Manifeto Comunista - Prólogo de José Paulo Netto
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8/3/2019 Manifeto Comunista - Prlogo de Jos Paulo Netto
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ELEMENTOS PARA UMA LEITURA CRTICA DO
MANIFESTO COMUNISTA
Jos Paulo Netto
(dedicado a Nelson Werneck Sodr,
pela dignidade intelectual; a Moacyr
Flix, pela poesia; a Carlos Nelson,
pela amizade; e a Leila, por tudo)
O Manifesto do partido comunista(que, desde 1872, passou a ser conhecido
simplesmente como Manifesto comunista) completa agora cento e cinqenta anos
de publicao e multiplicam-se em todos os quadrantes as comemoraes, de
seminrios acadmicos a colquios polticos, relativas a este documento que
desempenhou papel absolutamente mpar na cultura e na prtica polticas do mundo
contemporneo.
O prlogo de mais esta edio brasileira do texto1 com o qual me associo
aos eventos da passagem do sesquicentenrio da fonte seminal do movimento
comunista tem um objetivo preciso: oferecer ao leitor alguns elementos histricos
e crticos (inclusive referenciando uma bibliografia pertinente) que possam en-
riquecer a leitura do Manifesto2.
As origens imediatas do Manifesto
Entre 2 e 9 de junho de 1847 reuniu-se, em Londres, um congresso de
representantes da Liga dos Justos, associao at ento secreta de trabalhadores
(especialmente de artesos alemes emigrados) que derivava de uma Liga dosProscritos, criada na dcada anterior.
Sob a consigna Todos os homens so irmos3, na primeira metade dos anos
quarenta a Liga dos Justoscaracterizava-se por concepes conspirativistas, parti-
1 O melhor estudo sobre as edies e tradues do Manifestono Brasil continua sendo o de Carone (1991), Atrajetria do Manifesto do partido comunistano Brasil, publicado originalmente em 1986. Para uma exaustivacrnica de um sculo de tradues e edies do Manifestoem todo o mundo, cf. Andras (1963).2 J tinha praticamente concludo a redao deste prlogo quando me chegaram s mos duas novas edies
brasileiras do Manifesto, ambas de 1998 e comemorativas do seu sesquicentenrio: a da Boitempo (So Paulo),enriquecida com um estudo indito de O. Coggiola e contendo textos consagrados de apresentao/apreciaodo documento e a da Contraponto (Rio de Janeiro, esta sob o ttulo O Manifesto Comunista 150 Anos Depois),com ensaios crticos de dez intelectuais brasileiros.3 Claramente inspirada pelo comunismo artesanalde W. Weitling.
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lhava de uma confusa mescla de filosofia alem e de socialismo francs e
alimentava-se de utopismos. Foi nestes anos que primeiro Engels (em 1843, em
Londres) e depois Marx (em 1844, em Paris) entraram em contato,
independentemente um do outro, com a Liga4, dispondo-se a colaborar com seus
membros, mas recusando-se a aderir formalmente a ela, em razo de seusecretismo, seu confusionismo ideolgico e, especialmente, por causa do utopismo
que vincava a sua orientao (Vranicki, 1973, I: 143).
Na passagem segunda metade dos anos quarenta, porm, a direo da
Ligacomea a evidenciar um giro considervel no seu horizonte poltico-ideolgico.
Resultante de uma conjuno de variveis de ordem diversa que foram concorrendo
gradualmente (o acmulo operado pelo movimento operrio, do fracasso da
intentona revolucionria da blanquista Sociedade das Estaes, em 1839, insurreio dos teceles da Silsia, em 1844; a interao com inmeras correntes
operrias de pases diferentes etc), este giro foi catalisado principalmente por dois
eventos um prtico-poltico e outro de natureza terica. Rebateu, de uma parte,
sobre a direo da Liga, a notvel experincia inglesa do cartismo, com sua ao de
massas e sua poltica de alianas, ambas exitosas5; de outra, a spera crtica
ecltica mescla ideolgica da Liga, que Marx conduzia especialmente desde que se
fixou em Bruxelas6.
O giro mencionado explicitou-se j em fins de 1846: transferido de Paris para
Londres, o Comit Central da Liga disps-se a reexaminar as suas referncias
polticas e ideolgicas e a preparar a elaborao de uma plataforma programtica,
apontando mesmo para um congresso internacional de comunistas a ser realizado
em 1847. Neste encaminhamento, os dirigentes da Liga recorreram a Marx e a
Engels, renovando o convite para ingressarem na associao que se reorganizava,
4 [...] Conhecamos, claro, a existncia dessa Liga; em 1843, Schapper propusera-me que ingressasse nela,coisa a que [...] me recusei naquela poca (Engels, inMarx-Engels, 1963, 3: 158). Durante a minha primeiraestadia em Paris [outubro de 1843 fevereiro de 1845], travei ali pessoalmente relaes com os cabecilhas daLiga, bem como com os da maioria das sociedades secretas operrias francesas, mas no entrei em nenhumadessas sociedades (Marx, 1976a, I:85). Cabe observar que, em Paris, na casa onde Marx se estabeleceu (nonmero 38 da Rue Vanneau), vivia tambm German Maurer, dirigente da Liga.5 O movimento cartista(que tem como ponto de arranque a Carta do Povo, de 1838) experimentou uma derrotacom a fracassada greve de 1842, mas logo em seguida revigorou-se, obtendo, neste mesmo ano, 3,3 milhes deassinaturas para uma petio nacional de reforma eleitoral. Sobre o cartismo, alm do estudo clssico deDollans (s.d.), cf. Engels (1986), Cole (1974), Hobsbawm (1988) e Thompson (1987, III).6 Marx, expulso de Paris a 3 de fevereiro de 1845, rumar para a Blgica e permanecer em Bruxelas at maro
de 1848. O exlio belga marcar um perodo extremamente produtivo da vida de Marx: ali, ademais do Manifesto,ele redigiu as Teses sobre Feuerbach (provavelmente em abril de 1845) e, com Engels, A ideologia alem(nasua estrutura bsica, de novembro de 1845 a abril de 1846); escreveu a Misria da filosofia(concluda em abrilde 1847) e pronunciou conferncias (em dezembro de 1847 e janeiro de 1848) sobre temas econmicos, dasquais resultaram textos como Trabalho assalariado e capital.
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condio para que participassem do processo e influssem efetivamente na sua
reorientao7.
assim que se chega ao encontro de junho de 1847 no qual Engels teve
destacada interveno8 , que entrar para a histria como o I Congresso da Liga
dos Comunistas. Tratou-se, na verdade, de uma assemblia constituinte [que]marcou o incio de uma organizao totalmente diferente, com princpios ideolgicos
novos e uma estrutura nova (Vv. Aa., 1983: 143): para alm da mudana do nome
da organizao no mais dos Justos, e sim dos Comunistas9, foram formu-
lados estatutos depurados de quaisquer ritos sectrios e deliberou-se a abertura de
discusses sobre o programa da organizao, a ser objeto de um prximo
congresso.
Os debates sobre a plataforma programtica da Liga, abertos em junho, foramacalorados e intensos. Do congresso saiu um texto Profisso de f comunista
, proposto como projeto para o documento programtico, que foi discutido pelos
membros da Liga at setembro de 1847. Em outubro, Moses Hess apresenta, em
Paris, uma formulao alternativa, que foi rejeitada. Engels, encarregado em
seguida pelos membros parisienses da Liga de elaborar um contra-projeto, redige,
sob a forma de perguntas e respostas, os Princpios do comunismo10.
As discusses culminaram no II Congresso da Liga, realizado novamente em
Londres, entre 29 de novembro e 8 de dezembro de 1847. Marx e Engels
participaram vigorosamente dos debates11, que envolveram delegados da
Alemanha, Frana, Inglaterra (entre os quais os influentes lderes cartistas George
Julien Harney e Ernest Charles Jones), Sua e Blgica. Ao fim dos trabalhos, o
7 Em 1860, Marx rememorava os fatos: em Bruxelas, publicamos uma srie de opsculos [...], onde a mistura desocialismo ou comunismo anglo-francs e de filosofia alem que constitua ento a doutrina secreta da Liga erasubmetida a uma crtica desapiedada [...]. No prosseguimento desta atividade, o Comit Central de Londres ps-
se em correspondncia conosco, e em fins de 1846 mandou a Bruxelas um de seus membros, o relojoeiroJoseph Moll [...], para nos convidar a entrar na Liga. As suspeitas surgidas diante de tal oferta foram por elecombatidas com a notificao de que o Comit Central preparava a realizao de um Congresso da Liga emLondres, onde as opinies sustentadas por ns viriam a ser proclamadas doutrina da Liga em manifesto pblicoe que [...] a nossa colaborao estava condicionada pelo nosso ingresso na Liga. Assim entramos nela (Marx,1976a, I: 85-86).8 Marx no pde participar por falta de condies financeiras para empreender a viagem at Londres.9 Esta mudana foi acompanhada pelo abandono da antiga consigna (Todos os homens so irmos),substituda por aquela que seria incorporada no Manifesto: Proletrios de todos os pases, uni-vos!. Fontes asmais diversas (do ilustre filsofo marxista portugus Vasco de Magalhes Vilhena conhecida e vulgaranticomunista genebrina Franoise Giroud) so unnimes em considerar Engels como o responsvel pelafrmula que se tornou clebre e que apareceu impressa, pela primeira vez, no nmero nico da RevistaComunista, editado pela Ligaem setembro de 1847.10 Uma comparao entre este documento preparado por Engels (disponvel em Netto, org., 1981) e o texto do
Manifestorevela, para alm de diferenas formais e de contedo, inmeras semelhanas conforme pdeverificar, por exemplo, Rubel (1970: 221-224; o mesmo estudioso retoma a temtica nas notas sua traduo doManifesto, inMarx, 1965, I).11 Ambos na condio de delegados eleitos: Marx, pela regio de Bruxelas, Engels pela de Paris. Este ltimo,ademais, secretariou o congresso, cujas sesses foram presididas por Karl Schapper.
