Martinha versus lucrécia

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  • roberto schwarz

    Martinha versus LucrciaEnsaios e entrevistas

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  • Copyright 2012 by Roberto Schwarz

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    CapaMariana Newlands

    Imagem de capaOs Jogos e Enigmas (1956), leo sobre tela de Maria Leontina, 73 x 92 cm.Coleo Particular. Reproduo: Rmulo Fialdini

    PreparaoAmelinha Nogueira

    RevisoAna Luiza CoutoValquria Della Pozza

    [2012]Todos os direi tos desta edi o reser va dos editora schwarcz s.a.Rua Ban dei ra Pau lis ta, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTele fo ne: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.com pa nhia das le tras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Schwarz, RobertoMartinha versus Lucrcia : ensaios e entrevistas / Roberto

    Schwarz. 1a ed. So Paulo : Companhia das Letras, 2012.

    isbn 978-85-359-2073-4

    1. Assis, Machado de, 1839-1908 2. Crtica literria 3. Ensaios brasileiros 4. Romance brasileiro i. Ttulo.

    12-02149 cdd869.9309

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Romance machadiano : Literatura brasileira :

    Ensaio : Histria e crtica 869.9309

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  • Sumrio

    Leituras em competio ........................................................... 9

    Sobre Adorno ........................................................................... 44

    Verdade tropical: um percurso de nosso tempo ...................... 52

    Um minimalismo enorme ....................................................... 111

    Cetim laranja sobre fundo escuro ........................................... 143

    Prefcio a Francisco de Oliveira, com perguntas .................... 151

    Por que ideias fora do lugar? ................................................ 165

    Agregados antigos e modernos ................................................ 173

    Gilda de Mello e Souza ............................................................ 184

    1. Autonomia incontrolvel das formas ................................ 184

    2. Renovao do teatro em So Paulo .................................. 195

    s voltas com Bento Prado ...................................................... 203

    Aos olhos de um velho amigo ................................................. 207

    Saudao a Srgio Ferro ........................................................... 215

    Um jovem arquiteto se explica ................................................ 223

    O neto corrige o av (Giannotti vs. Marx) ............................. 232

    A viravolta machadiana ........................................................... 247

    Na periferia do capitalismo ..................................................... 280

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  • apndice

    O punhal de Martinha Machado de Assis ........................... 307

    Nota bibliogrfica ...................................................................... 311

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  • 9Leituras em competio

    Este livro resulta de quatro conferncias que dei na Universida-

    de de Cambridge. [...] Ao falar de Borges precisamente ali e em

    ingls, tive uma impresso curiosa. A estava uma argentina fa-

    lando numa universidade inglesa sobre outro argentino a quem

    hoje se considera universal. [...] A reputao mundial de Borges

    o purgou de nacionalidade.

    Beatriz Sarlo, Borges, um escritor na margem

    O renome internacional de Machado de Assis, hoje em alta,

    at meados do sculo passado era quase nenhum. Para no fabricar

    um falso problema, bom dizer que o mesmo valia para a litera

    tura brasileira no seu todo, prejudicada pela barreira do idioma.

    Talvez a nica exceo fossem os romances de Jorge Amado, que

    se beneficiavam da mquina de propaganda e tradues do rea

    lismo socialista, atrelada poltica externa da finada Unio Sovi

    tica. Sem iluses, comentando uma tentativa oficial de divulgar

    os escritores brasileiros na Frana, Mrio de Andrade observava

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  • 10

    que a nossa arte seria mais apreciada no mundo se a moeda

    nacional fosse forte e tivssemos avies de bombardeio.1 Como

    no era o caso, amos criando uma literatura de qualidade at

    surpreendente, que para uso externo permanecia obscura.

    De l para c, o romance machadiano foi traduzido e os es

    tudos estrangeiros a seu respeito vieram pingando, sobretudo em

    ingls. Em parte, o empurro foi dado pela ampliao dos inte

    resses norteamericanos no psguerra, a qual se refletiu na pro

    gramao da pesquisa universitria. Voltada para regies que a

    Guerra Fria tornava explosivas, a criao de area studies facultava

    currculos mais adaptados ao presente, para mal e para bem. As

    sim, na esteira da Revoluo Cubana, o portugus foi declarado

    lngua estratgica para os Estados Unidos, com a suplementao

    de verbas e os dividendos culturais do caso.2

    J na parte propriamente literria, o reconhecimento se deveu

    a intelectuais com antena para a qualidade e a inovao. Por exem

    plo, Susan Sontag conta que o editor de seu primeiro romance

    a cumprimentou pela influncia de Machado de Assis, cujas

    Memrias pstumas de Brs Cubas ele mesmo tinha publicado ha

    via poucos anos. Era um engano, pois ela no conhecia nem o livro

    nem o autor, mas logo os adotou como influncia retroativa.3

    A suposio, que no valia para Sontag, valia entretanto para o

    1. Mrio de Andrade, Feito em Frana (1939), em O empalhador de passarinho.

    So Paulo: Martins, 1955, p. 34.

    2. Sergio Miceli, A desiluso americana. So Paulo: Sumar, 1990, p. 13.

    3. Susan Sontag, Afterlives: the case of Machado de Assis (1990), em Where the

    stress falls. Nova York: Picador, 2002, p. 38. O romance de Sontag, The benefactor,

    de 1963. William L. Grossman, o tradutor das Memrias pstumas para o

    ingls (Epitaph for a small winner, 1952), viera ao Rio de Janeiro em 1948, a

    convite do governo, para criar uma business school. Ver o depoimento na rese

    nha de Alexander Coleman nova traduo do romance, em 1997, agora como

    Posthumous memoirs of Brs Cubas: http: www.americassociety.org.

