Maria Erica Santana Souza

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

    NCLEO DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM CINCIAS SOCIAIS

    MESTRADO EM SOCIOLOGIA

    MARIA ERICA SANTANA DE SOUZA

    MOVIMENTO NEGRO EM SERGIPE E POLTICA

    INSTITUCIONAL: UM ESTUDO A PARTIR DE CARREIRAS

    DE MILITANTES NEGROS

    So Cristvo, SE

    Agosto de 2012

  • 2

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

    NCLEO DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM CINCIAS SOCIAIS

    MESTRADO EM SOCIOLOGIA

    MARIA ERICA SANTANA DE SOUZA

    MOVIMENTO NEGRO EM SERGIPE E POLTICA

    INSTITUCIONAL: UM ESTUDO A PARTIR DE CARREIRAS

    DE MILITANTES NEGROS

    Dissertao apresentada ao Ncleo de Ps-

    Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais da

    Universidade Federal de Sergipe como parte

    dos requisitos para obteno do ttulo de

    Mestre em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Srgio da Costa

    Neves

    So Cristvo-SE

    Agosto de 2012

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

    S729m

    Souza, Maria Erica Santana de

    Movimento negro em Sergipe e poltica institucional: um estudo

    a partir de carreiras de militantes negros / Maria Erica Santana de

    Souza; orientador Paulo Srgio da Costa Neves. So Cristvo, 2012.

    178 f.: il.

    Dissertao (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal de Sergipe, 2012.

    1. Ativistas polticos. 2. Movimentos sociais Negros. 3. Movimentos sociais Sergipe. I. Neves, Paulo Srgio da Costa, orient. II. Ttulo.

    CDU 316.44:32(813.7)

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    MARIA ERICA SANTANA DE SOUZA

    MOVIMENTO NEGRO EM SERGIPE E POLTICA

    INSTITUCIONAL: UM ESTUDO A PARTIR DE CARREIRAS

    DE MILITANTES NEGROS

    Dissertao apresentada ao Ncleo de Ps-

    Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais da

    Universidade Federal de Sergipe como parte

    dos requisitos para obteno do ttulo de

    Mestre em Sociologia.

    Aprovada em:

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Srgio da Costa Neves (orientador)

    Universidade Federal de Sergipe (UFS)

    __________________________________________

    Profa. Dra. Laura Moutinho

    Universidade de So Paulo (USP)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Wilson Jos Ferreira de Oliveira

    Universidade Federal de Sergipe (UFS)

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao contou com a colaborao de vrias pessoas, seja fornecendo dados,

    referenciais bibliogrficos, informando sobre eventos ou simplesmente ouvindo os problemas,

    avanos e retrocessos da pesquisa. Desde 2009, essa pesquisa de campo me ofereceu a

    oportunidade de conhecer pessoas, lugares, valores e comportamentos diferentes dos meus.

    Portanto, foi uma experincia de amadurecimento e aprendizagem muito positiva para minha

    formao acadmica, pois, no trabalho de campo que aprendemos e refletimos claramente

    sobre o que nossos professores ensinaram em sala de aula. Esta pesquisa me proporcionou

    tambm o acesso a um universo que sempre me fascinou: o ativismo. Apesar de nunca ter

    participado de nenhum movimento social, o ativismo e seus atores sempre me despertaram

    muita curiosidade e interesse. Gostaria de agradecer, em especial, aos ativistas do movimento

    negro em Sergipe que colaboraram com a minha pesquisa e disponibilizaram informaes

    pessoais e muitas vezes difceis de serem ditas em uma entrevista e para uma entrevistadora

    desconhecida. Guardo grande carinho e respeito pelos militantes estudados por dedicar a vida

    a luta pela defesa da causa negra.

    Gostaria de registrar a importncia do auxlio da bolsa CAPES para minha dedicao

    exclusiva ao projeto de mestrado.

    A minha amiga Martha Sales que desde a graduao me ajudou nesta pesquisa,

    indicando pessoas para entrevistar, me informando sobre eventos, entre outras coisas. Ela foi

    uma grande parceira neste trabalho. Muito obrigada.

    Ao meu orientador, Paulo Neves, pela oportunidade de participar do seu grupo de

    estudo, o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Excluso, Cidadania e Direitos Humanos

    (GEPEC), desde a graduao e aceitar a me acompanhar em mais um trabalho.

    Agradeo aos professores Wilson J. F. de Oliveira pelas leituras interessantssimas

    sugeridas para uma definio mais clara do meu problema de pesquisa e anlise dos dados, ao

    professor Frank Marcon pela ateno e disponibilizao de informaes e dados e ao

    professor Petrnio Domingues pelas excelentes crticas feitas na banca de qualificao.

    Aos colegas Marcos Melo e Yuri Norberto gostaria de agradecer pela disponibilizao

    de entrevistas e informaes.

    Aos queridos Ernesto, Conchita Velsquez, Polizinha e aos meus pais que em meio ao

    trabalho duro da pesquisa e escrita da dissertao me proporcionaram o essencial: a

    companhia e o carinho.

  • 6

    RESUMO

    Esta dissertao tem por objeto o estudo de carreiras de militantes do movimento negro cujo

    engajamento caracteriza-se pela militncia simultnea em partidos polticos, pela dedicao

    exclusiva militncia e pela ocupao de cargos em administraes de esquerda. A questo

    central do trabalho consistiu em apreender o conjunto de recursos para a ocupao daqueles

    cargos, bem como as condies histricas, sociais, culturais e polticas que permitiram o

    surgimento de tal modalidade de militncia poltica no estado de Sergipe. A pesquisa teve

    como orientao terico-metodolgica um conjunto de esquemas analticos que combinam

    pressupostos da sociologia dos movimentos sociais e sociologia da militncia, tais como

    estrutura de oportunidades polticas, processos de engajamento individual e redes sociais. Os

    resultados apontam algumas condies favorveis para o surgimento do padro de

    engajamento analisado, a saber, a abertura poltica no final do regime militar, a presso de

    organizaes internacionais e do movimento negro no Brasil sobre o Estado e a ascenso de

    aliados polticos ao governo federal. Em relao aos recursos mobilizados para a ocupao

    dos cargos, observa-se a centralidade de um capital militante acumulado nas redes do Partido

    dos Trabalhadores e do Partido Comunista do Brasil e dentro do prprio movimento negro.

    Palavras-chave: engajamento, militncia negra, redes sociais, oportunidades polticas.

  • 7

    ABSTRACT

    This dissertation is focused on the study of careers of black movements militants whose political commitment presents the following features: a simultaneous involvement with both

    political parties and the black movement; a full-time dedication to militancy, and; the filling

    of state positions in left-wing governments. The main questions of the work are the grasp of

    the social resources required for filling governmental posts as well as the understanding of the

    historical, social, and cultural policies that gave rise to that pattern of political activism in the

    Brazilian State of Sergipe. The theoretical and methodological orientation of the research

    combined a set of analytical schemes borrowed from the sociology of social movements and

    the sociology of activism, using notions such as structure of political opportunities, processes

    of political involvement and social networks. The results show that there are some favorable

    conditions for the emergence of the pattern of political involvement and militancy at stake:

    the political detente and the end of the military rule in Brazil, the pressure of both

    international organizations and the Brazilian black movement over the State, and the rise of

    political allies within the federal government. As to the features of those militants who held

    state positions, the works highlights the centrality of a militant capital gathered over within

    the networks of the Partido dos Trabalhadores (PT) and the Partido Comunista do Brasil

    (PcdoB), and also within the black movement.

    Keywords: political commitment, black militancy, social networks, political opportunities

  • 8

    LISTA DE ILUSTRAES

    Ilustrao 1 Panfleto Bloco Afro Quilombo........................................................................100

    Ilustrao 2 Caminhada Dia da Conscincia Negra, 2009 (Org. Omoliy).......................116

    Ilustrao 3 Caminhada Dia da Conscincia Negra, 2011 (Org. COPPIR municipal).......117

    Ilustrao 4 Profissionalizao da Militncia I...................................................................118

    Ilustrao 5 Profissionalizao da Militncia II..................................................................118

  • 9

    LISTA DE QUADROS E ORGANOGRAMAS

    Quadro 1 Aes dos governos brasileiros voltadas para populao negra............................58

    Quadro 2 Alguns eventos e mecanismos de presso internacional (1960 - 2000)................69

    Quadro 3 Adeso do governo brasileiro a eventos internacionais (1960 a 1990).................73

    Quadro 4 Eventos internacionais e nacionais sobre Direitos Humanos no governo FHC

    (1995-2001)...............................................................................................................................75

    Quadro 5 Principais mecanismos de dilogos com estados e municpios no governo

    Lula...........................................................................................................................................81

    Quadro 6 Aes do governo sergipano voltadas para a promoo da igualdade racial.......107

    Quadro 7 Alguns eventos do movimento negro em Sergipe...............................................114

    Quadro 8 Espaos de socializao poltica e atuao militante...........................................135

    Quadro 9 Curso superior e ps-graduao...........................................................................146

    Organograma 1 Estrutura do movimento negro em Sergipe................................................86

    Organograma 2 Movimento Negro/SE e relao com outras Esferas Sociais......................88

    Organograma 3 Multiposicionalidade dos militantes.........................................................144

    Organograma 4 Estrutura Policephalous............................................................................154