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congresso deliberou confiar a Marx e a Engels a redao do documento
programtico da Liga12.
Na segunda semana de dezembro, Marx regressou a Bruxelas e logo Engels
juntou-se a ele mas no por muito tempo, j que, no final do ms, dirigiu-se para
Paris; entretanto, retornou capital da Blgica em fins de janeiro de 1848. Nesteperodo, em contato pessoal direto ou atravs de correspondncia, os dois se
dedicaram elaborao do Manifesto (a forma manifesto, alis, foi sugerida por
Engels). No h dvida, vista da documentao hoje disponvel, que, embora fruto
da colaborao de ambos13, a expresso literria do texto quase totalmente da
responsabilidade de Marx14.
Nos comeos de fevereiro de 1848, o documento (de cujo original s se
conservou uma pgina, manuscrita por Marx) enviado sede da Liga, em Londres,e provavelmente a 23 ou 24 do mesmo ms sai da pequena tipografia de J. E.
Burghard15 a primeira edio, com trs mil exemplares em alemo, do Manifesto
naturalmente sem a identificao dos autores, uma vez que se tratava do programa
de um coletivo poltico16. E quase ao mesmo tempo em que a Ligaingressava aberta
e publicamente na arena poltica, apresentando-se com o Manifesto, a revoluo
que logo se estenderia pela Europa continental explodia em Paris.
A revoluo de 1848 e o Manifesto
12 A partir da constatao da intensidade desses debates, Magalhes Vilhena, nas suas esclarecedoras notascomplementares edio lusitana do Manifesto, observou que o Manifesto Comunistano se contenta com seruma obra de autores [...]. Ao contrrio, v-se agora mais claramente que o Manifesto, atravs de Marx e deEngels e por obra deles, reflete o clima de discusses e polmicas e de reflexo terica coletiva, e d expressoexcepcional a uma corrente de opinio existente entre outras correntes que, com razes diversas, ento seafirmavam comunistas (inMarx e Engels, 1975: 113).13 No trabalho de redao do texto, parece que ambos foram como que secretariados pela mulher de Marx,Jenny von Westphalen. A autora de um livro raivosamente anti-Marx, e recheado de equvocos histricos,registra impressionstica e hiperbolicamente esse dado: Assim que volta a Bruxelas, Marx comea o trabalho.
Mal levanta da cama, Jenny trabalha com ele. Ela lhe serve de secretria, copista e no se abstm de intervir, aocontrrio. sua verdadeira misso, onde ela se sabe insubstituvel diante da escrita indecifrvel por qualqueroutra pessoa e que transmite um pensamento que ela fecunda. [...] Um dos textos mais famosos do mundo, abblia dos tempos modernos, ser desta forma o fruto de uma intensa colaborao entre dois jovens prussianosburgueses [sic], ajudados em sua tarefa por uma bela aristocrata (Giroud, 1996: 84-85).14 As qualidades de Marx como escritor so indiscutveis e ele consensualmente reconhecido pelosespecialistas como um mestre do alemo literrio (Fowkes, in Marx, 1976, 1: 88); um excepcional crticoliterrio norte-americano, num livro que em termos de justeza interpretativa sempre esteve longe de ser notvel,constata, referindo-se ao seu estilo maduro, o poeta que h em Marx, e no hesita em consider-lo um dosgrandes mestres da stira. Sem dvida, ele o maior ironista desde Swift (Wilson, 1987: 275, 277). Entretanto,so poucos os estudos centrados no estilo literrio de Marx; num deles, l-se que o Manifesto um casoexemplar de adaptaodo estilo literrio a certo efeito que se busca alcanar sobre o pblico, jogando com aapresentao apocalptica dos fatos, a descrio da histria como um teatro de lutas classistas dramaticamenteconfigurado, as predies terrveis e, em geral, o aspecto poemtico (Silva, 1971: 105-106).15
Segundo as informaes disponveis, levantadas por Hobsbawm (1998: 294), a tipografia funcionava na sededa Associao Educacional dos Trabalhadores, situada em Londres na Rua Liverpool, 46.16 A primeira identificao pblica de Marx e Engels como os autores do Manifestodeve-se a George J. Harney,na apresentao da traduo inglesa do documento, preparada por Helen MacFarlane e divulgada no peridicocartista Red Republican(novembro de 1850).
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Na madrugada de 24 de fevereiro de 1848, a revoluo irrompeu em Paris
e, a partir da, at o segundo semestre do ano seguinte, o continente estremeceu
naquela que, segundo Claudn, foi a mais europia de todas as revolues da
Europa17 e que se saldou, em termos imediatos, pela derrota das foras
democrticas e populares18
.Est claro que ao Manifesto no se deve nenhum papel estimulador dos
eventos de 1848 mesmo que tenha previsto como iminente, em antecipao
arguta, uma exploso revolucionria19. Entre a revoluo de 1848 e o Manifestono
existem nexos causais e/ou interativos20; na verdade, ambos so expresses, em
planos diferentes, de uma processualidade scio-histrica bem mais inclusiva, que
os transcende e em relao qual adquirem plena inteligibilidade.
O processo substantivo aqui em tela a explicitao dos traos maisestruturais e peculiares da ordem burguesa que estavam se objetivando, em
todos os planos societrios, da derrocada do Ancien Rgime dcada de quarenta.
Com efeito, em nvel histrico-universal, a primeira metade do sculo XIX constitui o
espao em que a dinmica econmico-social posta em marcha pela burguesia
herica e empreendedora dos dois sculos anteriores configura a sociedade civil e o
17 Iniciada em Paris, a revoluo se propaga, como fogo num rastilho de plvora, pela maior parte da Europacontinental, entre o Atlntico e as fronteiras russas. Num primeiro momento, parece que se estender Inglaterra. Alm da Frana, o turbilho envolve: a Prssia, a Baviera, a Saxnia e outros Estados daConfederao Germnica; os territrios poloneses ocupados pela Prssia; a Bomia e a Hungria, que procuramlivrar-se do jugo austraco, particularmente a Hungria, cuja guerra nacional revolucionria prolongar-se- por umano; a Itlia do norte (Lombardia), ocupada pelos austracos, e todos os Estados italianos: o reino da Sardenha,os Estados pontifcios, o reino de Npoles etc. (Claudn, 1975: IX-X).18 Marx e Engels, na condio de dirigentes da Liga, deslocaram-se rapidamente para a Alemanha ali, arevoluo eclodiu a 18 de maro, em Berlim (capital da Prssia) , acabando por se radicarem em Colnia,desempenhando, durante os catorze meses em que o processo revolucionrio esteve em curso, papis deliderana e consolidando definitivamente a sua vinculao ao mo vimento operrio. Alm do trabalho de Cornu(1948), o ensaio de Claudn, escrito antes de seu autor romper com a tradio marxista e citado na nota anterior,constitui um texto fundamental para o conhecimento da interveno revolucionria de Marx e Engels no processode 1848-1849, na seqncia do qual se inaugura o longo exlio ingls de ambos (Marx chega a Londres emagosto e Engels em novembro de 1849) e se dissolve a Liga(novembro de 1852). Os mais importantes materiaisproduzidos pelos dois durante o processo revolucionrio veiculados atravs da Nova Gazeta Renana, rgo
da democracia que Marx dirigiu em Colnia encontram-se em Marx-Engels (1963-1971, I-II-III); um dessesmateriais, que apresenta uma anlise do quadro alemo de 1848 realizada no calor da hora, est disponvelportugus em Marx (1987); quanto a anlises retrospectivas dos eventos de 1848-1849, cf. especialmente Marx(1975, 1969a). No que toca dissoluo (e no s) da Liga, cf. a Contribuio histria da Liga dosComunistas, que Engels escreveu em 1885 (inMarx-Engels, 1963, 3); para uma anlise da histria da Liga, cf.especialmente Andras (1972) e Mijailov (1968).19 Se, entre os historiadores, h consenso em constatar a argcia da previso histrica de curto prazo doManifesto, existe discrepncia na avaliao de como ele passou por esta primeira prova histrica. De um lado,esto aqueles que, como Carr, sustentam que os acontecimentos de 1848, ocorridos pouco depois da redaodo Manifesto, confirmaram em larga escala o seu diagnstico e no o refutaram em nenhum aspecto (Carr,1970: 27); de outro, situam-se aqueles que, como Claudn, sublinham o que consideram o equvoco doManifesto, consistente em supor que o capitalismo chegara ao limite de suas possibilidades histricas (Claudn,1975: 260).20 evidente que, no curso da revoluo, as intervenes dos membros da Liga foram de algum modo
parametradas pelos indicativos do Manifesto; recorde-se que j com o processo revolucionrio desfechadoque, em Paris, provavelmente entre 19 e 21 de maro de 1848, Marx e Engels redigem as Reivindicaes doPartido Comunista na Alemanha, panfleto que circulou primeiramente entre os emigrados alemes e depoisentre os membros da Liga em outros pases (o texto encontra-se em Marx, 1987: 83-86). Entretanto, taisvinculaes esto longe de caracterizar conexes causais entre o Manifestoe o processo revolucionrio.
