Material Do Professor - DireitoCivil - Aula02Online - Responsabilidade Civil

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1 Material elaborado pelo Professor Gustavo Nicolau AUDITOR E ANALISTA FISCAL Material do Professor - Direito Civil - Professor Gustavo Nicolau – Responsabilidade Civil MATERIAL DO PROFESSOR Efetiva aplicação da teoria do risco no Código Civil de 2002 Gustavo Rene Nicolau 1 1. Introdução. 2. Declínio da responsabilidade civil subjetiva. 3. Ascensão da responsabilidade civil objetiva. 3.1 Exclusão da responsabilidade objetiva. 4. Responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor. 5. Responsabilidade Civil no Código de 2002. 5.1 Parágrafo único do art. 927 do Código Civil. 6. Aplicações específicas do art. 927 parágrafo único. Conclusões. Referências bibliográficas. 1. Introdução A entrada em vigor do Código Civil de 2002 trouxe basicamente duas espécies de novidades ao mundo jurídico. Na primeira categoria encontram-se as “falsas novidades”, que alteraram apenas o texto do Código Civil, adaptando-o à Constituição Federal ou às leis especiais como a do divórcio, o Código de Defesa do Consumidor ou o Estatuto da Criança e do Adolescente. São alterações superficiais que muito pouco, ou quase nada, alteram a vida prática do cidadão. Dentro desse grupo podem ser mencionados diversos exemplos. O primeiro deles envolve a alteração do art. 1° do Código que substitui o substantivo homem por pessoa. A igualdade entre os filhos, preconizada pelo art. 1.596, mas que na verdade já havia sido incorporada em nosso ordenamento desde 1988 com a Constituição Federal é outro exemplo. A revogação do art. 219, IV do Código Civil de 1916, que previa a anulação do casamento pelo fato de a mulher já ser deflorada é outra “falsa novidade”, pois tal espécie de pedido no Judiciário é muito rara e não afeta a vida cotidiana do homem comum da civilização. A pretensa igualdade entre homem e mulher para manter a guarda da criança numa separação é outro exemplo, pois 1 Advogado em São Paulo, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil da FAAP e da Rede de Ensino LFG. Autor dos livros: Direito Civil. Parte Geral, Direito Civil - Sucessões, Comentários ao Código Civil, Medidas Provisórias e Casamento e União Estável, todos publicados pela editora Atlas.

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Material elaborado pelo Professor Gustavo Nicolau

AUDITOR E ANALISTA FISCAL

Material do Professor - Direito Civil - Professor Gustavo Nicolau – Responsabilidade Civil

MATERIAL DO PROFESSOR

Efetiva aplicação da teoria do risco no Código Civil de 2002 Gustavo Rene Nicolau1

1. Introdução. 2. Declínio da responsabilidade civil subjetiva. 3. Ascensão da responsabilidade civil objetiva. 3.1 Exclusão da responsabilidade objetiva. 4. Responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor. 5. Responsabilidade Civil no Código de 2002. 5.1 Parágrafo único do art. 927 do Código Civil. 6. Aplicações específicas do art. 927 parágrafo único. Conclusões. Referências bibliográficas.

1. Introdução

A entrada em vigor do Código Civil de 2002 trouxe basicamente duas espécies de novidades ao

mundo jurídico. Na primeira categoria encontram-se as “falsas novidades”, que alteraram apenas o texto

do Código Civil, adaptando-o à Constituição Federal ou às leis especiais como a do divórcio, o Código de

Defesa do Consumidor ou o Estatuto da Criança e do Adolescente.

São alterações superficiais que muito pouco, ou quase nada, alteram a vida prática do cidadão.

Dentro desse grupo podem ser mencionados diversos exemplos. O primeiro deles envolve a alteração do

art. 1° do Código que substitui o substantivo homem por pessoa. A igualdade entre os filhos, preconizada

pelo art. 1.596, mas que na verdade já havia sido incorporada em nosso ordenamento desde 1988 com a

Constituição Federal é outro exemplo. A revogação do art. 219, IV do Código Civil de 1916, que previa a

anulação do casamento pelo fato de a mulher já ser deflorada é outra “falsa novidade”, pois tal espécie de

pedido no Judiciário é muito rara e não afeta a vida cotidiana do homem comum da civilização. A pretensa

igualdade entre homem e mulher para manter a guarda da criança numa separação é outro exemplo, pois

1 Advogado em São Paulo, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil da FAAP e da Rede de Ensino LFG. Autor dos livros: Direito Civil. Parte Geral, Direito Civil - Sucessões, Comentários ao Código Civil, Medidas Provisórias e Casamento e União Estável, todos publicados pela editora Atlas.

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as decisões jurisprudenciais mostram torrencial e saudável preferência à mulher para desempenhar tal

função2.

O segundo grupo reúne as verdadeiras alterações do Código Civil. São aquelas que alteram não

só o texto da lei, mas também a vida do cidadão, para melhor ou pior, dependendo do caso concreto. São

alterações de rota, de orientação e política legislativa, que terão o condão de mudar o rumo de muitas

lides e a vida de milhões de pessoas. Nesse segundo grupo podemos desde logo incluir a ordem de

vocação hereditária, prevista no art. 1.829 que substituiu radicalmente o art. 1.603 do Código, bem como

o art. 1.790 que derrogou leis especiais que regulavam os direitos hereditários do convivente na união

estável. Se casar ou se unir estavelmente não implicava em diferenças práticas, tal realidade mudou em

janeiro de 2003, ao menos no que se refere aos direitos sucessórios. Outro bom exemplo de verdadeira

alteração do Código Civil ocorreu em relação aos prazos prescricionais. A violação ao direito de reparação

civil, uma das hipóteses mais comuns nos Tribunais, gera uma pretensão à vítima que até 2003 durava

vinte anos e com o novo Código passou a durar apenas três (art. 206 § 3°, V), incluindo aí uma regra de

transição para os prazos em andamento (art. 2.028).

Nessa classificação entre verdadeiras e falsas novidades, um dispositivo do Código Civil chamou

muita atenção da doutrina desde 2003 e será objeto do presente estudo. Refiro-me ao parágrafo único do

artigo 927 do Código Civil, que adotou a consagrada teoria do risco, introduzida no Brasil pelo Professor

Alvino Lima, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. “Esse alargamento da noção de

responsabilidade constitui [...] a maior inovação do atual Código em matéria de responsabilidade e

requererá, sem dúvida, um cuidado extremo da [...] jurisprudência”.3 Ver-se-á, todavia, que cotejando o

dispositivo com leis especiais que antecederam ao Código, apenas situações específicas se enquadrarão

no referido dispositivo.