  • 10

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AE: Articulao de Esquerda

    ARENA: Aliana Renovadora Nacional

    ASPIR: Assessoria de Polticas de Igualdade Racial

    CCAS: Casa de Cultura Afrossergipana

    CEFET: Centro Federal de Educao Tecnolgica

    CENARAB: Centro Nacional de Africanidade e Resistncia Afrobrasileira

    CESEEP: Centro Ecumnico de Servios Evangelizao e Educao Popular

    CNB: Construindo um Novo Caminho

    CNPIR: Conselho Nacional de Promoo da Igualdade Racial

    CONEN: Coordenadoria Nacional de Entidades Negras

    COPPIR: Coordenadoria de Poltica de Promoo da Igualdade Racial

    Criliber: Criana e Liberdade

    CUT: Central nica dos Trabalhadores

    DCE: Diretrio central dos Estudantes

    DESO: Companhia de Saneamento de Sergipe

    Educafro: Educao e Cidadania para Afrodescendentes e Carentes

    ENNE: Encontros de Negros do Norte e Nordeste

    EUA: Estados Unidos da Amrica

    FENS: Frum Estadual de Entidades Negras

    FHC: Fernando Henrique Cardoso

    FIPPIR: Frum Intergovernamental de Promoo da Igualdade Racial

    FNB: Frente Negra Brasileira

    FUNART: Fundao Nacional de Arte

    FUNCAJU: Fundao Municipal de Cultura e Turismo

    GRFACACA: Grupo Regional de Folclore e Artes Cnicas Amadoristas Castro Alves

    Grupo Aba: Associao Aba de Arte, Educao e Cultura Negra

    Grupo Quilombo: Centro de Estudos de Ao Cultural Quilombo

    INTERCAB: Instituto Nacional das Tradies, das Religies e das Culturas Afrobrasileiras

    IPCN: Instituto de Pesquisas das Culturas negras

    ISPCPN: Instituto Sergipano de Pesquisa da Cultura Popular e Negra

    MDB: Movimento Democrtico Brasileiro

    MNU: Movimento Negro Unificado

    MNI: Movimento Negro Independente

    MOBRAL: Movimento Brasileiro de Alfabetizao

    MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

    NEAB: Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros

    OAB: Ordem dos Advogados do Brasil

    ONG: Organizao No Governamental

    ONU: Organizao das Naes Unidas

    OMIN: Organizao de Mulheres Negras Maria do Egito

    OSCIP: Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico

    PCB: Partido Comunista Brasileiro

    PC do B: Partido Comunista do Brasil

    PDC: Partido Democrata Cristo

    PDS: Partido Democrtico Social

    PDT: Partido Democrtico Trabalhista

  • 11

    PFL: Partido da Frente Liberal

    PL: Partido Liberal

    PMDB: Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

    PMN: Partido da Mobilizao Nacional

    PP: Partido Popular

    PSB: Partido Socialista Brasileiro

    PSD: Partido Social Democrtico

    PSTU: Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados

    PT: Partido dos Trabalhadores

    PTB: Partido Trabalhista Brasileiro

    PUC: Pontifcia Universidade Catlica

    PV: Partido Verde

    SACI: Sociedade Afrossergipana de Estudos e Cidadania

    SEIDS: Secretaria de Incluso, Assistncia e Desenvolvimento Social

    SEPPIR: Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial

    SEMEAR: Sociedade Semear

    Semed: Secretaria Municipal de Educao

    SEMIR: Secretaria Municipal de Incluso Racial

    SEMPP: Secretaria Municipal de Participao Popular

    SEPM: Secretaria Especial de Polticas para Mulheres

    SESC: Servio Social do Comrcio

    SINDIPREV: Sindicato dos Trabalhadores em Sade, Trabalho e Prvidncia

    SORMAESE: Sociedade Organizada das Religies de Matriz Africana do Estado de Sergipe

    TCC: Trabalho de Concluso de Curso

    TEN: Teatro Experimental do Negro

    UDN: Unio Democrtica Nacional

    UFS: Universidade Federal de Sergipe

    UNA: Unio dos Negros de Aracaju

    UNB: Universidade de Braslia

    UNEGRO: Unio dos Negros pela Igualdade

    UNIT: Universidade Tiradentes

    UNSECO: Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • 12

    SUMRIO

    Introduo................................................................................................................................14

    Problema de pesquisa..........................................................................................................16

    O trabalho de pesquisa........................................................................................................18

    O trabalho de campo: contatos e dificuldades....................................................................22

    Organizao da dissertao.................................................................................................25

    1 Ferramentas Conceituais para a Anlise dos Movimentos Sociais.....................................27

    1.1 Sociologia dos movimentos sociais: conceitos e pressupostos gerais.........................30

    1.1.2 As redes sociais na anlise dos movimentos sociais..................................................34

    1.2 Sociologia da militncia: o engajamento individual como processo...........................37

    1.3 Proposta de anlise da dissertao................................................................................41

    2 A Institucionalizao da Causa Negra no Brasil (XIX-XXI)..............................................47

    2.1 Referenciais nacionais e internacionais e a poltica oficial...........................................50

    2.2 A abertura poltica e a emergncia do movimento negro na dcada de 1980..............59

    2.3 Os aliados no poder.......................................................................................................67

    2.3.1 O dilogo dos governos brasileiros com organizaes internacionais......................68

    2.3.2 Os governos FHC e Lula............................................................................................74

    3 O Movimento Negro em Sergipe........................................................................................84

    3.1 Mapeando o movimento negro em Sergipe..................................................................85

    3.2 A formao do movimento negro em Sergipe..............................................................89

    3.2.1 Tomada de conscincia sobre a discriminao racial................................................90

    3.2.2 Do discurso implcito denncia aberta do racismo em Sergipe.............................92

    3.3 Ampliao das redes informais do movimento negro em Sergipe...............................96

    3.3.1 Estratgias de ao nos anos 1980.............................................................................98

    3.3.2 O Frum Estadual de Entidades Negras..................................................................101

    3.4 Estratgias de institucionalizao da causa negra.......................................................104

    3.4.1 Negociaes com os governos sergipanos a partir de 2000.....................................109

    3.4.2 Configurao atual do movimento negro em Sergipe..............................................113

    3.5 Entre institucionalizao e ativismo apartidrio..................................................118

    4 As Condies Sociais de Acesso de Militantes Negros a Administraes de Esquerda

    em Sergipe...............................................................................................................................122

    4.1 A passagem ao ato: condies sociais de insero no movimento negro/SE...........123

    4.1.1 As origens sociais: formao de percepes sobre o mundo social.......................124

    4.1.2 Insero em organizaes do movimento negro: o papel das redes informais e

    formais....................................................................................................................................129

    4.2 Aquisio de competncia poltica e legitimidade na luta antirracista......................135

    4.3 Formas atuais de ao: circulao em partidos de esquerda e instituies pblicas..139

    4.3.1 Reconverso de competncia poltica em competncia profissional......................140

    4.4 A gesto em administraes de esquerda...................................................................148

    4.5 Estrutura de rede no movimento negro em Sergipe...................................................153

    Concluso...............................................................................................................................156

  • 13

    Referncias.............................................................................................................................161

    Apndice.................................................................................................................................169

    Apndice I - Roteiros de entrevistas...............................................................................169 Apndice II Caracterizao das entrevistas..................................................................171

    Anexo......................................................................................................................................173

    Anexo I - Documento de aprovao da COPPIR municipal............................................173 Anexo II - Lei de implementao da COPPIR estadual....................................................174

    Anexo III - Eventos promovidos pelo movimento negro em parceria com o Estado.......175

    Anexo IV - Oficina e seminrio para a comunidade religiosa de matriz africana............176

    Anexo V - Atas de reunies da CONEN/SE.....................................................................177

    Anexo VI - Outros eventos do movimento negro.............................................................179

  • 14

    INTRODUO

    O objeto de investigao deste trabalho surgiu a partir de uma pesquisa que resultou

    em minha monografia de concluso de curso (SOUZA, 2009b). Naquela pesquisa, o objeto de

    anlise foi o estudo das condies sociais e culturais (experincias prvias, ttulos escolares e

    saberes especializados, estilo de vida, redes de relaes pessoais, entre outros) que

    viabilizaram o exerccio da liderana em organizaes do movimento negro em Sergipe.

    Atravs da apreenso daqueles condicionantes, apreendemos dois tipos principais de

    modalidades de engajamento1. Uma destas modalidades caracteriza-se pela militncia

    partidria simultnea a uma militncia associativa e tambm ocupao de postos em rgos

    de combate ao racismo e em outras burocracias. Trata-se de indivduos cuja dedicao

    militncia integral e a experincia militante reconvertida em competncias profissionais.

    Observamos tambm que a ocupao de cargos e o forte engajamento em partidos de

    esquerda provocavam divergncias no interior do movimento negro em Sergipe. Para alguns

    militantes, a insero em secretarias ou coordenadorias de combate ao racismo ou mesmo a

    assessoria poltica representa a cooptao do movimento negro pelo Estado, assim como

    tambm exclui a possibilidade de crtica e presso sobre o governo. Mas, para outro grupo de

    militantes, a aproximao com partidos polticos e com o Estado uma forma de participar

    diretamente das decises do governo e de impor suas ideias na elaborao de projetos e de

    polticas pblicas voltados para o combate ao racismo no Brasil. Essa polmica surge com a

    possibilidade de atuao de lideranas do movimento negro em administraes de esquerda. A

    insero de militantes negros em secretarias ou coordenadorias de combate ao racismo, nos

    nveis federal, estadual e municipal, um fenmeno que vem ocorrendo em todo o pas.

    Sendo assim, atualmente, militantes negros se questionam sobre o papel dos movimentos

    sociais e as consequncias da sua relao com o Estado, tema este enfatizado em entrevistas e

    eventos.

    A incluso de demandas do movimento negro na agenda poltica governamental e a

    criao de rgos dentro da estrutura do Estado voltados para o combate ao racismo

    intensificam-se a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (governo FHC) e tem seu

    1 No trabalho de monografia, as duas modalidades foram intituladas militncia mltipla e militncia especfica.

    Os militantes situados na primeira modalidade tm como principais caractersticas sociais o capital militante,

    escolarizao superior interrompida, retomada aps os trinta anos de idade, e a ocupao de cargos de confiana

    e atuao como consultores polticos. Os militantes classificados na segunda modalidade apresentam redes de

    relaes sociais menos extensas e o diploma superior instrumentalizado para a obteno de empregos fora do movimento negro (SOUZA, 2009b).