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  • 11

    prprio editor: Cecil Hemley era romancista por sua vez, e deixou

    um excelente testemunho de seu interesse por Machado. A ane

    dota mostra o clima de cumplicidades seletas que se estava for

    mando em torno do escritor.4 Na mesma linha, h o depoimento

    de Allen Ginsberg. Visitando Santiago em 1961, ele disse ao escri

    tor chileno Jorge Edwards que considerava Machado um outro

    Kafka.5 E vejase ainda o prefcio de John Barth a uma reedio

    de seus primeiros livros. O romancista National Book Award de

    1972 lembra que tentava encontrar a sua maneira, com ajuda

    4. Ver Saturday Review, 19.3.1960, p. 20, onde h uma resenha do romance de Cecil Hemley, The Experience, feita pelo mesmo William Grossman. Este assinala a influncia de Machado sobre estrutura e estilo do livro. Acompanha a resenha um comentrio de Hemley, que transcrevo na ntegra, por tudo que antecipa. Devo admitir a minha dvida com o grande escritor brasileiro Machado de Assis, cujas obras venho admirando desde que tomei conhecimento delas oito anos atrs. Sempre fui um apaixonado de Laurence Sterne e, de fato, quando jovem, escrevi prosa muito influenciada por ele. claro que Sterne foi tambm um dos escritores que abriram os olhos a Machado, de sorte que Machado e eu havamos sido prximos antes ainda de nos encontrarmos. Contudo, o significado do escritor brasileiro para mim esteve no tanto naqueles elementos tcnicos evidentes tais como os captulos breves e as interrupes sbitas da narrativa pelo autor que ele tomara emprestado a Sterne. O que achei particularmente estimulante foi a sua ruptura radical com a tradio realista. claro que h muitas maneiras de escrever um romance e no desejo desmerecer romances e romancistas com tendncia diferente da minha. Machado mostroume um modo de tornar contemporneo o romance clssico. No quero dizer que o copiei. Sob alguns aspectos as minhas ideias esto em oposio at direta com as dele. No sou um niilista. Mas tenho me interessado pelo tratamento cmico de ideias, bem como por maneiras diferentes de lidar com as personagens, para fugir ao psicologismo dos escritores busca do Zeitgeist (esprito de poca). Com efeito, a minha viso do universo no confere um lugar demasiado alto psicologia e sociologia, de sorte que a espcie de forma que desenvolvi estreitamente ligada a meu tema. O ser humano preocupase com o Ser, quer queira, quer no, e por natureza uma criatura filosfica. Qualquer romance que no tenha dimenses metafsicas e ontolgicas estar necessariamente truncado. Devo a citao a Antonio Candido, a quem agradeo.

    5. Comunicao pessoal de Jorge Edwards.

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  • 12

    de Boccaccio, Joyce e Faulkner, quando o acaso fez que lesse Ma

    chado de Assis. Este lhe ensinou que as cambalhotas narrativas

    no excluam o sentimento genuno nem o realismo, numa com

    binao la Sterne, que mais adiante se chamaria psmoderna.6

    Quanto academia, a pesquisa machadiana desenvolvida

    nos Estados Unidos acompanhou as correntes de crtica em voga

    por l. O patrocnio terico vinha entre outros do New Criticism,

    da Desconstruo, das ideias de Bakhtin sobre a carnavalizao

    em literatura, dos Cultural Studies, bem como do gosto psmo

    derno pela metafico e pelo bazar de estilos e convenes. A lista

    facilmente prolongvel e no para de crescer. Mais afinada com

    a maioria silenciosa, indiferente s novidades, havia ainda a an

    lise psicolgica de corte convencional. A surpresa ficava por conta

    do prprio Machado de Assis, cuja obra, originria de outro tem

    po e pas, no s no oferecia resistncia, como parecia feita de

    propsito para ilustrar o repertrio das teorias recentes. O ponto

    de contato se encontrava no questionamento do realismo ou da

    representao, e em certo destaque da forma, concebida como

    estrangeira histria. H aqui uma questo que vale a pena en

    frentar: como entender a afinidade entre um romancista brasileiro

    do ltimo quartel do sculo xix e o conjunto das teorias crticas

    em evidncia agora, nas metrpoles?

    O percurso da crtica brasileira no mesmo perodo foi dis

    tinto. Ela no tinha diante de si um grande escritor desconhecido,

    mas, ao contrrio, o clssico nacional andino. Embora fosse coisa

    assente, a grandeza de Machado no se entroncava na vida e na

    literatura nacionais. A sutileza intelectual e artstica, muito supe

    rior dos compatriotas, mais o afastava do que o aproximava do

    pas. O gosto refinado, a cultura judiciosa, a ironia discreta, sem

    6. John Barth, Prefcio, em The floating opera and The end of the road. Nova

    York: Anchor, 1988, p. vivii. Os romances so respectivamente de 1956 e 1958.