2. Declínio da responsabilidade civil subjetiva

Na esteira do art. 1.382 do Código francês4, inúmeros diplomas civilistas do Ocidente adotaram a

idéia de que a responsabilização civil de um agente causador de danos, em regra, só poderia concretizar-

se mediante a existência do elemento subjetivo culpa (aqui designada em seu sentido lato, abrangendo

também o dolo). Deste modo, além da ação, do dano e do nexo entre esses dois, a lei exigia também a

prova de que houve por parte do agente uma atitude negligente ou imprudente, ou seja, que ficasse

2 Guarda. Filhas vivendo em centro naturista. Alteração liminar. Indeferimento. Não havendo prova nos autos de qualquer prejuízo que possam estar sofrendo as menores na colônia nudista, local onde foram residir com a mãe e onde preferem morar, descabe a alteração liminar da guarda em favor do pai, mormente pelo fato de que a questão demanda análise e cognição pleno. Agravo de instrumento desprovido. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: José Ataídes Siqueira Trindade. Órgão julgador: Oitava Câmara Cível. Agravo de instrumento n.° 70000088989. 30.9.1999. 3 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil . Responsabilidade Civil. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 19. 4 Art. 1.382. “Qualquer ação de uma pessoa que cause dano a outra, obrigará aquele por cuja culpa se causou a repará-lo”. FRANÇA. Código Civil.

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provada a culpa. O Código brasileiro de 1916 adotou tal posicionamento em sua parte geral, no art. 159,

o que também ocorre no Código Civil espanhol, em seu art. 1.9025, no uruguaio (art. 1.319)6 e no

português (art. 483)7. Todos esses diplomas, e outros tantos, exigem como regra geral a prova de que o

agente tenha agido com culpa, para só então permitir que a vítima receba a indenização.

Essa foi a orientação durante os últimos séculos em quase toda civilização ocidental. A

responsabilidade civil subjetiva tem como foco principal o agente causador do dano, já que busca

encontrar em sua atitude um comportamento imprudente ou negligente, evidenciando assim a sua culpa,

o que dá então ensejo a indenização. Talvez como regra geral para um ordenamento, essa seja a solução

“menos injusta”, já que não se pode condenar um indivíduo (nem mesmo no âmbito civil) a indenizar

outrem sem que sua culpa esteja provada. Se assim fosse, qualquer um de seríamos demandados (e

condenados) ainda que sem prova de qualquer atitude culposa.

Em inúmeros casos, todavia, a exigência de tal prova equivalia, na prática, a não indenizar a

vítima, contrariando a idéia que propugnava por uma ampliação dos casos de indenização, tendo em foco

a vítima. De fato, provar a culpa do agente é uma das mais difíceis tarefas da parte dentro de um

processo judicial. Alvino Lima já fazia referencia a tal situação em 1938:

Dentro do critério da responsabilidade fundada na culpa não era possível resolver um sem número de casos, que a civilização moderna criara ou agravara; imprescindível se tornara, para a solução do problema da responsabilidade extra-contratual, afastar-se do elemento moral, da pesquisa psicológica do íntimo do agente ou da possibilidade de previsão ou de diligência para colocar a questão sob um aspecto até então não encarado devidamente, isto é sob o ponto de vista exclusivo da reparação do dano.8

Desta forma, a responsabilidade baseada na culpa do agente, chamada de responsabilidade

subjetiva, foi – em determinadas relações desiguais – perdendo terreno diante da incontestável realidade

de tantos casos que ficaram sem indenização por não se conseguir provar a culpa do agente que causou o

dano.

Em seu lugar o legislador estabeleceu a inversão do ônus da prova, mantendo a culpa como

elemento essencial à indenização, mas presumindo que a mesma ocorrera, deixando ao causador do dano

5 Art. 1.902. “El que por acción u omisión causa daño a otro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado”. ESPANHA. Código Civil 6 Art. 1.319. “Todo hecho ilícito del hombre que causa a otro un daño, impone a aquel por cuyo dolo, culpa o negligencia ha sucedido, la obligación de repararlo”. URUGUAI. Código Civil. 7 Art. 483. “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. PORTUGAL. Código Civil. 8 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938, p. 87.

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a possibilidade de provar que a presunção fora errônea naquele caso concreto. Foi o que fez o Código Civil

italiano de 1942, ao estabelecer – em casos de exposição ao perigo – uma presunção de culpa que vinha

acompanhada da possibilidade de o autor do dano ilidir sua responsabilidade, desde que provasse que

empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir o dano.9

No Brasil, um bom exemplo encontra-se na responsabilidade que o empregador tem de

responder pelos atos ilícitos de seu empregado. Nesse sentido a súmula n.° 341 do STF, de 13 de

dezembro de 1963, sustentou ser “presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do

empregado ou preposto”. Note que no enunciado desta súmula há duas “culpas” a serem evidenciadas. A

primeira – e antecedente lógico da responsabilidade civil – é a culpa do empregado, pois o enunciado

exige que o seu ato tenha sido culposo10. A segunda culpa – do empregador – estaria presumida,

restando a ele provar que contratara o funcionário mediante rigoroso critério seletivo, que vigiava sua

atividade constantemente e que não permitia que o mesmo exercesse sua atividade por um número

excessivo de horas a ponto de desviar a concentração e rendimento do empregado. Tal inversão

tampouco solucionava o problema visto que a vítima teria de fazer a prova de dois atos culposos, além de

se colocar exclusivamente nas mãos do agente todos os meios hábeis a fim de provar sua não culpa.

3. Ascensão da responsabilidade civil objetiva

Diante desse cenário foi ganhando cada vez mais força uma corrente entendendo que – para

alguns casos – o dever de indenizar não teria como requisito a prova da culpa por parte do responsável.

“Em síntese, cuida-se da responsabilidade sem culpa em inúmeras situações nas quais sua comprovação

inviabilizaria a indenização para a parte presumivelmente mais vulnerável”.11

Em geral, esses casos envolviam situações em que não havia equilíbrio na relação entre o

causador do dano e a vítima, como, por exemplo, nos acidentes de trabalho, onde é flagrante a

hipossuficiência da vítima em provar a culpa do seu patrão. Seria imensa a dificuldade em encontrar

testemunhas dentro do corpo de funcionários da empresa dispostas a prejudicar seu próprio empregador.

