Mário Grynspan. Ciência política e trajetórias sociais - uma sociologia história da teoria das...

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  • REFERNCIA BIBLIOGRFICA:

    Disponibilizado em: http://www.cpdoc.fgv.br

    Proibida a publicao no todo ou em parte; permitida a citao. A citao deve ser textual, com indicao de fonte conforme abaixo.

    GRYNSZPAN, Mrio. Cincia poltica e trajetrias sociais: uma sociologia histrica da teoria das elites. Rio de Janeiro: Ed. Fundao Getulio Vargas, 1999. 255p.

  • memria de meu pai, Chil,

    a meu filho, Ilan, a minha esposa,

    Danielle, e a minha me, Augusta.

    Dedicatoria.fm Page 5 Tuesday, March 28, 2006 2:54 PM

  • Sumrio

    Esclarecimentos iniciais e agradecimentos 9

    Introduo 11

    Captulo 1 Concorrncia e reconhecimento 37

    Concorrncia e trabalho de reconhecimento 42

    O terico da classe dirigente 49

    Comentadores, editores e percepes impostas 54

    Parte I. Gaetano Mosca: a inovao conservadora 67

    Captulo 2 Origens e opes de carreira 69

    Captulo 3 Inovao e fracasso universitrio 79

    Captulo 4 Capital social e carreira universitria 99

    Captulo 5 Prestgio intelectual e capital poltico 113

    Captulo 6 Duplo referencial e fracasso duplo 121

    Parte II. Vilfredo Pareto: a sada aristocrtica 139

    Captulo 7 De diletante a especialista 141

    Captulo 8 Economista e socilogo 157

    Captulo 9 Cincia e profecia 187

    Concluso 201

    Notas 211

    Bibliografia 245

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  • Esclarecimentos iniciais e agradecimentos

    Este livro uma verso modificada de minha tese de doutorado, de-fendida junto ao programa de ps-graduao em antropologia socialdo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trata-se de um olhar sobre uma das teorias constituidoras da cincia polti-ca e da sociologia a das elites , a partir, porm, da antropologia,uma disciplina que no foi por ela informada de modo significativo.

    No centro da anlise esto as trajetrias e os textos produzidospor dois autores italianos da virada do sculo XIX para o XX, Gaeta-no Mosca e Vilfredo Pareto. Estud-los a partir do Rio de Janeiro,sem me deslocar para a Itlia, imps alguns limites ao trabalho noque tange s fontes de pesquisa. Ele foi desenvolvido, em grande par-te, com base em fontes secundrias. No tive acesso, por exemplo, adados estatsticos diretos ou a informaes em quantidade sobre astrajetrias de outros pensadores, que permitiriam caracterizar, demaneira mais detalhada, o espao social de posies italiano no pe-rodo tratado. De todo modo, o material utilizado foi bastante exten-so e massivo, conferindo um bom grau de consistncia s formula-es e hipteses apresentadas.

    Sempre que for referido, ao longo do trabalho, o ttulo de algumlivro ou artigo, ele o ser na forma das edies efetivamente consulta-das. As suas citaes, no entanto, quando em lngua estrangeira, foramtraduzidas por mim no caso daquelas em ingls, francs e espa-nhol , e por Srgio Lamaro para as italianas. Srgio tambm meajudou com sugestes para a melhoria de algumas passagens do texto.

    De fato, so tantas as pessoas e instituies que tornam umtrabalho como este vivel que, se alm de enumer-las, me dispu-ser a especificar suas contribuies, precisarei de um outro volu-me, pelo menos do mesmo tamanho deste. Como isso no poss-vel, e como tambm no posso deixar de expressar minha gratidoa elas, procurarei ser breve e objetivo, desculpando-me antecipa-damente por eventuais esquecimentos.

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  • 10 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    Em primeiro lugar, gostaria de expressar o meu reconheci-mento para com a banca que examinou minha tese, formada pelosprofessores Mariza Peirano, Lygia Sigaud, Jos Murilo de Carvalho eMoacir Palmeira. Suas observaes foram sem dvida fundamentaispara a reelaborao que resultou neste livro.

    Destaco ainda o papel central desempenhado pelo meu orien-tador, professor Afrnio Raul Garcia Jr., que, apesar da amizade de-monstrada em todos estes anos que nos conhecemos, foi tambm umcrtico impiedoso. Se este livro tem pontos positivos, eles com certe-za devem-se em boa parte aos comentrios precisos e pertinentes doprofessor Afrnio.

    Alm destes, expresso tambm a minha gratido para com Fe-derico Neiburg e Jos Srgio Leite Lopes, que se prontificaram a ler ecomigo discutir a primeira verso de algumas das partes deste livro.

    Com relao s instituies, agradeo inicialmente ao Centrode Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil(CPDOC) da Fundao Getulio Vargas, onde sou pesquisador, semcujo apoio este trabalho teria sido impossvel. O meu obrigado, ain-da, ao Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminen-se, que me liberou das atividades docentes durante o ano de 1993 afim de que pudesse finalizar a investigao.

    Os recursos financeiros para a realizao desta pesquisa vie-ram da Finep, atravs de seus convnios com o CPDOC, e do CNPq eda Capes, que me concederam bolsas de doutorado. Ao CNPq agra-deo ainda por dois bolsistas de iniciao cientfica, concedidos atra-vs da Fundao Getulio Vargas, Gustavo Carvalho de Lemos e JonasWagman, que puderam me auxiliar em parte do levantamento biblio-grfico.

    Fazer um livro como este, no Rio de Janeiro, s foi possvel gra-as ajuda dos amigos, parentes, ou simplesmente conhecidos, quese encontravam fora, permitindo-me ter acesso a fontes que de outromodo no teria. Assim, lembro: de So Paulo, Lcia Rotemberg; dosEstados Unidos, Lcia Lippi, Gustavo Lipsztein, Maria Celina DArau-jo e Marina e Federico Neiburg; da Inglaterra, Letcia Pinheiro; daItlia, Donatella Berlendis, Donatella Saviola, professor Ettore Alber-toni e Guilherme de Andrade; e da Frana, Srgio Lifschitz. No hcomo no me referir ainda aos que, no prprio Rio de Janeiro, mepossibilitaram o acesso a trabalhos importantes, como Marcos Chore os professores Luiz Felipe B. Neves e Jos Murilo de Carvalho.

    Cabe destacar que, para alm da ajuda dos amigos e conheci-dos, este livro tambm s se tornou possvel graas, em grande parte,ao suporte de biblioteca que pude ter no CPDOC e na Fundao Ge-tulio Vargas.

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  • Introduo*

    Foi a partir do sculo XIX que as cincias sociais se constituram emdisciplinas autnomas e se institucionalizaram por meio de cadei-ras universitrias. Isso se deu, em boa medida, como resultado dotrabalho de afirmao de alguns indivduos, que se impuseramcomo fundadores de disciplinas e autores de teorias que passaram aorientar reflexes, a determinar temas legtimos de pesquisa e a tor-nar-se objeto de discusso e disputa.

    Uma dessas teorias foi a que ficou conhecida como elitismo,que se afirmou como uma crtica s idias democrticas e socialis-tas que se difundiam naquele mesmo momento. Em que pese sespecificidades dos autores reconhecidos como seus principais for-muladores os italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto , seuargumento central, apresentado como descoberta cientfica, era ode que em qualquer sociedade, em qualquer grupo, em qualquerpoca ou lugar, havia sempre uma minoria, uma elite que, por seusdons, e sua competncia e seus recursos, se destacava e detinha opoder, dirigindo a maioria. Esta era uma lei sociolgica inexorvel,que nem mesmo o mecanismo do sufrgio universal era capaz deromper. Pelo contrrio, o que a adoo do sufrgio universal e acrena nos princpios sobre os quais se apoiava os da igualdadeentre os homens e da soberania popular produziam era a legiti-

    * Uma primeira verso deste captulo introdutrio, modificada e com umescopo bastante distinto, foi publicada em Boletim Informativo Bibliogr-fico (BIB), sob o ttulo A teoria das elites e sua genealogia consagrada(Grynszpan, 1996).

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    mao do mando da minoria, cujos desgnios passavam a ser acei-tos como expresso da vontade autnoma das amplas maiorias.

    Do sculo XIX aos dias de hoje, a teoria das elites experi-mentou diversas mudanas, foi alvo de sucessivas reinterpretaes,foi apropriada de maneiras distintas. De um conjunto de teses anti-igualitrias e antidemocrticas, passou a ser tomada como uma an-lise realista do sistema democrtico. Na formulao de seus autorese comentadores mais recentes, o que o elitismo visa a demonstrar que, com efeito, qualquer sistema poltico, mesmo o democrtico, dirigido por minorias. A democracia, contudo, se distingue por terno poder no uma elite fechada, cristalizada em um s grupo que sereproduz internamente, e sim aberta, renovada por meio de umprocesso de livre concorrncia pelos votos do eleitorado.

    Liberdade e concorrncia so assim condies sine qua nonpara a democracia, mais importantes mesmo, da perspectiva de al-guns autores, do que o prprio grau de participao poltica.1 Soelas que impedem que um nico grupo possa se impor de forma de-finitiva e exercer um controle total sobre as vidas dos indivduos. aconcorrncia, igualmente, que torna as elites responsveis em rela-o s maiorias, comprometendo-as com anseios destas sob pena deperderem sua posio para grupos rivais. Contudo, deve-se destacarque esse comprometimento no pode ir ao ponto de tornar a eliterefm das massas, pondo em xeque o sistema poltico. Do mesmomodo, preciso evitar que as massas sejam direta e facilmente mo-bilizveis pela elite, pois, quando isso ocorreu, como no nazismo, nofascismo e no comunismo, o que se assistiu foi a negao da prpriademocracia. Para que ambos os riscos sejam eliminados funda-mental a existncia de uma forte estrutura intermediria de organi-zaes concorrentes, como partidos, sindicatos e associaes diver-sas, fazendo a mediao entre elite e massa.2

    O debate sobre a teoria das elites persistiu at a dcada de 80,quando sua intensidade comeou a diminuir. At ali, no entanto, foigerada uma enorme quantidade de textos, envolvendo um sem-n-mero de autores de origens e filiaes variadas, configurando umadas reas mais consagradas das cincias sociais.3

    Um dos efeitos da constituio de um domnio do conheci-mento altamente investido e que incide com maior fora sobre osnefitos a exigncia de uma demonstrao de familiaridade, deum controle de toda a linhagem de seus constituidores, como con-dio de aceitao e reconhecimento.4 Mas quanto maior a exten-so da linhagem, maior ser tambm o risco de excluso de algumautor, de algum trabalho considerado fundamental por um ou outro

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    especialista ou autoridade. No caso da teoria das elites, esse risco relativamente reduzido pelo consenso que se estabeleceu em tornode quais so os seus autores e textos-chave, mesmo sendo eles bas-tante numerosos.