  • 15

    auge no governo Luis Incio Lula da Silva (governo Lula). A abertura do Estado para estas

    questes o resultado de processo que envolve presso de organizaes internacionais,

    presso do movimento negro nacional (WERNECK, 2005; GODINHO, 2009) e, podemos

    acrescentar, do perfil destes dois governos. Esta postura do governo federal ser reproduzida

    na agenda poltica dos governos estaduais e municipais em todo o pas. A criao de

    coordenadorias, assessorias ou secretarias estaduais e municipais de promoo da igualdade

    racial ocorre a partir de interesses dos governos locais, de presses do movimento negro e de

    polticos envolvidos com este movimento social. Entender como ocorre este processo nos

    estados e municpios depender de investigaes direcionadas insero de militantes negros

    em partidos de esquerda, a alianas de organizaes e/ou militantes com autoridades polticas,

    presso do governo federal e ao perfil dos governos locais.

    Em Sergipe, a incluso de demandas do movimento negro na agenda poltica, a

    criao de administraes pblicas de combate ao racismo e a contratao de lideranas

    daquele movimento social para assumir cargos nestas administraes intensificam-se a partir

    de 2000. Inicialmente, criada a ASPIR na prefeitura de Aracaju em 2011 a assessoria

    recebeu o status de coordenadoria, passando a se chamar COPPIR municipal e,

    posteriormente, a COPPIR estadual2 e outros cargos situados em secretarias como a SEIDS e

    SEPM, fazendo tambm um recorte racial. Em Laranjeiras, municpio sergipano, criada a

    SEMIR, em 2009. Em todos esses rgos a equipe administrativa formada por militantes do

    movimento negro de Sergipe. Alm disso, nas eleies de 2000 e 2002, militantes negros se

    envolveram nas campanhas eleitorais a fim de eleger candidatos com quem tinham alguma

    ligao e tambm lanaram candidatos/militantes do movimento negro para deputado federal.

    Em Laranjeiras, lanada a candidatura de uma militante para vice-prefeita e depois para

    vereadora. Nenhum dos candidatos foi eleito.

    Nos anos 2000, portanto, o movimento negro em Sergipe passa por um momento de

    transformao. O processo de institucionalizao da causa negra significou a ampliao das

    formas de ao deste movimento, abrindo oportunidade para a atuao de militantes no

    interior de administraes pblicas. A ascenso de aliados polticos ao poder nos mbitos

    federal e estadual propiciou, assim, negociaes entre movimento negro e Estado e encorajou

    lideranas daquele movimento a competir nas eleies municipais e federais, acontecimentos

    inditos no movimento negro local. Este um momento importante para pensarmos sobre o

    peso da postura do Estado e dos laos entre militantes e partidos polticos em relao s novas

    2 Nesta poca, a COPPIR estadual integrava a antiga Secretaria de Estado do Trabalho, da Juventude e da

    Promoo da Igualdade Racial. Atualmente, integra a Secretaria Estadual de Direitos Humanos.

  • 16

    possibilidades de atuao de tais militantes e sobre os tipos de ao mobilizada pelos

    movimentos sociais contemporneos. com este interesse que na pesquisa realizada para a

    elaborao dessa dissertao aprofundamos a investigao acerca das condies sociais e

    culturais e das oportunidades polticas que constituem a modalidade de engajamento citada no

    incio da introduo; a saber, militantes que atuam simultaneamente em partidos de esquerda

    e organizaes do movimento negro e ocupam cargos em administraes de esquerda.

    Problema de pesquisa

    A relao dos movimentos sociais com partidos polticos e com o Estado e suas

    consequncias para os ltimos tem sido objeto de investigao no Brasil (MORENO e

    ALMEIDA, 2009; MISCHE, 1997; RIOS, 2008, SANTOS, 2007; SILVA, 2011) e em outros

    pases (FILLIEULE, 2001; McADAM e TARROW, 2011; PASSY, 1998; JUHEM, 2001;

    SAWICKI, 2003; TARROW, 2009). As investigaes englobam o ambiente externo aos

    movimentos sociais contextos cultural, social e poltico e as relaes das organizaes ou

    militantes com a poltica institucionalizada a fim de apreender as formas de organizao e de

    ao dos movimentos sociais. Alguns pesquisadores (FILLIEULE, 2001; PASSY, 1998;

    JUHEM, 2001) argumentam ainda, com base em trabalhos empricos, que a configurao

    poltica influencia tambm as formas diferenciadas de engajamento poltico, ou seja, o nvel

    de engajamento poltico e as formas de engajamento no so as mesmas em perodos e

    configuraes polticas distintos.

    Segundo Goirand (2009), com a ascenso de partidos de esquerda e de lderes de

    movimento populares ao poder na Amrica Latina a partir de 2000, os Estados passam a

    incluir cada vez mais demandas de vrios movimentos sociais nas agendas polticas nacionais.

    Uma das consequncias desta nova composio poltica que militantes so convidados a

    ocupar cargos em administraes de esquerda. Estas mudanas na dinmica dos movimentos

    sociais, segundo a autora, no podem ser analisadas sem um nmero amplo de instrumentos

    conceituais e metodolgicos, tais como: analisar as trajetrias individuais e identificar os

    recursos e estratgias mobilizadas pelos atores; fazer uma reconstituio dos espaos sociais e

    polticos em que os movimentos sociais atuam, entre outros. Seguindo estas orientaes, em

    nossa proposta de analisar a posio atual de militantes do movimento negro em Sergipe em

    administraes de esquerda, como consequncia da sua relao estreita com a poltica

    institucional, foi indispensvel incluir algumas dimenses de anlise e instrumentos

    conceituais e metodolgicos variados.

  • 17

    Baseando-nos em trabalhos que consideram o engajamento em movimentos sociais

    fruto de experincias e eventos ocorridos ao longo dos itinerrios individuais, como tambm

    suscetvel a mudanas ao longo do tempo, nossa proposta analisar os processos de

    engajamento individual dos militantes que ocuparam cargos em secretarias, coordenadorias

    nos mbitos federal, estadual e municipal, e fazem assessoria poltica ou consultoria em

    eventos executados pelos governos estaduais e municipais em Sergipe. Ao analisar processos

    de engajamento individual, propomos investigar, de um lado, o impacto das condies sociais,

    culturais, e das redes sociais (de relaes de amizade, familiar, profissionais, entre outras)

    sobre o engajamento individual e, de outro lado, o impacto das oportunidades ou restries

    polticas nas formas de engajamentos. Em outras palavras, tentamos compreender as lgicas

    de investimentos militantes, as motivaes individuais, as predisposies, as retribuies

    especficas e os efeitos da configurao poltica sobre os engajamentos individuais. Com isso,

    queramos dar conta de um conjunto de condicionantes que nos permitisse compreender como

    um indivduo se engaja e, mais especificamente neste trabalho, como tais engajamentos se

    desenvolvem ao longo do tempo.

    Tal investigao, conduzida a partir do exame dos itinerrios individuais e da oferta

    poltica disponvel em um dado contexto, permitiu-nos identificar: o desenvolvimento do

    interesse em defender uma causa social, como os vnculos estabelecidos em diversos

    contextos polticos e sociais conduziram ao engajamento individual, intensificando-o ou

    modificando-o ao longo do tempo, e como a ao individual e coletiva do grupo se modificam

    de acordo com a abertura do Estado s demandas do movimento negro. Esta perspectiva de

    anlise fruto do dilogo entre diferentes abordagens, como a Teoria dos processos Polticos

    (TPP) e sociologia do engajamento. Com isso, buscamos ferramentas tericas e

    metodolgicas para problematizar um tema que no novidade nas cincias sociais, mas que,

    no Brasil, geralmente tem sido apresentado a partir de uma perspectiva avaliativa dos

    impactos deste processo. Para dar conta dos questionamentos colocados nesta pesquisa,

    recorremos a abordagens que do nfase aos quadros culturais e s redes sociais, bem como s

    Estruturas de Oportunidades Polticas (EOP)3 em diferentes contextos

    4.

    Pensar as formas de atuao e organizao do movimento negro em Sergipe a partir

    dos anos 2000 apenas atravs dos itinerrios individuais as etapas de desenvolvimento de

    sensibilidade para determinadas causa sociais ou os eventos cruciais que influenciaram

    indivduos na tomada de deciso de se engajar e as estratgias de reconverso de recursos -

    3 Este conceito retirado do esquema analtico de Sidney Tarrow (2009).

    4 Os detalhes sobre o esquema analtico so apresentados no captulo 1.

  • 18

    no permite explicar todo o processo de interferncia nas formas de mobilizao daquele

    movimento. Como j mencionamos, a configurao poltica, social e cultural em que os

    movimentos sociais atuam so dimenses importantes para compreender a oferta da militncia

    em perodos diferentes (FILLIEULE, 2001). Por configurao compreendemos a forma como

    os indivduos se relacionam em contextos especficos. A constituio de uma dada

    configurao ocorre ao longo de vrias mudanas. No longo prazo, as condies de formao

    da configurao denominada processo (ELIAS, 2006). Neste sentido, se quisermos

    compreender a configurao poltica atual e seu impacto sobre a configurao do movimento

    negro em Sergipe preciso fazer uma reconstituio da formao da abertura do Estado s

    reivindicaes daquele movimento social. Desta forma, preciso refletir sobre a EOP em cada

    contexto especfico.

    O trabalho de pesquisa

    Em um movimento social h uma rede mais ou menos complexa de militantes cuja

    contribuio varia em termos de frequncia com que participam das atividades e de grau de

    envolvimento. Florence Passy (1998) faz uma distino entre militantes envolvidos em uma

    mesma organizao com base nos critrios mencionados. Segundo a autora, existem os

    militantes aderentes, que do apoio financeiro, mas quase no se envolvem nas atividades da

    organizao; os militantes participantes, que participam ativamente das atividades, mas de

    forma espordica; e o ltimo tipo de militante, que o que define os militantes que nos

    interessam neste trabalho, so os militantes ativistas. Estes participam de forma ativa e

    contnua das atividades. Estes ltimos, segundo a autora, so fundamentais para se entender as

    estratgias de mobilizao dos movimentos sociais e as estratgias de recrutamento de novos

    participantes.