Seria também impossível encontrar laudos ou atestados que provassem a culpa do patrão no acidente

sofrido pelo empregado. Diante da desigualdade entre as partes envolvidas no dano, a lei então as tratou

desigualmente assegurando indenização ainda que não houvesse prova da culpa do empregador. A

9 O tema envolvendo a “exposição ao perigo” foi profundamente estudado por Gisela Maria Fernandes Novaes Hironaka, que relata a origem belga da tese da “La mise en danger”, apresentada por Genevievé Schamps. No direito italiano a tese ganhou o nome de “exposizione al pericolo”. O estudo da Professora da Universidade de São Paulo resultou numa obra de leitura obrigatória para os estudiosos do tema. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 10 “Não será demasia acrescentar que incumbe ao ofendido provar a culpa do incapaz, do empregado, dos hóspedes e educandos. A exigência da prova da culpa destes se coloca como antecedente indeclinável à configuração do dever de indenizar das pessoas mencionadas no art. 932”. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 130. 11 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil . Responsabilidade Civil. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 19.

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responsabilidade mudava então o foco e passava a olhar com mais atenção para o dano e sua necessária

indenização, ao invés de investigar a atitude subjetiva do seu causador. Para Alvino Lima:

O dano e a reparação não devem ser aferidos pela medida da culpabilidade, mas deve emergir do fato causador da lesão de um bem jurídico, a-fim-de se manterem incólumes os interêsses em jôgo, cujo desequilíbrio é manifesto, si ficarmos dentro dos estreitos limites de uma responsabilidade subjetiva.12

A lei foi adotando cada vez mais esse tipo de responsabilidade, como nos casos de acidentes

nucleares (Lei 6.453, de 1977 e Constituição Federal art. 21, XXIII), danos ambientais (Lei 6.938, de 31

de agosto de 1981), responsabilidade da administração (Constituição Federal art. 37 § 6°), Código de

Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990) etc.13

Diversas teorias foram elaboradas a fim de fundamentar a responsabilidade objetiva e a mais

conhecida de todas foi a teoria do risco, que por sua vez também apresenta diversos matizes14. Tal teoria

pode ser fundamentada no fato de uma pessoa jurídica ter assumido para si as atividades públicas de

administração, daí assumir o ônus de um risco administrativo que dá guarida à disposição da Constituição

Federal no art. 37 § 6°.15 O empregador que aufere lucros com sua atividade profissional coloca seu

empregado em uma situação de risco permanente daí surgir a teoria do risco profissional que sustenta a

lei de acidentes de trabalho. Pode também a atividade do agente ser tão perigosa que a sua

responsabilidade deva ser baseada na teoria do risco integral, responsabilizando-o ainda que diante do

caso fortuito ou da força maior16, como é o caso da responsabilidade em acidentes nucleares, segundo a

lição de Carlos Alberto Bittar: “O fortuito está excluído desse elenco – e, por expresso, em alguns textos –

prevalecendo, ademais, à generalidade, apenas a excludente da ação intencional da vítima”.17

Em todos os casos acima descritos o elemento culpa torna-se irrelevante, não sendo ventilado na

demanda judicial em que se busca a indenização. Todavia, os demais requisitos para configuração da

12 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938, p. 88. 13 Outras hipóteses de responsabilidade objetiva podem ser encontradas nas leis federais n.° 6.453 de 17 de outubro de 1977 e 5.357, de 17 de novembro de 1967. SOUZA, Luciano Pereira. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000. 14 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Contratos e Responsabilidade Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 561. 15 Indenização. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Suicídio de pessoa detida em flagrante delito e que aguardava, no pátio da cadeia, a lavratura do auto da prisão em flagrante. Indenização indevida. Ausência de nexo entre a prisão e o suicídio. Teoria do risco administrativo que não chega ao extremo do risco integral. Sentença de improcedência da ação mantida. Recurso não provido. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível n.° 276.860-2. Órgão julgador: Quarta Câmara Cível. Relator Eduardo Braga. 12.6.1997. 16 “A teoria do risco integral, assim denominada sua primitiva forma, é taxada, pelos defensores da responsabilidade subjectiva, de brutal, levando a conseqüências iníquas”. LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1938, p. 91. 17, Carlos Alberto. Responsabilidade civil nas atividades nucleares. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 1982, p. 208.

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responsabilidade civil permanecem intactos e necessários, como é o caso da prova da ação, do dano e

principalmente do nexo causal.

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3.1 Exclusão da responsabilidade objetiva

O autor pode, portanto, provar a culpa exclusiva da vítima para ilidir a responsabilidade objetiva,

eliminando assim o nexo causal entre a ação e o dano. O mesmo ocorre, em regra, caso reste provado

pelo agente a ocorrência de um caso fortuito (englobando aqui a força maior já que idênticas em seus

efeitos), caso em que o nexo causal está quebrado e não haverá indenização. Diz-se em regra, pois já há

forte corrente jurisprudencial aplicando a teoria do fortuito interno. Nesse caso o fato inevitável guarda

certa relação com a atividade desenvolvida pelo agente e não pode ser alegado a fim de afastar a

responsabilidade civil. É o caso, por exemplo, do rompimento dos freios do ônibus escolar. Tal fato –

apesar de inevitável – relaciona-se diretamente com a atividade do agente e, portanto, não pode eximi-lo

do dever de indenizar suas vítimas.18 Situação semelhante ocorre no caso de um estouro de pneu19 ou

mesmo na hipótese de manobra irregular de terceiro que evadiu-se20. Em todos esses casos – a despeito

do fato inevitável – o dever de indenizar fica mantido, pois existe uma ligação entre a atividade

desenvolvida e o fato ocorrido.

Já no caso fortuito externo à atividade do agente, o nexo causal fica de fato quebrado e

desaparece o dever de indenizar. É o que ocorre, por exemplo, quando um enxame de abelhas cai na

cabeça do condutor de uma escavadeira, que por isso colide com veículo21 ou da morte de um empregado

rural vitimado por raio.22

Há casos, todavia, que não ficam perfeitamente enquadrados em nenhuma classificação. É o

caso, por exemplo, do assalto à mão armada em veículos transportadores de carga ou documentos. Há

18 “Acidente de trânsito – Alegação de defeito no sistema de freio - caso fortuito interno, cuja ocorrência não afasta a culpa do causador do dano - indenizatória procedente - recurso improvido - procedência da indenizatória mantida. Responsabilidade civil - acidente de transito - pensão - pretensão a abatimento face à auxilio recebido do INSS - beneficio previdenciário decorrente de anteriores contribuições do segurado - Pensionamento que, por sua vez, decorre do ilícito civil - redução indevida - Indenizatória procedente - recurso improvido”. BRASIL. Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo. Apelação cível n.° 30089 Processo: 0785217-3. Órgão julgador: Primeira Câmara de férias. Relator: Elliot Akel. Julgamento: 29/7/1998. 19 “Transporte coletivo de passageiros - Ação indenizatória - Dano moral - Passageiro que sofre ferimentos graves ao ser transportado em ônibus, em razão de estouro de pneu traseiro que ocasionou o rompimento do assoalho do veículo - Responsabilidade objetiva da empresa, independentemente de culpa, eis que é inerente ao contrato de transporte a cláusula de incolumidade”. BRASIL. Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo. RT 792/272. 20 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível n.° 30418. Apelação Cível. Órgão julgador: 3ª Câmara de férias. Relator: Itamar Gaiato. Julgamento: 30.7.1998.

