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60 MARCOS A. DA SILVA ,I , fruição por profes?ores e alunos, faz-se igualmente ne- cessário refletir sotlre itens daquela história que, tradicio- nalmente, é ensinada nas escolas como dimensões de patrimônio. A discussão de fazeres humanos não significa descar- tar os tópicos habitualmente ensinados como história. Ela é contraponto a muitas das abordagens desses tópicos e desempenha tal papel na medida em que também se tem acesso aos termos em que foram construídos seus elen- cos temáticos e interpretativos. Atuar como crítica desses elencos não se confunde com ignorá-Ios nem os reprodu- zir de forma ampliada e intocada, como se apenas a mas- sificação dos saberes existentes fosse suficiente para que eles atendessem a necessidades de mais pessoas. Essa massificação só pode interessar quando articula- da à garantia do direito à autonomia do pensamento, su- perando submissões a autoridades e ao coletivo, como discutido por Theodor Adorno no ensaio "Educação após Auschwitz" . Assim, elencos temáticos e interpretativos já presen- tes no ensino de história (períodos, personagens etc.) também merecem ser incorporados às modalidades de patrimônio histórico, que, como quaisquer outras, reque- rem abordagens a partir de problemáticas de conheci- mento para não se transformarem em (ou continuarem a ser) informações isoladas e desvinculadas da invenção cotidianado mundopelos sereshumanos. . Memória ou experiências de saberes "Por que negar a evidente necessidade da memória?" (AIain Resnais, Hiroshima meu amor) " "A memória é u.m~ forma de prot~sto. Se você não lembra de algo importante está au- tomaticamente aceitando, quem sabe, uma atrocidade." (EIi Wiesel, "Entrevista" ,lstoÉ, nO 1206, lU 1.1992) ( I , , '1 ," I' "Minha memória, senhor, é como despe- jadouro de lixos." (Jorge Luis Borges, "Funes, o memorioso") No romance 1984, de George Orwell, concluído em 1948, o personagem central, Winston Smith, trabalha num Ministério da Verdade (MINIVER), que trata de no- tícias, diversões, instrução e belas-artes. A ocupação de Smith nesse emprego é reescrever textos de acordo com as relações de poder vigentes a cada momento, eliminando tudo aquilo que apresente al- guma discordância ou incoerência quanto à imagem ofi- cial desejada de personagens, países e quaisquer outros temas. l .

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fruição por profes?ores e alunos, faz-se igualmente ne-cessário refletir sotlre itens daquela história que, tradicio-nalmente, é ensinada nas escolas como dimensões depatrimônio.

A discussão de fazeres humanos não significa descar-tar os tópicos habitualmente ensinados como história. Elaé contraponto a muitas das abordagens desses tópicos edesempenha tal papel na medida em que também se temacesso aos termos em que foram construídos seus elen-cos temáticos e interpretativos. Atuar como crítica desseselencos não se confunde com ignorá-Ios nem os reprodu-zir de forma ampliada e intocada, como se apenas a mas-sificação dos saberes existentes fosse suficiente para queeles atendessem a necessidades de mais pessoas.

Essa massificação só pode interessar quando articula-da à garantia do direito à autonomia do pensamento, su-perando submissões a autoridades e ao coletivo, comodiscutido por Theodor Adorno no ensaio "Educação apósAuschwitz" .

Assim, elencos temáticos e interpretativos já presen-tes no ensino de história (períodos, personagens etc.)também merecem ser incorporados às modalidades depatrimônio histórico, que, como quaisquer outras, reque-rem abordagens a partir de problemáticas de conheci-mento para não se transformarem em (ou continuarem aser) informações isoladas e desvinculadas da invençãocotidianado mundopelossereshumanos. .

Memória ou experiênciasde saberes

"Por que negar a evidente necessidade damemória?"

(AIain Resnais, Hiroshima meu amor)

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"A memória é u.m~ forma de prot~sto. Sevocê não lembra de algo importante está au-tomaticamente aceitando, quem sabe, umaatrocidade."

(EIi Wiesel, "Entrevista" ,lstoÉ, nO 1206, lU 1.1992)

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"Minha memória, senhor, é como despe-

jadouro de lixos."