    Estes critrios foram levados em conta para a definio da populao a ser investigada

    neste trabalho como lideranas do movimento negro. Os militantes que compuseram nossa

    amostra so participantes ativos e tm papel importante na realizao de atividades, no

    recrutamento de novos participantes e na (re) construo das fronteiras e nos critrios de

    definio dos recursos indispensveis para ser um militantes negro5.

    Ao longo de alguns meses de pesquisa de campo (SOUZA, 2009b), observamos que

    existe um grupo de militantes que ocupam cargo no interior de rgos voltados para o

    5 Militante negro uma expresso utilizada aqui para definir participantes do movimento negro,

    independentemente de serem pretos ou brancos, lideranas ou no.

  • 19

    combate ao racismo nos nveis federal, estadual e municipal. Mas tambm h alguns

    militantes que realizam atividades voltadas para aquele objetivo em outras secretarias do

    governo do estado, alm de outros que participam de eventos promovidos pelo Estado como

    organizadores ou palestrantes de oficinas e demais eventos. Assim, a populao analisada

    consiste em dez militantes do movimento negro em Sergipe, sendo que cinco exercem

    funes em secretarias ou coordenadorias de combate ao racismo, quatro ocupam cargos em

    outras secretarias, mas suas atividades so direcionadas para a promoo do combate ao

    racismo, e mu participa ativamente de atividades promovidas pelo governo estadual. No

    perodo do trabalho de campo para o desenvolvimento da dissertao (2010-2011), a maioria

    dos militantes ocupava aqueles cargos e participavam dos eventos como palestrantes de

    oficinas, com exceo de Pedro (E9) e Jos (E10), que j no ocupavam os cargos

    mencionados na caracterizao das entrevistas6.

    A pesquisa realizada para a elaborao da monografia ocorreu entre outubro de 2008 e

    outubro de 2009. Com meu ingresso no curso de mestrado, em maro de 2010, dei

    continuidade pesquisa em meados de abril e a terminei em dezembro de 2011. Nesse

    perodo, realizei vinte entrevistas formais, vrias entrevistas informais, participei de eventos

    estes eventos esto descritos nos anexos 2, 3, 4 e 6, nas ilustraes 2 e 3 e no quadro 7 -, alm

    de ter visitado algumas sedes de organizaes do movimento negro em Sergipe e conversado

    com seus coordenadores ou lderes.

    Para fins comparativos e com vistas a aprofundar o conhecimento sobre o universo

    analisado, tambm realizamos entrevistas com outros militantes. Alm dos dez militantes que

    compem a nossa amostra, entrevistamos mais dez militantes que ocupam posio de

    lideranas ou so participantes com menor destaque no movimento negro em Sergipe7. Com

    estas entrevistas buscvamos, a partir de uma quantidade maior e mais densa de informaes,

    compreender as principais divergncias no interior do movimento, a distribuio de posies

    na rede informal, as posies em relao s estratgias de ao, entre outros aspectos.

    A obteno dos dados necessrios para o desenvolvimento da dissertao deu-se a

    partir de: entrevistas biogrficas, de entrevistas voltadas reconstituio da histria do

    movimento negro em Sergipe, das principais organizaes e do processo de criao dos

    rgos de combate ao racismo no estado, alm de apreender os pontos de vista gerais dos

    entrevistados; observao direta; utilizao de revistas e livros como fonte de dados;

    6 Ver caracterizao das entrevistas no apndice 2, p. 167.

    7 Nesta dissertao, no utilizaremos os nomes dos militantes, mas pseudnimos.

  • 20

    informaes de jornais, sites de relacionamento (Facebook e Orkut) e sites de busca na

    internet (Google).

    As entrevistas biogrficas foram conduzidas atravs dos pressupostos gerais da noo

    de carreira militante de Olivier Fillieule (2001 e 2010), em se que busca apreender as

    estruturas objetivas, portanto, constrangedoras da ao, e a forma como os indivduos

    interpretam e negociam estes constrangimentos. Acredita-se, ento, que os argumentos,

    justificativas e conflitos dos indivduos dizem muito sobre o passado dos indivduos, suas

    experincias anteriores e os contextos de socializao que eles vivenciaram e vivenciam hoje

    (FILLIEULE, 2001). As narrativas apreendidas em entrevistas ou eventos foram interpretadas

    como fruto dos contextos anteriores, mas tambm do contexto em que o discurso foi proferido

    (se enunciado em entrevista, evento, reunio ou outra situao).

    A partir das entrevistas biogrficas, capturamos informaes sobre: a) o perfil social

    dos entrevistados, as disposies sociais e culturais para se engajar em uma causa social. As

    questes esto relacionadas s origens sociais e geogrficas do grupo familiar (escolarizao

    dos pais, emprego, relao com poltica), as condies de socializao dos entrevistados,

    escolarizao (tipo de escola, como era a vida estudantil), relao com vizinhos; b) os

    recursos sociais e culturais reconvertidos em cargos na administrao pblica (investimentos

    em diplomas, redes de relaes pessoais e outros tipos de recursos simblicos); c)

    identificao das redes sociais que os conduziram insero em diferentes contextos sociais

    (partidos polticos, espao profissional, grupos de discusso, grupo religioso, grmio

    estudantil, movimentos sociais, entre outros), e de que forma e em que perodo ocorreu o

    processo de recrutamento em organizaes do movimento negro em Sergipe.

    A pertinncia de se estudar as origens sociais, a socializao na infncia e

    adolescncia para se entender o engajamento individual est no fato de ser nesta etapa da vida

    que se desenvolvem os quadros de percepes do mundo e as inclinaes, a propenso para

    agir de determinada forma. Estas disposies, preciso deixar claro, s sero acionadas de

    acordo com diferentes contextos sociais. Os quadros de percepes sero examinados neste

    trabalho como causa provvel do desenvolvimento de uma sensibilidade para se engajar na

    causa negra8. A socializao s faz sentido, aqui, se inserida dentro da anlise de redes

    sociais, pois a predisposio para militar por uma causa s ser acionada de acordo com os

    laos pessoais (amigos, familiares) estabelecidos ao longo da vida (PASSY, 1998 e 2001).

    8 A causa negra uma expresso utilizada neste trabalho para se referir luta de militantes pela reivindicao de

    reparaes dos afrobrasileiros de mecanismos de acesso e de distribuio igual do poder entre pretos, pardos e

    brancos, em uma sociedade.

  • 21

    A reconstituio das redes sociais uma ferramenta analtica fundamental neste

    trabalho, pois pretendemos articular diversos nveis de anlise por meio delas. A identificao

    das redes de amizade e das redes de parentesco, em diversos espaos sociais (trabalho, escola,

    universidade, religioso, etc.), permite mostrar sua influncia no recrutamento dos militantes

    em organizaes e na continuao da participao (DIANI e DELLA PORTA, 2006). Por

    meio desta noo podemos tambm examinar a potencializao dos diferentes recursos sociais

    e culturais dos entrevistados, j que, por exemplo, um diploma universitrio pode no ter o

    mesmo valor para a insero na administrao pblica se o militante no estiver inserido em

    um grupo de aliados influentes em tal administrao.

    Diani e Della Porta (2006) demonstram a relevncia dos contatos pessoais, da famlia,

    crculo de amigos, colgio, universidade, grupos religiosos, entre outros, no momento do

    recrutamento. Da mesma forma, estes autores argumentam que as redes informais no so

    importantes somente para a entrada, mas tambm agem como suporte para a manuteno no

    movimento social. Os laos sociais estabelecidos em diferentes etapas e contextos dos

    itinerrios individuais, portanto, so dados importantes para examinarmos o acionamento de

    disposies, o desenvolvimento de percepes que podero afetar no rumo do engajamento,

    no processo de recrutamento no movimento negro em Sergipe e na tomada de posio atual.

    Segundo Diani e Della Porta (2006), os eventos so locais importantes para o

    pesquisador delimitar as fronteiras dos movimentos sociais, as principais esferas sociais com

    as quais os movimentos se relacionam, quem so os participantes, as organizaes e, assim,

    apreender o sentimento de pertencimento do grupo, pois a partir dos eventos que possvel

    observar as redes informais que compem um determinado movimento social. Para os autores

    fundamental que haja o sentimento de identificao com o grupo, em vez do sentimento de

    pertencimento a uma organizao especfica. Assim, o ponto de partida para a delimitao do

    universo dos movimentos sociais so as redes informais apreendidas nos diversos eventos. O

    envolvimento em atividades e mobilizaes coletivas, independentemente da organizao da

    qual os militantes pertencem, indicador da solidariedade do grupo e ponto de partida para

    apreender a posio dos participantes nestas redes.

    Foi com esse objetivo que realizamos observaes diretas em eventos promovidos

    pelos rgos de promoo da igualdade racial em Sergipe, eventos para comemorar datas

    emblemticas como os cortejos pelas ruas do centro de Aracaju em comemorao ao dia da

    conscincia negra, no dia 20 de novembro, promovidos por organizaes do movimento

    negro. Estes eventos constituram uma fonte rica de informaes acerca da rede informal do

    movimento negro em Sergipe, de identificao das principais lideranas e suas concepes, os

  • 22

    principais conflitos, tipos de mobilizao, como os militantes organizam suas atividades e

    reivindicaes atualmente. Tudo isso tem como objetivo ampliar nosso conhecimento sobre a

    configurao atual do movimento negro.

    A fim de melhor compreender o processo de configurao poltica atual e

    contextualizar a criao de coordenadorias ou secretarias especficas de polticas pblicas para

    a populao negra do estado, buscamos informaes em trabalhos cientficos disponveis que

    analisaram a relao do movimento negro e o Estado ao longo do tempo, assim como atravs

    de entrevistas. Por meio de entrevistas, reunimos informaes sobre a relao do Estado com

    os movimentos sociais.