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  • 13

    rano de provncia, a percia literria, tudo isso era objeto de ad

    mirao, mas parecia formar um corpo estranho no contexto de

    precariedades e urgncias da jovem nao, marcada pelo passado

    colonial recente. Eram vitrias sobre o ambiente ingrato, e no

    expresses dele, a que no davam sequncia. Dependendo do pon

    to de vista, as perfeies podiam ser empecilhos. Um documento

    curioso dessa dificuldade so as ambivalncias de Mrio de An

    drade a respeito. Este antecipava com orgulho que Machado ainda

    ocuparia um lugar de destaque na literatura universal, mas nem

    por isso colocava os seus romances entre os primeiros da literatu

    ra brasileira.7

    Pois bem, a partir de meados do sculo xx a tnica se inverte,

    com apoio numa sucesso de descobertas crticas. O distancia

    mento olmpico do Mestre no desaparece, mas passa a funcionar

    como um anteparo decoroso, que disfara a relao incisiva com

    o presente e a circunstncia. O centro da ateno deslocase para o

    processamento literrio da realidade imediata, pouco notado at

    ento. Em lugar do pesquisador das constantes da alma humana,

    acima e fora da histria, indiferente s particularidades e aos con

    flitos do pas, entrava um dramatizador malicioso da experincia

    brasileira. Este no se filiava apenas aos luminares da literatura

    universal, a Sterne, Swift, Pascal, Erasmo etc., como queriam os

    admiradores cosmopolitas. Com discernimento memorvel, ele

    estudara igualmente a obra de seus predecessores locais, menores

    e menos do que menores, para aprofundla. Mal ou bem, os cro

    7. Mrio de Andrade, Machado de Assis (1939), em Aspectos da literatura bra-

    sileira. So Paulo: Martins, s/d. Para o roteiro da recepo brasileira, ver Anto

    nio Candido, Esquema de Machado de Assis (1968), em Vrios escritos. Rio de

    Janeiro: Ouro sobre Azul; So Paulo: Duas Cidades, 2004. Para a recepo

    norteamericana, ver Daphne Patai, Machado in English, em Richard Graham

    (org.), Machado de Assis, Reflections on a Brazilian Masterwriter. Austin: Univer

    sity of Texas Press, 1999.

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  • 14

    nistas e romancistas cariocas haviam formado uma tradio, cuja

    trivialidade pitoresca ele soube redimensionar, descobrindolhe o

    nervo moderno e erguendo uma experincia provinciana altura

    da grande arte do tempo.8 Quanto ao propalado desinteresse do

    escritor pelas questes sociais, um dos principais explicadores

    do Brasil ps um ponto final controvrsia: sistematizou as ob

    servaes de realidade espalhadas na obra machadiana, chaman

    do a ateno para o seu nmero e a sua qualidade, e com elas

    documentou um livro de quinhentas pginas sobre a transio da

    sociedade estamental sociedade de classes.9 Digamos que o tra

    balho escravo e a plebe colonial, o clientelismo generalizado e o

    prprio trpico, alm da Corte e da figura do Imperador, davam

    civilizao urbana e a seus anseios europeizantes uma nota

    especial. Compunham uma sociedade inconfundvel, com ques

    tes prprias, que o romancista no dissolveu em psicologia uni

    versalista contrariamente alis ao que sups o historiador.10

    Nas etapas seguintes da virada, que ainda est em curso, a

    composio do romance machadiano foi vista como formaliza

    o artstica precisamente desse conjunto singular, no qual se

    traa a excolnia. A galeria das personagens, a natureza dos con

    flitos, a cadncia da narrativa e a textura da prosa elementos de

    forma agora manifestavam, como transposies, uma diferen

    a pertencente ao mundo real. Para mais, os traos distintivos

    eram surpreendidos onde menos em falta e mais civilizada ou

    adiantada a jovem nao se supunha. Explorados pela inventiva

    do romancista, os aspectos de demora civilizatria ganhavam

    8. Antonio Candido, Formao da literatura brasileira (1959). Rio de Janeiro:

    Ouro sobre Azul, 2006, pp. 4367.

    9. Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirmide e o trapzio. So Paulo: Com

    panhia Editora Nacional, 1974.

    10. Id., ibid., p. 504: O que lhe faltava, e isso o enquadra na linha dos moralistas,

    era a compreenso da realidade social, como totalidade, nascida nas relaes

    exteriores e impregnada na vida interior.

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  • 15

    conectividade e expunham a teia de suas implicaes, algumas

    das quais muito modernas, alm de incmodas. As peculiaridades

    prendiamse a) ao padro patriarcal; b) a nosso mix de liberalis

    mo, escravido e clientelismo, com os seus paradoxos estridentes;

    c) engrenagem tambm sui generis das classes sociais, insepar

    vel do destino brasileiro dos africanos; d) s etapas da evoluo

    desse todo; e e) sua insero no presente do mundo, que foi e

    um problema (ou uma sada) para o pas, e alis para o mundo.

    De tal sorte que as questes estticas ditas abstratas, de congrun

    cia formal e dinmica interna, bem como de originalidade, se es

    tavam tornando inseparveis do seu lastro histrico especfico,

    obrigando reflexo sobre o vis prprio da formao social ela

    mesma. Assim, embora notria por desacatar os preceitos ele

    mentares da verossimilhana realista, a arte machadiana fazia de

    ordenamentos nacionais a disciplina estrutural de sua fico.11

    Sem prejuzo da diferena entre os crticos, a natureza comple

    mentar dos trabalhos que levaram a essa mudana de leitura se

    impe, sugerindo uma gravitao de conjunto. Passo a passo, o

    romancista foi transformado de fenmeno solitrio e inexplic

    vel em continuador crtico e coroamento da tradio literria lo

    cal; em anotador e anatomista exmio de feies singulares de seu

    mundo, ao qual se dizia que no prestava ateno; e em idealiza

    dor de formas sob medida, capazes de dar figura inteligente aos

    11. O conjunto desses passos encontrase em Silviano Santiago, Retrica da ve

    rossimilhana, em Uma literatura nos trpicos. So Paulo: Perspectiva, 1978;

    Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas. So Paulo: Duas Cidades, 1977, e Id.,

    Um mestre na periferia do capitalismo. So Paulo: Duas Cidades, 1990; Alfredo

    Bosi, A mscara e a fenda, em Alfredo Bosi et al., Machado de Assis. So Paulo:

    tica, 1982, e Id., Brs Cubas em trs verses. So Paulo: Companhia das Letras,

    2006; John Gledson, The deceptive realism of Machado de Assis. Liverpool: Fran

    cis Cairns, 1984, e Id., Machado de Assis: fico e histria. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1986; Jos Miguel Wisnik, Machado Maxixe: o caso Pestana, Sem receita.

    So Paulo: Publifolha, 2004.