(Jorge Luis Borges, "Funes, o memorioso")

No romance 1984, de George Orwell, concluído em1948, o personagem central, Winston Smith, trabalhanum Ministério da Verdade (MINIVER), que trata de no-tícias, diversões, instrução e belas-artes.

A ocupação de Smith nesse emprego é reescrevertextos de acordo com as relações de poder vigentes acada momento, eliminando tudo aquilo que apresente al-guma discordância ou incoerência quanto à imagem ofi-cial desejada de personagens, países e quaisquer outrostemas. l

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o impedimento de tal sociedade_enfr~l1Jarcgntradi..ções presenTe~l11ãmemÓrladõ trajeto por ela percorrid<i>evidencia conflitos e tensões-sobre os quais o govern9age repressivamente, visando a seu silencíamento e deI-sal?ari'(.ao,-rstotamoém signifiCãa necessidade de cons~

troir permanentemente outras memórias, que assegurema preponderância de um poder onipresente, centralizadoe sem alternativas.

É uma situação coerente com o tratamento dispensa-do, naquele mundo, às identidades das pessoas, subme---.,.--tida§ a significados indiscutíveis, como expresso na"novilíngua" dos lemas partfdários ali vigentes: "Guerraé paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força".

Orwell foi um socialista inglês, combatente nas Briga-das Internacionais da Revolução Espanhola. Esse seu li-vro tomou como importante referencial a experiência dostalinismo, incluindo o culto à personalidade do gover-

nante tos mecanismos totalitáriosque prÇ>curavamanular )as diferenças sdb o signo da administração de tudo._.- " ...,.

Nessas amargas alusões à revolução perdida, o aniqui-lamento de uma memória minimamente autônoma e suasubstituição pela contrafação que interessasse ao GrandeIrmão - o govemante que tinha voz e efígie reproduzidasem todos os lugares - eram vieses básicos para o poder to-tal declarar, à sua maneira, um fim da história muitas déca-das antes de esse assunto fortalecer-se tanto com a dilui-ção do bloco soviético (fins dos anos 80).

\ Orwell atribuiu à memória, portanto, amplo espaçona ~finição de identidades coletivas, intensamente rela-

~iol)adoà dominação, donde sua importância pol~ico/Adestruição de certas memórias e a construção de outrasatesta que há diferenças em ~euseio, remissíveis aos di-v~r_s_osgrueos humario~, com seus projetos, fantasias e

Po.~gtÜlig.ade§..Memória e mentira foram aproximadaspela ótica da dominação, através de um Ministério dito"da Verdade", indicando a capacidade impositiva daque-la forma de poder.

Nada espontâneo nem inercial

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A crescente atenção que historiadores, antropólogos,filósofos e outros especialistáS têm dedicado à memóriarêssãltã.a importância desse tema para a compreensão deidentidades sociais e relações de poder.

Se essa relevância é mais palpável no que se refereaos poderes visíveis, instituídos, como no Estado total deOrwell, ela também se revela estratégica para grupos eagentes sociais aparentemente destituídos de sua força eque, através de memórias próprias, revelam instrumentosde seu poder, evidenciando a existência de várias memó-rias, como foi salientado por Ulpiano T. B. de Menesesno artigo "A história, cativa da memória?".

A esse respeito, Benjamin, no texto "Sobre o conceitdde história", argumentou que os grupos dominantes, en-quanto vencedores das lutas sociais em diferentes mo-mentos, agregam aos seus troféus de guerra um monopó- ,lio da memória como continuidade, metamorfoseada eIT\~vontade geral - da nação ou do povo,'por exemplo. É po~esse motivo que a memória dominante pontua uma crono-\

logia (seqüência temporal) e uma periodização (recortesf

naquela seqüência) com aspecto lógico e objetivo, toman1do seus beneficiários senhores, também, do tempo social.Tal processo nada tem de automático ou conspirató-

rio. Sua elaboração requer articulações políticas em tomode um projeto de sociedade expressas publicamente atra-

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I vésde diferentessuportes,em múltiploslugares.Isso sig-Inifica que modaÚdades de memória social se expressam,a partir de personagens, acontecimentos, monumentos'

lobjetos, narrativas, iconografia e tantas outras formas.