    A partir das narrativas de vida e do material sobre as condies sociais e polticas de

    desenvolvimento do engajamento dos entrevistados foi possvel investigar o processo de

    engajamento individual e suas dinmicas ao longo do tempo. O exame das carreiras militantes

    nos ajudou a compreender este processo. Seguindo os pressupostos desta noo, analisamos

    os argumentos e justificativas como produto das decises subjetivas, sem desconsiderar os

    constrangimentos objetivos das diferentes configuraes que os entrevistados vivenciaram e

    vivenciam (FILLIEULE, 2001). A partir das carreiras militantes, buscamos compreender, por

    um lado, os recursos sociais e culturais indispensveis para a ocupao de cargos em

    administraes de esquerda e, por outro lado, buscamos demonstrar como as relaes destes

    militantes mediadores com a poltica institucional provocam novos conflitos no interior do

    movimento negro e redefinem o sentimento de solidariedade do grupo.

    O trabalho de campo: contatos e dificuldades

    Numa pesquisa pautada por interaes sociais diretas, a qualidade dos resultados

    depende de uma srie de reflexes e questionamentos. Durante todo o processo da pesquisa, o

    pesquisador deve refletir sobre o problema da imposio de problemtica e desenvolver uma

    linguagem apropriada para o grupo analisado nos questionrio ou roteiros de entrevista. Alm

    disso, no caso das entrevistas, devemos ficar atentos com os efeitos da relao entrevistador-

    entrevistado sobre os resultados. Esta ltima questo desenvolvida por Bourdieu no captulo

    Compreender do livro A misria do Mundo (BOURDIEU, 2008b). Segundo o autor, a relao

    social estabelecida no momento da entrevista pode gerar distores nas respostas. Como isso

    inerente a este tipo de relao, o que podemos fazer tentar minimizar estes efeitos

    procurando estabelecer uma relao no-violenta. Seguindo as orientaes de Bourdieu, uma

    das preocupaes gerais deste trabalho foi refletir sobre minha posio no universo analisado

  • 23

    a fim de diminuir as distores inerentes a qualquer pesquisa e buscar formas alternativas de

    obteno dos dados para a investigao, assim como compreender as percepes de avaliao

    dos militantes negros.

    Minha aproximao e trnsito pelo universo analisado teve incio em 2009, como j

    mencionado. Portanto, quando retomei a pesquisa de campo no curso de mestrado j havia

    circulado por alguns eventos, visitado sedes de organizaes e interagido diretamente com

    muitos militantes negros, em entrevistas ou conversas informais. Esta maior aproximao e

    certa visibilidade neste espao social acarretaram vantagens e desvantagens. Como j estava

    mais familiarizada com as principais divergncias e concepes debatidas pelos militantes e

    era mais evidente pra mim o que constitua o denominado movimento negro em Sergipe e

    seus atores, o processo de elaborao do problema de pesquisa e a formulao dos

    questionamentos em entrevistas ou conversas informais para a pesquisa realizada no mestrado

    aconteceram com maior espontaneidade. Por outro lado, o fato de j ser reconhecida por boa

    parte dos militantes resultou em algumas dificuldades no campo, principalmente em conseguir

    novas entrevistas, fundamentais para a resoluo do meu problema de pesquisa. Essa

    dificuldade provavelmente est relacionada com a minha posio no universo analisado.

    Quando decidi estudar o movimento negro em Sergipe, na graduao, alguns colegas

    do curso e, inclusive, professores, me chamaram a ateno para as possveis dificuldades que

    poderia encontrar por conta dos meus atributos fsicos (branca) e por no ser membro ou

    prxima ao grupo. Obviamente estas condies e a falta de experincia com pesquisa e

    negociaes de entrevistas me deixaram com receio de no conseguir estabelecer contatos. No

    entanto, consegui listar rapidamente os principais lderes daquele movimento social e

    entrevist-los. Em relao observao direta, era informada dos principais eventos atravs

    de e-mails e sites de relacionamento da internet. Sem dvida esta facilidade foi resultado da

    mediao de uma colega de curso e militante do movimento negro local, Maria (E6), que me

    forneceu uma lista das principais organizaes e contatos dos lderes (nmero de telefone e e-

    mails). Ao me apresentar como colega de Maria e orientanda de Paulo S. da C. Neves,

    conhecido e respeitado neste universo, tive certa facilidade para conseguir marcar as

    entrevistas por telefone.

    Como em todo movimento social, a definio do ns e dos outros essencial para

    o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade do grupo, bem como para definir suas

    reivindicaes. No movimento negro em Sergipe, a ancestralidade africana critrio

    importante de seleo dos membros do grupo, assim como o uso de roupas e penteados

    concebidos como africanos importante manifestao do orgulho de ser negro e de

  • 24

    valorizao da aparncia negra. Estas caractersticas do universo analisado, inclusive,

    restringem a participao de indivduos de pele clara como membro do grupo9. No ser

    membro do universo analisado, ser branca e os problemas prprios a qualquer tipo de

    pesquisa geraram certo desconforto em algumas situaes, principalmente em entrevistas

    quando o contato era direto. Nestas condies, tive que improvisar e buscar maneiras de

    tornar a situao de entrevista menos tensa e conseguir as informaes necessrias.

    Se a negociao das entrevistas no foi uma tarefa difcil, a execuo no foi to

    simples. O fato de a maioria dos entrevistados proferirem um discurso ora afirmando que a

    classe mdia sergipana racista, ora mostrando as vantagens dos brancos sobre os negros no

    mercado de trabalho ou na insero em universidades pblicas para uma entrevistadora branca

    e desconhecida, provocou algumas pausas ou controle da fala. No caso de militantes

    mulheres, algumas crticas relacionadas ao padro de beleza vinculado mulher branca na

    situao de entrevista tambm geraram certo desconforto. Eu tentava contornar estes

    constrangimentos mostrando simpatia pelo discurso atravs de interjeies e afirmaes com

    a cabea. No entanto, eles se sentiam vontade para criticar outros militantes, organizaes

    ou autoridades polticas, uma vez que eu no fazia parte daquele meio, o que foi muito

    interessante para o trabalho. De modo geral, a situao mencionada acima no foi o maior

    obstculo para o andamento das entrevistas. Como o tipo de entrevista realizada era

    principalmente biogrfica, as desconfianas e resistncias para falar das condies de

    socializao e outras informais relacionadas ao universo familiar eram comuns. Ao longo da

    pesquisa de campo (de 2009 a 2011), desenvolvi algumas estratgias para romper ao mximo

    com estas desconfianas.

    A fim de tornar a situao de entrevista menos formal e mais descontrada, iniciava a

    conversa citando militantes conhecidos anteriormente entrevistados, o que proporcionava

    maior descontrao; explicava a importncia das informaes pessoais para minha pesquisa e

    ficava disponvel para falar da minha pesquisa e esclarecer dvidas (respondia sobre a

    relevncia das perguntas, sobre os objetivos da minha pesquisa); me esforava para mostrar

    alguma proximidade social com os entrevistados no decorrer das entrevistas (morar em bairro

    vizinho, estudado no mesmo colgio etc.) e adaptava a ordem das questes e as adequava em

    funo de cada entrevistado.

    Na continuao da pesquisa, j no mestrado, encontrei dificuldades principalmente

    relacionadas com negociaes de entrevistas. Quando retomei a pesquisa, pretendia

    9 Sobre este ponto ver captulo 4, seo 4.2.

  • 25

    reentrevistar alguns militantes e, portanto, entrei em contato com alguns deles. Para minha

    surpresa, encontrei muita resistncia em remarcar entrevistas e, em alguns casos, no

    consegui. Este acontecimento me chamou ateno e me fez refletir e tentar compreender o

    fato. Conversando com militantes, informantes, estudiosos e simpatizantes do movimento

    negro, percebi que representaes dos entrevistados acerca da academia e da minha posio,

    tanto na academia quanto no movimento negro, provavelmente causaram certa resistncia e

    desinteresse de alguns militantes em continuar contribuindo com a minha pesquisa.

    Como mencionei em minha monografia (SOUZA, 2009b), o diploma universitrio

    percebido pelos entrevistados como um instrumento de interveno social. Neste sentido, nos

    trabalhos de concluso de curso (TCCs, dissertaes ou teses), possvel observar o

    envolvimento dos entrevistados com o objeto e a relevncia de uma postura crtica, de

    denncia e de apontamento de solues para os problemas sociais. Neste sentido, a

    neutralidade como orientao geral para a conduo e elaborao dos trabalhos de finais de

    curso no uma preocupao dos entrevistados, independentemente do curso. Desta forma, os

    objetivos da minha pesquisa, ao fugir deste esquema de percepo, no apresentava nenhum

    interesse para o movimento negro. Ao contrrio de outros colegas que trabalhavam com

    temticas relacionadas com a questo negra de forma mais engajada, nunca fui convidada

    para participar de palestras ou oficinas promovidas por organizaes do movimento negro.

    Alm disso, alguns militantes consideram importante que negros pesquisem e sejam

    reconhecidos como autoridades para falar do movimento negro, em vez de uma pesquisadora

    branca.

    Organizao da dissertao

    Com o objetivo de compreender a extenso e intensificao do engajamento dos

    militantes analisados, mais especificamente, as competncias polticas reconvertidas em

    cargos na administrao pblica e os efeitos das oportunidades polticas sobre a modalidade

    de engajamentos individual analisada, a dissertao est organizada em quatro captulos. No

    captulo 1 apresentado o esquema analtico utilizado neste trabalho, uma vez que os

    pressupostos e problemticas expostos nesta introduo foram construdos com base em

    discusses sociolgicas mais gerais.

    No captulo 2 analisamos o processo de institucionalizao da causa negra. A

    institucionalizao de uma causa social entendida aqui como um processo em que o

    socilogo deve apreender as lutas dos agentes pela imposio de vises e interesses sobre a

  • 26

    realidade social e como criado um problema social (LENOIR, 1996). Discutimos o processo

    de incluso de demandas do movimento negro no Brasil na agenda poltica nacional e a

    criao de rgos de combate ao racismo na estrutura administrativa do Estado. Para dar conta

    desta proposta, inicialmente, mostramos como a questo racial vem sendo discutida ao longo

    dos sculos por intelectuais e por militantes negros. Num segundo momento, focamos nossa

    ateno nas presses internacionais sobre o governo federal, nos principais eventos

    promovidos por organizaes internacionais com o intuito de orientar as polticas pblicas

    nacionais, na presso do movimento negro, assim como analisamos o perfil dos governos que

    adotaram tais polticas (governos FHC e Lula).