21 “Responsabilidade Civil - Acidente de trânsito – Colisão em rodovia entre ônibus e escavadeira da municipalidade - Evento ocorrido por enxame de abelhas e que não conseguindo controlar o veiculo adentrou na rodovia – Ausência de culpa deste, uma vez que o acidente originou-se de causa estranha, inevitável e irresistível - Indenizatória improcedente - Recurso improvido”. BRASIL. Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo. Apelação cível n.° 0597124-0. Órgão julgador: 5ª Câmara Cível. Relator: Torres Junior. 29.3.1995.

22 JTJSP, 145/103.

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julgados entendendo ser esse um fato inevitável e alheio à atividade desenvolvida23 e, portanto, capazes

de eximir a responsabilidade civil. No sentido contrário há decisões que sustentam ser esse um fato

inerente à vida hodierna das grandes cidades.24 O fato é que se o Estado (Poder Judiciário) admite um

roubo como normal e aceitável, está ele admitindo tacitamente que não conseguiu dar conta de sua tarefa

de promover a paz social.

4. Responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor

Na esteira de outras leis que previram a responsabilidade objetiva como regra, o Código de

Defesa do Consumidor sistematizou de modo técnico o problema dos danos causados aos consumidores.

De um lado previu os vícios do próprio produto ou serviço (art. 18 a 25) e de outro previu os danos

ocorridos em virtude dos fatos exteriores que daqueles poderiam decorrer (arts. 12 a 14). O fato é o vício

que extrapola o produto ou o serviço. Assim, por exemplo, é vício do veículo o constante apagar do

motor, enquanto que se isso ocorrer num cruzamento gerando acidente, estaremos diante do fato do

produto. É vício do serviço o distribuidor de combustível entregar material adulterado, sendo fato do

serviço o derramamento do líquido e a conseqüente explosão de parte do posto de abastecimento.

Mas o que mais interessa ao presente estudo veio disposto em outro artigo muito importante do

Código de Defesa do Consumidor. Trata-se do art. 17 que prevê a figura do consumidor por equiparação,

chamado de “bystander” em sua raiz do “common law”. Ao lado do consumidor padrão (“standard”) há o

consumidor por equiparação (“bystander”)25.

Referido comando legal determina que: “para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos

consumidores todas as vítimas do evento”. A seção a que se refere o artigo é a de n.° II, denominada

“Responsabilidade pelo fato do produto e do serviço”. O citado dispositivo, em pouco mais de dez

palavras, traz repercussões imensas para o mundo da responsabilidade civil. Amplia o conceito de

consumidor de um modo sensível, abrangendo todas as vítimas do evento danoso. Assim, o rapaz

23 O roubo de mercadoria praticado mediante ameaça exercida com arma de fogo é fato desconexo do contrato de transporte e, sendo inevitável, diante das cautelas exigíveis da transportadora, constitui-se em caso fortuito ou força maior, excluindo a responsabilidade dessa pelos danos causados. Agravo não provido. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n.° 470520. Órgão julgador: Terceira turma. Relatora: Ministra Nancy Andrei. 26.6.2003. 24 Tratando-se de prestação de serviços de transporte de um contrato de resultado, o transportador só se exime de sua responsabilidade em casos excepcionais, como a ocorrência de força maior. No entanto, não é caso de isenção o roubo do moto mensageiro, uma vez que na conjuntura urbana e hodierna estes casos já são previsíveis, sendo que os prejuízos a serem ressarcidos decorrem do risco do próprio negócio. BRASIL. Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo. Apelação cível n.° 1.090.583-2. Órgão julgador: 6ª Câmara de férias. Relator: Massami Oxida. 30.7.2002. 25 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro . 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 70. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 208.

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abstêmio que não bebe álcool, será considerado consumidor caso seja vítima de uma explosão de garrafa

de cerveja.26 Isso tem uma relevância enorme pois ser considerado consumidor para os efeitos da lei traz

conseqüências relevantes no desdobramento de um processo judicial.

Primeiramente são entregues à vítima todos os benefícios do art. 6° e 101 do CDC (efetiva

prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, facilitação da defesa de seus direitos, inclusive

com inversão do ônus da prova, possibilidade de a ação ser proposta no foro do domicílio do consumidor

etc).27 Em segundo lugar, e mais importante, faz incidir o art. 12 do referido diploma, onde o legislador

estabelece a responsabilidade objetiva para os fatos decorrentes dos produtos ou dos serviços. Desta

forma a vítima da explosão de uma garrafa não precisará provar a culpa do fabricante, bastando

demonstrar a ação, o dano e o nexo que liga esses dois eventos.

Outros exemplos podem ser imaginados, como é o caso de um caminhão de empresa de

mudanças que – ao executar normalmente o seu serviço diário – acaba abalroando o veículo do imóvel

vizinho ao que se executa o serviço. O vizinho é considerado consumidor para os efeitos da lei e todas as

proteções – inclusive a responsabilidade objetiva – lhe serão entregues.28 Em lapidar julgamento, o

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proferiu decisão cuja ementa foi redigida em termos didáticos:

Responsabilidade Civil. Explosão de botijão de gás. Relação de consumo. Consumidor por equiparação. Danos materiais e morais. Indenizações. Princípio da razoabilidade. A lei consumerista identifica, além do consumidor stricto sensu, como definido no art. 2º do CDC, o terceiro que não participa diretamente da relação de consumo, ou seja, todo aquele que se encontre na condição de consumidor equiparado, ou, segundo a indicação alienígena, bystander. O Código passa a ter, assim, múltiplos conceitos de consumidor: um geral (art. 2º caput) e