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Estado segundo os seus particulares interesses de classe, apresentados como
interesses geraisna luta contra as barreiras anticapitalistas herdadas e prprias da
sociedade feudal. Trata-se do espao histrico em que o desenvolvimento capitalista
liquida ou subordina as instituies econmicas precedentes e engendra as suas
prprias instituies scio-polticas. Trata-se, em suma, do coroamento daconstituio da ordem societria comandada pelo movimento do capital, redefinindo
radicalmente as relaes sociais e de classes.
Com efeito, na culminao desse processo que lanar as bases da
moderna sociedade urbano-industrial e, no casualmente, o objeto central da
primeira seo do Manifesto, as clivagens e fraturas sociais deixam de contrapor
a burguesia vitoriosa s classes e camadas peculiares sociedade feudal.
Consolidada a dominncia burguesa, ancorada na expanso do capital industrial,aquelas franjas sociais so compelidas residualidade. As fronteiras de classe
decisivas abrem agora os cortes entre os proprietrios dos modernos meios de
produo fundamentais e os possuidores unicamente de sua fora de trabalho. A
divisria desloca-se do exterior para o interior do que fora o terceiro estado.
A visibilidade original desse deslocamento obra de 1848. Se vinha num
processo cujas primeiras manifestaes espocavam desde os anos vinte, o fato
que s se pe tona da vida social nos confrontos de 1848. At ento,
freqentemente as demandas dos segmentos vinculados ao trabalho apareciam
indistintas dos projetos burgueses, subsumidas na aspirao revolucionria da
igualdade, da fraternidadee da liberdade. O trabalho, nos confrontos scio-polticos,
surgia tambm e ainda subordinado ao capital. nas jornadas de 1848 que se
patenteia o radical antagonismo entre ambos: quando se pe a exigncia da
repblica social, explicita-se o limite do mundo burgus. At 1848, a frente social
emancipadora parecia envolver o conjunto do terceiro estado; as barricadas de
junho mostraram que as clivagens rompiam definitivamente esse bloco, mostraram
que o povo, entificado unitria e identitariamente pela burguesia, era um compsito
contraditrio: as demandas populares tornavam-se incompatveis com a direo de
classe burguesa. 1848, numa palavra, explicita, em nvel histrico-universal, a
ruptura do bloco histrico que derruiu a ordem feudal: trouxe conscincia social o
ineliminvel antagonismo entre capital e trabalho, burguesia e proletariado.
Em nvel histrico-universal, a experincia de 1848 demonstrou os limites
reais do projeto scio-poltico conduzido pela burguesia a liberdadedeve restrin-
gir-se liberdade de concorrer no mercado, a igualdadeesgota-se na formalidade
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jurdica e a fraternidadese resolve na retrica e no moralismo. O projeto de eman-
cipao humana, nestes limites, no desborda o terreno da emancipao poltica, tal
como Marx mesmo o vislumbrou em 1844 (Marx, 1969). A partir desse marco, o
protagonismo burgus centra-se na conservao da ordem (para a qual concorrem,
necessariamente, programas reformistas, tornados especialmente claros depois de1848) que se veio instaurando sobre as runas do Antigo Regime. A burguesia,
enquanto classe, perde o interesse e a capacidade de fazer avanar a socialidade
para alm dos limites da lgica de acumulao e valorizao do capital, em razo da
qual se operou a emancipao poltica e se estabeleceu originalmente a figura do
cidado. A dimenso essencial da emancipao humana s ter sentido para um
outro sujeito histrico, cuja emerso primeira verifica-se em 1848: o proletariado.
O significado de 1848 precisamente este: com a derrota das aspiraesdemocrtico-populares, determinada pelo comportamento de classe da burguesia, o
proletariado se investe, em nvel histrico-universal, como o herdeiro das tradies
libertrias e humanistas da cultura ocidental, constituindo-se como o sujeito de um
novo processo emancipador, cuja condio prvia, histrico-concreta, a ruptura
mais completa com a ordem do capital. Assim, no plano prtico-poltico, a revoluo
de 1848 tem um significado inequvoco: trouxe cena scio-poltica uma classe que,
a partir daqueles confrontos, pode aceder conscincia dos seus interesses
especficos viabilizou a emergncia de um projeto scio-poltico autnomo,
prprio, do proletariado; mais exatamente: propiciou a auto-percepo classistado
proletariado;
O Manifesto expressa, no plano terico-poltico, esta marcante viragem
histrica: nele que se apresenta, pela primeira vez, um projeto scio-poltico
explcita e organicamente integrado a uma perspectiva de classee nela embasado.
O movimento prtico-poltico que propiciou ao proletariado, em nvel histrico-
universal, o seu auto-reconhecimento como sujeito autnomo refrata-se no
documento programtico da Liga:o protagonismo que o proletariado praticamente
assume a partir de 1848 est prefigurado/configurado teoricamenteno Manifesto21.
21 A incidncia dessa perspectiva classista notvel at na escolha do ttulo do documento; recorda-se Engels,no prefcio da sua edio inglesa de 1888, que no lhe podamos ter chamado um manifesto socialista. Em1847, entendia-se por socialistas, de um lado, os partidrios dos inmeros sistemas utpicos (owenistas naInglaterra, fourieristas na Frana, reduzidos ambos j condio de meras seitas, e em dissoluo); de outrolado, os mais variados charlates sociais, que, com toda a espcie de remendos, pretendiam aliviar, semqualquer risco para o capital e o lucro, todos os tipos de gravames sociais nos dois casos, homens que
estavam fora do movimento da classe operria e que procuravam apoio preferencialmente junto s classeseducadas. Todo e qualquer setor da classe operria que se tivesse convencido da insuficincia de merasrevolues polticas e tivesse proclamado a necessidade de uma total mudana social dava a si mesmo o nomede comunista. [...] Em 1847, o socialismo era um movimento da classe mdia e o comunismo um movimento daclasse operria. O socialismo era, pelo menos no Continente, respeitvel o comunismo era precisamente o
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Sob esta luz, portanto, a revoluo de 1848 e o documento poltico fundante do
projeto comunista so implicaes necessrias da dinmica mesma da ordem
burguesa, no passo em que o proletariado se investe do estatuto de classe para si22.
A herana terico-cultural emancipadora e a teoria social marxianaA perspectiva de classe retratada no Manifesto impensvel sem a herana
terico-cultural que se acumulou no Ocidente, configurada especialmente com a
Ilustrao a herana que inaugura a Modernidade, da qual a obra marx-
engelsiana parte constitutiva23. J se tornou lugar-comum, desde as notaes de
Engels acerca do trnsito do socialismo da utopia cincia (inMarx-Engels, 1961, 2)
e passando pelos ensaios de Kautsky (1975) e Lnin (1978, I), referir as fontesde
que Marx e Engels so tributrios.No cabe aqui retornar quelas fontes, quase consensualmente resumidas na
filosofia clssica alem (muito especialmente Hegel), na economia poltica
desenvolvida na Inglaterra (nomeadamente Smith e Ricardo) e na crtica social
exercitada pelos utpicos (Saint-Simon, Owen e Fourier)24. Num primeiro passo, a
este respeito, importa sobretudo salientar que o trabalho crtico de Marx (e de
Engels25) sobre estas fontes ainda no se completara poca do Manifesto
oposto. E como a idia que tnhamos desde o princpio era que a emancipao da classe operria tem de serobra dos prprios trabalhadores, no podia haver dvidas sobre qual dos nomes adotaramos. E o maisimportante: estamos, e sempre estivemos, longe de o repudiar (cf., neste volume, as pp. XCI-XCII). G. Haupt,comentando a generalizao do termo social-democracianos anos oitenta, como alternativa para o designativocomunismo, evoca as resistncias de Marx e Engels a esta mudana, e reproduz o testemunho de Rappoport:Ouvi da prpria boca de Engels [...] que Marx e ele prprio s aceitaram o termo social-democracia acontragosto, por uma espcie de compromisso com a realidade; mas que a definio favorita de suas idiasfundamentais era comunismo (inHobsbawm, org., 1980, 1: 355).22 Na Misria da filosofia, Marx pontuava que, posto o desenvolvimento capitalista, as condies econmicas,inicialmente, trans formaram a massa [...] em trabalhadores. A dominao do capital criou para esta massa umasituao comum, interesses comuns. Esta massa, pois, j, face ao capital, uma classe, mas no o para simesma. Na luta [...], esta massa se rene, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende setornam interesses de classe (Marx, 1985: 159).23 A relao entre a obra de Marx (e de Engels) e a Modernidade, entendida como o projeto scio-cultural da
Ilustrao, parece hoje inconteste, e no s para os marxistas (cf., por exemplo, Jameson, 1994), mas tambmpara pensadores no-marxistas vinculados defesa racionalista da Modernidade (cf., por exemplo, Rouanet,1993).24 Outros autores da tradio marxista exploraram diferencialmente tais fontes cf., por exemplo, Delia Volpe(1964), Dal Pra (1965), Garaudy (1967), Althusser (1979, 1989).25 No resta nenhuma dvida de que, feito o balano global da contribuio terica de ambos ao movimentooperrio revolucionrio, a parte que cabe a Marx sobreleva amplamente o que se deve a Engels como esteltimo, alis, sempre teve a grandeza de reconhecer, referindo-se a si mesmo como o segundo violino.Contudo, se a genialidade de Marx indiscutvel em face do talento de Engels, no se pode subestimar ainfluncia que, em passos terico-polticos decisivos, este exerceu sobre aquele nem, igualmente, o fato deEngels ter disposto, sempre, de uma autonomia e uma criatividade intelectuais notveis. Aqui, o juzo deFlorestan Fernandes parece-me conclusivo: Com freqncia, falo em K. Marx e F. Engels. Com isso, nopretendo confundi-los, metamorfoseando-os em irmos siameses espirituais. Um homem como Marx sabia muitobem o seu valor e no se confundia com ningum, mesmo com o amigo mais ntimo e com o companheiro de
quase 40 anos de lutas em comum. Por sua vez, Engels tambm tinha a sua grandeza e uma esfera deautonomia pessoal como pensador inventivo e como ativista poltico. [...] bvio que K. Marx uma figura mparna histria da filosofia, das cincias sociais e do comunismo. Engels foi o primeiro a proclamar isto e o fez comuma devoo ardente, considerando-o como um gnio do qual ele teve a sorte de partilhar o destino. Contudo, amodstia de F. Engels no deve ser um fator de confuso. [...] F. Engels no era s um segundo ou um
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recorde-se que o texto saiu das mos de intelectuais que ainda no tinham chegado
aos trinta anos. Com efeito, s na dcada seguinte redao do Manifestoque
nossos autores alcanaro a plenitude de sua maturidade terica. Na altura da
elaborao do Manifesto, por exemplo, o pensamento econmico de Marx ainda
carecia da riqueza e da originalidade de que daria provas nos Grndrisse (Marx,1971-1976, 1-2-3), que constituem a base dO Capital26. Por outra parte, toda uma
srie de importantes desenvolvimentos tericos, desencadeada inclusive pela
anlise de novos objetos (ou pela descoberta de novas dimenses em objetos j
tematizados), ainda est ausente do trato sinttico oferecido no Manifesto.