    No captulo 3 nosso objetivo foi compreender a configurao atual do movimento

    negro em Sergipe e a posio dos militantes nas administraes de esquerda como fruto de

    orientaes e estratgias de organizaes negras nacionais, tais como MNU e CONEN, e da

    configurao poltica que se constitui a partir de 2000 em Sergipe e no mbito federal. Para

    isso, fizemos uma reconstituio, dentro de certos limites, das principais organizaes do

    movimento negro local, a insero dos seus lderes nas redes nacionais de militncia negra e

    as alianas das organizaes negras com a poltica institucional. No decorrer do captulo,

    mostramos as principais fases do movimento negro em Sergipe, as organizaes envolvidas e

    suas diferentes finalidades, os principais conflitos e os espaos de agregao das diversas

    organizaes, como fruns e conselhos. Alm disso, situamos suas fases dentro de

    configuraes polticas especficas.

    O captulo 4 foi desenvolvido com o objetivo de examinar as carreiras dos militantes

    que ocupam cargos nas administraes de esquerda e que prestam consultoria em eventos

    promovidos pelas administraes. A partir dos itinerrios individuais apreendemos os quadros

    de percepo dos entrevistados atravs das origens sociais, a fim entender as motivaes da

    tomada de posio de se engajar na causa negra, os recursos acionados para a ocupao de

    cargos nos rgos pblicos e o papel das redes sociais na intensificao e mudanas no

    engajamento individual. As etapas do engajamento e as estratgias dos militantes analisados

    foram inseridas em configuraes polticas, sociais, culturais e organizacionais especficas a

    fim de analisarmos os impactos destas configuraes nas formas disponveis de militncia,

    bem como o impacto da socializao poltica em organizaes sobre o engajamento

    individual. Com isso, buscamos apreender os condicionantes objetivos e subjetivos do

    engajamento individual.

  • 27

    1

    FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA A ANLISE DOS

    MOVIMENTOS SOCIAIS

    Assim como em outros pases da Amrica Latina, a dcada de 1980 foi marcada no

    Brasil pela emergncia de vrios movimentos sociais e de mobilizaes de rua que se

    destacaram em todo o pas. As mobilizaes ganharam fora em um contexto poltico de

    transio do regime militar centralizador e repressivo para o estabelecimento do regime

    democrtico; portanto, em um contexto de abertura poltica, no caso do Brasil, controlada

    pelo governo. Frente ao Estado repressivo, estes movimentos sociais (re) surgiram com alguns

    ideais especficos, como a autonomia em relao ao Estado, os quais caracterizaram uma

    postura geral dos movimentos sociais da poca. A autonomia dos movimentos sociais um

    ideal presente at hoje nos discursos dos militantes, como percebemos no trabalho de campo.

    Estudos desenvolvidos naquele perodo apontaram como caractersticas principais dos

    movimentos sociais a sua postura crtica em relao ao Estado e seu afastamento de

    instituies polticas (GOIRAND, 2009; RIOS, 2009; SILVA, 2010). So observadas algumas

    peculiaridades em relao forma como os movimentos sociais so abordados e postura dos

    pesquisadores no Brasil frente ao objeto de pesquisa. De modo geral, h a preferncia pela

    abordagem que relaciona mudana sociopoltica e movimentos sociais (GOIRAND, 2009). As

    interpretaes so de cunho normativo-prescritivo, em que descrito como deve ser a relao

    entre Estado e movimentos sociais, qual a melhor forma de organizao, quais as melhores

    estratgias de mobilizao. Esta abordagem normativa est ligada ao perfil destes

    pesquisadores, caracterizados como pesquisadores engajados. Comprometidos com a defesa

    do seu objeto de estudo, suas anlises so, em geral, tendenciosas (SILVA, 2010).

    Em relao recepo de vertentes tericas internacionais na Amrica Latina, h a

    preferncia pela Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS) e da marxista-estrutural

    nas anlises desenvolvidas nas dcadas de 1980 e, em boa parte, na dcada de 1990

    (ALONSO, 2009; SILVA, 2010). Segundo Goirand (2009), o uso normativo e fragmentado

    destas perspectivas enfatizou o papel transformador dos movimentos sociais e sua

    autonomia em relao ao Estado.

    As primeiras pesquisas empricas sobre o movimento negro aparecem na dcada de

    1950, com o apoio da UNESCO (RIOS, 2009). Mas, antes do interesse de pesquisadores,

    brasileiros e estrangeiros, pelo movimento negro, um grande volume de trabalhos foi

  • 28

    desenvolvido a fim de descrever e avaliar as relaes raciais no pas, o que culminou no

    desenvolvimento de referenciais nacionais como o branqueamento da populao e a

    democracia racial, os quais que se tornaram importantes temas de discusso entre militantes

    do movimento negro na dcada de 1980. Assim como as relaes raciais, o movimento negro,

    em grande parte das pesquisas, abordado pelo vis normativo.

    Em trabalho sobre as principais abordagens das pesquisas sobre o movimento negro no

    Brasil, Rios (2009) aponta algumas caractersticas: so, em geral, trabalhos descritivos, h

    precariedade das ferramentas analticas e falta de dilogo entre as pesquisas. Isto no

    possibilitou avano de problemticas, limitadas, em geral, aos discursos das principais

    lideranas e das principais organizaes de So Paulo, Rios de Janeiro e Salvador. A partir

    dos anos 1970, a autora identifica o aumento de trabalhos desenvolvidos por

    intelectuais/militantes, tanto brasileiros como estrangeiros. Nestes trabalhos, destacam-se

    temticas relacionadas desmistificao da democracia racial, os problemas relacionados

    no adeso da populao negra ao movimento negro, assim como a avaliao das estratgias

    de atuao deste10

    .

    As preocupaes com os problemas sociais e a proposta de um projeto de sociedade

    adequado ao seu desenvolvimento so aspectos norteadores das cincias sociais brasileiras,

    assim, foram desenvolvidas sem contornos muito definidos em relao a outras esferas, como

    a poltica (PCAUT, 1990). Deste modo, marcada por uma forte tradio de interveno

    poltica (GOIRAND, 2009), os intelectuais latinoamericanos no desvinculavam suas

    concepes polticas da anlise dos movimentos sociais, uma vez que em um contexto

    poltico repressor, as mobilizaes de rua e as formas de organizaes no institucionais

    pareciam a alternativa mais vivel para a democratizao no pas. Neste ponto, h o interesse

    nestes estudos em enfatizar o papel transformador dos movimentos sociais em detrimento de

    um amplo debate terico-metodolgico para o entendimento dos processos de definio dos

    movimentos sociais e de sua relao com o meio em que esto situados.

    10 Entre lideranas do movimento negro, destacam-se os trabalhos de Llia Gonzlez, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Joel Rufino, entre outros (CUNHA, 2000). Entre os estrangeiros, destaca-se o trabalho de Hanchard

    (2001). O livro Orfeu e o Poder, deste ltimo, um trabalho rico em informaes relacionadas s vinculaes de

    militantes negros de So Paulo e Rio de Janeiro com partidos polticos e instituies pblicas. Mas os partidos

    polticos e o Estado so alvos de crtica do autor por no tratarem das relaes raciais, j que, para o autor, a elite

    dirigente daqueles espaos defensora da democracia racial. Com isso, o Estado no teria interesse em atender as demandas do movimento negro. Em detrimento de uma anlise dos processos de mudana de estrutura das

    organizaes e de estratgias do movimento negro a partir das alianas e da postura do Estado em relao a tal

    movimento, o autor prefere expor solues para que os militantes negros assumam o poder poltico a partir de

    uma estratgia de disputas por cargos polticos e da criao de instituies autnomas para, assim, ganhar

    visibilidade e adeso da populao negra.

  • 29

    Se na dcada de 1980 os movimentos sociais (re) surgem, em grande parte, em

    oposio ao Estado e aos partidos polticos - pelo menos nos discursos de lideranas e

    pesquisadores engajados - e manifestam suas reivindicaes em caminhadas, comcios, etc.,

    atualmente os vnculos entre movimentos sociais e poltica institucional parecem mais

    estreitos. o que demonstra a entrada de diversas lideranas de movimentos sociais em

    administraes de esquerda desde 2000. Por conta destas inseres, as redes entre os

    movimentos sociais ou militantes e partidos polticos e o Estado atualmente so mais

    evidentes. Goirand (2009) demonstra que estudos apontam este processo como um fracasso

    dos movimentos sociais e a perda de autonomia e da identidade. De modo semelhante, Gohn

    (2004) destaca o argumento de alguns analistas de que houve crise dos movimentos sociais no

    incio dos anos 1990 por conta de uma suposta perda do poder de presso alcanada nos anos

    1980. Mudana nas formas de atuao de parte dos movimentos sociais na dcada de 1990

    so acompanhadas, portanto, pela crtica de pesquisadores.

    Mas alguns trabalhos sobre movimentos sociais e modalidades de militncia poltica

    no Brasil, como os de Moreno e Almeida (2009), Mische (1997), Oliveira (2007), Pereira

    (2011), Rios (2009), Santos (2007), Seidl (2009), Silva (2011) e Souza Jnior (2006), trazem

    algumas novidades ao considerar os movimentos sociais ou as formas de militncia a partir do

    processo de negociao com o Estado, com os partidos polticos e outras organizaes,

    analisando, de modo geral, a multiplicidade de atuao das organizaes e/ou dos militantes.

    Por exemplo, ao analisar a participao poltica de estudantes na dcada de 1990, Mische

    (1997) destaca o papel de interlocutores sociais - militantes inseridos em diversas redes

    sociais - nas transformaes de identidades coletivas e de projetos daquele movimento social.

