Maria Rita Kehl
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10 SALVADOR DOMINGO 25/10/2009
ABRE ASPAS MARIA RITA KEHL PSICANALISTA
«O vazio é nossacondição básica»Texto TATIANA MENDONÇAFotos THIAGO TEIXEIRA
A aceleração da vida cotidiana, que anda
dispensando devaneios, pausas, refle-
xões e ineficiências – e nos faz crer que
nuncaestamosaproveitandootempoco-
mo deveríamos –, torna nossa experiên-
cia mais pobre e contribui para fazer da
depressão o principal sintoma social da
atualidade. É nisso que acredita a douto-
ra em psicanálise Maria Rita Kehl, 57, que
lançou este ano o livro O tempo e o cão –
a atualidade das depressões . No último
dia 16, ela esteve em Salvador partici-
pando do ciclo de debates Fronteiras
Braskem do Pensamento e falou à Muito
sobre a doença.
Li que a senhora não acompanhava pa-
cientes depressivos, preferia encami-
nhá-los para outros analistas. O que a fez
mudar de ideia?
Logo no começo da minha clínica,
atendi duas pessoas que se suicida-
ram com pouquíssimo tempo de
análise. Isso para o analista é arra-
sador, de certa forma me senti res-
ponsável. Então achei que precisava
aprendermais.Depois,medeiconta
de que essas pessoas nem eram de-
primidas, mas ainda assim, durante
muito tempo, não atendi depressi-
vos... Mas aí aconteciam casos de
pessoas que, ao longo da análise, fi-
cavam deprimidas e eu, com o ama-
durecimento, fui aprendendo a li-
dar. Fiquei muito interessada em sa-
ber o que elas tinham a dizer.
O que leva a senhora a afirmar que a de-
pressão é o “principal sintoma social do
nosso tempo“?
Primeiro, sintoma social é algo que
desafia as condições da vida de de-
terminada época. A histeria das mu-
lheres foi o sintoma social do século
19, por desafiar tudo que se preten-
dia da mulher no momento em que
se formava a chamada família bur-
guesa, em que a mulher era o centro
dolar,eohomem,oempreendedor.
Hoje é a depressão que desafia a
norma contemporânea da euforia,
da festa, que recusa os convites para
fazer o tempo render na forma de fe-
licidade, alegria, gozo. A outra razão
é que a depressão cresce de forma
epidêmica. Segundo dados da OMS,
será a doença mais comum do mun-
do em 2030. E isso acontece de certa
forma na contramão, já que hoje so-
mos mais livres sexual e moralmen-
te; cada um pode de alguma manei-
ra escolher seu destino; há grandes
conquistas da saúde, se pode viver
mais e melhor até bem mais tarde.
Mas esse crescimento em certa medida
não vem de muita gente dizer, por qual-
quer coisa, que está deprimida?
Você tem toda razão. Justamente
porque a regra social é que as pes-
soassejamfelizes,elasnãosabemo
que fazer com as tristezas normais
da vida, principalmente o adoles-
cente. Quando ele se deprime, se
sente o último dos seres humanos,
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não têm coragem nem de buscar
apoio nos amigos. Um colega psica-
nalista, orientador de um grande
colégio em São Paulo, me contou
que em um ano atendeu 40 adoles-
centes que tinham diversas razões
para estar meio tristes. E ele per-
guntou a todos: ‘Você já conversou
com algum amigo sobre isso?‘. Dos
40, só um tinha conversado. Ou se-
ja, essa rede de apoio não funciona
na hora da tristeza. Aí os caras vão
para os remédios. Para divulgar o
antidepressivo, a indústria farma-
cêutica divulga também a doença, e
aí coloca lá nos folhetinhos: ’Você
pode estar deprimido, mas depres-
são tem cura. Veja aqui os sinto-
mas’. Aí a pessoa já chega dizendo
para o médico que está deprimida,
e o médico, até por precaução, vai lá
e dá o remédio, o que enviesa as es-
tatísticas. É muito raro um psiquia-
tra com tempo para ouvir e saber o
que está acontecendo de verdade
com o paciente.
Se a depressão é uma “recusa à festa“,
uma súplica de que exista um “tempo de
compreensão“ que a correria da vida nos
roubou, há algum valor na doença?