26 Consumidor - Explosão de garrafa de cerveja - Responsabilidade Civil - Indenização por danos materiais e morais - Ação julgada improcedente - Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor - Equiparação da vítima do evento ao consumidor - Artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor - Responsabilidade do fabricante pelo fato do produto, independentemente de culpa - Ausência de comprovação de que o fato ocorreu por culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro - Recurso parcialmente provido, com o acolhimento parcial da demanda. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível n. 82.030-4. Órgão julgador: Oitava Câmara de Direito Privado. Relator: Cesar Lacerda - 8.9.1999. 27 Agravo de Instrumento. Decisão que julgou improcedente a Exceção de Incompetência levantada pela ora Recorrente, que afirma ser competente um dos Juízos Cíveis da Comarca de Campos dos Goytacazes. Manutenção, pois a Agravada reside em São João de Meriti e teve seu nome lançado em cadastros de devedores pela Agravante. Aplica-se à hipótese o CDC, visto que a autora tornou-se consumidora por equiparação, máxime por ter sido vítima no evento, aplicando-se o art. 17 desse diploma. Pela teoria da propagação do dano, a lei defende os chamados “bystanders”, isto é, aquelas pessoas estranhas à relação de consumo, mas que sofreram prejuízo mesmo por culpa de terceiros. Desprovimento do recurso. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação cível n.° 002.08655. Órgão julgador: Décima primeira Câmara Cível. 8.6.2005. 28 Não se poderia também ir ao extremo de dizer que o cobrador do ônibus é consumidor por equiparação no caso de assalto ao coletivo. “Responsabilidade Civil - Acidente do trabalho - indenização - direito comum - cobrador de ônibus - roubo a mão armada no interior do coletivo durante a jornada de trabalho - equiparação do preposto a consumidor - subsunção da hipótese ao código de defesa do consumidor - inadmissibilidade o cobrador de ônibus não se enquadra na definição de consumidor estabelecida pelo artigo 2º do código de defesa do consumidor e, ao invés, integra a definição de fornecedor do serviço de transporte, enquanto preposto, pelo qual sua empregadora é presumivelmente responsável pelos atos cometidos, nos termos do artigo 1521, III, do Código Civil”. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível n.° 546.760 - 10ª câmara. – Relator: Soares Levada 28.4.99

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três outros por equiparação (arts. 2º parágrafo único, 17 e 29). São, pois, equiparados ao consumidor standard: “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo" (parágrafo único do art. 2º); "todas as vítimas do evento" (art. 17); e "todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas" (art. 29). Por se tratar de responsabilidade objetiva, decorrente do fato do produto, não comporta a lide a discussão sobre a culpa, o que exclui a possibilidade de eventual concorrência de causas (fato da vítima), uma vez que restou demonstrado que as vítimas não concorreram para o resultado, ou que com este simplesmente anuíram. A investigação da conduta culposa do consumidor ou de terceiro somente é admissível para demonstrar a exclusividade da culpa.29

Tal proteção ampliou de modo bastante considerável as pessoas protegidas pelo Código. Desta

forma, a moça que aguarda a carona do seu namorado a poucos metros do ponto de ônibus, pode valer-

se de proteção do Código caso o coletivo a atropele, aplicando, portanto, a responsabilidade objetiva,

independentemente da prova da culpa da transportadora. Podemos também imaginar uma unidade de

refino de petróleo que deixa vazar substancias tóxicas na fazenda vizinha. O fazendeiro poderá se valer

de toda rede protetiva outorgada ao consumidor, em que pese nunca ter consumido produto ou serviço da

refinaria.30

Em recente caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná uma famosa indústria de pneus

alegou que a vítima da explosão de um de seus produtos não seria consumidora por não ser destinatária

final do mesmo. O aresto aplica à risca a disposição do art. 17 do CDC, considerando a vítima como

consumidor para efeitos de sua proteção31. O Tribunal de Alçada de Minas Gerais também já decidiu de

modo semelhante.32 Mas a doutrina também disserta sobre o assunto há um bom tempo:

29 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação cível n.° 2005.001.13257. Órgão julgador: Quarta Câmara Cível. Relator: Maldonado de Carvalho. 4.10.2005. 30 Responsabilidade civil. Dano moral. Vazamento de substância química (catalisador) de unidade de refino de petróleo. Princípio da precaução. A lei consumerista identifica, além do consumidor “stricto senso” (standard), como definido no art. 2º do CDC, o terceiro que não participa diretamente da relação de consumo, ou seja, todo aquele que se encontre na condição de consumidor equiparado, ou, segundo a indicação alienígena, “bystander” [...] Viveu o autor dias muito angustiantes, amargando sofrimentos e Inquietações, que foram além do âmbito familiar. Evidente, portanto, que o dano moral injusto causado ao autor, independentemente de qualquer lesão física, gerou a dor e o sofrimento, vinculando o responsável ao dever de indenizar. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação cível n.° 2005.001.13257. Órgão julgador: Nona Câmara Cível. Relator: Maldonado de Carvalho. 31.8.2004. 31 Decisão: Acordam os Desembargadores integrantes da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso. Agravo de instrumento – Indenização por danos materiais e morais ocasionados por acidente causado por explosão de pneus – Caminhão - Aplicabilidade do CDC - Ônus financeiro da realização da prova pericial – inversão - possibilidade – Decisão escorreita - Agravo improvido. I) na hipótese do destinatário fático, que o retira do mercado e consome tal produto ou serviço for vulnerável ou hipossuficiente, pelo principio constitucional da igualdade ou isonomia, deve ser albergado pelas disposições do CDC ou ainda, na condição de terceiro prejudicado, equiparado e igualmente protegido pela norma consumerista, ex vi dos art. 17 e 29 deste diploma, que atinge a todas as vítimas do evento ou aqueles expostos às práticas abusivas. É o consumidor bystander, e ao contrário do que tenta fazer crer a agravante, mesmo que inexistisse relação de consumo direta entre ela e o agravado, insere-se a hipótese dos autos nas previsões da lei do consumidor. 167271700. Órgão julgador: Oitava Câmara Cível. Relator: Augusto Cassetari. 11.8.2005. 32 BRASIL. Tribunal de Alçada de Minas Gerais. Agravo de Instrumento nº 325.007-1. Relator: Alvimar de Ávila. Décima segunda Câmara Cível. 13/12/2000.

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Trata-se nessa seção de novo âmbito de tutela do consumidor: a vítima do acidente de consumo que, em virtude do disposto no artigo, passa a ser equiparada ao consumidor. Desconsidera-se, a partir desse momento, se o tutelado, ora consumidor, qualifica-se como destinatário final do produto ou serviço; se houve a sua participação na relação de consumo ou não. (...) Mostra-se suficiente que a vítima, para que seja equiparada ao consumidor, tenha sido atingida em sua esfera jurídica pelos efeitos do acidente de consumo, interessando a perquirição que ora se almeja, o conhecimento de que a pessoa foi atingida em sua incolumidade físico-psíquica ou em sua incolumidade econômica.33

