Manoel de Barros - A Terceira Infância

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  • 5/15/2018 Manoel de Barros - A Terceira Inf ncia

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    MEMORIASINVENTADASA Terceira lniiincie

    Manoel de BarrosIluminuras de Martha Barros

    ~ Planeta

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    1. Fontes

    TrAsp r onag ns me ajudaram a compor tasmernorias. Quero dar ciencia delas. Uma, a crianca:dois, 0 passarinhos; tres os andarilhos. Acrianca m deu a sem nt da palavra. Os pas arinhosme deram desprendim nto das coisas da terra. E osandarilho , a preciencia da natur za de 0 u .Quer falar primeiro dos andarilhos, do uso emprimeiro lugar que eles faziam da ignorancia.Sempre I s sabiam tudo sobre 0 nada. E aindamultiplicavam 0 nada por z ro - 0 que lhes davauma linguagem d chao. Paranunca aber ondch gavam. E para chegar empre de surpresa.Eles nao afundavam estradas, mas invenravarncaminho . Essaa pre-cien ia que mpre vi nosandarilho . Elesme nsinaram a amar a natureza.Bem que eu pude prever qu os qu fogem da natur zaum dia volrarn para ela. Aprendi com os pa sarinhosa l ib rdad . Ele d minam 0mai I v sem pre isarter motor nas c tas. E sao livres parapousar emqualquer tempo nos lfrios ou nas pedras - sem semachucarem. E aprendi com eJesser disponivelpara sonhar. 0 outro parceiro de s mpre foi arianca que me escreve. 0 pa aro, os ndarilhose a rianca em mim, sao meu colaborador de taMemorias inventadas e doadore de suasfontes.

    2. Invencao

    Inventei um menino J vado da breca para m ser.EJetinha um gosro ele ado para chao.o seu olhar vazava uma nobreza de arvore.Tinha d apetite para obed er a arrumacao dascoisas.Passarinhos botavam primavera nas suas palavras.Morava em man ira de pedra na aba de um morro.o amanhecer fazia gloria m seu estar.Trabalhava s m rreguas como pardais bicam atard s.Aprendeu a dialogar com as agua ainda que naosoub sse n m as lerras que uma palavra tem.Contudo que 01 trass ras melhor que mirnlEra beato de sapo .FaJavacoisinhas s raficas para 0 sapos como enamorasse com eJes.De rnanha p gava 0 regador e ia regar os peixes.Achava arruJosantigos nas estradas abandonadas.Havia um dom d tra te atravessado neJe.Mos as botavarn ovo no seu ornamento d trapo.As garcas pen avam que ele fo se arvore e faziamsobr ele suas brancas bostas.Ele nao estavanem al para0 estercos bran os.Porern 0menino levado da breca ao fim me faIouque le nao fora inventado por essecara po raPorque fui eu qu inventei el .

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    3. [ubilacaoTenho gosto de lisonjear aspalavra ao modo que 0Padre Vieira lisonjeava. Seria uma recnica lirerariado Vieira? E visto que a palavras lisonjeadas seenverdeciarn para ele. Eu uso essatecnica. Eulisonjeio aspalavras. E elasate me inventam. E elasse mosrram faceira para mirn. Na faceirice a palavrasme oferecem todos os seus lados. Entao a gent aia vadiar com elas por todos os cantos do idiorna.Ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porquea gente nao queria inforrnar acontecimentos. Nemcontar epis6dio . N m fazer hist6rias. A gente 56gostasse de fazer de conta. De inventar ascoisasque aurnentassern 0 nada. A gente nao gostasse de fazernada que nao fosse de brinquedo. Es a vadiagens pelosrecantos do idiorna seriarn s6 para fazer jubilacaocom aspalavras. Tirar delas algum motive de alegria.Uma alegria de nao inforrnar nada de nada.Seria qualquer coisa como a conversa no chao entredoi pas arinhos a catar perninhas de moscas. Qualquercoisa como jogar amarelinha nas calcadas. Qualquer c isacomo correr em cavalo de pau. Essas coisas. Purajubilacao sem comprornissos. As palavras mai faceirasgostam de inventar travessuras. Uma delas propos quefica semos de horizonte para os passaros. E os passarosvoariam sobre 0 nosso azul. Eu tentei me horizon tara s andorinhas. E a palavras mais faceiras queriarnseenluarar sobre os rios. Se ficassern prareadas sobreos rios falavam que os peixinhos viriam beija-las.A gente brincava no prateado das aguas, A mais purajubilacao!