    Moreno e Almeida (2009) mostram tambm a relao entre militncia dupla de alguns

    militantes, principalmente na organizao por elas analisada e no PT, e as mudanas na

    estrutura de atuao em um grupo de jovens negros em Campinas/SP. Ao abordar os

    movimentos sociais ou formas de engajamento poltico a partir de um esquema analtico que

    dialoga com conceitos e problemticas formulados em outros pases11

    , estes pesquisadores

    tomam o cuidado de no impor definies embutidas nos conceitos para avaliar seus objetos

    de pesquisa. Esta postura outra contribuio para as anlises nesta rea, na medida em que o

    uso dos conceitos de modo reflexivo orienta pesquisadores preocupados em apreender

    caractersticas prprias dos movimentos sociais e do engajamento poltico brasileiro.

    11

    Os esquemas analticos contm conceitos como repertrio de ao, estrutura de oportunidade poltica, disposies, redes sociais, mobilizao de recursos e trajetrias individuais.

  • 30

    No caso de Sergipe, semelhante a outros estados, militantes e organizaes do

    movimento negro esto inseridos em vrias redes sociais. Militantes envolvidos neste

    movimento social travam relaes com autoridades polticas, partidos de esquerda, outros

    movimentos sociais, sindicatos, entre outros. Com a criao de rgos no mbito estadual e

    municipal de combate ao racismo, algumas lideranas do movimento negro so convidadas a

    ocupar estes cargos. Assim, apreender as carreiras destes militantes, como buscamos, uma

    estratgia para capturar o intercmbio entre movimento negro e outras esferas sociais.

    Neste captulo, o objetivo justificar nossa escolha terico-metodolgica e estratgias

    de anlise. Inserimo-nos na discusso dos trabalhos mencionados logo acima em relao

    apreenso dos movimentos sociais no Brasil a partir de um esquema analtico capaz de

    relacionar movimentos sociais com o Estado, os partidos polticos e outras esferas sociais sem

    prescrever estratgias consideradas mais adequadas para tal movimento. Para isso, primeiro,

    vamos considerar a oferta de conceitos e abordagens da sociologia dos movimentos sociais e,

    num segundo momento, propomos uma abordagem de pesquisa e um esquema analtico que

    d conta das transformaes do movimento negro em Sergipe.

    1.1 Sociologia dos movimentos sociais: conceitos e pressupostos gerais

    Pensar em modelos tericos, conceituais, metodolgicos e abordagens para explicar os

    movimentos sociais tornou-se um dos temas da agenda de pesquisa nas cincias sociais. Neste

    esforo coletivo, alguns modelos se destacaram. Denominados Teorias dos Novos

    Movimentos Sociais (TNMS), Teoria dos Processos Polticos (TPP), Teoria da Mobilizao

    de Recursos (TMR)12

    , tais vertentes enfatizaram variveis diferentes para compreender este

    tipo de ao coletiva. De um lado, os modelos que enfocam uma dimenso estruturalista,

    como a TNMS e a TPP. Para o primeiro, a dimenso cultural importante varivel para

    entender a emergncia dos novos movimentos sociais. De outra maneira, a relao dos

    movimentos sociais com a poltica institucional parece mais pertinente no segundo modelo.

    Por outro lado, o TMR analisa os movimentos sociais em um nvel microssocial,

    compreendidos luz de abordagens da escolha racional e do individualismo metodolgico,

    dando nfase racionalidade da ao coletiva.

    Mais recentemente, especificamente a partir dos anos 1990, os principais modelos

    tericos dos movimentos sociais no podem ser to bem definidos em grupos distintos, como

    12

    A partir de agora, utilizaremos as siglas das vertentes tericas.

  • 31

    fizemos, uma vez que h a tendncia atual, entre pesquisadores inseridos em um amplo debate

    internacional, em mesclar conceitos e problemticas de diferentes vertentes tericas a fim de

    ultrapassar os limites das principais perspectivas sobre os movimentos sociais e aproveitar as

    contribuies de cada uma delas. Esta tendncia parece evidente se observarmos a divulgao

    de pesquisas em alguns livros e revistas proeminentes, como por exemplo, Le dsengagement

    militant, organizado por Fillieule (2005), Penser les mouvements sociaux, organizado por

    Fillieule, Agrikoliansky e Sommier (2010a), How social movements matter, organizado por

    Giugni, McAdam e Tilly (1999), Social Movements and networks, organizado por Diani e

    McAdam (2003a); e revistas como Sociological forum e Revue franaise de science politique.

    Nestes livros, pesquisadores europeus e norteamericanos apresentam trabalhos cujo objetivo

    fazer uma reviso crtica das principais teorias dos movimentos sociais e dialogar com elas,

    conjugando diversos conceitos, metodologias e perspectivas tericas.

    A sociologia dos movimentos sociais, antes desta tendncia atual, concentrava-se nas

    discusses e mobilizaes oriundas, de um lado, dos EUA e, de outro lado, da Europa, sem

    haver muito dilogo. Com isso, os primeiros modelos de anlise dos movimentos sociais

    foram desenvolvidos em contextos sociais e culturais especficos e no desenrolar de debates

    entre as tradies tericas das cincias sociais de seus pases.

    Antes da emergncia de diversos novos movimentos sociais na dcada de 1960,

    duas grandes vertentes se destacavam em torno da definio de abordagens e modelos tericos

    para explicar este tipo de ao coletiva. De um lado, as teorias do comportamento coletivo,

    ligada teoria funcionalista dominante nos Estados Unidos, destacavam o aspecto irracional

    da mobilizao coletiva, a qual era provocada, segundo esta vertente, por frustraes

    individuais em uma sociedade de massa (CEFA e TROM, 2001). Por outro lado, na Europa,

    tericos marxistas ligavam os movimentos sociais ao modelo do movimento operrio

    (ALONSO, 2009; OLIVEIRA, 2007). As duas vertentes iniciais serviram de ponto de partida

    para discusses proeminentes na dcada de 1960. As novas vertentes tericas dos anos 1960

    destacavam os limites das duas vertentes mencionadas para explicar a emergncia de

    movimentos sociais como o feminista, homossexual, dos direitos civis, ambientalista, entre

    outros, que surgiram nos EUA e pases europeus na dcada de 1960. Afastando-se das teorias

    do comportamento coletivo, pesquisadores dos EUA trouxeram outras abordagens e conceitos

    para compreender os movimentos sociais com a TMR e com a TPP. Na Europa, a partir da

    crtica teoria marxista, pesquisadores desenvolveram vertentes denominadas de TNMS

    (ALONSO, 2009; FILLIEULE e PUDAL, 2010b; OLIVEIRA, 2007).

  • 32

    Em resposta tradio funcionalista e seu pressuposto da irracionalidade da ao

    coletiva, socilogos norteamericanos desenvolveram respostas diferentes para a pergunta que

    se fazia at ento sobre os movimentos sociais: quais fatores contribuam para o surgimento

    da ao coletiva? Ao contrrio das teorias do comportamento coletivo, a denominada teoria da

    mobilizao de recursos (TMR) deu nfase ao aspecto racional da ao coletiva. Assim, o

    processo de mobilizao s era possvel a partir do acmulo de recursos materiais (dinheiro,

    benefcios) e no materiais (relacionamento com a mdia, com autoridades, com outras

    organizaes, etc). Para acumular estes recursos, as organizaes teriam o papel de elaborar

    estratgias a fim de captar os recursos necessrios para a mobilizao, a simpatia de

    autoridades e aderentes do pblico em geral. Em relao aos ltimos, a participao est

    diretamente ligada aos custos e benefcios que as organizaes podero oferecer. Uma das

    questes interessantes desta abordagem a distino dos nveis de participao nas

    organizaes. Segundo McCarthy e Zald (1977), preciso diferenciar os indivduos que

    trabalham ativamente e elaboram estratgias para o acmulo de recursos dos indivduos cuja

    participao definida para determinadas tarefas. Com isso, esta vertente contribuiu ao

    colocar no centro das discusses o aspecto racional da mobilizao.

    Outro paradigma que conseguiu se impor na agenda de pesquisa dos movimentos

    sociais foi a teoria dos processos polticos (TPP), tambm nos EUA. Assim como a TNMS, a

    TPP apontava os determinismos economicistas da teoria marxista (ALONSO, 2009).

    Afastando-se do enfoque econmico, socilogos norteamericanos desenvolveram um

    esquema analtico com base na relao entre os movimentos sociais e a poltica institucional.

    A questo que se destacava nesta abordagem era: como podemos compreender a

    intensificao ou recuo dos movimentos sociais ao longo do tempo? As respostas no so

    homogneas; no entanto, possvel sintetizar o ncleo do que ficou conhecido como TPP a

    partir da grande contribuio desta vertente que relacionar os constrangimentos da poltica

    institucional com o desenvolvimento dos movimentos sociais. A Estrutura de Oportunidades

    Polticas (EOP), os ciclos de protesto e repertrios de ao13

    foram os principais conceitos

    desenvolvidos para explicar esta relao e seus constrangimentos. Aqui, portanto, temos uma

    abordagem cujo foco a relao entre polticas institucionais e protesto.

    Em publicaes mais recentes da dcada de 1990, os principais representantes da

    TMR (Mayer N. Zald e John D. McCarthy) e da TPP (Charles Tilly, Sidney Tarrow e Doug

    13

    EOP se refere aos incentivos ou restries do Estado em relao s mobilizaes de movimento sociais. Ciclo

    de Protesto se refere aos smbolos, temas e tipos de aes coletivas iniciadas por alguns grupos que influenciam

    outros em determinado perodo. Repertrios de ao so formas de mobilizao e como elas se transformam ao

    longo do tempo a partir da interao entre movimento e opositores (TILLY, TARROW e McADAM, 2009).

  • 33

    McAdam) ampliaram suas perspectivas ao integrar em suas anlises noes como identidade

    coletiva e redes sociais a partir do conceito de contentious politics (McADAM, TARROW e

    TILLY, 2009), ou integrando a perspectiva do framing process (McADAM, McCARTHY e

    ZALD, 1996). Nos dois trabalhos, a proposta tambm compreender a emergncia e extenso

    das mobilizaes a partir do compartilhamento de quadros de referncia entre possveis

    aderentes e determinados movimentos sociais. Os laos pessoais com militantes de

    organizaes ou os laos formais com organizaes aumentam as chances de uma pessoa

    aderir a uma causa social.