    Mais do que isso, se a teoria das elites tem uma linhagem in-disputada, uma genealogia de autores consagrada, interessanteperceber que as referncias legitimadoras a ela partem, invariavel-mente, de uma evocao quase que ritual s origens, queles queso reconhecidos como seus clssicos, seus pais fundadores Mosca e Pareto , ainda que nem sempre se trate de louv-los, esim de esconjur-los.5 Essa referncia obrigatria, importantedestacar, pode se dar mesmo quando o trabalho se inscreve em umcampo disciplinar como o da antropologia, em cujo panteo, tradi-cionalmente, nenhum daqueles dois autores perfilado.

    Assim, Edmund Leach e S. N. Mukherjee (1970:ix), em sua in-troduo a Elites in South Asia, remetem-se a Mosca e a Paretocomo aqueles a cujas formulaes o conceito de elites esteve inti-mamente associado na histria do pensamento sociolgico. Domesmo modo, a coletnea Elites: ethnographic issues aberta porum captulo em que seu organizador, George E. Marcus, discute ateoria e o conceito de elite.6 Sua referncia inicial, de forma seme-lhante de Leach e Mukherjee, a reflexo de Pareto e de Mosca:

    Embora diversos relatos histricos e textos filosficos tives-sem, de modo implcito, reconhecido o papel social determinantedas elites, o corpo de teoria mais diretamente vinculado ao concei-to de elite foi aquele elaborado de maneira independente pelospensadores italianos Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca, em fins dosculo XIX e incio do XX (Marcus, 1983:13).

    Alm de tema autorizado, portanto, a teoria das elites dispede uma longa genealogia consagrada que tem em Mosca e Paretoseu ponto de partida necessrio. Contudo, ao mesmo tempo em quese afirma como referncia obrigatria e se torna indisputada, essasucesso de autores deixa de ser percebida como construo, o quea isenta de uma reflexo sobre os seus princpios e as operaes pormeio das quais instituda.

    Se , ao menos em parte, pelo investimento dos autores que agenealogia construda e imposta, ela o igualmente pelo trabalhode inmeros comentadores ou leitores privilegiados. Constituindo-se em rea prestigiada das cincias sociais, a teoria das elites pas-

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    sou tambm a conferir prestgio e reconhecimento aos que a ela sededicavam, justificando e atraindo o interesse de um nmero cres-cente de comentadores.7 Por isso mesmo, ela se afirmou como umtema bastante mediatizado, o que levou a que se dispensasse porvezes o recurso aos textos dos prprios autores. Passou-se dessaforma a conhecer os escritos de um pensador, a ter acesso s suasidias, em alguns casos de modo exclusivamente indireto, por via deseus comentadores. E indo alm, os comentrios passaram a con-fluir para a produo de um efeito de classificao, de seleo dostrabalhos indicados como relevantes, alando-os condio de cls-sicos e, em contrapartida, relegando os demais ao esquecimento.

    Mais do que uma genealogia consagrada de pensadores, maisdo que uma seqncia autorizada de obras clssicas, o que se im-pe, em grande parte atravs dos comentadores, uma determina-da leitura dos autores e de seus textos.8 Isso se observa em uma es-cala tanto maior quanto mais mediatizado for o contato com oautor, quanto menor for seu controle sobre a imagem que dele secristaliza e sobre a apropriao de suas idias. Mas mesmo quandose tem acesso aos seus prprios trabalhos, isso no significa que apercepo que deles se tem, que os elementos que deles se rele-vam, no sejam de modo amplo determinados a priori, ainda que oleitor no se d conta disso necessariamente.9

    Na verdade, o que est em jogo, para alm da cristalizao deuma leitura, uma naturalizao de hipteses, uma imposio deum objeto pr-construdo. Desse modo, definir um trabalho comoum estudo de elites, em qualquer disciplina das cincias sociais,mais do que obrigar-se invocao de uma genealogia consagradade autores e comentadores, com a inevitvel referncia aos seuspais fundadores, significa tambm incorporar um conjunto de no-es e de questes prvias. Uma vez, porm, que essas operamcomo instrumentos de percepo e de construo da realidade so-cial, a sua incorporao no-controlada termina por se constituirem um obstculo ao conhecimento.

    O que se pretende com este livro , produzindo uma sociolo-gia histrica da teoria das elites, contribuir para uma ruptura com asua incorporao no-controlada. Procurar-se- ver como, histori-camente, as elites se constituram em objeto de reflexo sociolgica,construindo-se em torno delas uma teoria que se imps como ins-trumento privilegiado de anlise social. Isso ser feito, basicamente,a partir de uma anlise das trajetrias de Mosca e de Pareto, ten-tando-se demonstrar como, com a construo e a afirmao da teo-

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    ria, jogou-se, a um s tempo, a imposio tanto intelectual quantopoltica de seus dois formuladores.

    Dando-se conta das condies em que determinadas formula-es foram produzidas, remetendo-as aos seus contextos e aos seussistemas de relaes especficos, o que se busca produzir uma des-naturalizao de noes cristalizadas, evidenciando, em um s pro-cesso, a necessidade de submeter tambm comentadores e comen-trios a um mesmo tipo de anlise, inscrevendo-os em seus espaosde posies especficos, remetendo-os aos seus conjuntos particula-res de constrangimentos, restituindo as condies de possibilidadede suas prprias leituras. Dessa maneira, poder-se- perceber adescontinuidade naquilo que apresentado como contnuo, locali-zar o que visto como universal e introduzir a concorrncia no que apropriado segundo uma lgica de influncia e de colaborao.

    A nfase nas trajetrias sociais confere uma das marcas dis-tintivas deste trabalho. Em vez de, como feito normalmente, limi-tar o estudo a uma exegese e um comentrio de textos consagrados,inserindo-os em uma determinada cadeia de pensamento, vincu-lando-os queles que seriam seus predecessores e sucessores, oudetectando seus opositores intelectuais, identificando seus pontosde divergncia em relao a estes, enquadrando-os em alguma ca-tegoria ampla e fixa de estilo, buscar-se-o os fundamentos das for-mulaes de Mosca e de Pareto, remetendo-as s distintas posiessociais por eles ocupadas no espao italiano de fins do sculo XIX eincio do sculo XX.

    Trata-se, com essa abordagem, de lidar com as idias dos auto-res de modo objetivado, inscrevendo-as, assim como as opes, car-reiras e estratgias de cada um deles, em um conjunto de possveis.Tal conjunto, por sua vez, ser visto como institudo pela interseode um espao social de posies estruturadas, no qual os indivduos,dotados de composies de capitais e de recursos diversos, locali-zam-se e so localizados de forma diferencial, vale dizer relacional,com um habitus, isto , com esquemas incorporados de viso, de per-cepo, de classificao do mundo, geradores de prticas sociais queso, por seu turno, igualmente estruturadoras do espao estrutura-do, reproduzindo-o ou transformando-o.10

    importante ressaltar que, da perspectiva que aqui se adota,os indivduos no podem ser tomados como pontos fixos no espao.Pelo contrrio, tanto as alteraes que se do em suas composiesespecficas de capitais, quanto as modificaes que se operam aolongo do tempo na estrutura do espao no qual se inscrevem, levam-nos a deslocamentos relativos de posio, o que resulta em mudan-

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    as em suas prprias idias, vises, percepes. isso que se procu-rar evidenciar a partir de Mosca e de Pareto. Portanto, em vez detomar por base apenas um texto consagrado de cada autor ou Theruling class (Mosca, s.d.) e o Trait de sociologie gnrale (Pareto,1933), que so comumente mais citados , trabalhar-se- com al-guns de seus escritos mais significativos, produzidos em momentosdistintos, relacionando-os com suas trajetrias e com suas diferen-tes posies sociais.

    Nada mais distante da linha que conduz este livro, por conse-guinte, do que a leitura das formulaes daqueles autores comomanifestaes de um carter individual imutvel. Nada mais estra-nho do que a tentativa de encontrar aquilo que seria a essncia doseu pensamento, uma essncia que se manifestaria em todos osseus escritos e que, por isso mesmo, poderia ser conhecida a partirde apenas um deles. Nada mais discrepante, por outro lado, do quetomar a afirmao, a aceitao de suas idias, como um processonatural, fruto de alguma espcie de movimento prprio, de foramagntica, de potncia luminosa, de sua superioridade, de seu po-der, de seu alcance.11

    Se a teoria das elites, na forma que lhes deram Mosca e Pare-to, pde se impor, isso resultou, em grande parte, de um trabalhode afirmao dos autores, como efeito de seu esforo de reconheci-mento. E quando se fala em trabalho de afirmao, em esforo dereconhecimento, isso feito em um duplo sentido, isto , no de im-posio e aceitao tanto das idias quanto dos prprios autores.

    A imposio e o reconhecimento de uma idia, portanto,sero vistos aqui como inseparveis da imposio e do reconheci-mento de um autor, atribuindo-lhe, somando-lhe prestgio, notorie-dade, posio social, alm de outros ganhos, inclusive financeiros,tanto dentro quanto fora de seu campo privilegiado de insero.Por isso, os debates intelectuais, mesmo os aparentemente mais de-sinteressados, no sero tratados como meros embates de idias,em que cada contendor se v movido to-somente pela busca daverdade e do conhecimento, tentando afirmar sua tese e infirmar ado outro apenas em prol do avano da cincia.

    Isso no significa, claro, que se v considerar que os agentessejam sempre explicitamente, ou mesmo conscientemente, movi-dos pela busca de prestgio e notoriedade. Trata-se, na verdade, deuma regra incorporada do jogo intelectual, do jogo cientfico, que semostra como to mais legtimo quanto mais aparentemente desin-teressado, desprendido for.12

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    O que decorre da forma como construdo o objeto destelivro que seu eixo estruturador ser eminentemente relacional.Tomar os autores como agentes em um espao de posies implica,de modo necessrio, perceb-los como agentes em relao. Damesma forma portanto que no se pode trat-los como pontos fixos,imutveis, no possvel isol-los em suas posies. por relaoaos demais agentes, por suas disputas, concorrncias e alianas,que suas aes, estratgias, investimentos, tomadas de posio,assim como suas idias, podem ganhar maior inteligibilidade.

    exatamente sobre esse argumento que se apia uma das hi-pteses centrais do presente trabalho, qual seja, a de que foi na con-corrncia entre Mosca e Pareto que, em larga medida, a teoria daselites foi formulada e imposta enquanto tal. Mais do que isso, bus-car-se- mostrar que a pugna de Mosca com Pareto tambm pesou,e de forma decisiva, para a afirmao das prprias cincias sociais.