De fato, o texto do Manifesto, no conjunto maior da obra marx-engelsiana,
situa-se num espao bem determinado: seu ponto de arranque a profunda inflexo
que esta obra operou no pensamento ocidental, base de uma sntese crtica ecriativa da herana cultural adensada desde a Ilustrao; mas as inteiras
implicaes dessa inflexo ainda esto longe de se apresentarem, historicamente
saturadas, aos seus prprios autores. No Manifesto, Marx e Engels j dispem das
referncias terico-metodolgicas fundamentais com que trabalharo pelo resto de
suas vidas nele, a sua modalidade original de processar teoricamente o material
histrico-social est posta; porm, a explorao e o tratamento desse material ainda
distam muito do que obtero na sua trajetria ulterior.
Acabo de mencionar a inflexo que Marx (primordialmente) e Engels
operaram no pensamento ocidental. Ela se revela, com nitidez, nA ideologia alem
e nas Teses sobre Feuerbach isto , em 1845-1846. basicamente nestes textos
que Marx e Engels assentam as pedras angulares e elaboram as linhas-de-fora de
sua concepo terica da histria, da sociedade e da cultura; neles, se se quiser,
que esto os fundamentos do que veio a ser chamado de materialismo histrico.
Tais fundamentos radicam na crtica que, nos anos imediatamente anteriores,
nossos autores procederam do acervo terico-cultural que se relacionava herana
ilustrada (sinteticamente, as fontes a que se referem os vrios analistas). Na
verdade, a resultante dessa acurada crtica s mais altas expresses da cultura que
seguidor: por vrias vezes foi ele quem abriu os caminhos originais das investigaes mais promissoras de K.Marx; a ele cabiam, na diviso de trabalho comum, certos assuntos e tarefas; e Marx confiava em seu critrio
histrico, cientfico e poltico [...] Tudo isso quer dizer que ele no era um reflexo da sombra de Marx; eleprojetava a sua prpria sombra. No se pode separ-los, principalmente se o assunto for a constituio domaterialismo dialtico [...] (Fernandes, org., 1983: 16-17).26 Sobre este aspecto, preciosa a anlise da evoluo do pensamento econmico marxiano oferecida porMandel (1968).
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vem da Ilustrao27 foi a inflexo realada: Marx e Engels as superam28 para
construir uma teoria social ancorada numa ontologia do ser social embasada no
trabalho tomado como processo fundante da socialidade29, teoria que se
reconhece ser basicamente devida a Marx, que precisamente tem nos textos de
1845-1846 as suas formulaes fundamentais e que ser exaustivamentedesenvolvida nas dcadas seguintes30.
A inflexo operada por Marx, repita-se, parte do trato crtico do acmulo
terico-cultural contido nas fontes. A centralidade do trabalho no processo de
constituio da socialidade seria impensvel sem a superaodas determinaes
avanadas por Hegel na Fenomenologia do Esprito, assim como a categoria capital
de prxis no seria elaborada se Marx no se detivesse nos desenvolvimentos neo-
hegelianos (do materialismo de Feuerbach ao conjunto ideolgico dos jovenshegelianos31);a prpria reflexo poltica de Marx tem seu primeiro ponto de ataque
nas duas primeiras crticas a Hegel, a de 1843 e a de 1844 (onde revoluo e
proletariadoaparecem explicitamente tematizados)32; e a descoberta da prioridade
ontolgica das determinaes econmico-polticas na dinmica scio-histrica,
deve-a Marx sua anlise dos clssicos da economia poltica, assim como os
utpicos forneceram-lhe elementos para a crtica mordaz ordem burguesa;
principalmente, o seu exaustivo trabalho crtico (que se estendeu at o final dos
anos cinqenta) sobre o mtodo filosfico de Hegel e seu sistema categorial
permitiu-lhe estruturar uma obra sistemtica, porm aberta. Da elaborao
engelsiana pode-se dizer o mesmo: no fora a apropriao de Hegel e a leitura dos
economistas polticos, o seu original Esboo de uma crtica da economia poltica
27 Um ndice do assombroso trabalho intelectualde Marx sobre as fontes clssicas do pensamento ilustrado (eno s) que lhe propiciou uma extraordinria erudio pode ser aferido com a listagem de suas principais
leituras, arroladas por Rubel na cronologia que abre o primeiro volume de suas obras na Pliade(Marx, 1965, I).28 Mais do que em qualquer outro contexto, cabe aqui a palavra superao (Aufhebung), no sentido que Hegelconferiu a ela: negao com conservao.29 A evoluo do jovemMarx nesta direo foi estudada, entre outros, por Lukcs (1978), Vzquez (1978) eLpine (1983), mas a anlise mais explicitamente centrada na questo deve-se a Frederico (1995). Sobre aontologia social de Marx, em registros diferentes, cf. o breve ensaio de Gould (1983) e os ltimos e monumentaistrabalhos de Lukcs (1976-1981 e 1990).30 Neste desenvolvimento, mais e mais a base ontolgica do pensamento marxiano ser direcionada paraelaborar uma especfica teoria da sociedade burguesa;mesmo que o Lukcs de Histria e conscincia de classeno tenha considerado a dimenso ontolgica do pensamento de Marx (cf. Lukcs, 1969: XVII), assiste-lhe razopara observar que o materialismo histrico [...], em primeiro lugar, uma teoria da sociedade burguesa e que,portanto, sua pertinncia seja inidntica s formaes pr-capitalistas e quelas de evoluo capitalista(Lukcs, 1965: 264, 274).31 Sobre a relao de Marx com osjovens hegelianos, cf. especialmente McLellan (1971).32
As duas crticas esto publicadas em Marx (1982, III); a tematizao do trabalho (com o necessrio debate daalienao) est posta nos manuscritos de 1844 (Marx, 1969b). O papel que atribuo a este conjunto de textosjuvenis suficientemente relevante para que o leitor saiba por que considero que o corte entre o jovem Marx eo Marx da maturidade (tal como sustentado, por exemplo, por Althusser) , para retomar a caracterizao queLukcs utilizou algures, uma estupidez historiogrfica.
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(Engels, inNetto, org., 1981)33, primeira aproximao crtico-dialtica s categorias
dos economistas polticos, no existiria; sem a sua ateno aos crticos utpicos da
ordem burguesa, sua crtica social, irnica e vivaz, seguramente careceria do tnus
que a notabiliza, at hoje, como exemplar.
Considerando-se esta base terico-cultural, torna-se patente que a reflexode Marx e Engels processa uma notvel sntese do que constitua o estoque de
conhecimentos euro-ocidental da primeira metade do sculo XIX. Mas ambos no
mantm com esta base terico-cultural to somente a relao crtica de conti-
nuidade at aqui realada: mais substantivamente, promovem com ela,
simultaneamente, uma ruptura ruptura que responde pela inflexo tantas vezes
mencionada.
A ruptura consiste em que a crtica marx-engelsiana estrutura ento as basesde uma teoria social que desborda os quadros do estoque de conhecimentos
existente, everte as modalidades de apreenso do movimento social real e
subverte a funo social do conhecimento na exata medida em que se constitui,
enquanto teoria, a partir do ponto de vista de classe proletrio.