5. Responsabilidade Civil no Código de 2002

Mais de uma década após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor o

Código Civil de 2002, alterando diversos aspectos importantes da legislação civil. Um deles foi justamente

o que se refere à responsabilidade civil. Em primeiro lugar dividiu-se propositadamente o antigo art. 159

em dois dispositivos, alocados em livros diferentes do Código. O primeiro desses artigos é o 186 que se

limita a definir o que é o ato ilícito. Sistematicamente o Código foi perfeito, pois é justamente na parte

geral que o diploma deve versar sobre fatos jurídicos (livro III da parte geral). O ato ilícito é um fato

jurídico, pelo simples fato de que dele decorrem conseqüências jurídicas. Diz o dispositivo: “Aquele que,

por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda

que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Não é preciso nem dizer que o Código adotou a

responsabilidade subjetiva como regra, pois exigiu categoricamente a negligência e a imprudência como

requisitos essenciais para a caracterização de um ato ilícito34. Miguel Reale já frisava tal opção legislativa:

“Deve ser reconhecida, penso eu, a responsabilidade subjetiva como norma, pois o indivíduo deve ser

responsabilizado, em princípio, por sua ação ou omissão, culposa ou dolosa”.35 Não parece haver dúvidas

quanto a manutenção da responsabilidade subjetiva no sistema do Código e assim vem sendo em quase

todas as legislações ocidentais do último século, quando se analisam relações extracontratuais envolvendo

pessoas em situações paritárias.

O Código estabelece (art. 187) que também incorre em ato ilícito “o titular de um direito que, ao

exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou

pelos bons costumes”. É a adoção da teoria do abuso de direito. É o ato lícito no antecedente e ilícito no

conseqüente. É aquele praticado dentro do direito do indivíduo, porém com excesso nos meios. Fartos

exemplos são encontrados nos direitos de vizinhança. Abusa de seu direito o vizinho que, dentro de um

pequeno apartamento, cria dez cachorros de grande porte, ou aquele que cava desnecessariamente

profundo poço, esgotando assim o manancial alheio, ou aquele que cobra multa contratual por atraso que

não fora exigida nos últimos anos. O professor Ruy Rosado de Aguiar não poupa elogios à norma:

33 EFING, Antônio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 54. 34 No mesmo sentido, cf. TARTUCE, Flávio. A responsabilidade civil subjetiva como regra geral do novo Código Civil brasileiro. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigos.asp>. Acesso em: 30.1.2006. 35 REALE, Miguel. Emendas absurdas ao novo Código Civil. Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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Essa seja talvez, do ponto de vista do direito obrigacional, a cláusula mais rica do Projeto. Reúne, em um único dispositivo os quatro princípios éticos que presidem o sistema: o abuso de direito, o fim social, a boa-fé e os bons costumes. Bastaria acrescentar a ordem pública para tê-los todos à vista.36

A segunda parte em que foi dividido o antigo 159 encontra-se no art. 927 do Código Civil, onde o

legislador prevê a conseqüência do ato ilícito, que é uma obrigação de reparar o dano e por isso tal

previsão encontra-se no livro I da parte especial, denominado “Do Direito das Obrigações”.

Sistematicamente perfeito o Código. Não custa lembrar que o Código Civil adotou a responsabilidade

objetiva para situações específicas em diversas passagens, como nos artigos 932, 937, 938, 734 etc.

5.1 Parágrafo único do art. 927 do Código Civil

Mas o ponto central de nosso estudo encontra-se no parágrafo único do art. 927. Foi ali que o

legislador previu a cláusula geral de responsabilidade civil objetiva: “Haverá obrigação de reparar o dano,

independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente

desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

A primeira parte do dispositivo apenas confirma todas as disposições anteriormente estabelecidas

por leis específicas como foi o caso das leis que regulamentaram as conseqüências de danos ambientais,

acidentes nucleares e do Código de Defesa do Consumidor. Até aqui nenhuma novidade. O objetivo do

Código foi deixar claro que todas aquelas normas que prevêem hipóteses de responsabilização objetiva

continuam em vigor.

A novidade do Código veio na parte final do referido parágrafo. Foi ali que o legislador adotou a

teoria do risco, preconizada em nosso país por Alvino Lima no ano de 1938 quando concorreu à cátedra

da Faculdade de Direito do Largo São Francisco com a tese intitulada Da culpa ao risco37, que anos mais

tarde foi por ele mesmo revista, atualizada e publicada sob o título Culpa e Risco.38 A idéia do Professor

era superar a teoria da responsabilidade subjetiva que reinava quase absoluta naqueles tempos, mesmo

para as situações onde havia desigualdade entre as partes.

Baseava sua tese na idéia de que algumas pessoas no seio social (principalmente jurídicas)

praticavam atividades profissionais que – mesmo quando desenvolvidas dentro dos seus padrões normais

e regulares – causavam à sociedade um risco maior do que o normalmente tolerado por todos. De fato,

36 AGUIAR JÚNIOR , Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil. As obrigações e os contratos. Revista dos Tribunais vol. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 23. 37 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1938. 38 LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2.ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1999.

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dirigir um veículo na capital paulistana é por si só considerado um risco, mas um risco aceito no contexto

social. A idéia era de um risco maior, acima do usualmente tolerado.39

Tais pessoas auferem bônus proporcionalmente maiores, decorrentes de sua atividade e,

portanto, devem assumir também um ônus maior do que os demais, respondendo pelos danos causados

independentemente da prova de sua culpa, na expressão latina: “ubi emolumentum, ibi onus”. No

português original da década de 1930, o professor raciocinava: “Si destas atividades colhem os seus

autores todos os proveitos [...], é justo e reacional que suportem os encargos, que carreguem os ônus,

que respondam pelos riscos disseminados.”40 Em interessante passagem de sua obra, Alvino Lima

sustenta com propriedade e visão vanguardista para a década de 1930:

A teoria do risco, embora partindo do fato em si mesmo, para fixar a responsabilidade, tem raízes profundas nos mais elevados princípios de justiça e de equidade. Ante a complexidade da vida moderna, que trouxe a multiplicidade dos acidentes que se tornaram anônimos, na feliz expressão de Josserand, a vítima passou a sentir uma insegurança absoluta ante a impossibilidade de provar a culpa, em virtude de múltiplos fatores. A teoria da culpa não poderia resolver, satisfatoriamente, os casos concretos dos danos [...] Foi, pois, em nome dessa insegurança da vítima, cada vez mais evidente e alarmante, desta maioria dos indivíduos expostos aos perigos tantas vezes a serviço da cobiça humana; foi em nome das injustiças irreparáveis sofridas pelas vítimas esmagadas ante a impossibilidade de provar a culpa [...] que a teoria do risco colocou a vítima inocente em igualdade de condições em que se acham as empresas poderosas; foi em nome da fraternidade, da solidariedade humana, pelo afinamento das nossas consciências e desenvolvimento do sentimento da responsabilidade, como afirma Josserand, que se ergueu a teoria do risco.41

Fica evidente que Alvino Lima referia-se a um risco proveito, onde o causador do dano busca um

aproveitamento de sua atividade. O art. 493 do Código Civil português42 traz um dispositivo tímido que

prevê, de modo similar ao art. 2.050 do congênere italiano, a possibilidade de prova da não culpa do

agente. Tal escusa não é encontrada na codificação brasileira.