    H que se ressaltar, todavia, que o fato de se enfatizar umfeixe de disputa no significa que vo ser desconsiderados outrosigualmente importantes. Pelo contrrio, o que se procurar justa-mente levar na devida conta o conjunto de relaes significativasnas quais os autores se inscreviam, avaliando seus efeitos no ape-nas sobre a formulao, a reformulao e a imposio da teoria daselites, mas sobre a afirmao mesma das cincias sociais.13

    Este ltimo ponto bsico e nos remete ao contexto geral emque viveram Mosca e Pareto, e maneira pela qual a teoria das eli-tes, em suas formulaes originais, comumente avaliada. Aindaque possam se distanciar em aspectos fundamentais de suas anli-ses, h questes e problemticas centrais e interligadas, comunsaos dois autores e bastante caractersticas do quadro poltico, sociale intelectual da virada do sculo XIX. Questes como a da igualda-de, da democracia, da soberania popular, da representao polti-ca, do sufrgio universal e do socialismo foram impostas agendapoltica em um mundo em intensa transformao e movimento, ummundo em que se desagregava uma antiga ordem, em que se rom-piam laos tradicionais de dominao, em que se conformavamnovos atores e que antigos eram deslocados, um mundo, enfim,marcado por enfrentamentos abertos, diretos, por revolues e porguerras.14 A prpria imposio daquelas questes se deu, de fato,como parte mesmo dos enfrentamentos. Elas se afirmaram comopalavras de ordem dos que combatiam o Antigo Regime procu-rando deslegitim-lo, desnaturaliz-lo, caracterizando como arbi-trria e injusta a ordem tradicional calcada na desigualdade entreos homens , entre eles aqueles que buscavam impor-se politica-

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    mente atravs da introduo de um novo ator, as massas, das quaisse diziam autnticos representantes e intrpretes.

    Tratava-se de um momento de afirmao da democracia, deextenso da participao e da cidadania poltica, de alargamentotendencial dos limites da polis no sentido do demos, de maneira glo-bal. A discusso sobre a adoo do sufrgio universal se impunhacomo central e vrios pases passavam a promover uma ampliaosubstancial das franquias polticas.15

    Tudo isso, claro, levava polticos e partidos a aderirem snovas regras do jogo, lanando-se em uma luta concorrencial pelovoto. Esse processo, por sua vez, correspondia imposio de umanova legitimidade poltica, calcada no voto, que, em contrapartida,obrigava boa parte dos mais reticentes a declarar publicamente suafidelidade democracia, contribuindo para a sua consolidao.16

    Como lembra porm o historiador Arno Mayer, preciso reco-nhecer que todas essas eram mudanas em operao, e que seuritmo no foi to acelerado quanto at aqui se julgou, com base nosdiscursos de seus defensores, tomados que foram como expressesdos processos reais. Mayer procura demonstrar, em seu livro A forada tradio, que a antiga ordem era dotada de um enorme flego,persistindo, grosso modo, at a I Guerra Mundial (Mayer, 1987:14-5).

    Na verdade, observa o autor, as idias e os valores tradicionaiseram bastante fortes na maior parte da Europa, inclusive entre a pr-pria burguesia em ascenso, que adotava prticas e posturas da aris-tocracia.17 Mais do que isso, havia mesmo vnculos evidentes entresetores da burguesia e da aristocracia do Antigo Regime, a quem osprimeiros recorriam no apenas para questes de tarifas, contratos ecargos pblicos, mas igualmente para proteo externa contra po-tncias rivais e interna contra grupos nacionais subordinados e tam-bm contra agitaes de trabalhadores (Mayer, 1987:270).

    A presena dos trabalhadores era na verdade um elementofundamental, exercendo um peso decisivo nos clculos dos setoresdominantes e determinando a resistncia, ao menos de parte deles,em relao democracia e aos seus possveis efeitos. A afirmaodo movimento operrio e a expresso que o socialismo vinha alcan-ando em alguns pases eram vividas como decorrncias da demo-cracia, atribuindo-se a ela, no em si, mas pelo que poderia propi-ciar, um forte carter de ameaa.

    O resultado disso foi um certo reforo da antiga ordem, asso-ciado adoo de um liberalismo excludente, represso aos movi-mentos de massa e isolamento dos setores mais radicais jacobi-nos e socialistas. Procurava-se salvaguardar a ordem, como aponta

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    Hobsbawm, aliando a represso e o endurecimento promoo dealgumas reformas, implementao de polticas burguesas e ado-o de instituies liberais, aceitando a ampliao da participao,mas dentro de determinados limites, restringindo-a, por exemplo,atravs de critrios sexuais ou da exigncia de qualificaes educa-cionais ou de propriedade.18

    Em termos intelectuais afirmava-se ao invs de um quadrode otimismo impulsionado pelo progresso, de crena na razo, carac-tersticos do Iluminismo um clima de ceticismo, um sentimento dedecadncia e de incerteza. Para a intelligentsia europia, em largamedida, segundo Mayer, a mobilizao e o apelo democrtico, nos n-veis em que vinham se dando, entrariam fatalmente em choque com acultura humanstica prevalecente, o que resultaria em um perodo detrevas (Mayer, 1987:271).19 Darwin e Nietzsche, ainda de acordo com oautor, constituram-se naquele momento em fonte intelectual para amal-intencionada e belicosa investida ideolgica contra o progres-so, o liberalismo e a democracia (Mayer, 1987:285).20

    Dessa mesma raiz, na anlise de Mayer, que havia brotado oelitismo. Juntamente com o darwinismo social, ele havia desafiadoe criticado

    o Iluminismo do sculo XIX, e mais particularmente as pressespela democratizao social e poltica. O termo elite, carregadode valores, s se definiu como tal de forma plena no final do scu-lo XIX, e recebeu sua mais ampla e corrente aceitao em socie-dades dominadas pelo elemento feudal. Mas, por toda a Europa,as teorias da elite espelhavam e racionalizavam prticas predo-minantes correntes, ao mesmo tempo em que serviam comoarma na batalha contra o nivelamento poltico, social e cultural(Mayer, 1987:276).

    Os autores elitistas portanto, segundo a avaliao do historia-dor, estavam na contracorrente da democracia e dos movimentossociais, negando-os atravs da crtica idia de igualdade. Paraeles, a democracia, tal como proposta e por extenso o prpriosocialismo, que levava ao paroxismo a idia de igualdade , noapenas era uma metafsica, uma abstrao sem base real, mas tam-bm operava como uma forma de legitimar o poder, este sim real,de uma minoria. Apresentavam-se eles, por conseguinte, comopensadores realistas, demolidores de mitos.21

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  • 20 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    Assim, Mosca e Pareto teriam contribudo, atravs de suas in-vestigaes, para a manuteno do que Mayer chama de elites pr-industriais. Eles o fizeram, desdenhosos e temerosos da participa-o e do controle populares, limitando sua ateno ao recrutamen-to e renovao das classes governantes (Mayer, 1987:286).

    Prxima a esta a anlise do cientista social Albert O. Hirsch-man, em seu A retrica da intransigncia.22 Ele abre seu argumentoapropriando-se da tese do socilogo Thomas H. Marshall (1967), se-gundo a qual a cidadania no Ocidente se afirmou a partir de trs di-menses, distintas e consecutivas: a civil, no sculo XVIII, expressapela igualdade perante a lei e pelos direitos do homem; a poltica,no sculo XIX, caracterizada pela ampliao do direito de voto nosentido do sufrgio universal; e, finalmente, a social e econmica, jno sculo XX, associada ao Welfare State.

    Para Hirschman, cada uma dessas dimenses desencadeouformas de resistncia especficas, ou ondas reacionrias, apoiadasem trs teses bsicas. A primeira foi a da perversidade, que susten-tava que qualquer ao adotada no sentido da melhoria de aspectoseconmicos, sociais ou polticos terminaria de algum modo produ-zindo o efeito inverso, piorando aquilo que se desejava remediar. Asegunda, a da futilidade, partia da idia de que as aes propostasfatalmente resultariam infrutferas. Quanto terceira, sua avalia-o era a de que as aes, ainda que pudessem ter alguma eficcia,teriam um custo muito elevado, pondo em srio risco valiosas reali-zaes anteriores. No fortuito, portanto, o fato de ser ela denomi-nada tese da ameaa (Hirschman, 1992:11-6).

    No caso da extenso do voto na Europa do sculo XIX, a opo-sio foi particularmente forte. Tratava-se afinal, segundo Hirsch-man, de uma sociedade como Hobsbawm e Mayer tambm apon-taram fortemente hierarquizada, na qual os grupos inferioreseram vistos com profundo desprezo, tanto pelas camadas altasquanto pelas mdias. A proposta de incorporao das massas po-ltica, por conseguinte, soava como altamente perigosa e mesmoaberrante (Hirschman, 1992:25-6).

    Todo esse ceticismo e hostilidade em relao ao avano dademocracia, prossegue o autor, encontraram respaldo, j no finaldo sculo, nas teorias cientficas, mdicas e psicolgicas, que atri-buam s foras irracionais um grande peso no comportamento hu-mano. Munidas desse poderoso argumento, tais teorias ameaavamjogar por terra a cidadela liberal iluminista, expondo a fragilidadede um dos seus principais pilares a crena na racionalidade ,bem como de toda uma cadeia de idias a ela associadas, entre as

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    quais a do sufrgio universal. Demonstrada, afinal, a carncia defundamento cientfico de tais idias, a sua prpria defesa perdiasentido (Hirschman, 1992:27).

    Um dos autores de poca que, na opinio de Hirschman, me-lhor expressaram essa reao negativa aos avanos do direito devoto e da democracia, enquadrando-se na tese da perversidade, foi opsiclogo francs Gustave Le Bon (Hirschman, 1992:27-9).23 A exem-plo de outros pensadores, ele foi

    atrado irresistivelmente para a ridicularizao dos que preten-dem mudar o mundo para melhor. E no basta mostrar que essesingnuos Weltverbesserer se do mal: preciso provar que na ver-dade eles so, se me for permitido cunhar o termo alemo corres-pondente, Weltverschlechterer (pioradores do mundo), que dei-xam o mundo em pior forma do que a que predominava antes dequalquer reforma ser instituda. Alm disso, deve-se mostrarque a piora ocorre exatamente na mesma dimenso em que sesupe que haja melhora (Hirschman, 1992:29-30).

    O livro Psychologia das multides, de Le Bon, foi publicadopela primeira vez em 1895 e tinha um carter claramente normati-vo. Vale a pena seguir seu argumento com algum detalhe, mesmoque isso represente um momentneo deslocamento, at porque elese disseminou de forma evidente, sendo apropriado por um grandenmero de pensadores, e conhecido tanto por Mosca quanto porPareto. Alm disso, esse procedimento permitir trazer elementospara relativizar o enquadramento que a ele d Hirschman, comoum expoente da tese da perversidade.

    Era de dvida e apreenso, segundo Le Bon, o estado em quese encontrava o mundo, imerso em uma fase de transformao eanarquia. Na base disso estava o nascimento das multides comonova potncia, como a ltima soberana da idade moderna (Le Bon,1922:vi-vii). Aladas vida poltica, as classes populares se transfor-maram em classes dirigentes, insufladas pela propagao de deter-minadas idias, como as socialistas, e pelo processo de organizao.Unificando e precisando seus interesses e reivindicaes, elas vi-nham se impondo com fora sociedade, ameaando conduzi-la norumo no do seu futuro, mas do seu passado, da barbrie, de um co-munismo primitivo que caracterizou a aurora da civilizao (Le Bon,1922:vii-ix).

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    Se essa era uma possibilidade bastante real, era tambm umsintoma universal, o que significava dizer que simples lamrias noevitariam o desfecho desastroso. Era preciso portanto entender a si-tuao para lidar melhor com ela (Le Bon, 1922:ix-x). Tal a razo deser da psicologia das multides, conhecimento indispensvel para osestadistas que quisessem, se no governar as turbas, uma vez queisso era extremamente difcil, ao menos no serem governados porelas (Le Bon, 1922:xiii).