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las surgem quer no calor da hora de acontecimentoS

jquer em sua preservaçãOâe 'identidade, configurando socialmente fatos que, com freqüência, historiadores/professores/alunosreiteram. -

Um exemplo clássico, no Brasil, dessa construção defato-memória é comentado por Adalberto Marson, no en-saio "Reflexões sobre o procedimento histórico", incluí-do na coletânea Repensando a história: a abolição da es-cravidão, aos 13 de maio de 1888. Marson discute como,naquela data mesmo, definiu-se uma dimensão grandiosada Abolição através de diferentes manifestações - bata-lhas de flores, bailes públicos, noticiário na imprensa etc.Tal elaboração do tema estabeleceu um fato muito preci-so: a escravidão acabou.

Aquele autor comenta outras vozes (José Lins doRego, no romance Menino de engenho, e órgãos da im-prensa operária brasileira; pode-se acrescentar-Ihes ma-rinheiros na Revolta da Chibata, de 1910, e denúnciassobre o mundo rural brasileiro mais recente) que apon-taram a continuidade de faces de experiência escravaapós aquela data, sem conseguirem, todavia, consolidarsua memória, funcionando apenas como versões alter-nativas, em contraponto àquela outra.

O que se observa nesse comentário não é a pretensãode' substituir um fato-memória ("Abolição") por outro("continuidade de dimensões escravistas") e, sim, o pro-cesso de elaboração social do fato-memória, que se firmaa partir de múltiplos investimentos simbólicos associadosà situação dominante das relações sociais neles envolvi-

das, capazes de submeter outras formas de explicar omundo aos seus termos.

Nesse sentido, a meffiQriatriunfao.te ~ignififa ofere-cer interpreta oe.§.de experiência~ elaboradas quando daec osao do fato - certa modalidade de histórliimediafa

-, apresentada para contemporâneos e pósteros como pu-ros fatos. Os historiadores/professores/alunos que preten-dem separar interpretações de fatos não se dão conta deque sempre trabalham com interpretações;~não há fatosoriginários;.;interpretar aqueles que são assim supostos éfazer interpretação de interpretações; pensar que nada seinterpreta quando se pretende recuperar puros fatos é re-por sua interpretação "inaugural", que lhe garantiu a so-brevivência como memória.

A existência de vozes alternativas à da memória insti-tuída articula-se com dimensões de lUtassociais\la cons-

-trução de identidades e nas relações de poder, demons-trando que tal processo de consolidação não fica isoladoem certas camadas da sociedade, embora atenda a inte-resses prioritários de algumas delas, precisando conven-cer diferentes grupos sobre sua adequação.

Um exemplo dessa construção e de seu desdobra-mento em persuasão é oferecido pela experiência de"fim da ditadura" e "redemocratização" no Brasil dosanos 80: houve movimentos contra a ditadura, desde osanos 70, que tematizaram múltiplos direitos (de trabalha-dores, mulheres, indígenas, negros, homossexuais, sem-terra etc.) como dimensões básicas da democracia a ela-borar; a partir da "Campanha pelas Diretas", taldiscussão foi canalizada quase exclusivamente para ouniverso da política institucional, com os detentores <kdiferentes mandatos (governadores, deputados. Sl'llIIdores) à frente; a saída encontrada para aqudt\ "1111,1,.1"

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eleição indireta ,deTancredo Neves, união entre peeme-debistas e dissidências pedessistas ("Aliança Democráti-ca") - complementou o descarte daquelas tematizaçõesanteriores, configurando uma "Nova República" comoesquecimento de lutas ou, no máximo, redução das últi-mas a itens retórico-burocráticos.

Ainda no campo do último exemplo, é convenienteregistrar que figuras co-responsáveis pela ditadura (Del-fim Netlo, Paulo Maluf, José Sarney e outros) beneficia-ram-se daquela con.struçãode memória através de rápidae singular reinserção na "nova" cena política, quer comopretensos experts em certos quesitos (economia, legisla-ção), quer na condição de fictícios "experientes e compe-tentes administradores", sendo mesmo eleitos e aclama-dos no contexto supostamente pós-ditatoriaL Isso foiexplorado pelo desenhista Laerte nos quadrinhos "Aqueda dos países do Leste": Maluf, Amin, Marchezan,Magalhães e ,Delfim Netto aparecem carregados emtriunfo no penultimo quadro daquela narrativa.