A depressão tem uma via de conhe-
cimento do psiquismo que o próprio
depressivo ignora. Talvez o trabalho
deanáliseconsistaemfazercomque
ele tire benefícios disso. Outro valor
é que o depressivo é menos seduzi-
do pela publicidade, pelo consumis-
mo. Ele não está tão encantado por
essa ideia de que a vida é um cami-
nho de acumular grana, objetos,
acha tudo isso um pouco chato... E o
depressivo também conhece mais o
vazio, que pode ser uma condição
muito interessante do trabalho psí-
quico. Se ele fica só com o vazio, é
terrível, mas se ele suporta o vazio,
pode vir a construir outra via, talvez
mais verdadeira. Na palestra, eu
brinquei: vou dar uma má notícia, a
vida não tem sentido. E é isso, a gen-
te é que dá sentido à vida. O vazio é
nossa condição básica. A gente não
sabe de nada. A única coisa que a
gente tem ao nascer é uma certa ga-
rantia de que as pessoas que nos
conceberam nos amam. E olhe lá...
Às vezes elas não nos amam, nos
conceberam por acaso, são confu-
sas... Em cima do vazio é que a gente
acrescenta muita coisa. Então o de-
pressivopodefazerumpercursome-
nos iludido, menos alienado de si
mesmo.
O que não quer dizer que ele não deva ser
tratado, claro.
Sim, evidente, a análise é funda-
mental. Tem gente que passa a vida
inteira dentro de um quarto, é hor-
rível. Pode até se medicar, não vai
pularpela janela,masseacostumaa
passar a vida meio em branco. E a vi-
da é uma só.
Comorelacionaradepressãoàobrigação
de ser feliz, especialmente numa cidade
vendida como a “terra da felicidade“?
Não sei dizer se Salvador tem mais
gente deprimida que outros luga-
res, mas é evidente que o pior lugar
para você estar deprimido é numa
cidade onde não há muito espaço
de recolhimento. É numa cidade
que te convida para fora. Não estou
fazendo uma crítica, essa é uma ca-
racterística importantíssima de Sal-
vador. Um deprimido num lugar
triste pode ficar mais sombrio, mas
ele não se sente tão esquisito. Aqui
ou no Rio de Janeiro, o cara se sente
muito inadequado. Por outro lado,
numa cidade onde o turismo é uma
fonte de renda importante, aconte-
ce que os próprios habitantes come-
çam a desempenhar o papel que os
turistas esperam dele. Então, às ve-
zes, me parece que se começa a per-
der certa autenticidade. Vi Ó Paí, ó e
achei que parecia uma propaganda
da Bahiatursa, todo mundo se com-
portando como um clichê. E, no fim,
a coisa não é assim, aparece tudo
que isso mascara... Então isso é
complicado não só para os depres-
sivos, mas para os introspectivos, os
“intelectuais“. Passei um Carnaval
aqui com uns amigos e adorei. Não
o trio elétrico. O trio elétrico é um
congestionamento de caminhão
com luta de classes dentro, um hor-
ror. O roteiro afro que achei lindo.
Mas alguns amigos vão embora no
Carnaval porque dizem que fica in-
suportável... As cidades de grande
apelo turístico talvez estejam levan-
do a sério demais o clichê e não de-
em muito lugar à diferença.
«A depressão cresce de forma epidêmica.Segundo dados da OMS, será a doençamais comum do mundo em 2030»
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Não quero participar do coro dos contentes, mas a alegria tam-
bém não é uma característica nossa?
Sim. Meu companheiro mora em Paris, todo ano vou visi-
tá-lo, e você vê o contraste. O tom é mais triste mesmo. Eles
dizem: ’Ah, você é brasileira, por isso que você é sorridente’.
Não vou fazer sociologia e explicar por que isso acontece,
mas somos uma sociedade mais alegre, mesmo tendo de
conviver com miséria, injustiça, desigualdade, exclusão
aberrante. Talvez seja uma sociedade que não está inteira
tomada pela competitividade capitalista. As pessoas ainda
se encontram para jogar conversa fora, para tocar uma mú-
sica.Foiboaessaperguntaparadiferenciarumaalegriaque
caracteriza nossa sociedade dessa euforia do mundo capi-
talista. A disponibilidade das pessoas para o mercado de-
pende de elas acreditarem que cada objeto a mais que com-
prarem lhes dará mais euforia.
A senhora critica o uso indiscriminado de
antidepressivos, mas eles são realmente
dispensáveis no tratamento?
Deixo issoacritériodeumpsiquiatra
em quem confie. Quando uma pes-
soa começa a faltar à análise e liga
dizendo que não consegue sair da
cama, digo que ela deve ir ao psi-
quiatra. Não sou xiita. Não há entre
os psicanalistas uma ideia de que o
medicamento vá atrapalhar o traba-
lho. Mas muita gente vai ao psiquia-
tra e o ouve dizer que análise é uma
bobagem, que o remédio é suficien-
te. E não é. Recebo pacientes que di-
zem: ’Me medico há 10 anos e não
O TEMPO E O CÃO – AATUALIDADE DASDEPRESSÕESDe Maria Rita KehlEditora Boitempo304 páginasR$ 39
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sinto tristeza, mas também não sin-
to mais nada’. Eles procuram análise
sabendo que vão ter de passar por
uns buracos de novo... E agora já há
pesquisas dos próprios laboratórios
que mostram que o antidepressivo
depois de algum tempo perde a efi-
cácia. No começo, ele faz uma dife-
rença grande. Você fala: ’Nossa, não
estou mais sentindo aquela vontade
de morrer’. Mas se o tratamento for
só esse, e não elaborar o que causou
a depressão, tem pouca eficácia.