    As multides, segundo Le Bon, se caracterizavam por umaunidade mental, ainda que provisria. Nelas desaparecia a perso-nalidade consciente, individual, que dava lugar a uma alma coleti-va, a sentimentos e idias comuns, a caracteres novos, distintos dosque isoladamente se expressavam (Le Bon, 1922:2-6).

    A vida consciente era na verdade bastante diminuta quandocomparada com a inconsciente. Fruto da educao, era ela, principal-mente, a responsvel pela diferena entre os homens. Por sob os atosconscientes, entretanto, havia uma base inconsciente formada de in-fluncias hereditrias, de resduos ancestrais, que constituam a almada raa e que, em larga medida, escapavam percepo dos homens,tornando-os ao mesmo tempo semelhantes (Le Bon, 1922:6-7).

    Essas caractersticas gerais componentes da raa emergiamnas multides, conformando o solo comum que as unia. Regidospelo inconsciente, os homens, nas multides, viam dissiparem-se assuas aptides intelectuais e a sua individualidade, o que resultavaem uma fuso de qualidades humanas medocres, em uma incapa-cidade para a realizao de atos que exigiam o uso da inteligncia(Le Bon, 1922:7-8).

    Alm da combinao de qualidades ordinrias, as multidesgeravam caracteres novos nos homens, e isso, de acordo com Le Bon,por trs razes. A primeira era a fora quase invencvel com a qual,em uma multido, o indivduo se sentia dotado e que o levava a cedera instintos que de outro modo no cederia, a dar vazo a todos osseus desejos, certo de seu anonimato, de que no seria pessoalmenteresponsabilizado. A segunda e a terceira razes, respectivamente ocontgio e a sugestibilidade, associadas, tornavam por sua vez irre-sistveis as presses sobre o indivduo, levando-o a sacrificar seus in-teresses pessoais em favor dos coletivos, agindo como um autmatodestitudo de vontade (Le Bon, 1922:8-11).

    Com esse perfil, as turbas eram autoritrias e intolerantes,apegando-se mais aos tiranos que as dominavam do que aos gover-nantes bondosos. Respeitavam a fora ao mesmo tempo em que to-mavam a bondade como sinal de fraqueza (Le Bon, 1922:35).

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    As decises da maioria, aferidas atravs de votaes, no eramportanto necessariamente as melhores ou mais acertadas. Pelo con-trrio, era preciso ver que, ainda que de forma restrita ao momentoda eleio, os eleitores tambm constituam multides. Dessa manei-ra, neles podiam igualmente ser observadas manifestaes como ada baixa aptido para o raciocnio, a ausncia de esprito crtico, osimplismo e a credulidade, o que, justamente, tornava suas decisessujeitas a influncias de agitadores (Le Bon, 1922:164-5).

    O corolrio disso parece ser claro. Se a equalizao entre oshomens, gerada pela multido, era sinnimo de irracionalidade ebarbrie, qualquer deciso que a tomasse por base devia obrigato-riamente ser posta em questo. E uma vez que nas eleies os ho-mens formavam multides, o sufrgio universal padecia de sriosmales. Entregar a ele o destino de uma civilizao, diz Le Bon, seriatorn-la refm do imprevisto, de instintos e desejos primitivos, deelementos inferiores, caracterizados por seu baixo valor mental.Nessa perspectiva, a soberania popular era um capricho altamentenocivo, que j havia acarretado pesados prejuzos e que poderia,como um de seus grandes perigos, ensejar a vitria do socialismo.

    Inversamente, havia em Le Bon uma outra equao, de resulta-do positivo, que associava de forma direta individualizao, diferena,racionalidade e civilizao. As civilizaes se originaram e evolurama partir de pequenas minorias de espritos superiores, que eram tam-bm a sua garantia de continuidade. Tal cadeia, portanto, no deviaem hiptese alguma ser rompida (Le Bon, 1922:171-2).

    Mas no se tire da nenhuma concluso apressada de que, nolugar do sufrgio universal, Le Bon defendesse algum sistema devoto restrito minoria de espritos superiores. Fiel sua premissade que uma multido era sempre inferior, qualquer que fosse a suacomposio ou tamanho, afirmava ele que em geral o sufrgio de 40acadmicos no superior ao de 40 carregadores de gua (Le Bon,1922:173-4).

    No obstante o acerto e a pertinncia de suas objees, Le Bonconsiderava que o sufrgio universal e a soberania das multideshaviam se tornado dogmas inatacveis, assim como as idias reli-giosas na Idade Mdia. No era portanto possvel bloque-los, caben-do ao tempo a tarefa de operar seu desgaste (Le Bon, 1922:172-3).

    E, para concluir, observava que algumas das caractersticasexpostas eram vlidas tambm para as assemblias parlamentares,que igualmente eram multides. Da ser falsa uma das idias bsi-cas do regime parlamentar, qual seja, a de que muitos homens reu-

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  • 24 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    nidos eram capazes de decises mais sensatas e independentes (LeBon, 1922:176-7).

    Entretanto, cabia reconhecer que as assemblias parlamenta-res conformavam multides apenas em alguns momentos. Almdisso, normalmente as leis votadas eram fruto de uma reflexo in-dividual, especializada, elaborada no silncio de um gabinete. Porisso mesmo, apesar de todas as dificuldades, os parlamentos eram,na concluso de Le Bon, o melhor mtodo que os povos ainda acha-ram para governar-se e, sobretudo, subtrair-se o mais possvel aojugo das tiranias pessoais (Le Bon, 1922:190).

    Retomando o argumento de Hirschman, alm de Le Bon, Moscae Pareto haviam se perfilado na crtica democracia e ao sufrgiouniversal, ainda que partindo de uma tese distinta. Construindo umdiscurso que se apresentava como cientfico observa o autor , elesprocuraram combater aqueles princpios demonstrando a sua futili-dade, afirmando que qualquer sociedade, fosse qual fosse a sua orga-nizao poltica, estaria sempre dividida entre governantes e gover-nados, ou entre elites e no-elites (Hirschman, 1992:49).

    Na verdade, o que Hirschman procura indicar a existnciade um forte e generalizado clima intelectual antidemocrtico, en-globando no apenas os setores conservadores, mas igualmente osditos progressistas. No havia pois uma grande distncia entre asformulaes de um pensador como Pareto e as de Lenin, seu con-temporneo. De fato, para Hirschman, em livros como El Estado yla revolucin, Lenin, mais do que Marx, havia sido influenciado poridias como as do prprio Pareto e de inmeros outros detratoresda democracia e praticantes do argumento da futilidade.24 Indomais alm, o autor sugere que o comunismo e o fascismo tinhamuma matriz comum, visto ter este ltimo bebido naquelas mesmasfontes (Hirschman, 1992:123-4).25

    V-se que o painel pintado por Hirschman para a origem dateoria das elites coincide com o de Mayer e, em traos gerais, com oda grande maioria dos demais comentadores. Existe portanto umrelativo consenso entre eles, no que toca s questes-chave e aosmveis originais de Mosca e de Pareto, ainda que nem todos te-nham a mesma avaliao de que, mais do que crticos, aqueles au-tores tenham sido inimigos da democracia, do liberalismo, do siste-ma representativo.

    Dois aspectos que informam a leitura dos comentadores cita-dos cabem ser destacados. O primeiro uma clara tendncia a ho-mogeneizar os autores e suas idias, a partir de elementos aparen-temente comuns a todos eles. Dessa forma, torna-se perfeitamente

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    lcito colocar lado a lado pensadores como Mosca, Pareto, Le Bon emesmo Lenin, deixando-se de atentar para as suas diferenas.

    preciso ver contudo que, embora haja elementos recorren-tes em suas formulaes, disso no decorre que os autores atri-buam a eles os mesmos sentidos, ou que sejam idnticos os pesos eos lugares na argumentao conferidos a cada um deles. Alm dis-so, mesmo que seja possvel falar de uma matriz comum a todosaqueles pensadores, h que se perceber a forma diferencial comque ela apropriada, acionada, e os usos distintos que dela so fei-tos por cada um deles.

    A anlise que ser aqui desenvolvida visa justamente a darconta dessas diferenas, sem descurar das semelhanas, relacio-nando-as com as trajetrias diversas, com as posies sociais distin-tas, e mesmo com as prticas e estratgias variadas dos autores Mosca e Pareto de modo mais especfico. Procedendo desse modo,ser possvel, igualmente, trazer elementos para uma relativizaodo sentido universal de processos como o da afirmao da demo-cracia e da expanso da cidadania poltica atravs da adoo do su-frgio universal.

    Muito embora se observasse uma generalizao de tais pro-cessos na Europa no perodo em questo, eles no apenas no assu-miram as mesmas configuraes e os mesmos significados em todosos lugares, como tambm no foram vividos de maneira idnticapor todos os grupos sociais. Assim, a mera qualificao de um dis-curso como uma reao ao avano da democracia, afirmao po-ltica das massas e ao perigo socialista pouco nos diz sobre a espe-cificidade desse discurso; ao contrrio, ela em muito dificulta apercepo das diferenas entre esta e outras possveis reaes, etorna brutais os obstculos compreenso dos mecanismos e dasformas reais do que seria ou no o avano da democracia, a afirma-o poltica das massas e o fortalecimento do socialismo.

    Articulado a isso, deve ser igualmente levado em conta o se-gundo aspecto informador da leitura dos comentadores, ao qual j sefez referncia. certo que livros como os de Mayer e de Hirschmanso referncias fundamentais, contribuindo para relativizar a visoque se tinha do sculo XIX e do incio do sculo XX como um perodocaracterizado pelo avano inexorvel da modernidade, do capitalis-mo, da indstria, do liberalismo, da democracia e das classes subal-ternas. Todavia, ao enfatizarem os aspectos de conservao e de rea-o, de restaurao, que marcaram aqueles anos, esses autores dei-xaram de dar a devida importncia ao que havia de novo naquelasmesmas reaes.

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    Como contraponto, pode-se citar Viena fin-de-sicle, de CarlSchorske, que se debrua sobre o mesmo perodo e sobre questesde certo modo prximas. Analisando as relaes entre cultura e po-ltica em Viena, na virada do sculo XIX para o XX, o historiadortenta caracterizar as inovaes realizadas pela intelligentsia local em campos como os da msica, da filosofia, da economia, da ar-quitetura e da psicanlise em um quadro de decadncia e frag-mentao. Atacando uma tradio cultural liberal na qual haviamsido gestados, os intelectuais vienenses puderam afirmar suas pro-dues como crticas, inovadoras, transformadoras, formando apartir da novas escolas (Schorske, 1988, passim).

    Outra reflexo interessante a de Karl Mannheim sobre opensamento conservador alemo do sculo XIX. Qualificando-ocomo moderno, Mannheim o distingue do tradicionalismo enquan-to resistncia pura e simples a mudanas, empenho emocional emdeter ou mesmo em fazer retroceder o curso da histria. Longedisso, aquele conservadorismo, na avaliao do autor, havia seconstitudo como um esforo consciente de construo de uma filo-sofia poltica, de um sistema estruturado de reflexo, assim como oera, ento, o racionalismo iluminista, mas em oposio a este.