Esse exemplo de memória sobre a mais recente dita-dura brasileira explícita evidencia ser necessário, para osdominântes, convencer outros grupos sociais sobre alogicidade das relações de poder vigentes, forma de ga-rantir a sobrevivência da própria dominação.

/ . Tal memória se beneficia da definição de personagens'/ e lugares, reforçando-se através de comemorações e

rememorações, sob a forma de diferentes rituais, dos es-petáculos cívicos (paradas, solenidades) ao cotidiano me-nos perceptível- nomes de ruas e outros logradouros pú- .blicos, personagens em cédulas ou selos etc. Ela Sêmescla com diferentes níveis de conhecimento históricoatravés das associações que ensino e projetos de financia-mento para pesquisas fazem entre datas, personagens e te-

mas: tanto os livros didáticos básicos mais banais comosofisticados núcleos acadêmicos brasileiros de pesquisadedicaram-se, no final dos anos 80 e começo dos anos 90,a IT!odalidadesde comemoração sobreAbolição, Repúbli~ca e Descobrimento da América, entre outros eventos. -

{ A memória dOl!lipante,p~~~firmar, precisa sufo-car ou submeter memórias autônomas, provando que suaexiStenCiase dá n~m'espãÇo-cfêlutas,confi~r~!!do pode-res menos visíveis e muito eficazes na construção deidentidades sociaiS':" --, Tal espaço de Íutas demonstra a existência de outraspotencialidades no social, pouco palpáveis mas muitosignificativas para se entenderem tensões e alternativas,evidenciando que os grupos dominados, de forma even-tualmente descontínua mas também intensa, preservampoderes. Nesses termos, ele esboça uma situação de di-reito a memórias para todos, que se articula politicamentecom os debates sobre fortalecimento de cidadania e evi-

denciaque o respeitoa diferentesmortos- e suasmemó-rias - resulta em respeito aos vivos.

Em 1992, na cidade de São Paulo, houve iniciativasvisando a recuperação documentada de restos mortais dedesaparecidos políticos assassinados na ditadura brasilei-rade 1964-1984.

Aparentemente, tal esforço poderia remeter apenas aum puro passado (tais fatos ocorreram naquele terrívelperíodo - e só) se ele não convivessecom gravesconti-nuidades da experiência ditatorial - governo Collor, mi-séria em nome de modernidade, nova respeitabilidadepública adquirida por diferentes figuras de peso daqueleregime, irresponsabilidadesocial do governo FHC - efomento de práticas neofascistas, como agressões a nor-destinos, negros, judeus, presos e menores.

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A recuperação daqueles restos mortais assumiu, en-! tão, o papel de sàlientara importânciade não esquecer

jexperiências, lutando contra a impunidade de criminososatravés do impedimento de novos crimes similares àque-

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lesoAo mesmo tempo, ela não pretendeu condenar gene-ricamente os militares (inclusive porque houve responsa-

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bilidades civis nos referidos crimes, bastando lembrarinfluentes personalidades da ditadura que, no máximo,

I prestaram serviço militar obrigatório) e, sim, práticas es-pecíficas de determinados militares, numa historicidadeprecisa.

Do ponto de vista das vítimas daquelas violências ede seus parentes e amigos, tal recuperação também signi-ficou a reconquista de identidades emocionais, pessoais ecoletivas, como se verificava nas audiências públicas quemarcaram as referidas iniciativas. A dor das pessoas liga-das aos mortos identificados mesclava-se à sua capacida-de de comprovar responsabilidades, entender trajetos dasociedade onde'aquilo foi possível e interferir nos novospercursos dessa mesma sociedade.

Pensar em memórias próprias aos grupos dominadosnão se restringe, certamente, a situações dessa natureza.Suas manifestações em movimentos sociais - contra ca-restia, por creches, moradia e saúde, dentre outros - enum cotidiano de tradições (regionais, étnicas, familiaresetc.) ampliam o campo de discussão sobre memória, evi-denciando ângulos desta como um fazer múltiplo.

