sistemas próprios das cidades,essa procriação pode apresentar elementos debusca de condições construtivas, como tambémelementos opostos a essas condições.

Com respeito a aspectos construtivos(busca e/ou encontro de sanidades), verificou-se que todas as adolescentes pesquisadas, nosdois momentos dos estudos separados por maisde três anos, não deram indicações de uso abu-sivo de drogas, mesmo aquelas que conviviamcom companheiros ou namorados que abusa-vam de drogas e/ou traficavam. Ao contrário,elas referiram ter diminuído o uso das drogasou substituído por drogas menos nocivas (pelomenos na consideração social, como é o casoda substituição da maconha pelo cigarro).

Adicionalmente, a causa da gravidez des-sas adolescentes também pode estar localizadaem outros movimentos não disruptivos. A dis-ponibilidade para engravidar, ativa ou passiva,consciente ou inconsciente, pode ser uma for-ma de escape e administração de riscos associ-ados a condições sócio-ambientais muito ad-versas, como já exposto, por distanciá-las desituações de maior proximidade de criminalida-de, tráfico e drogas, pelo menos pelo tempoque ficavam mais dedicadas ao bebê.

De outro lado, pensar em sanidades, in-clui refletir acerca do futuro adverso dessas jo-vens e de seus filhos, isto é, a perpetuação dascondições de prejuízos sociais quanto ao aces-so à educação, lazer, moradia e condições ade-quadas para o desenvolvimento.

††† O conceito de sanidade é mais abrangente do que o de saúde, relacionando-se diretamente com as ideologias e com apolítica. Por outro lado, as visões eco-energéticas expressam-se estritamente sob o conceito higienista de saúde, poucooferecendo de visão crítica ao desenvolvimento desigual. Diferente do conceito de sanidades, o conceito higienista nãoestá ligado à noção de sobrevivência compartilhada, somente entendendo a sanidade como uma possibilidade dehigiene.

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Quando os filhos das adolescentes foremmaiores de quatro anos (limite temporal daspesquisas de referência desse artigo), haveráriscos maiores do que os já presentes para in-clusão, qualificação, e construção de uma iden-tidade com capacidades para a criatividade,mudanças e permanências? Esses riscos serãodiretamente provenientes da ocorrência da pro-criação na adolescência? - Essas são questõesainda em discussão, sugerindo novas investiga-ções, especialmente as voltadas ao estudo dofenômeno da gravidez de adolescentes pobresna ótica sócio-ambiental.

Procriação de adolescentes pobres: riscotambém para a sustentabilidade±?

Mesmo que as hipóteses acerca da re-produção da pobreza causada pela procriaçãode adolescentes pobres sejam criticadas etica-mente, o aumento expressivo das taxas de pro-criação em adolescentes pobres expõe um di-lema diretamente relacionado às sociedadessustentáveis. Nesse sentido, interroga-se: comopoderão ser alcançadas direções de sustenta-bilidade, num mundo com enormes diferençassociais, no qual cresce ou se mantém o fenô-meno expressivo da gravidez de adolescentes?

O conceito de sustentabilidade inclui anoção de que o desenvolvimento deve ocorrerde forma que as necessidades satisfeitas no pre-sente não comprometam as necessidades dofuturo, das próximas gerações7,12. Por isso, aprocriação dos adolescentes pobres é uma te-mática diretamente relacionada à sustentabili-dade, porque ligada ao futuro das próximasgerações, mães e filhos, e do planeta.

Por outro lado, a procriação de jovenspobres e urbanas pode ser resposta direta e/ou

indireta às graves necessidades do tempo pre-sente - mais simbólicas do que as de naturezasexual, muito mais relacionadas e criadas peloespaço total e pelas condições dos territóriosdo que por escolhas entre alternativas de de-senvolvimento. Para uma adolescente pobre, terum bebê e uma esperança de constituir famíliapode ser uma saída para dar conta de necessi-dades presentes e urgentes, como a constata-ção do desamparo e da falta de horizontes.

As preocupações públicas relacionadasà procriação adolescente são voltadas especi-almente para o futuro, isto é, relacionadas a pre-juízos que poderão atingir as condições sociaisdessas adolescentes e de seus filhos - prejuízosnas suas competências para a sobrevivência noe do modelo contemporâneo de sociedade. Emespaços com enormes diferenças na distribui-ção das riquezas e das carências sociais, comonas periferias sociais e urbanas de grandes ci-dades brasileiras, as novas gerações formadaspor filhos de adolescentes pobres estão assimcolocadas nesse dilema da sustentabilidade -uma provável busca de sobrevivência de parteda geração presente acaba mantendo, agravan-do ou até perpetuando os prejuízos que já seencontram instalados na geração de seus pais.

Como toda a procriação humana, a pro-criação de adolescentes tem uma dimensão éti-ca. É essa dimensão que precisa ser colocadano centro das discussões sobre o fenômenoda gravidez e maternidade de adolescentes po-bres e urbanas, e do aumento de sua incidên-cia. Com isso, as dimensões políticas que cer-cam a questão poderão ser trabalhadas paraalém das intervenções (sem dúvidas necessá-rias) que as políticas públicas têm adotado,ainda com pouca eficácia, pelo menos quantoà sua prevenção.

± Conforme Pol11, o termo sustentabilidade não tem uma definição operativa suficiente e apresenta enfoques distintosde acordo com as perspectivas das problemáticas ambientais. A ênfase em desenvolvimento ou em sustentável é diversa,mas os conceitos de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável tiveram a virtude de facilitar pontos de encon-tro (mesmo que não de acordo) entre diversos interesses, sendo assumidos por ambientalistas e também por estruturasempresariais e industriais.

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Abstract:This paper presents considerations, based on concepts of environmental psychology,about breeding of poor teenagers belonging to the urban outskirts of large cities from the state ofSão Paulo, Brazil. Under these environmental and social conditions, pregnancy seems to bedirectly associated with lacks existing in the current models, which present needs that cannot befulfilled by these teenagers. The breeding of poor teenagers in a globalized society, with thechallenge of searching for a form of self-supported development, is understood as a psychosocialphenomenon, which must be handled with an inter-disciplinary approach, since it reaches largerrealms, such as ethics and politics.

Keywords: Teenage pregnancy. Breeding of poor teenagers. Environmental Psychology.Environmental hazards for youngsters. Teenage breeding and protagonist role-playing. School.

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Recebido em 10/06/2004Modificado em 14/10/2004

Aprovado em 10/01/2005