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  • 16

    descompassos histricos da sociedade brasileira. Em suma, h

    um nexo a explorar entre a originalidade artstica da obra e a

    diferena histrica da nao.

    Recentemente, por ocasio de novas tradues das Mem-

    rias pstumas e do Dom Casmurro, a New York Review of Books

    publicou uma resenha abrangente e consagradora do romance

    machadiano, assinada por Michael Wood.12 Notese que o autor

    no especialista em Machado, nem brasilianista, mas um crtico

    e comparatista s voltas com a latitude do presente. O lugar da

    publicao e o rol dos autores sobre os quais o crtico tem es

    crito Beckett, Conrad, Stendhal, Calvino, Barthes, Garca

    Mrquez parecem indicar que depois de cem anos o romancis

    ta brasileiro entrou para o cnon da literatura viva. Alis, Machado

    nos Estados Unidos comea a ser ensinado tambm fora dos de

    partamentos de literatura brasileira, na rea de literatura compa

    rada, em cursos sobre os clssicos do romance moderno.

    A certa altura de seu ensaio, que leva em conta a crtica bra

    sileira, Wood prope uma dissociao sutil. As relaes com a

    vida local podem existir, tais como apontadas, sem entretanto

    esclarecer a maestria e modernidade do escritor. Ou, noutro

    passo: seria preciso interessarse pela realidade brasileira para

    apreciar a qualidade da fico machadiana? Ou ainda, a peculia

    ridade de uma relao de classe, mesmo que fascinante para o

    historiador, no ser um tpico demasiado montono para dar

    conta de uma obraprima?. E, finalmente, faltaria saber por que

    os romances so mais do que documentos histricos. No h res

    posta fcil para essas questes, que no recusam as ligaes entre

    literatura e contexto, mas situam a qualidade num plano parte.

    As perguntas tm a realidade a seu favor, pois fato que a reputa

    12. Michael Wood, Master among the ruins, The New York Review of Books, 18

    de julho de 2002.

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  • 17

    o internacional de Machado se formou sem apoio na reflexo

    histrica. Tomando recuo, digamos que elas, as perguntas, resu

    mem a seu modo a situao atual do debate, em que se perfilaram

    uma leitura nacional e outra internacional (ou vrias no nacio

    nais), muito diversas entre si.

    A divergncia tem base em linhas de fora da cena intelec

    tual contempornea e no h por que esquivla. Para prevenir o

    primarismo, que sempre ronda essas diferenas, no custa lem

    brar que vrias contribuies para a linha nacional vieram de es

    trangeiros, e que boa parte da crtica brasileira acompanhou a

    pauta dos centros internacionais. Contudo, se a cor do passaporte

    e o local de residncia dos crticos no so determinantes, certo

    que as matrizes de reflexo a que a divergncia se prende tm rea

    lidade no mapa e dimenso poltica, alm de competirem entre si,

    como partes do sistema literrio mundial.13

    Uma das matrizes a luta inconclusa da excolnia pela for

    mao de uma nacionalidade moderna, por assim dizer normal,

    sob o signo do trabalho livre e dos direitos civis. Do ngulo da

    histria, seria a dialtica entre a jovem nao e o seu fundo herdado

    de segregaes e coaes, em dissonncia explcita (ou em har

    monia secreta, diriam os antiimperialistas) com o tempo. Como

    ponto de partida h o enigma estticosocial representado pelo

    surgimento de uma obra de primeira linha em meio ao desprepa

    ro, falta de meios, ao anacronismo e ao desconjuntamento ge

    rais. Como possvel que nessas condies de inferioridade se

    tenha produzido algo de equiparvel s grandes obras dos pases

    13. Acompanho aqui as grandes linhas do livro de Pascale Casanova, La Rpu-

    blique Mondiale des Lettres. Paris: Seuil, 1999. Numa boa discusso a respeito,

    Christopher Prendergast salienta o interesse dos esquemas de Casanova, sem

    ocultar que as anlises propriamente literrias deixam a desejar. Ver Introdu

    o, em Christopher Prendergast (org.), Debating World Literature. Londres:

    Verso, 2004.

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  • 18

    do centro? Tratase de um acontecimento que sugere, por analo

    gia, que a passagem da irrelevncia relevncia, da sociedade

    anmala sociedade conforme, da condio de periferia con

    dio de centro no s possvel, como por momentos de fato

    ocorre. Assim, a obra bemsucedida vai ser interrogada sob o sig

    no da luta contra o subdesenvolvimento. A reflexo busca identi

    ficar nela os pontos de liga entre a inveno artstica, as tendn

    cias internacionais dominantes e as constelaes sociais e culturais

    do atraso, com as sinergias correspondentes. Estas ltimas, insepa

    rveis tanto do ingrediente nacional como do extranacional, so

    a prova viva de possibilidades reais, devidas a conjunes ni

    cas algo de agudo interesse, cuja anlise promete conhecimen

    tos novos, autoconscincia intensificada, alm de graus de liberdade

    imprevistos em relao aos determinismos correntes. Entrete

    cidas com o desejo coletivo de alavancar um salto histrico, as

    observaes estticas adquirem conotao peculiar. Combinadas

    a observaes e categorias econmicas e polticas, bem como a aspi

    raes prticas, elas fazem figura de recomendao oblqua ao

    pas. Tomam a contramo da teoria da arte nos pases centrais, a

    qual v nos aspectos referenciais ou nacionais da literatura uma

    velharia e um erro.