Os supostos scio-polticos para esta ruptura estavam postos pela efetividade
do movimento operrio; mas se a adeso aos interesses deste movimento a
conditio sine qua nonpara a articulao da perspectiva de classe, esta articulao
demanda um complexo de determinaes tericas. A ruptura marx-engelsiana se
opera porque, para alm daquela adeso, a sua elaborao terica reproduzia
idealmente os processos constitutivos e constituintes da situao de classe
do proletariado: a teoria cujos fundamentos estavam lanando era a expresso
ideal do movimento social real a posio de classe do proletariado que
refiguravam teoricamente apenas condensava as tendncias estruturais da dinmica
social. A adeso de Marx e Engels ao movimento operrio, assim, era mais que uma
opo poltica: era um imperativo da sua concepo terica. Uma teoria social
assentada numa ontologia do ser social que credita ao trabalho o fundamento da
socialidade no tem no proletariado um elemento externo e contingente: identifica
nele o sujeito concreto de sua razo de ser34 donde a conseqente
33
Todas as indicaes disponveis sugerem que foi precisamente sob o impacto da leitura deste texto (publicadooriginalmente nos Anais Franco-Alemes) que Marx iniciou seus estudos de economia poltica, em Paris. Quinzeanos mais tarde, Marx o qualificaria como um genial esboo de uma crtica das categorias da economia poltica(Marx, 1982: 26).34 Aqui, a unidade(distinta da identidade) entre a teoria e a ao revela-se emblematicamente.
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ultrapassagem da subordinao poltica a que o proletariado parece estar
condenado, donde o congruente protagonismo que lhe conferido35.
Em termos breves e necessariamente bastante toscos, o resultado da inflexo
promovida por Marx uma teoria que enfoca a sociedade burguesa como produto
extremamente complexo de um processo histrico plurissecular, no qual certaspossibilidades do gnero humano no s se explicitam como, ainda, servem para
iluminar etapas histricas precedentes36. Assim, mesmo tendo por objeto privilegiado
a ordem burguesa, os resultados tericos a que Marx chegou contm determinaes
cujo mbito de validez a transcendem, entre elas a concepo do homem como ser
prtico e social, produzindo-se a si mesmo atravs das suas objetivaes (a prxis,
de que o trabalho exemplar) e organizando as suas relaes com os outros
homens e com a natureza conforme o nvel de desenvolvimento dos meios pelosquais se mantm e se reproduz enquanto homem.
O trao distintivo desta teoria que ela toma a sociedade (burguesa) como
uma totalidade concreta:no como um conjunto de partes que se integram funcio-
nalmente, mas como um sistema dinmico e contraditrio de relaes articuladas
que se implicam e se explicam estruturalmente. Seu objetivo reproduzir idealmente
o movimento constitutivo da realidade (social), que se expressa sob formas
econmicas, polticas e culturais, mas que extravasa todas elas. Por isso, a anlise
da organizao da economia (a crtica da economia poltica) o ponto de irradiao
para a anlise da estrutura de classes e da funcionalidade do poder (a crtica do
Estado) e das formulaes jurdico-polticas (a crtica da ideologia). A pesquisa
destas dimenses da realidade (social) remete de uma a outra assim, a anlise
do movimento do capital remete anlise do movimento das classes etc; donde, na
teoria marxiana, a ausncia de qualquer vis fatorialista (a predominncia abstrata
do fator econmico ou semelhante)37.
O procedimento metodolgico prprio a esta teoria consiste em partir do
emprico (os fatos), apanhar as suas relaes com outros conjuntos empricos, in-
35 No casual que, j no percurso anterior de Marx e Engels, o que os distinguia de todos os autores que, nosanos quarenta, tratavam da questo operria, o fato de eles jamais tomarem o operrio como vtima passiva ouobjeto paciente e sofredor antes, sempre destacaram o potencial ativo, criador, produtivo dos trabalhadores.36 Nesta concepo terica, ao contrrio das teses positivistas, o mais complexo que esclarece o menoscomplexo donde o estudo da ordem burguesa oferecer elementos para iluminar formaes sociais anteriores.37 Ao que eu saiba, foi Lukcs, na sua polmica Histria e conscincia de classe, de 1923, o primeiro a chamar aateno para o carter de classe revolucionrioque porta o conhecimento social fundado na centralidade dacategoria crtico-dialtica da totalidade;naquele conjunto de ensaios, vrias so as passagens dedicadas a este
carter, das quais a mais significativa esta: o ponto de vista da totalidade e no a predominncia das causaseconmicas na explicao da histria que distingue de forma decisiva o marxismo da cincia burguesa. Acategoria da totalidade, a dominao do todo sobre as partes, que determinante e se exerce em todos osdomnios, constituem a essncia do mtodo que Marx tomou de Hegel e que transformou de maneira originalpara dele fazer o fundamento de uma cincia inteiramente nova (Lukcs, 1965: 47).
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vestigar a sua gnese histrica e o seu desenvolvimento interno e reconstruir, no
plano do pensamento, todo este processo. O circuito investigativo, recorrendo
compulsoriamente abstrao, retorna sempre ao seu ponto de partida e, a cada
retorno, compreende-o de modo cada vez mais inclusivo e abrangente. Os fatos, a
cada nova abordagem, se apresentam como produtos de relaes histricascrescentemente complexas e mediatizadas, podendo ser contextualizados de modo
concreto e inseridos no movimento maior que os engendra. A pesquisa, portanto,
procede por aproximaes sucessivas ao real, agarrando a histriados processos
simultaneamente s suas particularidades internas.
A anlise terica da sociedade burguesa, assim conduzida, revela-a como
uma forma de organizao societria extremamente dinmica, a mais complexa de
quantas embasadas na propriedade privada dos meios fundamentais de produo ena diviso social do trabalho. Nela, todas as contradies do movimento da
realidade (social) alcanam o seu pice e, no mesmo processo, gestam-se as
condies para super-las. O prprio desta sociedade um padro de desenvolvi-
mento, caracterizado por um especfico modo de explorao do trabalho, que torna
ineliminveis as crises econmicas, potenciadoras das clivagens determinadas pelos
interesses antagnicos de suas classes fundamentais e que rebatem e se
reproduzem em todas as instncias, multiplicando tenses e conflitos que
incompatibilizam os interesses vitais da maioria dos homens com o modo de vida
imperante donde a alternativa, funo da vontade poltica organizada da classe
dos que trabalham, de romper com esta ordem social (a revoluo).
Na altura da redao do Manifesto, os elementos nucleares desta concepo
terica na qual visvel tanto o que ela deve quanto o que inova em relao
herana cultural de que legatria j estavam estabelecidos. Entretanto,
ganhariam mais solidez e inclusividade nos seus desenvolvimentos ulteriores, con-
figurando uma teoria social radicalmente diversa dos conhecimentos que, na
segunda metade do sculo XIX, constituiriam as cincias sociais (especialmente a
economia e a sociologia).
Escapa naturalmente aos limites deste prlogo a tematizao das relaes
entre a teoria social de Marx e os saberes sociais que se vieram construindo, desde
ento, na ordem burguesa38. Mas cumpre realar que a inflexo terico-cultural
promovida por Marx (e Engels) mantm conexes com o surgimento daqueles
38 Elementos para esta tematizao, bem como indicaes bibliogrficas pertinentes, encontram-se em Netto(1992: 39-47 e 129-141).
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saberes, no marco de uma crise culturalda qual ambas teoria social marxiana e
cincias sociais resultaram.
Trata-se da crise que, entre aproximadamente 1830 e 1848, conduziu ao
impasse as vertentes terico-filosficas progressistas dominantes da Ilustrao. Tais
vertentes (muito conexas economia poltica clssica39
), na sua gnese, estavamestreitamente vinculadas ao protagonismo revolucionrio da burguesia e enfrenta-
vam crtica e otimisticamente a realidade social emergente da derrocada do Ancien
Regime criticamente, porque o fato de seus autores serem idelogos de uma
classe ascendente e vitoriosa e sem ameaas visveis lhes garantia uma autonomia
intelectual considervel; otimisticamente, porque consideravam as seqelas de-
letrias do nascente capitalismo industrial como passageiras dores do parto de uma
nova era histrica. A partir de 1825-1830, com a reiterao peridica das criseseconmicas e com os passos organizativos iniciais do proletariado e a decorrente
agudizao das lutas de classes, os quadros societrios que suportavam o
progressismo daquelas vertentes entram em rpida eroso. O giro experimentado
pela burguesia, que vai se convertendo, desde ento, em sujeito histrico conser-
vador, retira gradualmente os suportes daquele otimismo e, principalmente, daquela
criticidade com a ameaa proletria, vetores crticos se tornam armas anti-
burguesas. A tempestade revolucionria de 1848 selou a sorte do ciclo progressista
da burguesia e das possibilidades dos pensadores que expressavam a sua viso de
mundo.
A herana terico-cultural emancipadora incompatvel, a partir de ento,
com a perspectiva de classe da burguesia eis a o impasse que sinaliza a crise
cultural que igualmente tem por marco o ano de 1848. A sua soluo histrica deu-
se em duas direes: de uma parte, com a teoria social de Marx, os componentes
emancipatrios so criticamente reelaborados numa perspectiva de classe proletria
(justamente a relao de continuidade e de ruptura que Marx mantm com suas
fontes); de outro lado, com o pensamento da ordemdividido entre um funcional,
ainda que aparentemente radical, anticapitalismo romntico (articulado
especialmente numa constelao irracionalista) e um positivismo domesticado
(prisioneiro de um racionalismo formal), em cujo bero nascem as cincias sociais40.