A memória é marcada, portanto, por dimensões deinvenção, seleção e combinação temáticas no social, quese diferenciam do passivo acúmulo, deixando patentescaracteres de disputa em sua definição. O estabelecimen-to de sua face dominante nos quadros de determinadahistoricidade, embora associado à referida vontade de

monopólio, enfrenta tensões e lutas que resultam tantoem sua produção permanente como na elaboração de al-ternativas aos seus termos.

Mais que matéria-prima

A atenção dada por historiadores a essa questão en-globa, freqüentemente, certa ênfase nas diferenças entrememória e história.

Pierre Nora, por exemplo, realçou o caráter etnográfi-co e totalizante da memória, contrapondo-o à perspectivasubjetiva, via historiador, e particularizante da história.

José Honório Rodrigues, menos sutilmente, atribuiuà memória os papéis de lembrar e comemorar, cabendo àhistória as dimensões de análise e crítica, puro conheci-mento diferenciado de funções ideológicas.

Insistir sobre a distinção (ou, mesmo, oposição) en-tre memória e história prejudica significativa potencia-lidade nesse debate: a dimensão de produção, tão paten-te na constituição da memória, que pode contribuir paraa reflexão sobre relações entre o conhecimento históricoe tal viés.

No caso da memória, sua face de elaboração signifi-ca, também, uma exposição de virtualidades em disputa,que constituem ou silenciam determinados temas com osquais o conhecimento histórico se relaciona muito inti-mamente.

É nessa interpretação de interpretações realizada pelahistória, como foi anteriormente definido, que se tornamais empobrecedor reduzir seus referentes à condição dematéria-prima ou se limitar à situação de repetir 111"1111)rias "inauguradas" por diferentes "pais fllfdadorc..." dI'<i

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tradições dominartes - 1822, 1888, 1889, 1922, 1930,1937, 1946, 1964 ou 1985, para evocar alguns dos mar-cos mais usuais da memória política brasileira.

Ao mesmo tempo, é necessário levar em conta que ahistória, como saber, não lida apenas com as memóriasdos outros. Nesse sentido, são muito pertinentes as obser-vações de Nora sobre as relações que o campo de conhe-cimento histórico erudito estabelece com sua própria tra-dição, configurando uma espécie de memória interna,marcada pela pretensão à continuidade e crescente com-pletude de sua produção, que, às vezes, é designadacomo "saber acumulado".

Daí, ser muito difícil negar que o trabalho erudito dohistoriador, relacionando-se com outras memórias, parti-cipe também do processo permanente de produzi-Ias, di-retamente (instituições cultas, como academias, socieda-des científicas e museus, revistas especializadas etc.) ounão (ensino básico, publicações de divulgação, progra-mas de rádio e télevisão e instâncias similares).

Refletir sobre articulações entre memória e histórianão significa reduzir os dois termos à c~ndição de sinôni-mos. Salienta, todavia, a dependência recíproca de ambase sua densidade como prática social. Ao contrário daoposição feita por Nora entre memória (espaço do vividoe do absoluto) e história (lugar do reconstruído e do rela-tivo), é possível enfatizar no reconstruído e relativo al-guns horizontes do vivido e certa pretensão do absoluto,que passam pelas regras eruditas do fazer, com os meca-nismos de legitimação institucional - diplomas, títulos,publicações, prêmios -, e tendem a apagar o lugar socialda produção, que autores como Jean Chesneaux e Michelde Certeau, em diferentes perspectivas, tanto salientaram.O universo do vivido e do absoluto, por sua vez, também

obedece a dimensões de estruturação e transformaçãoque diminuem aquele confronto tão nítido entre espaçodo etnográfico e campo do reconstruído, como se obser-va em Lévi-Strauss. O próprio mito da objetividade, ali-mentado por parcelas do conhecimento histórico erudito,reforça a memória interna desse campo de saber.