    Dito isso, claro que a integridade prpria grande obra

    sempre um enigma que cabe crtica elucidar, seja onde for. No

    quadro de uma sociedade inferiorizada, entretanto, a explicao

    adquire relevncia nacional, como parte de um discurso crtico

    sui generis. Tratase de um programa tcito, cujo significado es

    clarecido ou meramente veleitrio est em aberto. sua luz, luga

    rescomuns da histria da arte incorporam novos significados. A

    dialtica entre acumulaes artsticas localizadas e viravolta com

    potncia estrutural, entre emprstimo estrangeiro e ecloso da

    originalidade nativa, entre vanguardismo artstico e incorpora

    o de realidades sociais relegadas, entre acentuao de tendn

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  • 19

    cias, exploso das coordenadas e elevao do patamar, assim

    como a criao genial de nexos e sadas onde s parecia existir

    descontinuidade cultural e descalabro na relao de classes, tudo

    isso compe um desenho imprevisto, que foge aos esquemas do

    evolucionismo e do progresso lineares.14 Com risco evidente de

    regresso, o anseio retardatrio de integrao nacional ajudaria

    o pas a se revolucionar, ou a se reformar, ou a vencer a distncia

    que o separa dos pasesmodelo, ou a se refundar culturalmente

    (e em todo caso, se tudo falhasse, permitiria refletir a respeito).

    Sejam quais forem os resultados para o futuro, a discusso dessas

    defasagens histricas e dessas solues artsticas, prprias a nossa

    integrao social precria, responde ordem presente do mundo,

    de cujo desenvolvimento desigual e combinado fixa aspectos

    substantivos.

    Na outra matriz, com sede nos pases do centro, uma guarda

    avanada de leitores os intermedirios poliglotas e peritos a que

    se refere Casanova empenhase na identificao de obraspri

    mas remotas e avulsas, em seguida incorporadas ao repertrio

    dos clssicos internacionais.15 nesse esprito cosmopolita que

    Susan Sontag conclui a sua apresentao das Memrias pstumas,

    desejando aos leitores que o livro de um longnquo romancista

    latinoamericano os torne menos provincianos.

    Como parte dessa segunda matriz, o trabalho acadmico dos

    pases centrais colocase ele tambm as tarefas de reconhecimen

    14. Mas tanto Marx quanto os tericos do subdesenvolvimento no eram evo

    lucionistas. Francisco de Oliveira, Crtica razo dualista / O ornitorrinco. So

    Paulo: Boitempo, 2003, p. 121. Para o estudo em grande escala dessa ordem de

    movimentos na literatura nacional, ver Antonio Candido, Formao da literatu-

    ra brasileira. A possibilidade de retomar esses mesmos esquemas noutras esferas

    da cultura nacional e de entronclos na dialtica geral do mundo moderno

    est esboada no conjunto da obra de Paulo Arantes. Ver, especialmente, Otilia

    e Paulo Arantes, Sentido da formao. So Paulo: Paz e Terra, 1997.

    15. Casanova, op. cit., pp. 3740.

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  • 20

    to e apropriao. As teorias literrias com vigncia nas principais

    universidades do mundo, hoje sobredeterminadas pelas america

    nas, buscam estender o seu campo de aplicao, como se fossem

    firmas. O interesse intelectual no desaparece, mas combinase

    ao estabelecimento de franquias. Nessa perspectiva, uma obra de

    terras distantes, como a de Machado de Assis, na qual se possam

    estudar com proveito suponhamos os procedimentos ret

    ricos do narrador, as ambiguidades em que se especializam os

    desconstrucionistas, a salada estilstica do psmodernismo etc.,

    estar consagrada como universal e moderna. A natureza sumria

    desse selo de qualidade, que corta o afluxo das conotaes hist

    ricas, ou seja, das energias do contexto, salta aos olhos. claro

    que no se trata de desconhecer o bom trabalho feito no interior

    de cada uma dessas linhas crticas, que s pode ser discutido caso

    a caso, mas de assinalar o efeito automtico e conformista das

    assimetrias internacionais de poder. Por outro lado, a cesta de teo

    rias literrias em voga nas psgraduaes dos Estados Unidos

    heterognea, originria em boa parte de lugares to pouco ameri

    canos quanto a Unio Sovitica, Paris ou Nova Dlhi, e neste sen

    tido no parece uniformizadora. Contudo, o caldeamento no mer

    cado acadmico local, uma instncia do American way of life e

    uma novidade histrica incontornvel, distancia as teorias de suas

    motivaes de origem. O mecanismo lhes sobreimprime uma in

    voluntria feio comum, mediante a qual passam a exercer as suas

    funes de hegemonia, se possvel em escala planetria, e dentro

    de muito desconjuntamento. Os lados incongruentes dessa neou

    niversalidade talvez sejam mais visveis para crticos perifricos,

    ao menos enquanto no tratam de adotla.

    Assim, a consagrao atual de Machado de Assis sustentada

    por explicaes opostas. Para uns, a sua arte soube recolher e des

    provincianizar uma experincia histrica mais ou menos recalca

    da, at ento ausente do mapa do esprito. A experimentao li

    MARTINHA LUCRECIAmiolo.indd 20 4/5/12 12:41 PM

  • 21

    terria no caso arquitetaria solues para as paralisias de uma

    excolnia em processo de formao nacional. A qualidade do

    resultado se deveria ao teor substantivo das dificuldades trans

    postas, que no so apenas artsticas e que lhe infundem algo de

    sua tenso. Para outros, a singularidade e a fora inovadora no se

    alimentam da vida extraliterria, muito menos de uma histria

    nacional remota e atpica. Observam que no foi necessrio conhe

    cer ou lembrar o Brasil para reconhecer a qualidade superior de

    Machado, nem para apontar a sua afinidade com figuras centrais

    da literatura antiga e moderna, ou com as teorias em evidncia no

    momento, ou, sobretudo, com o prprio esprito do tempo. A

    ideia aqui, salvo engano, de diferenciao intraliterria, ou seja,

    endgena, no mbito das obrasprimas: Machado um Sterne

    que no um Sterne, um moralista francs que no um mora

    lista francs, uma variante de Shakespeare, um modernizador

    tardooitocentista e engenhoso do romance clssico, anterior ao

    realismo, alm de ser um prato cheio para as teorias do ponto de

    vista, embora diferente do contemporneo Henry James. Em

    suma, um escritor plantado na tradio do Ocidente, e no em

    seu pas. A figura no impossvel embora a exclusiva seja

    tosca e cabe crtica decidir. No custa notar, no entanto, a

    semelhana com o clssico andino de que falvamos pginas

    atrs, cujas superioridades cosmopolitas, ou dessoradas, a crtica

    com referncia nacional tentou contestar.