39 Inclusive as estritamente filosficas recordem-se os nexos entre a reflexo hegeliana e a economia polticainglesa (Lukcs, 1963).40 Sobre esta crise cultural, cf. especialmente Marx (1976, 1: 96-98), Lukcs (1968: 471-473 e 1968a:49 e ss) eCoutinho (1972: 7-46).
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Redigido no momento de explicitao dessa crise, o Manifestoregistra que as
tradies terico-culturais progressistas no haveriam de se perder: o proletariado
revolucionrio deve assumi-las posto que seu projeto histrico consiste na luta
por uma sociedade em que olivre desenvolvimento de cada um a condio para o
livre desenvolvimento de todos(cf., neste volume, a p. 31) , colocando-se como olegatrio da herana emancipadora41.
Perspectiva de classe e autonomia proletria
A vinculao de Marx e Engels aos interesses proletrios precede a redao
do Manifesto. O jovem Engels, quando de sua primeira estncia na Inglaterra
(novembro de 1842/agosto de 1844), consumou essa vinculao, preparada pela
sua adeso ao comunismo filosficode M. Hess, em estreita interao com o mo-vimento cartista42. Quanto ao jovem Marx43, a ultrapassagem de suas concepes
democrtico-radicais, em direo a posies comunistas, ocorre a partir de meados
de 1843 e se consolida no curso de 1844, em contato com os meios operrios em
Paris44.
No surpreendente a gravitao que o movimento proletrio mais
exatamente: as suas correntes socialistas exercia ento sobre a juventude
intelectual: de fato, na Europa Ocidental da dcada de quarenta, a questo operria
(cujas implicaes, em seguida, o pensamento conservador designar com a
frmula aparentemente neutra de questo social) estava na ordem do dia. Aquela
altura, a par das mobilizaes sociais e polticas protagonizadas por segmentos
trabalhadores, uma larga bibliografia (Villerm, Buret, Ducptiau et alii) ocupava-se
das condies de vida dos contingentes alocados nascente grande indstria,
41 Esta relao do proletariado com o legado terico-cultural emancipador aparece originalmente tematizada notexto em que, pela primeira vez, Marx explicita suas reflexes sobre a revoluo. Com os olhos postos na
Alemanha e identificando aquele legado com a filosofia, escreveu, a propsito da emancipao humana: Ocrebro desta emancipao a filosofia, o proletariado o seu corao. A filosofia no pode realizar-se sem aabolio do proletariado, o proletariado no pode suprimir-se sem que a filosofia se realize (Marx, 1982, III: 397);linhas antes, anotara: Assim como a filosofia encontra no proletariado as suas armas materiais, igualmente oproletariado encontra na filosofia as suas armas espirituais (id., ibid.). Esta idia-fora do jovemMarx tambmimpregna fundamente o pensamento de Engels que, aos 66 anos, no teve nenhuma dvida em afirmar que omovimento operrio alemo o herdeiro da filosofia clssica alem (inMarx-Engels, 1963, 3: 207).42 Registre-se que a aproximao dos dirigentes da Liga dos justosque, na primeira metade dos anos quarenta,viviam em Londres, ao movimento cartista foi estimulada por Engels, dadas as relaes que este j mantinhacom aquele (cf. Engels, inMarx-Engels, 1963, 3: 156).43 A reiterao dajuventudede ambos tem razo de ser: recorde-se ao leitor que tinham menos de trinta anosquando da redao do Manifesto Marx nasceu em 1818 e faleceu em 1883; Engels, nascido em 1820,faleceria doze anos depois do amigo.44 Um estudo fundamental sobre a evoluo intelectual e poltica de ambos antes de 1848, devemo-lo a Cornu
(1955, 1958 e 1962); especialmente acerca de Marx, cf. tambm Lwy (1970). Enquanto o interesse em torno deMarx levou a um rol interminvel de trabalhos sobre a vida e a obra do autor dO Capital, no so to abundantesos textos acerca da vida e da obra de Engels sobre este, o ensaio mais fundamental continua sendo o deMayer (1934), lamentavelmente quase inacessvel, embora dele se registrem edies resumidas em ingls eitaliano; ainda sobre Engels, cf. Marcus (1974) e Vv. Aa. (1979).
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constatando e/ou denunciando a sua misria e o pauperismo. Tambm acumulava-
se um vasto rol de crticas ordem econmica que sucedeu ao Ancien Rgime,
destacadamente as de continuadores de D. Ricardo (por exemplo, Hodgskin). Na
mesma pauta figuravam, ainda para alm dos ecos insurreicionais do
babeuvismo, visveis na proposio blanquista da ditadura do proletariado45
,incontveis projetos de reforma social, os mais significativos conectados vertente
que ulteriormente ser denominada de socialismo utpico, a que no era alheia a
inspirao romntica46.
Estas breves indicaes so evocadas aqui to somente para ressaltar que
se a insero de Marx e Engels no movimento terico e prtico de contestao
ordem burguesa expressa as opes individuais de ambos, ela igualmente condensa
uma tendncia histrico-social mais profunda e sensvel, poca, entre os crculosletrados da Europa Ocidental47. Neste sentido, a filiao de Marx e Engels s
posies do movimento operrio apenas a ilustrao emblemtica de um processo
de radicalizao dos intelectuaisque prosseguiu na segunda metade do sculo XIX
e, renovadamente, ao longo do sculo XX48.
O que deve ser salientado, entretanto, a peculiaridade da vinculao de
ambos ao movimento operrio e revolucionrio pois, diferena de todos os
outros pensadores da poca que experimentaram similar radicalizao, a de Marx e
Engels determinou uma profunda e duradoura transformao no movimento a que
aderiram vitalmente e que o metamorfosearia de modo historicamente substantivo.
Muito resumidamente, o ncleo duroda transformao promovida por ambos,
ainda que o contributo pessoal de cada um deles tenha sido distinto, consiste em ter
elaborado teoricamente a perspectiva de classe necessria para fundar o projeto
comunista revolucionrio. E no Manifesto que, pela primeira vez, aparece
plenamente este trao constitutivo do projeto comunista trao que haver de
demarcar, visceralmente, a radicalidade revolucionria da inspirao marx-
45 Expresso que, como se sabe, no comparece no Manifesto;Marx a emprega na seqncia imediata de 1848e presta-lhe especial ateno ulteriormente, quando da Comuna de Paris (1871).46 Acerca do socialismo utpico, alm do conhecido estudo de Engels (inMarx-Engels, 1961, 2), cf. o materialcontido em Droz, org. (1972); para as relaes desta vertente com o romantismo, cf. Alexandrian (1979).47 Uma passagem do Manifesto, alis, apreende bem a dinmica desta tendncia: [...] Nos momentos em que aluta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissoluo no interior da classe dominante [...]assume um carter to aberto, to violento, que uma pequena frao da classe dominante dela se desvincula e
se junta classe revolucionria [...]. Assim [...] atualmente uma parte da burguesia passa-se para o proletariado,notadamente uma parte dos idelogos burgueses que conseguiram elevar-se compreenso terica domovimento histrico em seu conjunto(cf., neste volume, a p. 17; os itlicos no figuram no original).48 Para instigantes hipteses acerca deste processo em condies histricas mais recentes, formuladas a partirda anlise de outra adeso emblemticaao movimento operrio, a de Lukcs, cf. Lwy (1998: 259-284).
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engelsiana de proposies reformistas (desenvolvidas no interior ou no exterior do
universo proletrio).
A dinmica mesma da ordem burguesa, com o desenvolvimento das
instituies capitalistas at a primeira metade do sculo XIX, criava as condies
scio-histricas para o protagonismo autnomo poltico da classe operria de quetanto a revoluo de 1848 quanto o Manifestose revelaram como ndices. Todavia,
a existncia concreta e objetiva de uma possibilidade no eqivale,
necessariamente, sua converso em efetividade; a passagem de uma
possibilidade efetividade demanda a complexa interveno da atividade
organizada dos homens. Por isso, realcei, pginas atrs, a diferencialidade entre o
plano prtico-poltico e o terico: a revoluo de 1848 colocou, no primeiro, a
concreta possibilidade da auto-percepo do proletariado enquanto classe; oManifesto elaborou teoricamente esta possibilidade entretanto, esta elaborao
no pode ser concebida como uma decorrncia imediata dos processos concretos e
objetivos (histricos) que vinham se operando desde os anos vinte. Antes, o
Manifesto constituiu a resposta teoricamente elaborada que dava conta daqueles
processos e, ao faz-lo, transcendeu-os.
No bastava a existncia histrico-concreta de uma classe social
revolucionria para que emergisse uma conscincia de classe revolucionria era
preciso a elaborao terica da perspectiva desta classe, e este passo no derivava,
nem era uma simples resultante, daquela existncia. Sinteticamente: o trnsito de
uma classe em si condio de classe para sireclama tanto a conscincia do que
est em jogo nos confrontos quanto a autoconscincia da classe que se dispe
luta. da elaborao e explicitao desta autoconscincia, desta consciente
perspectiva de classe, que o Manifesto se fez responsvel. Esta perspectiva de
classe foi, essencialmente, o dado novoposto teoricamente na concreo histrico-
social pela atividade de Marx e Engels. A partir dele, e especificamente dele, esta
perspectiva (de classe proletria) inscreveu-se como constitutivo ineliminvel no
projeto e no processo da revoluo que se direciona ao comunismo.