    Tendo portanto o racionalismo iluminista como referncia obri-gatria, o conservadorismo alemo se afirmou como um contra-siste-ma, como uma tentativa de, mais do que pensar algo diferente, pen-sar, isso sim, diferentemente. E indo mesmo alm, tratou ele no ape-nas de afirmar-se como um pensar diferente, mas, de igual modo,como o pensar autntico, verdadeiro e superior ao Iluminismo (Man-nheim, 1981, passim).

    O que importante ressaltar que se est diante de um esfor-o de compreenso de um mundo visto como em transformao, deuma tentativa de dar conta, a partir de determinados esquemas depercepo incorporados, de elementos que agora se afiguravamcomo questes. Desnaturalizando-se, rompendo-se gradativamen-te a legitimidade da ordem tradicional e das formas de dominaovigentes, elas passavam a ser encaradas como problemas, questesa serem resolvidas, objeto de intensas disputas entre portadores desolues e projetos distintos.26 Na verdade, particularmente emmomentos como esse que determinadas manifestaes terminamse impondo e sendo reconhecidas como inovadoras.

    Mas preciso atentar para o fato de que, mesmo para os quenaquele momento se identificavam e eram identificados com umapostura conservadora, no se tratava meramente, como bem obser-vou Mannheim, de deter a roda da histria. Eles tambm reconhe-

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    ciam tratar-se de um contexto distinto, com novas foras em cena, eque no podiam ser ignoradas, como fica claro em Le Bon.

    Mannheim refora essa hiptese ao observar que os conser-vadores alemes do sculo XIX de certa forma percebiam no sersensato rejeitar terminantemente algumas idias bsicas do libera-lismo, como a da prpria liberdade, em uma indicao do grau dereconhecimento que haviam alcanado.27 Eles as incorporavam,mas esvaziando seu contedo geral, universalizante, procurandoqualific-las, remetendo-as a realidades especficas (Mannheim,1981:115-6). O que estava em jogo, portanto, era no um simples re-torno a um statu quo ante, mas a imposio de uma nova legitimi-dade social.

    interessante perceber que, na disputa pela imposio deuma nova legitimidade social, terminou tambm impondo-se umanova legitimidade para a prpria disputa. Le Bon o indica, ao afir-mar que no cabiam mais apenas lamrias diante da presena ine-xorvel das multides. Era preciso ir alm, explicando, entendendoo seu funcionamento, o que se faria, por exemplo, atravs de umadisciplina especfica como a psicologia.

    Os trabalhos de Mannheim e do prprio Hirschman tambmreforam a idia da conformao de uma nova legitimidade para adisputa. O primeiro, ao concluir que o conservadorismo, em suaoposio ao liberalismo, teve que se constituir assim como este em uma filosofia poltica, em um sistema estruturado de reflexo.Mais ainda, em seu empenho de relativizao das categorias bsi-cas do pensamento liberal, procurando qualific-las, concretiz-las,individualiz-las segundo naes, o conservadorismo, como mostraMannheim, apontava para a necessidade de se conhecer objetiva-mente as origens e o desenvolvimento especficos de cada idia, decada instituio, e assim por diante, o que se faria atravs da hist-ria que, ento, se constitua enquanto disciplina autnoma, enquan-to cincia (Mannheim, 1981:120-7). Hirschman, por seu turno, deuindicaes dos novos termos da disputa ao observar que, a partir dosculo XIX, a reao democracia e instituio do sufrgio uni-versal havia se dado, em larga medida, sob a forma de uma argu-mentao cientfica que buscava demonstrar, de forma cabal e ob-jetiva, a sua inviabilidade, evidenciando assim a fraqueza, a insu-ficincia e o desconhecimento daqueles que as defendiam.

    As cincias, portanto, se constituram em arena privilegiadadas disputas pela imposio de uma nova legitimidade social. Equando se fala em cincias a referncia, basicamente, so as cin-cias sociais a sociologia e a cincia poltica em particular , bem

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    como a histria, que nesse mesmo processo se instituram enquantotais, enquanto disciplinas, reas especficas de reflexo, com obje-tos, mtodos e, acima de tudo, com especialistas prprios.28

    por esse prisma que, guardadas as devidas diferenas,devem ser vistos os trabalhos de Mosca e de Pareto. Eles falam daincapacidade das massas e da desigualdade entre os homens, ques-tionando, em conseqncia, a democracia e o sufrgio universal,alm do socialismo, em um momento em que as massas afirmavamsua presena na cena poltica, que a igualdade e a democracia segeneralizavam como valores legtimos e que o sufrgio universalcomeava a se disseminar. Sua linguagem, porm, no era simples-mente a do poltico militante, mas a do cientista social. Do mesmomodo, seus objetivos eram apresentados como cientficos.

    H que se ter bem claro, ao tomar as teses de Mosca e de Pa-reto, que, embora elas possam conter um carter normativo e ex-pressar de fato um imbricamento entre cincia e poltica, no seest to-somente diante de uma forma travestida de debate polti-co. Se o que est em jogo ali o prprio futuro da ordem poltica, so-cial e econmica, a eficincia de cada jogador, suas habilidades etrunfos sero avaliados, em larga medida, em termos cientficos. Ouseja, o efeito poltico poder ser tanto maior quanto mais reconhe-cidamente cientficos, imparciais, forem os argumentos.

    Por conseguinte, trata-se tambm de uma disputa poltica,mas que, sob pena de se ilegitimar, deve se mostrar, principalmen-te, como um debate cientfico, objetivo, inclusive para os prpriosjogadores. E na medida em que isso ocorre, mais do que a verdadepoltica, que igualmente uma verdade cientfica e por issomesmo , o que se busca a um s tempo prestgio, distino e no-toriedade em um campo cientfico em formao, ou prestgio, dis-tino e notoriedade atravs da formao de um campo cientfico.

    A disputa cientfica que se deu entre Mosca e Pareto pela de-finio das elites pode assim, de modo concomitante, ser lida comouma disputa pela definio de quem seriam as elites cientficas,pela imposio de um paradigma legtimo de avaliao e reconhe-cimento dos especialistas em cincias sociais. Alm disso, a concor-rncia pela afirmao como elite cientfica, nesse caso, significava,ao mesmo tempo, constituir as prprias cincias sociais, impondo-lhes um objeto privilegiado, uma teoria a ele relacionada e umaforma legtima de trabalh-lo, assim como criando-lhes posiesinstitucionais especficas, como cadeiras universitrias. Portanto,na luta pela afirmao e pelo reconhecimento enquanto cientistassociais, Mosca e Pareto terminaram por trabalhar para a afirmao

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    e o reconhecimento das prprias cincias sociais. E ao faz-lo, maisdo que competirem por posies j existentes, puderam, eles mes-mos, criar para si tais posies.

    interessante observar que, quando se olha para fora da Itlia,por exemplo para a Frana, verifica-se ser esse tambm o momentoem que a sociologia se afirma e se institucionaliza como disciplina ci-entfica. No caso francs, a criao, a afirmao da sociologia univer-sitria foi fruto, principalmente, do trabalho de Durkheim e dos cha-mados durkeimianos.29

    A percepo dessa recorrncia, contudo, no nos deve levar asupor a existncia de uma uniformidade nos diversos processos lo-cais de constituio das cincias sociais, ou mesmo no prprio sen-tido atribudo ao termo. Pelo contrrio, o que uma anlise compara-tiva mais fina pode indicar justamente o que h de cultural nasvises cientficas sobre o social, revelando a polissemia dos termoscincias sociais, sociologia e cincia poltica e evidenciando seus di-ferentes usos e apropriaes.30

    No se objetiva aqui proceder a um estudo de escopo maisamplo, comparando realidades to distintas como as da Itlia e daFrana na virada do sculo XIX. Mas centrando a anlise na realida-de italiana e, dentro dela, privilegiando as formulaes de Mosca ede Pareto, poder-se- trazer alguns subsdios importantes. O que sever primeiro que as cincias sociais, no caso italiano, no chega-ram a conformar no perodo tratado um domnio prprio, umcampo autnomo, nem em relao ao direito no interior do qualsurgiram e de modo geral se mantiveram , nem em relao po-ltica, qual permaneceram estreitamente vinculadas. Poder-se-perceber tambm, a partir de Mosca e de Pareto, como se constitu-ram e concorreram duas posturas distintas em relao cincia. Oque se observar que enquanto o primeiro adotava uma perspec-tiva mais abertamente engajada, uma viso normativa, o segundoencarecia a necessidade de um distanciamento, pautando-se porum ascetismo cientfico.31

    Contudo, principalmente pela trajetria diferencial, pelasposies sociais diversas ocupadas por esses dois autores, que suasposturas distintas em relao cincia podem ser mais bem com-preendidas. Tanto assim que, uma vez rompidas, sobretudo com oadvento do fascismo, as condies que impuseram a Pareto umafastamento da poltica, sua conduta desengajada passou a experi-mentar uma reverso. Por outro lado, o mesmo contexto fascista,impondo a Mosca um isolamento poltico, levou-o a assumir umaperspectiva mais distanciada.

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    Mais do que posturas distintas em relao cincia e aos vn-culos entre esta, a poltica e a sociedade, o que estava efetivamenteem jogo aqui, de maneira mais ampla, eram formas diversas deconstruo de um objeto, vale dizer sistemas de hipteses, explica-es e demonstraes diferentes. Em que pese a essas distines,Mosca e Pareto tm sido apropriados de forma homognea, apenasapontando-se suas convergncias e divergncias, seus pontos fortese suas inconsistncias, sua atualidade ou seu anacronismo. O queisso acarreta de fato a incorporao, de modo naturalizado, desuas noes, seus problemas, suas questes, que so tomados comodados.

    A abordagem proposta neste livro conduz justamente a umareflexo sobre a relao do cientista social com o seu objeto. Colo-car em prtica essa reflexo significa buscar romper com o dado,com as noes impostas, com o pr-construdo e com a sensao deevidncia e obviedade produzida. Um dos efeitos de uma tal opera-o reflexiva, portanto, pode ser de uma desreificao, com umefeito tanto maior quanto mais autorizado for o objeto tratado.32

    O fato de este livro centrar-se em Mosca e Pareto torna ne-cessrios uma referncia e um esclarecimento a respeito da exclu-so de um terceiro pensador, tambm localizado por alguns nas ori-gens da genealogia da teoria das elites. Trata-se do alemo RobertMichels que, em seu livro Sociologia dos partidos polticos, deu a se-guinte formulao quela que ficou conhecida como a lei de ferroda oligarquia:

    a organizao a fonte de onde nasce a dominao dos eleitossobre os eleitores, dos mandatrios sobre os mandantes, dos de-legados sobre os que delegam. Quem diz organizao diz oligar-quia (Michels, 1982:238).