A teoria de Alvino Lima era muito evoluída para sua época e assim continuou mesmo no ano de

1975 quando Miguel Reale ofereceu ao Congresso Nacional o projeto de Código Civil. Até aquela época só

leis específicas, de restrita aplicação traziam hipóteses de responsabilidade objetiva. A tese propugnava

39 Nesse sentido o Conselho da Justiça Federal proferiu o enunciado n.° 38: “A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade”. 40 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1938, p. 93. 41 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1938, p. 143. 42 Art. 493. “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. PORTUGAL. Código Civil.

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por uma ampliação dos casos de Responsabilidade objetiva permitindo-a sempre que a atividade

ensejasse riscos exacerbados à sociedade.

Com isso em mente, podemos imaginar exemplos de atividades arriscadas que se enquadrariam

perfeitamente no parágrafo único do art. 927 e permitiriam que a vítima recebesse sua indenização

independentemente da prova da atitude dolosa ou culposa do agente causador. Para demonstrar a

importância do art. 927, parágrafo único, diversos exemplos surgiram na doutrina. Todavia, muitos deles

já estavam enquadrados perfeitamente no art. 17 do CDC. Assim, se imaginarmos um carro forte de

determinado Banco que transporta dinheiro pelas ruas de São Paulo e em decorrência de assalto atropela

um cidadão43, configura-se perfeitamente o consumidor por equiparação, já que é vítima de fato do

serviço realizado pelo Banco. Nesse caso, o art. 927 parágrafo único do Código Civil tornar-se-á

prescindível.

O mesmo ocorre com uma financiadora que – emprestando dinheiro a estelionatário que usou

documentos falsos – acaba por enviar ao serviço de proteção ao crédito o nome de pessoa que nunca se

utilizou dos seus serviços. Mais uma vez estamos diante de uma atividade que já está enquadrada no art.

17 do diploma consumerista44. Imagine por último um distribuidor de combustível que deixa escapar o

líquido inflamável em veículo alheio que por isso vem a incendiar-se. Novamente o diploma do

consumidor abraça a situação com vantagens sobre o Código Civil pois traz, além da responsabilidade

objetiva, toda a gama de proteção prevista no art. 6° e 101 do Código de Defesa do Consumidor.

6. Aplicações específicas do art. 927 parágrafo único

Com esse cenário em vista, parece inegável que a teoria do risco do consagrado Professor Alvino

Lima teria uma importância muito maior, abrangendo um número infinitamente superior de situações caso

o período de gestação do Código Civil não tivesse durado um quarto de século. Fosse o Código Civil

aprovado antes do Código de Defesa do Consumidor e teríamos sim uma verdadeira revolução legislativa,

43 Responsabilidade civil. Teoria do risco. [...] É responsável aquele que causa dano a terceiro no exercício de atividade perigosa, sem culpa da vítima. Ultimamente vem conquistando espaço a teoria do risco, ou do exercício de atividade perigosa, daí há de se entender que aquele que desenvolve tal atividade responderá pelo dano causado. A atividade de transporte de valores cria um risco para terceiros. [...] não parece razoável mandar a família do pedestre atropelado reclamar, dos autores não identificados do latrocínio, a indenização devida, quando a vítima foi morta pelo veículo da ré, que explora atividade sabidamente perigosa, com o fim de lucro. Inexistência de caso fortuito ou força maior. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.° 185659/SP. Órgão julgador: Terceira turma. Relator: Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. 26/6/2000. 44 Responsabilidade civil. CDC. Art. 17. Figura do bystander. Banco. Abertura de conta corrente com documentos falsos. Falta de cautela do estabelecimento bancário. Responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco do empreendimento. Inscrição indevida do nome da vítima, equiparada a consumidor, em cadastro de proteção ao crédito, causando-lhe inegável constrangimento. Dano moral, portanto, configurado. Verba fixada em valor correspondente a 40 salários mínimos, que representa justa reparação do prejuízo extrapatrimonial experimentado pelo ofendido. Conversão de ofício em moeda corrente do valor assim estabelecido, em atenção ao comando do art. 7º, IV, da CF. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação cível n.° 2005.001.39787. Relator: Nametala Machado Jorge. Órgão julgador: Décima terceira câmara cível. 23/11/2005.

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com uma norma inédita e aberta prevendo a responsabilidade objetiva num sistema cuja regra geral

exigia e continua exigindo a prova da culpa para ensejar a devida reparação civil.

Não foi isso o que aconteceu e o avançado diploma consumerista passou a frente do Código Civil

de 1975, limitando em muito as hipóteses de aplicação efetiva do art. 927, parágrafo único. Resta agora

encontrar uma aplicação prática para o referido dispositivo, imaginando situações em que o causador do

dano desenvolva uma atividade de risco para a sociedade, mas que não caiam na vala do art. 17 do CDC.

Uma primeira e polêmica idéia é a de aplicar o art. 927 parágrafo único para as reparações civis

decorrentes de acidente de trabalho. Já há decisões em primeira e segunda instância aplicando tal

corrente45. O principal obstáculo a esta tese encontra-se na própria Constituição Federal, no art. 7°,

XXVIII em que está previsto o seguro contra acidentes do trabalho a cargo do empregador, além da

“indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.

Por uma primeira leitura fica realmente muito difícil sustentar que a Constituição permite a

responsabilidade objetiva nessas hipóteses. Eneas de Oliveira Matos sustenta:

A norma que dispõe sobre a responsabilidade do empregador por acidentes do trabalho é constitucional, [...] não se deve torcer o texto constitucional para se conformar ao texto inferior; o contrário é devido: devem todos textos normativos se conformarem com o texto constitucional, operando-se uma interpretação conforme a Constituição, que tem dentre seus limites, o teor literal dos dispositivos constitucionais, que, no caso, é claro no sentido de que a responsabilidade do empregador por acidentes do trabalho é por "culpa ou dolo", ou seja, depende de prova de culpa sua, nos termos do art. 7º, inciso XXVIII, da CF/88.46

Todavia, fazendo um diálogo entre as fontes percebemos que há possibilidade de entendimento

diverso, aplicando a teoria do risco aos acidentes de trabalho. Flávio Tartuce defende tal posicionamento

com interessante raciocínio: “o dispositivo não traz regra pela qual a responsabilidade do empregador seja

sempre subjetiva, mas somente prevê, na sua segunda parte, que o direito ao seguro não exclui o da

reparação civil nos casos de dolo ou culpa [...]”. O autor utiliza a analogia (tendo em vista que o art. 932

determina a responsabilidade indireta e objetiva do empregador), os costumes e até princípios (como o da