Discutir memória possibilita para os historiadores,portanto, refletir permanentemente sobre a historicidadede sua própria produção, criticando o chão seguro e en-ganoso de teorias que têm pretensões de operar como ga-rantia de objetividade, quer como primeiro princípio (ouseja, corpo de conceitos de que se parte e ao qual se sub-mete uma suposta matéria-prima do saber), quer comofim último - vale dizer, corpo de conceitos que se atingeno final das operações de conhecimento, resultante de re-flexões a que se aplicou aquele mesmo referencial em es-tado bruto.

Essa crítica aberta pelo diálogo entre história e me-mória não significa perda de qualquer teoria. Ela eviden-cia a insuficiênciado teóricocomogarantiapreliminar-isto é, anterior à reflexão sobre experiências específicas -do pensamento, questão discutida por Edward Thomp-son no livro A miséria da teoria. Resulta dessa críticauma concepção de conhecimento histórico que não secontenta com hierarquizar teoria e documentos, saberacumulado e possibilidades de pesquisa/ensino/aprendi-zagem, interpretações e experiências.

A teoria como primeiro princípio ou fim último, aliás,pode ser encarada como pretensão à memória única docampo de saber, que quer submeter todo pensamento aoviés da inevitabilidade ou do puro objeto.

Além de possibilitar uma relação com difel'l'IIIl', "Iportes das experiências sociais que não os J'l'lhII a ('1111111

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ção de matérias-primas, uma vez que os encara no pro-cesso de definiçlões de identidades e produções de me-mórias, aquela articulação contribui para o debate sobre aprópria noção de fonte histórica de forma ilimitada: aopensar na constituição de lugares, símbolos e formas dememória, o historiador/professor/aluno abandonará o ilu-sório conforto da documentação escrita, muito mais res-trita ao universo social dominante, e enfrentará uma infi-nidade de caminhos percorridos pelo social, dando contada culturamaterial(universode artefatos- objetosutili-tários, instrumentos de trabalho, acessórios de rituais,elementos decorativos etc. -, incluindo o ambiente e ocorpo) e do conjunto de práticas englobadas pela rubrica"cotidiano" - atividades corriqueiras, repetitivas e previ-síveis, que também abrigam sentimentos como esperan-ças, receios, ódios e conformismo.

Endossando a abertura documental que o apelo àcultura material representa, é necessário ir além dessepróprio conceito para se pensar na materialidade de todacultura (textos, crenças, sentimentos, projetos), articu-lando-a cQm as práticas sociais que a tornam mais per-ceptível- rituais,aprendizageme difusões,por exemploINesse sentido, o próprio conhecimento histórico, emseus vários espaços de ensino/pesquisa, também seconstitui em dimensão de cultura material.

Evidentemente, a memória ainda abrange múltiplaspráticas voltadas para a preservação de parâmetros so-ciais dominantes, o que deixa patente sua organizaçãocomo contraponto a diferentes projetos e potencialidadesna vida social. Nesse sentido, a referência feita a marcosinstauradores da memória política dominante no Brasil(Independência, Abolição, República, Tenentes/PCB/Modernismo, Revolução de 1930, Estado Novo, Rede-

mocratização, 1964, Nova República) exemplifica a for-ça de produção de hegemonia política daqueles parâme-tros, reforçados por boa parte da produção erudita de co-nhecimento histórico.

Eles não abrigam, todavia, outras inúmeras tentativase experiências de diferentes grupos humanos ao longo desua vigência como memória e história. Pensar numa his-tória que não se reduza a redizer tais marcos passa pelaadmissão de memórias organizadas a partir de outros cri-térios e referenciais e, também, pelas atividades da pes-quisa histórica visando entrar em contato com elas.

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#,'o oral e o audiovisual

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Embora a memória se manifeste através de diferentes

suportes e seja discutida por historiadores brasileiros,desde os anos 70, com base em documentação escrita -caso do artigo "A revolução do vencedor", de Carlos A.Vesentini e Edgar De Decca -, o apelo aos registros orais(audiocassete) e audiovisuais (videocassete) tem marca-do mais recentemente significativa parcela da discussãohistoriográfica entre nós sobre a questão.