    Michels chegou a essa constatao a partir do estudo de algu-mas das grandes agremiaes de esquerda europias, principal-mente a social-democracia alem no incio do sculo XX. Sua ques-to inicial era a de como a democracia podia ser exercida nointerior dos partidos polticos, visto que neles se operava inevitavel-mente uma concentrao de poderes, uma cristalizao de lderes,uma oligarquizao. Para respond-lo, ele investigou justamente ospartidos que se apresentavam como os grandes guardies, como asexpresses mais acabadas da democracia (Michels, 1982:3-5).

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    O autor segue em seu livro um esquema lgico-evolutivo, par-tindo da necessidade de organizaes. No se concebia democra-cia, diz ele, sem organizao. Ela era fundamental para qualquerclasse que buscava alcanar suas metas e afirmar-se socialmente. Eisso se mostrava to mais verdadeiro quanto mais fraca e dominadafosse a classe, como era exemplo o operariado (Michels, 1982:15-6).

    A seu ver, com o crescimento e a complexificao das socieda-des, o ideal participativo da democracia e a idia de governo diretodas massas, que decidiam livremente em assemblias, tinham entose tornado tcnica e mecanicamente impossveis. Michels comea ajustific-lo a partir do que chama de patologia das massas. Anulan-do as individualidades, as responsabilidades e o poder de raciocnio,as multides eram facilmente influenciveis por oradores compe-tentes e as assemblias, por isso mesmo, eram pouco propcias adiscusses srias e decises refletidas (Michels, 1982:17-8).

    Sendo incompetentes para por si mesmas tomarem decisesimportantes, as massas necessitavam de chefes, de lderes a quemdelegar tais funes, o que se refletia na sua apatia, no seu desinte-resse pelas questes polticas. Alm disso, tendiam a adorar cele-bridades que se apresentavam, que diziam falar em seu nome (Mi-chels, 1982:33-9).

    Ao lado dessa incompetncia, era preciso perceber que o vo-lume e a disperso das massas, dada a prpria expanso demogr-fica, tornavam a sua reunio em assemblias tecnicamente invivel.Diante disso, Michels concluiu que a representao de interessespor meio de organizaes e delegados era uma tendncia inexor-vel. Prevaleceria aqui no entanto, em um contexto democrtico, oprincpio da igualdade genrica entre chefes e massa (Michels,1982:18).

    Esse princpio contudo, se vlido na origem, iria sendo aospoucos minado pela prpria diviso do trabalho poltico. A crescen-te complexificao das tarefas dos delegados e a necessidade dedecises pontuais e urgentes sem possibilidade portanto de con-sulta s bases passavam a exigir deles habilidades e competn-cias especficas, que eram conformadas em escolas especiais. Dessemodo, introduzia-se aqui um elemento de diferenciao entre dele-gados e massa, tornando-os, em certa medida, autnomos, inde-pendentes do controle desta (Michels, 1982:19-20).

    Tal situao s tendia a se aprofundar com o crescimento daorganizao e, conseqentemente, do peso das atribuies dos de-legados. Isso no apenas exigia que se ampliasse o quadro de funcio-nrios da organizao, mas igualmente que a sua dedicao pas-

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  • 32 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    sasse a ser integral. Delegados e funcionrios tornavam-se assimprofissionais da organizao, passando a depender dela para a suasobrevivncia. Mais do que isso, a prpria sobrevivncia da organi-zao passava a depender deles (Michels, 1982:22-3).

    Com isso, observa Michels,

    o direito de controle reconhecido massa torna-se cada vez maisilusrio. Os partidrios devem renunciar a dirigir ou mesmo a su-pervisionar todos os assuntos administrativos. Vem-se obriga-dos a confiar essa tarefa a certas pessoas, especialmente nomea-das para tal fim, a funcionrios pagos pela organizao. A massa reduzida a contentar-se com prestaes de contas sumarssi-mas ou a recorrer a comisses de controle (Michels, 1982:22).

    Apartados de suas atividades originais, os delegados passa-vam assim a ver como indispensveis seus ganhos na organiza-o.33 A continuidade desta, por seu turno, passava tambm a ficardiretamente vinculada presena daqueles que de fato conheciamseus meandros, controlavam seu funcionamento. Uma vez eleitos,por conseguinte, os delegados passavam a permanecer em seuscargos por longussimos perodos, o que vivenciavam como um ver-dadeiro direito moral conquistado (Michels, 1982:27).

    Percebendo suas posies como um direito, os chefes ten-diam, por extenso, a interceder em sua sucesso, reservando-as aseus herdeiros. Nesse sentido, o que se notava era a prevalncia deprticas como a do nepotismo, do favorecimento e da cooptao, eno do mrito, da concorrncia, da eleio (Michels, 1982:66-7).

    O resultado dessa simbiose entre delegados e organizaoera uma inverso no prprio sentido desta. Fugindo ao controle damassa, a organizao era direcionada no para os seus interesses,mas sim para os dos chefes, ou melhor, para os interesses que elessustentavam ser da massa. Desse modo, os delegados, os represen-tantes, deixavam de ser servidores do povo para se tornarem, naexpresso do socilogo alemo, seus patres (Michels, 1982:93).34

    certo, contudo, que as posies de chefia no deixavam deser disputadas. Havia sempre novos indivduos almejando-as, o quesignificava a ocorrncia de lutas pela chefia. Isso forava de algummodo os antigos chefes a se mostrarem sintonizados com os senti-mentos da massa, declarando serem seu instrumento, submetendo-se aparentemente s suas vontades. Os novos aspirantes, entretan-to, buscavam derrub-los denunciando sua tirania, defendendo os

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    direitos violados da massa annima, direitos que sem dvida tam-bm violariam uma vez alcanado o poder. Os revolucionrios dehoje, conclui Michels com ceticismo, so os reacionrios de ama-nh (Michels, 1982:93-103).

    Tais afirmaes, esclarecia o autor, no tinham o sentido dejulgamento ou de aprovao, mas to-somente de demonstrar que ademocracia, tal como propalada, era impraticvel. Suas formula-es eram fruto da constatao de um processo natural necessrio,decorrente da prpria democracia, e que no se limitava apenas aombito dos partidos, podendo ser percebido na sociedade como umtodo. Buscava ele

    demonstrar com evidncia que a sociedade no pode subsistirsem uma classe dominante, que esta a condio necessriapara aquela e que a classe dirigente, embora sujeita na sua com-posio a uma freqente renovao partidria, no deixa deconstituir o nico fator em que a ao se manifesta suficiente-mente durvel na histria do desenvolvimento humano.

    De acordo com essa concepo o governo ou, se preferi-mos, o Estado no saberia ser outra coisa a no ser a organizaode uma minoria. E essa minoria impe ao resto da sociedade aordem jurdica, a qual aparece como uma justificao, uma le-galizao da explorao qual ela submete a massa dos hilotas,em vez de ser a emancipao da representao da maioria (Mi-chels, 1982:234).

    O Estado socialista no fugia a essa regra, ainda que se qui-sesse a forma mais perfeita de igualitarismo. Ele era um Estado dossocialistas, e no das grandes massas, do proletariado. A vitria dosocialismo, vaticinava Michels, no ser a do socialismo, que pe-recer no mesmo momento em que triunfarem seus partidrios(Michels, 1982:235).

    Michels, importante destacar, era cerca de 20 anos maisnovo do que Mosca e 30 mais novo do que Pareto. Ele havia sido dis-cpulo de Mosca em Turim, em 1907, vindo da algumas das hipte-ses norteadoras de Sociologia dos partidos polticos. Mosca portan-to era visto por Michels como um mestre, da mesma forma quePareto teve sua ascendncia reconhecida por ele a partir de mea-dos da dcada de 10.35 Ainda que a primeira edio de seu livrotenha sido publicada em 1911 em alemo antes portanto do Traitde sociologie gnrale, que data de 1916 , as idias fundamentais

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    de Pareto j tinham sido formuladas em trabalhos anteriores, damesma forma que as de Mosca, cujo livro bsico e mais conhecido,Elementi di scienza politica, havia surgido em 1896.

    Mais do que a simples precedncia cronolgica, contudo, hum claro reconhecimento de que Mosca e Pareto foram os princi-pais plos iniciais do debate sobre as elites, estando mais ainda re-feridos um ao outro. Tanto assim que dificilmente se encontraalgum autor que, voltando-se para as idias de um daqueles pensa-dores, no se reporte de modo obrigatrio s do outro. Isso pode servisto, alis, pelo prprio Michels, que, embora relativize a originali-dade das percepes de Mosca e de Pareto, atribui a eles a consti-tuio das elites enquanto objeto de reflexo sociolgica, aludindoainda concorrncia entre os dois em torno da questo:

    A necessidade de um grupo social dominante reconhe-cida, sem dvida, h muito mais tempo que imaginamos.

    Gaetano Mosca, que atualmente, junto com Vilfredo Pa-reto, o intrprete mais eminente e ao mesmo tempo o mais hbile mais autorizado nessa concepo, Mosca, dizamos ns, em-bora disputando com V. Pareto a prioridade cientfica dessa teo-ria, no deixa de reconhecer em Hippolyte Taine e em LudwigGumplowicz seus precursores.

    Mas, fato menos conhecido, embora no menos interes-sante, a teoria de Mosca e de Pareto tem seus primeiros e maisconsiderveis antepassados intelectuais na mesma escola con-tra a qual ela dirige de preferncia suas flechas, ou seja, entreos pensadores socialistas e particularmente nas antigas teoriassocialistas francesas: so nessas teorias, na verdade, que podemser descobertas as sementes da doutrina que Mosca e Paretoiriam elevar mais tarde dignidade de um sistema sociolgico(Michels, 1982:226).36

    preciso ver, alm de tudo, que apesar do empenho de um co-mentador como Ettore Albertoni (1990:17) em inclu-lo no que chamade escola italiana das elites, Michels estava bastante referido aoquadro alemo do incio do sculo XX, como bem observa ArthurMitzman (1987). Ele havia nascido em Colnia, em uma tradicionalfamlia patrcia de comerciantes de l, catlica e influenciada pelacultura francesa, cuja lngua Michels aprendeu ainda em criana.

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  • Mario Grynszpan 35

    Sua formao foi bastante cosmopolita, tendo estudado, alm daAlemanha, na Inglaterra e na Frana.

    Michels filiou-se social-democracia, tendo participado ati-vamente do movimento sindical, no apenas alemo, mas tambmfrancs e italiano, nunca chegando porm a alcanar posio hege-mnica. Ainda assim, essa militncia lhe valeu o bloqueio das uni-versidades alems, vedadas ao ingresso de professores socialistasou judeus. Mesmo contando com a simpatia e o apoio de Max We-ber, de cuja revista Archiv fr Sozialwissenschaft und Sozialpolitikfoi assduo colaborador, Michels teve a sua carreira na Alemanhacortada, o que em parte explica a sua ida para a Itlia em 1907, pe-rodo em que tambm se afastou do socialismo.