Antes do Manifesto, as propostas socialistas (mesmo as gestadas no interior
do movimento dos trabalhadores) careciam de uma perspectiva de classe ou,
quando a possuam embrionariamente, seu carter era to tosco que dela no se
podia inferir o papel protagnico da classe. A ausncia desta perspectiva notria,
por exemplo, mesmo nos mais avanados dos socialistas utpicos:o trao idealista-
iluminista que lastreava seu pensamento depositava na base da proposta social-
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transformadora os interesses do conjunto das classes sociais o que, at nos
utpicos mais clarividentes, conduziu a sugestes patticas49. Nas tendncias mais
radicais, de enraizamento tardo-jacobino e plebeu, a intencionalidade classista era
apangio de uma vanguarda restrita, qual cabia o papel de sujeito histrico
(Blanqui) ou era condicionada ao movimento da massa dos oprimidos(Weitling). Noprimeiro caso, a ao organizada e combativa dos trabalhadores era descartada
(Owen); no segundo, esta ao era deslocada para uma minoria(Blanqui)50.
Em ltima instncia, a ausncia da perspectiva de classe proletria
determinava a subordinao poltica dos trabalhadores51. Ora, assentado numa
clara perspectiva de classe, o Manifestoinstaura, teoricamente, a autonomia poltica
da interveno social dos trabalhadores e do seu projeto societrio52.
Perspectiva de classe proletria e conhecimento terico
Duas observaes, a esta altura, se fazem necessrias, antes de prosseguir
enfatizando a questo da perspectiva de classe.
Em primeiro lugar, cumpre recordar que a considerao das classes sociais (e
seus confrontos) na anlise histrica no foi inaugurada no Manifesto, nem consti-
tuiu uma inovao introduzida pelos seus autores quanto a este aspecto, as
prprias notaes de ambos so inequvocas53.
O passo fundamental que se d no Manifesto, vinculado saturao daquela
considerao pela histria em ato, com a qual o confronto de classes posto no
centro da dinmica da ordem social contempornea, a inteira historicizao da
centralidade das lutas de classes: radicalizadas na ordem contempornea, elas no
49 Recorde-se que Owen preparou um memorial dirigido a todos os republicanos vermelhos, comunistas esocialistas da Europa, enviado tanto ao governo provisrio francs de 1848 quanto... rainha Vitria e seusconselheiros responsveis!50
Owen [...] repudiava todo recurso violncia [...] ou luta de classes; a proposta de Blanqui ancorava-se naf na eficcia de um pequeno partido armado, muito disciplinado, organizado para a revoluo e destinado aestabelecer uma ditadura que dirigiria a educao do povo [...]. No acreditava num partido de massas, ponto noqual a sua doutrina sobre a ditadura do proletariado distingue-se essencialmente da de Marx (Cole, 1974, I: 132,167-168).51 Alis, foi tambm por condenarem os trabalhadores a esta subordinao, na medida em que lhes propunham aabsteno poltica, que Marx criticou Proudhon e os socialistas da poca (fourieristas na Frana, owenistas naInglaterra) cf. as pginas finais da Misria da filosofia(Marx, 1985).52 Lembremo-nos da evocao de Engels de que o Manifestofunda-se na idia de que a emancipao da classeoperria tem de ser obra dos prprios trabalhadores (cf. supra, nota 21).53 Em 5 de maro de 1852, Marx escrevia, em carta a Weydemeyer: No que me concerne, no me cabe o mritode haver descoberto nem a existncia das classes, nem a luta entre elas. Muito antes de mim, historiadoresburgueses j haviam descrito o desenvolvimento histrico dessa luta entre as classes e economistas burgueseshaviam indicado sua anatomia econmica (inMarx-Engels, 1963, 3: 253-254). E, em 1886, Engels esclarecia:
Desde [...] a paz europia de 1815, pelo menos [...], j no era segredo para ningum, na Inglaterra, que a lutapoltica girava em torno das pretenses de domnio de duas classes: a aristocracia fundiria (landed aristocracy)e a burguesia {middle class). Na Frana, o mesmo fato tornou-se evidente com a volta dos Bourbons; oshistoriadores do perodo da Restaurao, de Thierry a Guizot, Mignet e Thiers o proclamam constantementecomo o fato que d a chave para compreender-se a histria da Frana, desde a Idade Mdia (id., p. 200).
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so um elemento eternoe naturalda socialidade, antes so concretamente situadas
(mesmo transistoricamente54) e encontram resoluo ao propiciar condies para a
passagem a um ordenamento social que as suprime, pela supresso das prprias
classes55.
Em segundo lugar, cabe notar que, para alm da relaopossibilidade/efetividade histricas, j tangenciada anteriormente, Marx e Engels
no incorporaram to somente a realidade emprico-ftica posta pela dinmica
capitalista at a segunda metade do sculo XIX. Sua elaborao terica, que
naturalmente se beneficiou de pistas histricas de que careceram os pioneiros do
movimento socialista, no permaneceu prisioneira delas tomando-as como
indicadoras de processos mais substantivos, sua elaborao capturou as tendncias
de fundoque elas sinalizavam. O nvel de concreo histrica alcanado por estaelaborao deve-se precisamente correo do enquadramento terico-
metodolgico que a orientou: o Manifesto, por ir muito alm de uma descrio da
realidade da ordem burguesa na primeira metade do oitocentos, por apreender as
tendncias substantivas que a tensionavam, foi capaz de antecipar, reproduzindo
idealmente um movimento estrutural, um quadro societrio que s posteriormente
adquiriria plena visibilidade.
Com efeito, por mais que o mundo burgus dos anos quarenta j explicitasse
a sua diferencialidade em face do Ancien Rgime, por mais que a ordem do capital
j objetivasse os seus traos inditos e peculiares, a superfcie da vida social ainda
no oferecia elementos probatrios do protagonismo scio-histrico que o Manifesto
atribui ao proletariado s as dcadas seguintes haveriam de conferir plenas
evidncia e densidade a esse protagonismo56. Apenas uma rigorosa anlise das
54 Para o Manifesto, as lutas de classes so postas como uma realidade transistrica (nunca supra ou meta-histrica) logo no primeiro pargrafo do texto e a nota de Engels edio de 1888 concretiza ainda mais esta
determinao (cf., neste volume, a p. 4). Marx e Engels sustentariam esta concepo ao longo de toda a suavida.55 No direto seguimento do trecho mencionado da carta citada na nota 53, Marx conclui: O que eu trouxe denovo foi: 1) demonstrar que a existncia das classes est ligada somente a determinadas fases dedesenvolvimento da produo;2) que a luta de classes conduz, necessariamente, ditadura do proletariado;3)que essa prpria ditadura nada mais que a transio abolio de todas as classese a uma sociedade semclasses (op. e loc. cit., p. 254; itlicos originais; observe-se que a carta de 1852, donde a referncia ditadurado proletariado cf. supra, nota 45).56 Se Marx e Engels operassem, positivisticamente, no limite dos fatos, certamente o Manifestono explorariaqualquer potencialidade operria. Escreve um renomado especialista acadmico que, mesmo na Inglaterra, aoficina do mundo, orecenseamento de 1851 mostra um pas em que a agricultura e o trabalho domstico eram,de longe, as ocupaes mais importantes [e] em que a maior parte da fora de trabalho estava empregada emindstrias do tipo antigo (Landes, 1994: 126); e sobre o quadro europeu: Enquanto, em 1851, cerca de metadeda populao da Inglaterra e do Pas de Gales vivia em cidades, a proporo, na Frana e na Alemanha, era de
aproximadamente 1/4;somente nos ltimos anos do sculo que a populao urbana ultrapassou a rural naAlemanha; na Frana, o ponto de equilbrio entre as duas s veio depois da Primeira Guerra Mundial. Adistribuio ocupacional conta uma histria similar. Em meados do sculo, apenas Vi da fora de trabalhomasculina inglesa (com vinte anos ou mais) estava empregada na agricultura. Na Blgica, a nao maisindustrializada do Continente, a cifra era de cerca de 50%. A Alemanha levou mais 25 anos para chegar a esse
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tendncias estruturais da ordem burguesa, capaz de projet-las acertadamente,
poderia antecipar a centralidade do proletariado nos processos de transformao
social substantiva e sobre uma tal anlise que se funda o Manifesto57.
Feitas estas duas observaes, posso retornar questo da perspectiva de
classe do proletariado. Como fiz notar, ela transcende, mesmo que as suponha, asdimenses diretamente polticas: tanto a mobilizao dos trabalhadores como a
adeso s demandas e s aspiraes da classe operria, a vinculao aos seus
movimentos reivindicativos e contestadores, podem operar-se base de inmeras
causalidades, motivaes e intencionalidades, sem que impliquem, direta e ime-
diatamente, a elaborao e a incorporao consciente da perspectiva de classe
proletria. Esta elaborao resulta de um movimento essencialmente terico.
Um tal movimento supe a anlise histrico-social tomando a sociedade comototalidade concreta, em cujo interior a reproduo da vida social matrizada a partir
das condies da produo material, para a qual as funes exercidas pelo
proletariado ( diferena das outras classes sociais) so ineliminveis. A perspectiva
de classe proletria s pode ser rigorosamente fundada a partir de um processo
unitrio de determinaes, mas que corre em duas vias: aquela que permite
apreender esta classe como produtora das condies objetivas e primrias para a
reproduo material das relaes sociais e aquela que permite, sobre esta com-
preenso, apreender a configurao macroscpica da ordem burguesa. Trata-se de
um processo terico em que o conhecimento da totalidade concreta que a
sociedade macroscpica tambm o conhecimento da classe. Um processo que
pe, simultaneamente, o conhecimento da classe e o conhecimento da sociedade
global em que ela se movimenta conhecimento terico e conscincia de classe
aparecem, numa unidade tensa, configurando as bases de uma autoconscinciaem
que se expressa e se condensa a perspectiva da classe.