    4.0Menino que Ganhou urn RioMinha mae me deu um rio.Era dia de meu aniversario e ela nao sabiao que me presentear.Fazia tempo que os rnascares nao passavarnnaquele lugar squecido.Se0 rnascate passassea minha mae ornprariarapaduraOu bolachinhas para me dar.(viascomo nao passara0 mascare, minha mae medeu ur n rio.Era 0 mesrno rio que passava arras d casa.Eu estimei 0 presente mais do que Fosseurnarapadura do rnascate.Meu irrnao ficou magoado porque ele gosravado rio igual aos ourros.A mae prornereu que no aniversario do meuirrnaoEla iria dar uma arvore para ele.Uma que Fossecoberta de passaros.Eu bem ouvi a promessa que a mae fizera aomeu irrnaoE achei legal.Os pas aros ficavam durante 0 dia nas margensdo rneu rioE de n ite eles iriam dormir na arvore domeu irrnao.Meu irmao me provocava assim: a rninha arvoredeu flores lindas em set rnbro,E 0 seu rio nao da flores!Eu respondia que a arvore dele nao davapiraputanga.Era verdade, mas 0 que nos unia dernais erarnos banhos nus no rio entre passaros.Nesse ponto nossa vida era urn afago!

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    5.Corumba Revisitada

    A cidade ainda nao acordou. 0 silencio do lade defora e mais espesso. Dobrados sobre os escurosdormern os girass6is. Eu estou atoando nas ruasrnoda moscas em tino. 0 sol ainda vem escorado porbanda de andorinhas. Procuro urn trilheiro de cabrasque antes me levava a um porto de pescadores.Desco pelo trilheiro. Me escorrego nas pedrasainda orvalhadas. Passapor mim uma brisa com asasde garcas. As garcasesrao a descer para asmargensdo rio. 0 rio estabufando de cheio. Ha bugiosainda nas arvores ribeirinhas. Logo os bugiossubirao para asarvores da cidade. 0 rio esraesticado de ras ate osjoeLhos. Chego no portodos pescadores. Ha canoas ernbicadas e mulheresdestripando peixes. Ao lade os meninos brincarn decanga-pes. Das pedras ainda nao surniram os orvalhos.Batel6es mascateiros balancarn nas aguas do rio.Procuro meus vesrigios nestas areias, Eubem recebia aspetalas do sol em mim. Queria sabero sonho daquelas garcas a margem do rio. Mas naofoi possivel. Agora nao quero saber mais nada, 56quero aperfeicoar 0 que nao sei.

    6. Peraltagem

    o canto distante da sariema encompridava atarde.E porque a tarde ficassemais comprida a gentesurnia dentro dela.E quando 0 grito damae nos alcancava a genteja estavado outro lado do rio.o pai nos charnou pelo berrante.Na volta femes encostando p las paredes da casapeante pe,Com receio de urn arao do pai.Logo a tosse do vo acordou 0 silencio da casa.Mas nao apanhamos nern.E nem levamos carao nem.A mae 56 que falou que eu iria viver Ie 0fazendo 56 essascoisas.o pai cornpletou: ele precisava de ver outrascoisas alern de ncar ouvindo 56 0 canto dospa aros.E a mae dissemais: essemenino vai passara vida enfiando agua no espeto!Foi quase.

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    7. Formacao

    Fomos forrnados no mato - aspalavras e eu. 0 quede terra a palavra se acrescentasse, a gente seacrescenrava de terra. 0 que de agua a gente sen harcasse, a palavra se encharcava de agua.Porque nos iarnos crescendo de em par. Sea genrerecebesse oralidades de pas aros, a palavrasreceberiarn oralidades de passaros, Conforme agenre recebesse forrnaros da natureza, aspalavrasincorporavam as formas da natureza. Em algumaspalavras encontramos subterrancias de caramujose de pedra Logo as palavrasse apropriavam daqueles fosseislinguisricos. Sea brisa da manha despetalasse emnos 0 amanhecer, aspalavras amanheciam. Podiasedizer que a genre estivesse pregado na vidadas palavras ao modo que uma lesma estivessepregada na exisrencia de uma pedra. Foi no quedeu a nossa formacao. Voltamos ao homern das cavernas.Ao canto inaugural. Pegamos nasemente da v z.Embicamos na rnerafora, Agora a gente so sabefazer de enhos verbais com imagens. Tipo assim:I-loje eu vi outra rasenrada sobre uma pedra aojeito que uma garca esrivesse senrada de tardena solidao de ourra pedra. Foi no que deu a nossaformacao. Eu acho bela! Eu a ompanho.