Muitos profissionais da área utilizam gravador ecâmera como recursos para coletar narrativas de agentessociais sobre suas experiências em diferentes universos -movimentos sociais, bairro e localidade, práticas profis-sionais, trajetórias de migração etc.Apublicação de textospor autores brasileiros, em variadas perspectivas, comoHistória oral- a experiência do CPDOC, de Verena Al-berti, "Documentos orais e visuais: organização e usos co-letivos", de Yara Aun Khoury, e 'canto de morte ka;o-

wá, de José Carlos Sebe Bom Meihy, além da radução de'f

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"História local e h.stória oral", de Raphael Samuel (incluí-do no n9 19 da Revista brasileira de história), A voz dopassado, de Paul Thompson, e a síntese "A história oral",de Gwin Prins, dentre outros materiais, contribui para aexpansão e o aprofundamento daquele interesse pelo re-gistro de narrativas,já assumido pelo ensino básico.

Trata-se de caminho frutífero tanto ao garantir a ex-pressão de vozes de agentes sociais menos presentesnoutros documentos (textos, acervos de museus, patri-mônio edificado etc.) quanto ao evidenciar uma presen-ça direta do pesquisador no ato de produzir a narrativa,com suas perguntas e intervenções participando da falaregistrada.

É claro que o trabalho com o oral e o audiovisual nãose restringe ao ato de gravar. Os autores indicados, entreoutros, assumem cuidados que cercam tanto aquele mo-mento como etapas seguintes de transcrição e textua-lização das narrativas, preservação dos materiais, devolu-ção aos narradores e divulgação para outros públicos.

As iniciativas nesse campo já assumidas pelo ensinode 1Q e 29 graus podem ser exemplificadas pelos esforçosdesenvoividos na Secretaria Municipal de Educação deSão Pauto entre 1989 e 1992, quando se realizaram, emparcela da rede escolar, trabalhos de reflexão sobre temasgeradores a partir dos quais elaboram-se projetos temá-ticos para as várias disciplinas de cada unidade escolar.

Isto significou discutir memórias da própria escola edo bairro onde se localiza, incluindo os trajetos de vidade seus moradores, coletados em entrevistas feitas porprofessores e alunos.

A equipe de história (professores da rede e assessoresde universidades) propôs que esses materiais fossem pre-servados e tomados acessíveis a outras escolas e demais

interessados através da criação de um banco de dadosinformatizado, com terminais nas diferentes unidades da-quela rede de ensino e também permitindo consultas acatálogos e outros referenciais de bibliotecas e demaisentidades de pesquisa. Tal proposta não foi implantada,mas se mantém como indicação para a integração daque-les recursos de trabalho no ensino básico de diferentesdisciplinas.

Certamente, o apelo ao oral e audiovisual deve serconduzido com o rigor e o cuidado que todo estudo his-tórico requer, buscando, inclusive, a precisão máxima aoorganizar informações. Articular as narrativas coletadascom outros materiais disponíveis sobre as experiênciasque abordam não corresponde a "corrigir" o que umnarrador falou sobre suas experiências nem a transformarseu pensamento em mera fonte "complementar". Esteprocedimento visa compreender aquelas falas no contex-to de sua produção social, que não se reduz à narraçãoisolada.

A procura de precisão e organização, por sua vez,não se confunde com o culto à quantificação e à estatísti-ca como "fins" ou "revelações do real": ela contribuipara avaliar especificidades e originalidades de temas eopiniões identificados, sua configuração coletiva e nuan-ces particulares que recebe na prática social.

Importa, também, evitar a produção de um mito tec-nicista sobre esses recursos como os únicos dignos deconfiança e atenção. Garantindo o apoio aos mesmos,não é possível negligenciar o apelo à bibliografia e outrasfontes disponíveis sobre as experiências sociais aborda-das nas narrações que se registram, em áudio ou video-cassete, sob pena de perder o processo social que possi-bilitou as próprias narrativas.

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A produção conjunta das narrações por pesquisado-res e diferentes indivíduos ou grupos que eles contatamcontribui para se entender o trabalho da memória comoimportante referencial da reflexão histórica, num proces-so de esclarecimento recíproco que não se beneficiarápelo reforço a novas hierarquias e preconceitos entre aspartes nele envolvidas.