Os sintomas expostos nos tais folhetos
são bem abrangentes, todo mundo pode
se identificar com alguns deles. Como sa-
ber que uma pessoa está realmente de-
primida e deve procurar ajuda?
No geral, quem sofre sabe. Os folhe-
tos não são para a pessoa procurar
ajuda,masparadizerqueelaprecisa
ser medicada... Além do meu traba-
lho no consultório, atendo pessoas
da Escola Nacional de Formação de
Lideranças do MST. Como elas têm
renda muito baixa, é muito comum
encontrar pessoas que estão se me-
dicando há anos, por conta de uma
orientaçãoapressadadomédico.Es-
tive num assentamento e fiquei hos-
pedada na casa de uma senhora. Ela
tinha pouco mais de 60 anos e me
contou que tomava antidepressivo
desde os 28 anos, quando a filha de-
la nasceu. Ela ficou “deprimida“, foi
procurar remédio e a partir daí nun-
ca mais saiu disso.
Hoje as crianças ricas e de classe média
têm agendas cheias. É alarmista dizer
que assim os pais estão criando sujeitos
mais propensos à depressão?
É alarmista se você disser que todas
as crianças vão ser depressivas. O
que tem aí, antes de mais nada, é
queaspessoasestãomuitoconfusas
sobre o que é ser um bom pai e uma
boa mãe. E isso tem a ver com a in-
fluência da publicidade, que nos faz
crer que o melhor que você pode fa-
zer para o seu filho é lhe dar muitas
coisas, inclusive lhe dedicar todo seu
tempo livre. No fim de semana, os
pais acham que têm de promover
muita diversão, e na segunda estão
exaustos!A issoseacrescentaa ideia
de que desde cedo você tem de pre-
parar seu filho para o mercado de
trabalho. Então é aula disso, curso
daquilo... Vai se criando uma infân-
cia em que a criança não tem a ex-
periência fundamental de estar en-
tregue a si mesma, tendo que inven-
tar como preencher seu tempo. Elas
não conhecem o vazio, no bom sen-
tidodovazio,queéquandoacriança
começa a “inventar arte“, como di-
ziamosmaisvelhos. Issoéafonteda
vitalidade infantil, da criatividade,
da imaginação, é algo que vale para
o resto da vida. Saber que eu posso
criar algo sobre o vazio é a potência
humana. A sensação de que eu não
posso criar nada sobre o vazio, de
que preciso de alguém para preen-
chê-lo para mim, é o começo de uma
situação depressiva. Então o bom
paieaboamãesãopessoasqueam-
param, amam e educam seus filhos,
impõem limites. E aí digo como
mãe: uma das coisas mais difíceis é
saberquetemhorasqueseufilhovai
te odiar, vai dizer ’eu sou infeliz por
sua causa’, e ainda assim você vai ter
de bancar um limite que achou im-
portante, para que a criança saiba
que seus atos têm consequências.
A senhora defende que o sentimento de
pertencimento a determinada ação polí-
tica, comunidade, tradição, nos livra de
um sofrimento maior e nos ajuda a dar
sentido à vida.Essareflexão foi motivada
pela sua aproximação com o MST?
Não, talvez meu trabalho no MST se-
ja consequência disso. Não é por
bondade ou heroísmo, mas saber a
que mundo você pertence, que
ideais compartilha com a sua gera-
ção, nos dá sentido, nos ajuda a se-
guir em frente. Pertenço a uma ge-
ração que teve 20 anos da vida mar-
cados pela ditadura, com o lado ne-
gro e o lado interessante disso, que
foi a união dos movimentos de es-
querda, o interesse pela vida públi-
ca. Tudo isso faz parte da minha ex-
periência. Não devemos ficar presos
ao passado, mas vejo com preocu-
pação a pressa que os brasileiros ti-
veram em apagar essa memória. Is-
so nos impede de reconhecer coisas
que ainda não foram sanadas. O
Brasil é o único país da América La-
tina em que a violência policial cres-
ceu após o fim da ditadura. Nossa
polícia ainda tortura e assassina. «
«A publicidade faz crer que o melhor quevocê pode fazer para seu filho é lhe darmuitas coisas, inclusive todo seu tempo»