    8. Delirios

    E u estava enconstado namanha como se um passaroa toa estivesse encostado na manha. Me veio umaaparicao: Vi a tarde correndo all'as de umachorro. Eu teria 14 anos. Essaaparicao devetel' vindo de minhas origens. Porque nern melembro de ter visto nenhum cachorro a correr deLimatarde. Mas tomei nota desse delirio. Essesdelirios irracionais da irnaginacao fazem maisbela a nossa linguagem. Tomei nota desse delirioem meu caderno de frase . Aquele tempo euja guardavadelirios. Tive ourra visao naquele mesoMas precisoantes contar ascircunstancias. Eu exercia umpedaco da minha infancia enco tado a parede dacozinha no quintal de casa. La eu brincava decangar sapos. I-lavia rnuitos sapos arras da cozinha.A gente bem seentendia. Eu reparava que ossapostern 0 cour das costas bem parecido com 0 chao.Alern de que eram do chao e encardidos. Umdia eu falei pra mae: Sapo e lim pedac;:ode chaoque pula. A Mae dis e que eu estavameio variado.Que sapo nao e um pedaco de chao. So se Fossenomeu delirio. Isso ate eu sabia, mas me representavaque sapo e urn pedaco de chao que pula. Hoje estoumaiorzinh e penso no Profeta Jeremias. Ele tantolamentava de vel' a sua Siao destruida e arrasadapelo fogo que em casaIhe veio esta visao: Ateaspedras da rua choravam. Ao escrever a um amigo,mais tarde, na paz de sua casa, selembrou dodelirio: ate aspedras da rua choravam. Era taobela a frase porque irracional. Ele disse.

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    9. CircoNn a achei qu fosse uma tran gressao furar irco.Ainda p rque g nt na abiava 0 que ra aqu lapalavra. A havamos qu tr n gr ao imitavatraquinag m. Mas nao tinha ssa imitagem. Tran gr aora uma proibicao eguida d ad ia. Algum t mpo

    d poi li uma roni a do grande Rub m Braga naqual I contava qu fi ar indign do om uma placano jardim d tava s rit : Ebairr ondproibido pi ar na grama. Braga viu- e ca trado mua lib rdad pisou na grarna e pi ou na grama.Fe ha 0 parent do Rub m. Ma a gent furavacirco a sim me mo. Na ignoran ia. P rtia qu eram sem inco. Quatro guri de i anos 16vi ,no so omandant , com doz anos.prof or d a coisas qu g nt naPartiu qu naquele dia furam s a Ion do circeb m no camarim dos artist . Fi am an galadod alma olho. E 0 lovis s d Ii iava d olhara trap zistas. Elas ficavam nua e trocavam.A trap zi ra tinh m urn aranha ura acima davirilha. 0 lovi I go no n inou brearanha. u elas tinham urn cort n m io mer n gras ou ruiva . C ntou-nostom va banho com a tia del todo levis qudias. E quaranha d la ra enorm qu s outr S. D pois

    -I p rguntou-no sabfam s por que as mulh resnao mandam urina longe, a distan ia? A gent naosabia. 0 prof ssor no n inou. E porque la

    n . Era 6 uma qu stao de ano! A gentapr nd u.

    10. Soberania

    Naqu I dia, no m i do jantar u ontei qut ntar p gar na bunda d v nto - ma 0 rabdo v nro es orregava rnuito u nao c n guip gar. Eu tria s te ano . A ma fj z um sorrisoarinho 0 para mim nao diss nada. M us irrnao

    deram gaitadas m goz ndo. 0 pai fi ou preocupadodi que u tiv ra um var io da imaginacao.

    Mas qu ss 5 val' ios acabariam om os e tudos.E me mandou e tudar m livros. Eu vim. E logo Iialguns torno havidos na biblioteca do olegio.E did studar pra frenr . Aprendi a t oriadas ide ias da razao pura. E p culei fil6 ofos eate hegu i ao erudito. Ao hom ns d grandsab r. A hei que 0 ruditos na sua altaab trace se esqu iam das coisas simpl s dat rra. Foi at qu encontr i Einst in (ele m smo-o Alb rto Einst in). Qu m en inou sr a fra e:

    um pouc de ino encia na erudicao. Deu certo. Meuolho com cou a v r d novo a pobres oisa dochao mijadas d orvalho. E vi as borbol tas . Em ditei obr a borboleta. Vi que elas dominamo mais I v sem pr cisar de ter motor nenhum nocorpo. (Essa ngenharia de D u !) E vi qu elapod m pousar nas flores na pedra sem magoar aproprias a a . E vi que 0 homem nao t m beranian m pra er um benre i.