Identidades simultâneas

Se a memória desempenha importantes papéis na de-finição de identidades sociais, é preciso ainda pensar so-bre diferentes faces das últimas.

Muitos movimentos ou grupos sociais organizadostêm feito essa articulação visando aos seus projetos espe-cíficos. É o caso de feministas e negros, que contribuí-ram significativamente para a transformação do conheci-mento histórico sobre seus respectivos grupos e muitosoutros aspectos das experiências sociais, além de múlti-plos outros exemplos de etnias, minorias, profissionais edemais coletividades.

A riqueza dessas experiências convida os interessa-dos pelo prazer da história a pensar sobre possibilidadesde ampliar aquelas transformações. Se os debates de con-tracultura e outros movimentos de massa dos anos 60 e70 do século XX tanto significaram para a reconsi-deração de historicidades à luz de trajetos e projetos es-pecíficos, que se expressaram como orgulhos negro, fe-minino e gay, entre outros, cabe pensar sobre o caráterinfinito dessas identidades insatisfeitas com a históriacomumente trabalhada mesmo por eruditos especialistase a simultaneidade de identidades que marca as ex-periências históricas.

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Com efeito, ninguém é somente negro ou mulher ounortista ou liberal ou gay ou católico, digamos. Seres hu-manos abrigam essas e inúmeras outras identidades emsuas existências, que, além disso, sofrem transformaçõesatravés de suas trajetórias.

Ligar memória a identidades, portanto, engloba tam-bém dar conta dessa multiplicidade, que quase nunca éharmônica, antes expõe tensões e disputas, as quais nemprecisam se dar entre seres diferentes, porque uma mes-ma pessoa as suporta. Tal multiplicidade desfaz par-cialmente as vontades totalitárias, que Orwell tão bemapresentou, impedindo que a memória seja reduzida àunidimensionalidade de um poder com lugar fixo.

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76 MARCOS A. DA SILVA

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A produção conjunta das narrações por pesquisado-res e diferentes indivíduos ou grupos que eles contatamcontribui para se entender o trabalho da memória comoimportante referencial da reflexão histórica, num proces-so de esclarecimento recíproco que não se beneficiarápelo reforço a novas hierarquias e preconceitos entre aspartes nele envolvidas.

Identidades simultâneas

Se a memória desempenha importantes papéis na de-finição de identidades sociais, é preciso ainda pensar so-bre diferentes faces das últimas.

Muitos movimentos ou grupos sociais organizadostêm feito essa articulação visando aos seus projetos espe-cíficos. É o caso de feministas e negros, que contribuí-ram significativamente para a transformação do conheci-mento histórico sobre seus respectivos grupos e muitosoutros aspectos das experiências sociais, além de múlti-plos outros exemplos de etnias, minorias, profissionais edemais coletividades.

A riqueza dessas experiências convida os interessa-dos pelo prazer da história a pensar sobre possibilidadesde ampliar aquelas transformações. Se os debates de con-tracultura e outros movimentos de massa dos anos 60 e70 do século XX tanto significaram para a reconsi-deração de historicidades à luz de trajetos e projetos es-pecíficos, que se expressaram como orgulhos negro, fe-minino e gay, entre outros, cabe pensar sobre o caráterinfinito dessas identidades insatisfeitas com a históriacomumente trabalhada mesmo por eruditos especialistase a simultaneidade de identidades que marca as ex-periências históricas.

MEMÓRIA ou EXPERIÊNCIAS DE SABERES 77

Com efeito, ninguém é somente negro ou mulher ounortista ou liberal ou gay ou católico, digamos. Seres hu-manos abrigam essas e inúmeras outras identidades emsuas existências, que, além disso, sofrem transformaçõesatravés de suas trajetórias.

Ligar memória a identidades, portanto, engloba tam-bém dar conta dessa multiplicidade, que quase nunca éharmônica, antes expõe tensões e disputas, as quais nemprecisam se dar entre seres diferentes, porque uma mes-ma pessoa as suporta. Tal multiplicidade desfaz par-cialmente as vontades totalitárias, que Orwel1 tão bemapresentou, impedindo que a memória seja reduzida àunidimensionalidade de um poder com lugar fixo.