45 “A primeira questão a ser enfrentada diz respeito a atividade da reclamada, se enquadrada ou não na hipótese do § único do art. 927 do CCB. O documento de fl. 229 revela que o reclamante estava exposto a riscos ergonômicos. De outro lado, a doença indicada na inicial decorre diretamente desse risco. Conclui-se, assim, aplicável a regra legal acima citada”. BRASIL. 1ª Vara do Trabalho da comarca de Jaraguá do Sul. Processo n.° 01083-2003-019-12-00-4. 26.7.2005. Dano material. Indenização. Nexo causal entre a patologia desenvolvida e as tarefas executadas no trabalho. Aplicação do art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Responsabilidade objetiva da empregadora. Comprovado o dano sofrido pela reclamante, bem como o nexo causal entre a patologia desenvolvida e as atividades realizadas em prol da reclamada, é devida indenização por dano material face à aplicação da teoria da responsabilidade objetiva. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Processo 00372-2004-402-04-00-1. Órgão julgador: Sexta Turma. Relator: Exmo. Juiz Mario Chaves. 46 MATOS, Eneas de Oliveira. A responsabilidade objetiva no novo Código Civil e os acidentes de trabalho. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7251>. Acesso em 31.1.2006.

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interpretação mais favorável ao empregado) concluindo pela possibilidade de utilização do parágrafo único

do art. 927 que “constitui regra específica de responsabilidade civil sem culpa, inserta que está na seção

que trata dessa fonte do direito obrigacional”. 47

Pode-se considerar, portanto, que a Constituição quis estabelecer a responsabilidade subjetiva

como regra, assim como o faz o Código Civil no art. 186, mas não proibiu a hipótese de a lei estabelecer

casos de responsabilidade objetiva quando a atividade desenvolvida for de risco perante os funcionários.

Ademais, na esteira de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona48, fica uma questão para reflexão, no

sentido de que não há como compreender o paradoxo que seria o fato de o ordenamento determinar que

a empresa que exerce atividade de risco responda objetivamente perante terceiros, mas subjetivamente

perante seus próprios funcionários. Em que pese se tratar de responsabilidades diversas, não deixa de ser

uma contradição que não pode existir no sistema e talvez a construção mais sensata envolva permitir a

aplicação do art. 927 § único nos casos em que a atividade desenvolvida pelo trabalhador seja de risco.

Outra aplicação específica que o parágrafo único do art. 927 pode ter envolve a atuação dos

profissionais liberais, cuja responsabilidade é subjetiva por força do art. 14 do CDC. Todavia, já vimos que

no Código Civil a regra também é a responsabilidade subjetiva e isso não impede que excepcionalmente

se adote a responsabilidade objetiva nos casos que envolvam riscos para os direitos de outrem. O mesmo

raciocínio foi elaborado para permitir a aplicação do art. 927 parágrafo único para os casos de acidente de

trabalho, responsabilidade que em regra é subjetiva. Desta forma, nada impede a aplicação do referido

parágrafo para profissionais liberais que desenvolvam atividades de risco, como advogados e cirurgiões. É

o que defende Ruy Rosado de Aguiar Junior: “A regra atinge o empresário e o profissional liberal e, nesse

ponto, contraria a regra do Código de Defesa do Consumidor, que exige, para a responsabilidade do

profissional liberal, a demonstração da culpa.”49

Por último, mas tão importante e de igual aplicação prática, enquadram-se as atividades que

envolvem um risco para a sociedade e que não estejam gravitando pela cadeia de consumo. Pode-se

imaginar um caminhão que transporta líquido altamente inflamável para entregá-la em indústria do

mesmo grupo econômico inclusive e que não irá retirar esse produto do mercado a fim de consumi-lo,

mas sim processar e aprimorar referida substância a fim de devolver à indústria de origem. Se no

transporte deste material ocorrer um acidente com o referido material inflamável, será possível a

aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil. Perceba que tal situação não envolve qualquer

47 TARTUCE, Flávio. Diálogos entre o Direito Civil e o Direito do Trabalho. In. Direito Civil. Estudos em Homenagem à Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Coordenadores: Flávio Tartuce e Ricardo dos Santos Castilho. São Paulo: Método, 2006. (no prelo). 48 GAGLIANO. Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 275. 49 AGUIAR JÚNIOR , Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil. As obrigações e os contratos. Revista dos Tribunais vol. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 29.

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relação de consumo, a permitir a aplicação do art. 17 do CDC, mas uma situação de risco que enseja a

aplicação da teoria de Alvino Lima.

Conclusões

A previsão estabelecida pelo art. 927 parágrafo único teria sido uma verdadeira revolução

legislativa caso o Código tivesse sido aprovado pouco tempo depois de sua apresentação ao Congresso.

De 1975 até 1990, milhares de casos seriam julgados de modo diverso, pois a responsabilidade objetiva

seria aplicada sempre que a atividade desenvolvida fosse de risco elevado à sociedade. Em todas essas

demandas, a dificílima prova da culpa seria prescindível e a justiça teria se concretizado na ampla maioria

dos casos. Tratar-se-ia de uma notável alteração na legislação civilista que traria conseqüências diretas

na vida prática do cidadão. Todavia, não foi o que aconteceu.

O Código de Defesa do Consumidor aprovado em 1990 trouxe uma série de prerrogativas

processuais à vítima de fatos decorrentes dos serviços e dos produtos, considerando-a consumidora ainda

que ela não se servisse do bem oferecido pelo agente causador do dano. A responsabilização

independente de culpa é apenas uma dessas vantagens. O Código consumerista não exigiu sequer que a

atividade desenvolvida fosse de risco, bastando que o dano adviesse de uma prestação de serviços ou do

fato do produto. Com isso, substitui com vantagem a disposição do art. 927, parágrafo único, tornando-a

de restrita aplicação. Apesar de ser considerada uma norma aberta, o juiz fará bom uso dela apenas em

casos específicos, de modo subsidiário.

A teoria do risco, em seus diversos matizes, permanece atual assim como a idéia de dispensar a intrincada análise da culpa a fim de reparar o dano na ampla maioria dos casos. Além do imenso porto seguro que é o artigo 17 do CDC, a vítima tem agora mais um dispositivo legal à disposição, que será muito bem vindo, mas cuja recepção não merecerá as honrarias que lhe seriam outorgadas caso desembarcasse aqui vinte e cinco anos antes.

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Referências bibliográficas

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