    No h assim como desvincular Sociologia dos partidos polti-cos da trajetria prvia de Michels. No h igualmente como desco-lar o livro das intensas discusses que eram ento travadas no inte-rior do socialismo, envolvendo, entre outros, Rosa Luxemburg,Lenin e Kautsky, sobre a democracia direta e o carter dos partidosoperrios. Por isso mesmo que ele foi alvo de comentrios crticosde intelectuais militantes de esquerda como Nicolai Bujarin, Anto-nio Gramsci e Georg Lukcs.37

    Alguns crticos chegaram mesmo a no desvincular o livro depassagens posteriores da vida de Michels, como se pudessem serestas corroboradoras do que julgavam ser a essncia do seu pensa-mento, emprestando sentido a todos os seus atos anteriores. A prin-cipal dessas passagens era justamente a adeso do socilogo ao fas-cismo, em meados dos anos 20, quando foi convidado por Mussolinipara integrar os quadros da Universidade de Perugia. Para Lukcs,por exemplo, isso revelava que Sociologia dos partidos polticos, de1911, j era norteado por princpios ou propsitos fascistas, assumi-dos apenas tempos depois (Lukcs, 1958:29-30).

    Se for somado ao que at aqui foi visto o fato de que, muitoembora tenha seu nome predominantemente associado a apenasum texto, Michels tenha publicado cerca de 700 artigos e 30 livros, amaioria dos quais em alemo, ficam patentes as dimenses dos obs-tculos existentes para a sua incluso neste livro.38 No somente oacesso s suas publicaes seria extremamente difcil, como obri-garia a uma ampliao do leque de questes, tendo que acrescen-tar, alm da prpria Itlia, uma anlise, entre outros pontos, doscampos poltico e intelectual alemes. Por tudo isso, este livro serestringir a Mosca e Pareto.39

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  • C A P T U L O 1

    Concorrncia e reconhecimento

    Mosca e Pareto so, por via de regra, tratados de maneira conjuntapelos trabalhos referidos teoria das elites. Os dois podem simples-mente ser colocados lado a lado, procedendo-se a um arrolamentode suas idias, ou, de modo mais complexo, comparados e avaliadosde forma sistemtica, apontando-se semelhanas e diferenas entresuas teses bsicas, indicando-se o alcance de cada uma.

    Isso pode ser percebido at mesmo nos trabalhos centradossobre apenas um dos dois autores. Assim, por exemplo, tanto JamesMeisel quanto Ettore Albertoni, dois dos mais assduos e reconhe-cidos comentadores de Mosca, dedicam pginas a Pareto em seustextos.40 O mesmo ocorre com Arthur Livingston, editor america-no de Mosca e tambm de Pareto, em sua introduo ao prprioThe ruling class (Livingston, s.d.:xxxvi-xxxix).

    Pelo lado dos comentadores de Pareto tambm evidente otratamento conjunto. Uma boa amostra a introduo de S. E.Finer a Vilfredo Pareto. Sociological writings e o longo captulo deRaymond Aron dedicado ao autor italiano em As etapas do pensa-mento sociolgico.41

    H portanto um forte entrelaamento entre os dois pensa-dores, obrigando a que no se possa falar de um sem que ao menosse faa referncia ao outro. Uma das razes para tanto, a mais b-via, a de que ambos esto localizados nas origens da teoria daselites. Se isso bvio, contudo, o como efeito de imposio, resul-tado da disputa que Mosca e Pareto travaram em torno da prima-zia na elaborao da tese elitista. Foi essa disputa que, em grandeparte, forou o encadeamento entre os dois e, mais ainda, contri-buiu para a sua consolidao como fundadores da referida teoria.

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  • 38 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    A notoriedade de Pareto precedeu o seu Trait de sociologiegnrale, publicado em 1916, cerca de sete anos antes de sua mor-te. Foi a partir da economia poltica, campo no qual se inscrevia amaior parte de seus trabalhos, que ele se imps, se projetou, inclu-sive internacionalmente, como um dos expoentes do marginalis-mo, ao lado de nomes como os de William Stanley Jevons, KarlMenger e Lon Marie Esprit Walras. Mas suas teses sociolgicas b-sicas, relativas s elites e sua circulao, vinham sendo formula-das mesmo em seus textos de cunho econmico, o que lhes em-prestava maior capacidade de reverberao e difuso.

    Se Pareto era um autor bastante lido e conhecido, o mesmono se pode dizer em relao a Mosca. Embora se tivesse iniciadona atividade acadmica mais jovem, bem antes de Pareto, tanto nomagistrio quanto na publicao de textos, como autor Mosca erapouco difundido. Foi como poltico, principalmente, que ele se afir-mou, sendo suas posies conhecidas por suas intervenes na C-mara dos Deputados e depois no Senado, como tambm por seusartigos de jornal.

    Esse fato foi notado por alguns de seus contemporneos,como o escritor Giuseppe Prezzolini, que, em suas memrias, fazreferncia pouca fama alcanada por Mosca na Itlia (Prezzolini,1983:258). Igualmente Mario Delle Piane, autor de uma bibliografiacomentada do pensador, datada de meados dos anos 40, e do ver-bete a ele dedicado na International Encyclopedia of the SocialSciences, observa que as teses de Mosca sobre a classe dirigentehaviam obtido, no momento em que foram formuladas, pouco su-cesso e escassa difuso (Delle Piane, 1968:505). Arthur Livingston,mencionando esses mesmos aspectos, os atribui s caractersticasmentais de Mosca, moldadas pelo ambiente siciliano em que haviacrescido, que determinavam um estilo de comportamento maisplcido, mais comedido, mais introvertido, evitando a pirotecnia, aexposio excessiva, a fama pblica (Livingston, s.d.:xiv).

    Contudo, interessante observar, no era exatamente esse oestilo que Mosca adotava quando se tratava de demarcar sua ante-rioridade, de reivindicar sua originalidade na formulao da teseelitista diante de Pareto. Este, a despeito de ter publicado poste-riormente, alcanava maior repercusso e notoriedade, associan-do seu nome quela que se buscava afirmar como uma novidadesociolgica e, alm disso, no atribuindo crdito a Mosca. Em umaaula magna proferida na Universidade de Turim em 1902, imedia-tamente aps a publicao de Les systmes socialistes, de Pareto,Mosca lanou sua primeira investida aberta contra este, destacan-

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    do que, embora ainda em grande parte aceita na cincia poltica, aclassificao tradicional das formas de governo como monarquia,aristocracia e democracia, originada em Aristteles, vinha sendoposta em xeque, particularmente na Itlia. Em uma aluso a seulivro Teorica dei governi e governo parlamentare publicado em1884, mas concludo um ano antes , Mosca referiu-se a uma novadoutrina que vinha sendo desenvolvida desde 1883 (Mosca, 1949a:10).

    Essa teoria era conhecida h algum tempo, informando inclu-sive formulaes mais recentes de outros autores, mesmo de forada Itlia:

    No ano passado, um outro escritor italiano, o Rensi, emum trabalho no qual propugnava a democracia direta e comba-tia o princpio da representao poltica, baseava explicitamen-te sua tese na concepo cientfica j exposta na Itlia.42 Essaconcepo foi tambm adotada por Pareto na sua recentssimaobra sobre os sistemas socialistas, embora, ao contrrio de Ren-si, e com estranho esquecimento, o nosso carssimo professor daUniversidade de Lausanne no tenha mencionado o escritor ita-liano que foi o primeiro a ter condies de formular a doutrinaora ardorosamente defendida por Pareto (Mosca, 1949a:11).43

    Pareto respondeu invectiva de Mosca em 1907, na primeiraedio italiana do seu Manuel dconomie politique. Ali, em umanota, ele afirmou:

    O prof. Mosca se queixa e fica muito aborrecido se no citado quando se relembra o fato de que na sociedade sempreum pequeno nmero que governa, e parece acreditar que foi elequem descobriu isso. Para content-lo, transcrevo aqui os ttulosdas suas obras, das quais conheo apenas a ltima: Teorica deigoverni e governo parlamentare, 1884; Le costituzioni moderne,1887; e Elementi di scienza politica, 1896.

    Na realidade, porm, o princpio que afirma que a minoriaque governa conhecido h muito tempo. Trata-se de lugar-comum presente no apenas em obras cientficas, mas at mesmoem produes exclusivamente literrias (apud Mosca, 1949b:116).

    Pareto, como se v, procura desqualificar o pleito de Mosca,negando, mais do que seu carter de novidade, de originalidade,tambm o de cientificidade, remetendo-o a uma espcie de senso

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  • 40 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    comum, de intuio generalizada. E foi justamente por esse pontoque Mosca iniciou sua trplica, no artigo Piccola polemica, publi-cado tambm em 1907, diferenciando pensamento cientfico de in-tuio popular e argumentando que o fato de o primeiro trabalharcom elementos da segunda no era suficiente para invalid-lo(Mosca, 1949b:116-7).

    Mosca tambm procurou desvincular Pareto da cincia, refe-rindo-se a ele repetidas vezes por seu ttulo nobilirquico de mar-qus, e no pelo acadmico de professor, e deslegitim-lo acusan-do-o de plgio:

    certo que o plgio nas cincias sociais no to fcil deconstatar como nos trabalhos literrios, uma vez que nas cin-cias supramencionadas o conceito, e no a forma, que tem amxima importncia, e um conceito pode sempre se repetir ereproduzir-se com palavras e frases diversas. No processo peloqual ele se desenvolve e se coloca em evidncia, um homemculto e de engenho pode sempre introduzir modificaes e co-locar alguma coisa de seu. Mas quem est habituado aos estu-dos de crtica cientfica sabe perfeitamente o quanto fcil, nofundo, discernir se um sistema de idias surgiu espontaneamen-te em um escritor, como produto natural de uma elaborao to-talmente original, ou seja, de uma mentalidade que se forjoupor si s e pouco a pouco se foi formando, ou se aquele sistemaconserva os traos de uma elaborao precedente, de uma outramente atravs da qual ele, ou um sistema muito similar, passouanteriormente (Mosca, 1949b:118-9).

    Ainda que no possa ser ignorada, uma vez que assumiu umadimenso pblica, a concorrncia entre os dois autores foi minimi-zada por alguns comentadores, sendo circunscrita, alis, aos limi-tes impostos pelo prprio Pareto. Arthur Livingston, na introduoa The ruling class, depois de comentar a disputa, afirmou que deuma perspectiva cientfica ela era irrelevante, visto no haver, emsua opinio, qualquer conexo histrica ou dialtica entre as teo-rias da elite, de Pareto, e da classe dirigente, de Mosca (Livingston,s.d.:xxxvi). Tambm para o socilogo Carlo Mongardini, a discus-so, nos termos em que era colocada, muito pouco tinha de cientfi-ca, contribuindo no para aclarar a questo bsica em jogo, massim para torn-la ainda mais confusa. Segundo ele, o que uma an-lise mais objetiva e documentada permitia concluir era que, se se-melhanas havia entre as formulaes de Mosca e de Pareto, elas

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    deviam-se ao fato de que ambos partiam de uma raiz comum: asanlises de Taine sobre a sociedade francesa.44

    Mais recentemente, Ettore Albertoni, caminhando em umalinha prxima a esta, defendeu a idia de que, em vez de se centrarna competio pela prioridade, deveriam ser enfatizados os afasta-mentos e proximidades das idias, as influncias mtuas de Moscae de Pareto (Albertoni, 1990:147-51). E da mesma forma James Mei-sel, depois de acentuar que Mosca e Pareto haviam a contragostose tornado parceiros, procura dissoci-los pela via da anlise, dacomparao entre suas teorias, buscando principalmente suas di-ferenas. Meisel o justifica com o argumento de que era preciso iralm dos juzos em jogo na concorrncia entre os dois autores, queeram prejudiciais para ambos:

    Assim a associao intelectual fere ambos os autores:Mosca perdeu o direito autoral sua idia, enquanto Paretoteve a sua reputao moral danificada e ele mesmo reduzido aum terico da elite. Por uma ironia da histria intelectual, osdois inimigos terminaram tornando-se, para sempre, gmeos in-separveis da escola lanada por Gaetano Mosca quando publi-cou seu primeiro grande trabalho, em 1884 (Meisel, 1965b:15-6).