    Na Europa, frente onda de mobilizaes feminista, estudantis, etc., e ao esgotamento

    das explicaes marxistas, os socilogos no concordavam mais com as generalizaes e

    determinismos daquela teoria. Destes desacordos e a partir de reflexes sobre a sociedade

    ps-moderna desenvolveu-se a denominada Teoria dos Novos Movimentos Sociais

    (TNMS), voltada a apreender a novidade dos novos movimentos sociais. Como a TPP,

    esta perspectiva constituda por vrios pesquisadores e por explicaes distintas, porm h

    uma tendncia a se enfatizar a cultura ps-materialista como fator importante do tipo de

    mobilizao dos novos movimentos sociais. Nesta perspectiva, a abordagem est centrada

    nas novas demandas acarretadas pela sociedade ps-industrial e no surgimento de novas

    formas de reivindicaes e de identidades, de modo geral (ALONSO, 2009; CEFA e TROM,

    2001).

    A partir desta breve reconstituio do desenvolvimento das principais abordagens e

    conceitos da agenda de pesquisa da sociologia dos movimentos sociais, mostramos algumas

    contribuies das diferentes perspectivas para o estudo do tema, pois estas questes

    influenciaram e influenciam as discusses sobre movimentos sociais atualmente. Mas elas no

    apresentam somente pontos fortes; h tambm limites apontados por alguns crticos. De modo

    geral, alguns autores (ALONSO, 2009, DIANI e DELLA PORTA, 2006) que se empenharam

    em reunir as principais crticas direcionadas quelas vertentes, consideram a ausncia de

    dilogo entre elas como um dos principais limites. Por exemplo, se na TPP houve grande

    avano ao considerar os movimentos sociais dentro de uma ampla estrutura de relaes com o

    Estado, aspectos simblicos e cognitivos apresentados pela TNMS no foram destacados. No

    caso da TNMS deu-se o contrrio. Por sua vez, a TMR criticada pela demasiada relevncia

    dada ao aspecto racional da ao coletiva. Apesar da abordagem da estrutura organizacional e

    da nfase nas avaliaes dos custos e benefcios de aderentes terem sido grandes

  • 34

    contribuies desta vertente, o papel das emoes e das origens estruturais da mobilizao foi

    negligenciado14

    .

    Com o maior intercmbio de ideias e resultados de pesquisas, perspectivas de anlises

    atuais ultrapassam as fronteiras nacionais para enriquecer o debate da sociologia dos

    movimentos sociais. Dimenses como estruturas organizacionais, estrutura de oportunidade

    poltica e redes sociais, so utilizadas de forma criativa em propostas de anlise variadas.

    Exemplo disso so as anlises que articulam diversas dimenses, como as de Mario Diani,

    Florence Passy e Olivier Fillieule, como veremos na prxima subseo. As propostas destes

    autores so interessantes para pensar os movimentos sociais no contexto brasileiro, pois

    permitem apreender as mltiplas relaes entre organizaes e militantes e outras esferas

    sociais. Com isso, podemos identificar as dinmicas dos movimentos sociais ao longo do

    tempo.

    1.1.2 As redes sociais na anlise dos movimentos sociais

    Fugindo das abordagens unilaterais, ora enfocando o indivduo, ora a estrutura, as

    redes sociais so utilizadas para unir estes dois conceitos que por muito tempo foram

    utilizados separadamente nas cincias sociais15

    . Ao considerar tanto as motivaes individuais

    quanto os constrangimentos de estruturas especficas, os pesquisadores tambm buscam unir

    as dimenses macro e microssociolgicas da ao coletiva. Nas anlises dos movimentos

    sociais, as redes sociais so ferramentas indispensveis para apreender o desenvolvimento dos

    movimentos sociais em interao com outras esferas sociais ou outras formas de organizaes

    (religiosa, sindical, outros movimentos sociais, universidade), assim como tambm so teis

    para compreender o recrutamento de novos participantes e a intensificao ou a ruptura do

    engajamento individual.

    14

    Para mais detalhes sobre estas vertentes e crticas a ela direcionadas, ver as referncias na ntegra, pois apenas

    mencionamos pontos principais para situar a nossa proposta de anlise mais adiante. 15

    O discurso multivalente e a alta competio so inerentes sociologia desde a sua origem, segundo Alexander

    (1986). Para Corcuff (2001), esta maneira de ver o mundo se reflete nos pares de conceitos: material/ideal,

    objetivo/subjetivo, coletivo/individual, que permearam e permeiam as explicaes dos fenmenos sociais. Os

    socilogos, escolhendo entre estrutura ou agncia, deram respostas diferentes para as principais questes da

    sociologia. Para alguns, a estrutura social exterior ao indivduo e preexistente a ele, assumindo uma posio

    coletivista. De forma diferente, os que assumiram a posio individualista afirmam que os padres sociais so

    fruto de uma negociao constante entre indivduos nas suas interaes individuais. Afastando-se destes pares de

    oposio, a partir dos anos 1960, muitos socilogos tentaram articular a abordagem macro, situando suas

    pesquisas dentro de processos histricos amplos, e a micro, enfatizando tambm a importncia das relaes

    individuais e do cotidiano dos indivduos.

  • 35

    A anlise das redes sociais permite investigar os padres de engajamento nos

    movimentos sociais e as conexes e conflitos com outros indivduos e/ou organizaes fora

    dos limites do movimento social estudado, contribuindo para o entendimento das complexas

    transformaes dos repertrios de ao coletiva e das percepes no interior de tal

    movimento. Alguns pesquisadores definem redes sociais como configuraes especficas que

    compartilham normas, valores e percepes de mundo. Neste sentido, esta noo utilizada

    para apreender o quadro de percepes dos indivduos e, assim, compreender os fatores que

    motivaram indivduos a aderir a uma causa social, uma vez que quanto mais prximo

    socialmente um indivduo for de um movimento social, maiores as chances de identificao

    com tal movimento. Porm, as chances de participar efetivamente de uma organizao

    aumentam entre indivduos que possuem laos informais com militantes j envolvidos em

    organizaes de movimentos sociais. entre o sentimento de solidariedade e a oportunidade

    de participar de uma organizao que se d, portanto, a passagem ao engajamento, nesta

    abordagem. As redes sociais ainda so apontadas como importante fator para se entender o

    desenrolar deste engajamento (DIANI, 2003b; PASSY e GIUGNI, 2001a). A intensificao

    ou as formas parciais de participao ocorrem em funo dos laos estabelecidos antes e

    durante seu engajamento (FILLIEULE, 2001).

    O uso das redes sociais nas cincias sociais mltiplo. No entanto, as diversas funes

    deste conceito no devem ser pensadas separadamente, pois refletir sobre as dinmicas dos

    movimentos sociais envolve um esforo de pensar sobre as relaes entre organizaes que se

    reconhecem como parte de um mesmo movimento, as relaes dos seus militantes e a relao

    com organizaes externas, alm dos mltiplos pertencimentos dos militantes que podem

    resultar em mudanas de estratgias de ao ao longo do tempo, como demonstram, por

    exemplo, os trabalhos de Mische (1997) e de Moreno e Almeida (2009).

    A partir do dilogo com algumas vertentes consideradas clssicas da sociologia dos

    movimentos sociais, Mario Diani desenvolveu uma definio dos movimentos sociais e uma

    metodologia a partir da anlise das redes sociais. Diani (2003b e 2010) prope uma

    perspectiva que d conta da estrutura de relaes do movimento social analisado. Isso envolve

    refletir sobre a identidade coletiva do grupo, quem so os militantes que constituem este

    grupo, seus opositores, as organizaes e definir suas fronteiras; ou seja, devemos identificar

    as redes informais que constituem o movimento, em vez de focar em uma nica organizao e

    suas atividades. Por outro lado, ele evidencia as relaes informais entre militantes e/ou

    organizaes com os atores polticos ou organizaes que esto fora dos limites do

    movimento estudado. Com isso, o autor chama ateno para as transformaes do movimento

  • 36

    sociais em interao com o ambiente que o circunda. O autor tambm faz uma crtica

    abordagem organizacional que negligencia a posio das organizaes em um contexto

    sociopoltico. Neste sentido, sua abordagem se afasta da TMR, a qual enfatiza os processos

    organizacionais. Segundo o autor,

    [...] Eu defino movimentos sociais como redes de interaes informais, entre

    uma pluralidade de indivduos, grupos ou associaes, engajados em conflito

    poltico ou cultural a partir de uma identidade coletiva compartilhada [...]

    Nos aproximamos do processo de movimento social quando h o

    entrelaamento de redes informais, identidade coletiva e conflito [...].

    (DIANI, 2003b, p. 301, grifos nossos, traduo nossa).

    Na sua definio, as redes informais tm papel de destaque, pois os laos informais

    que ligam os participantes estabelecem uma identidade coletiva compartilhada, possibilitando

    o reconhecimento mtuo de quem faz parte do grupo e, por outro lado, quem so os

    movimentos sociais, partidos polticos e lideranas simpatizantes da causa e seus opositores.

    Priorizar as redes informais em vez dos processos organizacionais permite apreender os laos

    de solidariedade entre os diversos participantes, identificar a participao individual, alm de

    identificar as relaes fora dos limites do movimento social analisado.

    Para Mario Diani, a identidade coletiva, utilizada no sentido de aproximar os

    participantes em torno de uma causa comum e diferenciar o ns dos outros e estabelecer

    compromisso que vo alm de eventos especficos, deve ser apreendida no trabalho de campo.

    Longe de considerar os movimentos sociais a partir de identidades coesas e homogneas, o

    autor considera que mesmo havendo diversos conflitos entre participantes e organizaes, um

    movimento social caracterizado pelo sentimento de solidariedade dos participantes, apesar

    de pertencerem a diferentes organizaes. O processo de movimento social , neste sentido, o

    desenvolvimento de solidariedade e de reconhecimento mtuo dos seus participantes,

    independentemente de suas posies em organizaes especficas. Uma forma de iden