    A oposio se presta querela de escolas e convida a tomar

    partido. Mas ela encarna tambm o movimento do mundo con

    temporneo, uma guerra por espao, movida por processos

    rivais, que no se esgota em disputas de mtodo. As relaes entre

    os adversrios, cada qual desqualificando o outro, embora apre

    sentando tambm algo que lhe faz falta, no so simples. Para dar

    uma ideia, notese que dificilmente um adepto do Machado bra

    sileiro reclamar da nova reputao internacional do romancista,

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  • 22

    por mais que discorde de seus termos. Com efeito, que machadia

    no no se sente enaltecido com o reconhecimento enfim alcana

    do pelo compatriota genial? A nota algo ridcula da pergunta faz

    eco ao amorprprio insatisfeito dos brasileiros, que em princ

    pio no teria cabimento num debate literrio que se preze, para o

    qual essa ordem de melindres letra vencida. Mas o ridculo no

    caso o de menos, pois nada mais legtimo que a vaidade de ver

    refletidos os expoentes nacionais naquelas teorias novas em folha,

    que afinal de contas so as depositrias da conversao crtica in

    ternacional e, mal ou bem, do presente do mundo de que

    preciso participar, mesmo que ao preo de algum autoesqueci

    mento. Adotando a pergunta do campo oposto, por que diabo

    enterrar um autor sabidamente universal no particularismo de

    uma histria nacional que no interessa a ningum e no tem

    interlocutores?

    Nessa linha, o sucesso internacional viria de mos dadas com

    o desaparecimento da particularidade histrica, e a nfase na

    particularidade histrica seria um desservio prestado univer

    salidade do autor. O artista entra para o cnon, mas no o seu

    pas, que continua no limbo, e a insistncia no pas no contribui

    para alar o artista ao cnon. Pareceria que a supresso da histria

    abre as portas da atualidade, ou da universalidade, ou da consa

    grao, que permanecem fechadas aos esforos da conscincia

    histrica, enfurnada numa rua sem sada para a latitude do pre

    sente. Veremos que a disjuntiva est mal posta e que no h por

    que lhe dar a ltima palavra. Mas certo que no estado atual do

    debate ela carrega alguma verdade, pois a falta de articulao in

    terna, de trnsito intelectual entre anlise de formas, histria na

    cional e histria contempornea um fato, com consequncias

    polticas tanto quanto estticas.

    Quanto aos trabalhos artsticos de primeira linha produzi

    dos em excolnias, a tese da inutilidade crtica das circunstncias

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  • 23

    e da particularidade nacional talvez no saiba o bastante de si.

    Faltalhe a conscincia de seus efeitos, que so de marginalizao

    culturalpoltica em mbito mundial. Ou ainda, desconhece a

    construo em muitas frentes, coletiva e cumulativa, artstica e

    extraartstica, em parte inconsciente, sem a qual a integridade

    esttica e a relevncia histrica, as quais pretende saudar, no

    cristalizam. Seja como for, a neouniversalidade das teorias lite

    rrias poderia tambm ser bemvinda a seu adversrio, que ao

    criticla sairia do cercadinho ptrio e poria um p no tempo

    presente, ou melhor, num simulacro dele. O reconhecimento in

    ternacional de um escritor muda a situao da crtica nacional,

    que nem sempre se d conta do ocorrido.

    Helen Caldwell comea The Brazilian Othello of Machado de

    Assis o primeiro livro americano sobre o romancista com

    uma afirmao sonora. O escritor seria um diamante supremo,

    um Kohinoor brasileiro que cabe ao mundo invejar. Logo adian

    te, Dom Casmurro considerado talvez o melhor romance das

    Amricas. No pouca coisa, ainda mais se lembrarmos que

    eram os anos da revalorizao de Hawthorne e Melville, e sobre

    tudo da imensa voga crtica de Henry James. Dito isso, prossegue

    Caldwell, possvel que s ns de lngua inglesa estejamos em

    condies de apreciar devidamente o grande brasileiro, que

    constantemente usava o nosso Shakespeare como modelo. As

    sim, ao reconhecimento e cortesia seguese a surpreendente rei

    vindicao de competncia exclusiva, ainda que envolta em hu

    morismo (com perdo da megalomania).16

    Mas fato que a intimidade com Shakespeare permitiu a

    Caldwell virar do avesso a leitura corrente de Dom Casmurro, tri

    butria at ento dos pressupostos masculinos da sociedade

    patriarcal brasileira. Mais imersa nos clssicos da tragdia que

    16. Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley: Univer

    sity of California Press, 1960, pp. v e 1.

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  • 24

    na idealizao de si de nossas famlias abastadas, a crtica ameri

    cana professora de literatura grega e latina estava em boa

    posio para notar algumas das segundas intenes de Machado.