    Se apenas o fato de que, apesar de ignorarem formalmente aconcorrncia, os comentadores a incorporam, obrigando-se a com-parar e a tratar Mosca e Pareto por um lado de modo conjunto, e,por outro, a partir das percepes e das categorias impostas emlarga medida pela prpria disputa, j no fosse suficiente para res-saltar a sua relevncia, bastaria atentar para os termos em que osdois autores a colocavam, para a sua insistncia, para perceber queela altamente significativa, tendo por isso mesmo que ser levadana devida conta. H que se destacar que, mais do que a primazia naformulao de uma tese, o que estava em jogo era a prioridade nadescoberta de uma lei cientfica. Assim, pouco importava que ou-tros, mesmo literatos, em vrios perodos j tivessem observadoque era sempre uma minoria que governava, referindo-se a umfato tido como perfeitamente natural e evidente. O que se tratavaefetivamente era de saber quem teria em primeiro lugar, nessa re-corrncia, demonstrado a existncia de uma norma, de uma regrauniversal, atribuindo-lhe o status de questo, e, ainda alm, em umcontexto em que comeava a prevalecer no o princpio do gover-no de uma minoria, e sim da maioria.

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  • 42 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    Concorrncia e trabalho de reconhecimento

    Os investimentos de Mosca e Pareto tanto no seu reconheci-mento enquanto elite cientfica quanto na prpria afirmao das ci-ncias sociais, suas estratgias individuais, esto relacionados sdiferentes posies sociais por eles ocupadas e aos recursos quecontrolavam, o que transparece em suas tticas concorrenciais.Nesse sentido, significativo como, a partir da primeira edio doManuel dconomie politique, Pareto passa a agir de modo clara-mente distinto do de Mosca. Enquanto este aposta em uma investi-da pblica visando a afirmar sua novidade e sua ascendncia, Pa-reto o ignora publicamente, evitando fazer qualquer referncia aele em seus textos, retirando-o mesmo das novas edies de seustrabalhos anteriores, como o prprio Manuel.

    Apenas em sua correspondncia privada que Pareto conti-nua a tratar do assunto. E em uma carta a seu amigo Carlo Placci,ainda de 1904, que podem ser buscados elementos para compreen-der tanto seu silncio pblico, quanto o clamor de Mosca.45 Paretodizia que Mosca, ao invs de atac-lo, deveria agradecer-lhe poiss depois que publiquei os Systmes socialistes que vi citadas asobras que antes eram clandestinas.46

    O que se percebe que, ao tornar pblica sua disputa, eratambm a si mesmo, a seus trabalhos, que Mosca procurava divul-gar, saindo da clandestinidade, da obscuridade, forando o seu reco-nhecimento cientfico atravs do prestgio intelectual de Pareto.Para este, por seu turno, o silncio, ao mesmo tempo em que demar-cava a sua superioridade, era uma forma de exorcizar Mosca, ne-gando-lhe importncia, luz, espao, relegando-o ao esquecimento.

    diferena de Pareto, que parecia se impor naturalmente,sem esforo maior, Mosca era obrigado a um exerccio constante, aum trabalho incessante de reafirmao para que fosse reconheci-do como novidade cientfica. por isso, em grande parte, que eleprocurou manter acesa a disputa, mesmo aps a morte de Pareto.

    A recepo e o reconhecimento diferencial dos dois autoresficam patentes nas avaliaes que em geral deles so feitas. A com-parao sistemtica entre Mosca e Pareto, at como forma de darconta do sucesso relativamente maior deste, foi na verdade um dosefeitos de sua concorrncia que, assim, pode ser tomada tambmcomo um trabalho efetivo de imposio.

    Reconhece-se, em geral, a anterioridade cronolgica de Mos-ca. a Pareto, contudo, que se atribui a generalizao, a difuso dateoria e do prprio termo elite, e, mais do que isso, a sua afirmao

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    cientfica. Podemos perceb-lo em Finer, Albertoni, Bobbio, Botto-more, Sereno e Sartori,47 apenas para citar alguns autores.

    A essa avaliao, de forma mesmo a justific-la, acrescenta-seuma outra, segundo a qual Pareto tinha uma perspectiva muitomais ampla do que a de Mosca. Enquanto este havia se limitado ba-sicamente ao campo poltico, com seus agentes e instituies, ooutro buscara erigir um grande sistema sociolgico, ao qual se su-bordinava a sua teoria das elites.48 Pareto visto como um pensa-dor mais rigoroso, sistemtico, profundo, inovador e mesmo maisbrilhante do que Mosca que, segundo Stuart Hughes (1965a:141), figu-rava para alguns como uma espcie de Pareto de segunda classe.49

    O prprio Livingston, comentando as aproximaes e os dis-tanciamentos entre os trabalhos de Mosca e de Pareto, fez a se-guinte observao na introduo a The ruling class:

    Ainda que semelhantes em mtodo e esprito, as duaspesquisas so vastamente diferentes em abrangncia e magni-tude. A pesquisa de Pareto, baseada em uma anlise do equil-brio social, leva a uma viso abrangente de toda a sociedade eresulta em um monumento de propores arquitetnicas gigan-tescas o Trattato,50 que , mais do que um livro, uma cultura euma maneira de viver. Em uma pesquisa como esta, os proble-mas da organizao poltica, que Mosca prope-se a resolver,so meros detalhes, mesmo que, para resolv-los, Mosca tenhaque levar em considerao muitos dos fatos que so bsicos naestrutura mais ampla de Pareto; e ele os leva efetivamente emconsiderao, na forma de observaes, comentrios, intuies,anotaes que deliciam e surpreendem por sua agudeza e pro-fundidade (Livingston, s.d.:xxxvii-xxxviii).

    Na comparao com Mosca, Pareto se impe, portanto, comoum pensador mais brilhante, mais profundo, sistemtico, amplo einovador. Alm disso, e ao mesmo tempo reforando tudo isso, eleconsegue erguer um certo vu de mistrio em torno de seu nome,passando a viver em isolamento na localidade sua de Clignyonde, rodeado de gatos da raa angor, dedica-se integralmente aosseus trabalhos.51 Assim, enquanto Mosca se apresentava, ou busca-va se apresentar, como uma figura pblica envolvida com a polticaitaliana, Pareto se isolava, afirmando-se como um recluso, como osolitrio de Cligny, na expresso de Schumpeter (1949:150).52

    Esse isolamento teria sido fundamental, de acordo com al-guns comentadores, para a configurao de suas idias, de seus

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  • 44 Cincia, Poltica e Trajetrias Sociais

    trabalhos, o Trait de sociologie gnrale em particular. SegundoHughes, afastado das presses e das paixes imediatas, Pareto foicapaz de tratar seus temas com um distanciamento olmpico, abor-dando-os de modo frio, objetivo (Hughes, 1958:260).53 Sem compro-missos, ele se afigurava como um crtico mordaz, suas formulaestinham um estilo acrimonioso, no poupando nada ou ningum,como uma metralhadora giratria, condizente com seu perfil reco-nhecidamente ctico.

    Por tudo isso, Pareto terminou se afirmando como um pensa-dor livre, independente, sem peias, que se imps por seu prpriovalor, por seus mritos superiores, sua cultura, sua erudio, nadadevendo a ningum. Esta, na verdade, passou a ser reconhecidacomo uma de suas caractersticas mais marcantes e individualiza-doras. Nas palavras de um de seus primeiros bigrafos, Georges-Henry Bousquet, a independncia sempre foi o trao dominanteem Pareto (Bousquet, 1928:193).

    A generalizao dessa imagem pode ser percebida em umacarta do escritor Giuseppe Prezzolini, contemporneo de Mosca ePareto, a Ettore Albertoni, j em 1977, comparando os dois pensa-dores. Dizia Prezzolini:

    Pareto era um esprito mais vasto, mais caloroso, maisaberto, um escritor mais poltico e mais brilhante do que Mosca:escreveu em francs, e em seguida foi traduzido para o ingls(...); era um escritor brilhante, cultivado: no conhecia apenas olatim como Mosca, mas estava penetrado pela cultura grega;havia viajado e vivido longamente em um meio internacional, ouseja, em Genebra; era independente, enquanto Mosca, parafazer carreira, fizera-se nomear para o Parlamento (apud Al-bertoni, 1990:151).54

    interessante notar que, enquanto Pareto reconhecido porsuas qualidades mais propriamente intelectuais, por sua profundi-dade, por seu brilhantismo, por sua erudio, enquadrando-se emum modelo, que se tornou predominante, de uma cincia desenga-jada, livre, crtica, objetiva, Mosca, em que pese aos seus esforos deafirmao, ficou associado a elementos extracientficos, percebidocomo um pensador politicamente engajado, identificado por suasposturas ticas e morais. Assim, as avaliaes da produo intelec-tual deste vm em geral acompanhadas de referncias sua atua-o poltica exemplar, digna, sua dedicao no servio ao pas.

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    Cientificamente, portanto, Pareto visto como um pensadorsuperior, independente, desengajado, amplo, ao passo que Mosca fi-gura como um autor que no conseguiu se desvincular das ideolo-gias e das lutas polticas de sua poca, cujas formulaes, por essamesma razo, so localizadas e datadas. Isso pode ser percebido, porexemplo, em Norberto Bobbio,55 que v Pareto como um crtico dasideologias, marca de sua excepcionalidade e inovao, enquantoMosca apresentado como um conservador antiigualitarista. Umaavaliao prxima a esta que leva Carlo Mongardini (1965:179-80) aafirmar por seu turno que, enquanto as idias de Mosca esto anco-radas no sculo XIX, as de Pareto abrem o sculo XX.

    Se de uma perspectiva cientfica Pareto classificado em umaposio superior de Mosca, a avaliao se inverte quando se tratade tom-los por um prisma poltico. O ctico Pareto, em seu af deanalisar criticamente, de desvelar a democracia, teria levado sua in-dependncia ao paroxismo, fornecendo munio para as hostes fas-cistas. Mosca, por seu lado, ainda que um conservador, seria umpensador liberal que se teria oposto ao fascismo, colocando a moralacima da cincia, moderando suas crticas ao sistema parlamentarde modo a no contribuir para o ava