    A uma shakespeariana no podiam passar despercebidas a confu

    so mental e a prepotncia de Bento Santiago, o amvel e melan

    clico maridonarrador do romance. A lio barbaramente

    equivocada que ele, o Casmurro, tira do desastre de Otelo era a

    indicao segura, entre muitas outras, de que seria preciso des

    confiar de suas suposies sobre a infidelidade da mulher. Vejase

    a respeito o captulo decisivo em que Bento, agoniado pelo ci

    me, vai espairecer no teatro, onde por coincidncia assiste tra

    gdia do mouro. Em vez de lhe ensinar que os cimes so maus

    conselheiros, esta o confirma na sua fria e lhe d a justificao

    do precedente ilustre: se por um leno Otelo estrangulou Desd

    mona, que era inocente, o que no deveria ter feito o narrador

    sua adorada Capitu, que com certeza tinha culpa?17 O curtocir

    cuito mental, quase uma gag, no deixa dvida quanto inteno

    maliciosa de Machado, que escolhia a dedo os lapsos e contras

    sensos obscurantistas que derrubariam se no fossem passa

    dos por alto o crdito de seu narrador suspeitoso, transfor

    mandoo em figura ficcional propriamente dita, que contracena

    com as demais e to questionvel quanto elas. maneira do

    estranhamento brechtiano, so pistas para que o leitor se emanci

    pe da tutela narrativa, reforada pela teia dos costumes e dos pre

    conceitos sancionados. Se a campainha artstica for ouvida, ele

    passa a ler com independncia, quer dizer, por conta prpria e a

    contrapelo, mobilizando todo o esprito crtico de que possa dis

    por, como cabe a um indivduo moderno. A confiana singela e

    alis injustificvel que at segunda ordem os narradores costu

    mam merecer fica desautorizada. A inverso de perspectivas no

    17. Machado de Assis, Dom Casmurro, cap. cxxxv.

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  • 25

    podia ser mais completa: o problema no estava na infidelidade

    feminina, como queria o protagonistanarrador, mas na prerro

    gativa patriarcal, que tem o comando da narrao e est com a

    palavra, que no fivel nem neutra. Graas a esse dispositivo

    formal, que desqualifica o pacto narrativo, a disposio questio

    nante engolfa tudo, da precedncia dita normal dos maridos sobre

    as mulheres o foco da polmica de Caldwell ao crdito

    devido a um narrador bemfalante, virtude patritica do encan

    tamento romanesco, respeitabilidade das elites ilustradas brasi

    leiras. De padro nacional de memorialismo elegante e passadis

    ta, o livro passa a experimento de ponta e obraprima implacvel.

    A descoberta crtica no caso eleva muito a voltagem intelec

    tual do romance. J notamos o que ela deveu familiaridade com

    os clssicos, ou melhor, estranheza causada por um desvio

    clamoroso na compreenso de um deles, independente de consi

    deraes de contexto. Ou por outra, o seu contexto efetivo foi a

    prpria tradio cannica, cujas luzes serviram de revelador das

    hipocrisias e cegueiras entranhadas na ordem social. Alis, a inti

    midade com esta podia at atrapalhar, como de fato atrapalhou a

    crtica brasileira durante sessenta anos, entre a publicao do

    romance em 1899 e o estudo de Caldwell em 1960. Foi com justa

    satisfao que este saiu a campo para corrigir trs geraes de

    crticos, a quem as insinuaes do exmarido, hoje um vivo

    amalucado no papel de pseudoautor, convenceram da culpa de

    Eva/Capitu.18 claro que muitos brasileiros haviam lido Otelo e

    provvel que tivessem notado que o Casmurro tira uma conclu

    so aberrante da morte de Desdmona. Contudo, filiados ao uni

    verso ideolgico do narrador, no lhes pareceu que o deslize

    obrigasse a questionar o vis de poder da situao narrativa. In

    clinados a acatar o ponto de vista patriarcal e a veracidade dos

    18. Helen Caldwell, op. cit., p. 72.

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  • 26

    memorialistas, ou, tambm, despreparados para duvidar da boaf

    de um narrador de boa sociedade, dono de uma prosa sem igual

    na literatura brasileira, bem como de aplices, escravos e casas de

    aluguel, no acharam que fosse o caso de suspeitar uma persona

    gem to bem recomendada. Ficavam aqum da vertigem inscrita

    no dispositivo literrio machadiano, que atrs dos traos de um

    memorialista fino e potico, cidado acima de quaisquer suspei

    tas, fazia ver, primeiro, o marido discretamente empenhado na

    destruio e difamao de sua mulher, e em seguida o senhor pa

    triarcal na plenitude de suas prerrogativas incivis.

    Cotejado com seu modelo, o Casmurro aparece como uma

    variante original, seja porque recombina Otelo e Iago em uma s

    pessoa, seja porque mistura as condies de personagem e de nar

    rador, tornando incerta uma distino importante. No que res

    peita ao enxadrismo das situaes literrias, a inveno macha

    diana diablica. Investido da credibilidade que a conveno

    realista associa funo narrativa, Bento Santiago no obstante

    parte parcialssima do drama. O garante do equilbrio expositivo

    no tem equilbrio ele prprio: o memorialista honesto e saudoso

    um marido desgovernado, que trata de persuadir a si mesmo e

    ao leitor de que fizera bem ao expulsar de casa e desterrar para

    outro continente a sua Capitu/Desdmona. A esto, com raio de

    generalidade to supranacional quanto as instituies do casa

    mento ou da narrao, os estragos causados pelo cime, pela prer-

    rogativa masculina e pela autoridade inquestionada de quem detm

    a palavra. So resultados de tipo universal, obtidos por Caldwell

    no espao como que atemporal e homogneo das obrasprimas

    do Ocidente, por meio da comparao abstrata de caracteres ou

    situaes, e de anlises tambm elas universalistas. Os paralelos

    com Shakespeare, a Bblia e a mitologia, as especulaes sobre o

    significado dos nomes prprios das personagens machadianas,

    no campo geral da onomstica, o estudo da consistncia funcio

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  • 27

    nal de complexos imagsticos, maneira de Freud e do New

    Criticism shakespeariano, a revelao da duplicidade do Otelo

    narrador, que um feito crtico notvel nada disso requereu o

    recurso configurao peculiar do pas, que no conta para efeitos

    de interpretao.

    Isso posto, Bentinho no Otelo, Capitu no Desdmona,

    Jos Dias e o Pdua no so Iago e Brabantio, nem o Rio de Janei

    ro oitocentista a Europa renascentista. O sculo xix e seu sistema

    de sociedades distintas entre si e no tempo entram pela outra

    porta, e mal ou bem a cegueira do universalismo para a historici

    dade do mundo fica patente, sem prejuzo de eventuais descober

    tas sensacionais. As diferenas entre Machado, Shakespeare e

    demais clssicos no importam uma a uma, no vcuo, maneira

    elementarista, como aspectos de um s e mesmo conjunto: elas

    tm desempenho estruturalhistrico, sugerindo mundos corre

    lativos e separados, que esteticamente seria regressivo confundir.

    A presena ubqua da cor local no pode ser mera ornamentao,

    sob pena de rebaixamento artstico. A prpria desautorizao do

    narrador masculino, to esclarecedora, s atinge a plenitude de

    sua irradiao quando combina os atropelos do cime uma

    paixo relativamente extraterritorial s particularidades do

    patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado a escravido e clien

    telismo, empapado de autocomplacncia oligrquica, alm de ve

    xado pela sombra do progresso europeu.

    Pensando em vantagens comparativas, ou no que as leituras

    podem oferecer ou invejar uma outra, observese que a inter

    pretao universalista d como favas contadas a grandeza que a

    interpretao com base nacional quereria demonstrar. Ser uma

    superioridade? Uma inferioridade? claro que grandeza no caso

    tem dois significados que brigam entre si. Semelhanas e diferen

    as com Otelo, Romeu e Julieta, Hamlet, Macbeth etc., alm de

    convergncias com teses do New Criticism, decidem a questo da

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  • 28

    estatura artstica pela simples indicao dos patronos ilustres, que no deixam de constituir um establishment. Assim, o procedimento que faz admitir Dom Casmurro entre os seus pares no campo das obras universais tem algo de cooptao, ou de reconfirmao de prottipos (de cera?) no ultramar. Graas a um sistema de menes cultas, meio ostentadas e meio escondidas alis escolhidas por Machado com deliberao meticulosa , um romance que no constava como cannico troca de estante. Por outro lado, embora ponha o livro nas alturas e o subtraia ao acanhamento provinciano, com ganho inegvel, essa universalidade, devida ao ar de famlia, no satisfaz a outra leitura, ainda que a possa ajudar muito. Para esta, o caminho para a qualidade passa pelo aprofundamento crtico de uma experincia estticosocial precria, em boa parte inglria, at ento mantida margem, cuja densidade interna se trata de consolidar e cuja relevncia se trata de arguir e, mesmo, construir. No h como desconhecer o papel que a tradio clssica tem na obra de Machado, mas o que interessa identificar o redirecionamento nada universal que, graas ao Autor, a problemtica particular do pas lhe imprime. A nota de reivindicao, bem como o esboo de um contraestablishment, ou a reconsiderao a no va luz do establishment anterior, no existem na outra leitura.

    Ainda nesse captulo da ajuda entre adversrios, vejase que o Brazilian Othello causou uma viravolta memorvel em nosso meio, sem ser forte em seu prprio terreno: conforme entra pelas semelhanas e diferenas de personagens machadianas, shakespearianas e outras, postas para flutuar na regio comum das obras universais, onde tudo se compara a tudo, Caldwell vai se perdendo no inespecfico, para no dizer arbitrrio. A verdade que o melhor de sua interveno o tino para a mf do pseudoautor no frutifica no mbito comparatista, e sim no da reflexo nacional. Esta ltima, demasiado bloqueada para enxergar o artifcio machadiano, fizera um papelo. Por isso mesmo, entretanto, uma vez esclarecida a respeito, era ela quem tinha mais elementos para

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  • 29

    lhe apreciar o gume e explicitar o alcance, seja artstico, seja de

    crtica de costumes, seja poltico. Em suma, o resultado durvel

    do livro no foi tanto a revelao de uma obraprima quanto a

    inviabilizao da leitura conservadora de um clssico nacional,

    at ento assegurada por uma aliana tenaz de convencionalismo

    esttico e preconceitos de sexo e classe. A solidez social dessa liga

    conferiu aos novos argumentos um valor de contestao inespe

    rado, que escapa ao programa das teorias literrias universalistas.

    Invertendo a blague inicial da autora, segundo a qual s anglfo

    nos e shakespearianos teriam condies de apreciar Machado de

    Assis, digamos que foi no ambiente saturado de injustias nacionais

    e de histria que o achado universalista adquiriu a densidade e o

    impulso emancipatrio indispensveis a uma ideia forte de crtica.

    Por que supor, mesmo tacitamente, que a experincia brasi

    leira tenha interesse apenas local, ao passo que a lngua inglesa,

    Shakespeare, o New Criticism, a tradio ocidental e tutti quanti

    seriam universais? Se a pergunta se destina a mascarar os nossos

    dficits de excolnia, no vale a pena comentla. Se o propsito

    duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do

    local, ela um bom ponto de partida.

    A questo tem importncia para a arte de Machado, que a

    dramatizou numa crnica das mais engenhosas, chamada O pu

    nhal de Martinha.19 Tratase da apresentao, em prosa clssica

    pastichada, dos destinos paralelos de dois punhais. Um lendrio e

    ilustre, que serviu ao suicdio de Lucrcia, ultrajada por Sexto

    Tarqunio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado

    19. Machado de Assis, O punhal de Martinha (5 de agosto de 1894), Obra

    completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, v. iii, p. 638. A crnica est reproduzida

    no final deste volume, em apndice. Como se trata de um texto breve, as cita

    es vo sem indicao de pgina.

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