A perspectiva de classe proletria constitui-se, assim, no marco de um
processo terico em que aparece como resultado e premissade conhecimento:
resultado na escala em que emerge na intercorrncia de desenvolvimentos terico-
ponto; de fato, ainda em 1895, havia mais gente trabalhando na agricultura do que na indstria. E, na Frana, aindstria ficou atrs em termos numricos at a Segunda Guerra Mundial e a recuperao econmica que a elase seguiu (id., p. 195). Na verdade, a industrializao realmente macia [...] s ocorreu depois de 1848; ao fimda primeira metade do oitocentos, a classe trabalhadora [...] naturalmente crescia de forma vertiginosa.Contudo, exceto na Gr-Bretanha, na melhor das hipteses podia ser contada em centenas de milhares, masno em milhes. Comparada com o total da populao do mundo, ainda era numericamente desprezvel e, em
todo o caso uma vez mais com a exceo da Gr-Bretanha e alguns pequenos ncleos em outros pases ,era uma classe desorganizada (Hobsbawm, 1988: 192, 325).57 por isto que se pode, legitimamente, observar que, no Manifesto, Marx e Engels descreveram no o mundoconforme j transformado pelo capitalismo em 1848, mas previram como o mundo estava logicamente fadado aser transformado por ele (Hobsbawm, 1998: 301).
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culturais prvios, intensivamente explorados e recriados; premissa de novo
conhecimento na medida em que, a partir de seus parmetros, subverte o modo de
apreender e elaborar os novos materiais postos no horizonte da anlise.
Insistamos: este um processo especificamente terico mas tem supostos
necessariamente scio-polticos: apenas possibilitado se, no plano histrico-concreto, a classe proletria dispe de uma posio material-objetiva (condicionada
por um determinado nvel de desenvolvimento capitalista) que a qualifica para o
protagonismo revolucionrio. Entretanto, a elaborao da sua perspectiva de classe
que pode viabilizar a sua conscincia revolucionria de classe tem nesta
posio material-objetiva somente o seu suposto; a elaborao terica que a
instaura58. Em assim sendo, a perspectiva de classe no pode se constituir seno
quando se conjugam possibilidades revolucionrias no plano scio-poltico e noplano terico-cultural em ambos os planos, so-lhe necessrios acmulos.
claro que estes traos prprios elaborao da perspectiva de classe
pertinente ao proletariado tm a ver com o fato de que toda poca de revoluo
social subverte a totalidade das relaes sociais, a includas as concepes de
mundo, as representaes sociais, os valores, os conhecimentos acerca da
sociedade, a cultura, enfim59. Mas o que peculiar e, para retomarmos uma
interpretao do protagonismo revolucionrio do proletariado proposta
problematicamente numa obra da qual o autor se distanciou (Lukcs, 1923), o que
absolutamente peculiarno caso da perspectiva de classe proletria consiste em que,
para o seu carter revolucionrio, o conhecimento terico rigoroso constitui uma
condio ineliminvel. No caso do proletariado, a perspectiva de classe s
revolucionria se se fundar numa correta compreenso da sociedade e de si
mesmo; neste caso, a correo terica uma questo poltica de vida ou de morte
para o protagonismo revolucionrio do proletariado e isto seja em razo das
58 No retornarei, aqui, s vinculaes, j tangenciadas, entre teoria e histria, ao fato de que tal elaboraoterica supunha suportes histrico-concretos (a dinmica capitalista a um certo grau de sua maturao, odesenvolvimento da classe operria etc); uma notao marxiana expressa luminosamente esta conexo entrepensamento e realidade: No basta que o pensamento tenda realizao, preciso que a realidade mesmatenda ao pensamento (Marx, 1982, III: 392).59 Numa sntese muito apertada e bem posterior ao Manifesto, diz Marx, recorrendo a metfora que no pode serqualificada de feliz: A totalidade [... das relaes de produo] forma a estrutura econmica da sociedade, abase real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurdica e poltica, e qual correspondem formas sociaisdeterminadas de conscincia. O modo de produo da vida material condiciona o processo em geral de vida
social, poltico e espiritual. [...] Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as foras produtivas materiais dasociedade entram em contradio com as relaes de produo existentes [...]. De formas de desenvolvimentodas foras produtivas essas relaes se transformam em seus grilhes. Sobrevm ento uma poca derevoluo social. Com a transformao da base econmica, toda a enorme superestrutura se transforma commaior ou menor rapidez (Marx, 1982: 25).
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condies em que o proletariado conduz as suas lutas de classe, seja em razo dos
seus objetivos emancipadores60.
A elaborao da perspectiva de classe o requisito para que o proletariado
se posicione conscientemente como sujeito revolucionrio, para que supere
idealmente a sua subalternidade na ordem burguesa. Se esta superao idealsupea possibilidade concreta de romper praticamente com a subordinao, ela,
simultaneamente, constitui o componente indispensvel para o rompimento prtico
ou, retomando uma passagem anterior da minha argumentao, o catalisador
da converso da possibilidade em efetividade. Da a sua importncia vital para a luta
de classe revolucionria do proletariado, da a sua insero compulsria, enquanto
processo de elaborao terica, nas lutas prticas da classe.
O Manifesto o documento poltico em que, pela primeira vez, se expressateoricamente a perspectiva de classe do proletariado ou seja: em que o prole-
tariado rompe com a sua subordinao e se prope como sujeito histrico
revolucionrio.
O Manifesto:anlise terica e proposta poltica
base da elaborao da perspectiva de classe do proletariado aquele
ponto arquimdicoque, historicamente posto pela posio ocupada pelo proletariado
na estrutura da sociedade burguesa, sustenta o patamar terico que permite
compreender a dinmica social em seu movimento macroscpico e totalizante
formula-se a programtica poltica do Manifesto. Nele, portanto, h trs nveis
constitutivos, distintos ainda que imbricados: a perspectiva de classe, a anlise
terica e a proposta poltica.
Com muita freqncia, as apreciaes do Manifestoconfundem e identificam
esses nveis donde, inclusive, a preocupao deste prlogo no acento conferido
ao primeiro deles , identificao tanto mais persuasiva quanto mais evidente o
carter poltico-programtico do texto. Todavia, necessrio distingui-los, seja
porque deles decorre a peculiaridade do prprio carter poltico do Manifesto, seja
porque permite situ-lo melhor no conjunto da obra de Marx e Engels.
60 Escrevendo em junho de 1919, Lukcs pontuava: No era a luta de classe do proletariado, ao mesmo tempo,o despertar da sua conscincia de classe? Ora, o despertar desta conscincia surgia por todo o lado aoproletariado como conseqncia do conhecimento da verdadeira situao, da conexo real entre osacontecimentos histricos. precisamente isso que confere luta de classe do proletariado a sua posio
particular entre todas as lutas de classes, pois recolhe a sua arma mais acerada das mos da cincia verdadeira,da viso clara da realidade com vistas ao. Enquanto nas lutas de classe do passado as mais diversasideologias, formas religiosas, morais ou outras formas de falsa conscincia eram decisivas, a luta de classe doproletariado, guerra emancipadora da ltima classe oprimida, encontrou no desvendar da verdade o seu grito deguerra e tambm a sua arma mais eficaz(Lukcs, 1965: 258; os itlicos no so do original).
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Consensualmente, o Manifesto tem sido visto como um documento poltico,
mais exatamente poltico-programtico e no h por que colocar em questo este
seu trao elementar. A sua peculiaridade, contudo, reside em inaugurar, no marco
de uma tradio j firmada desde os desdobramentos da Revoluo Francesa61, um
estilo de formulao poltico-programtica. Nele, a proposta poltica no se perfila apartir de opes e escolhas derivadas de uma vontade coletiva livre, autnoma em
face de condicionalismos que permanecem obscuros ou ignorados; bem ao
contrrio: a proposta poltica aparece, intencional e explicitamente, fundada numa
anlise terica. No por economia de exposio ou de arquitetura formal que a
programtica se mostra quase como concluso de operaes tericas ou que os dez
pontos que resumem as medidas de implementao para os pases mais
avanados (cf., neste volume, as pp. 30-31) s estejam arrolados ao fim de umpanorama analtico62; so outras as razes que respondem por esta caracterstica.
Tais razes remetem ao radical anti-utopismode Marx e Engels, expresso
sem qualquer ambigidade no Manifesto63, que os acompanhar por toda a vida e
cancelar qualquer veleidade de prever como ser a sociedade emancipada (ou
oferecer receitas para ela), mantendo as suas prospeces numa faixa de
sobriedade que contrasta flagrantemente com a da maior parte dos tericos e
pensadores sociais. No Manifesto, alis, o trao utpico que marcou o movimento
socialista claramente vinculado debilidade do proletariado o utopismo
debitado por Marx e Engels ao fato de o proletariado, em condies de
desenvolvimento limitado, carecer de uma clara viso de sua posio na sociedade
burguesa (cf., neste volume, a p. 43)64.
61 A forma manifesto, tomada como tal, dista muito da originalidade: de 1789 em diante, foi reiteradamenteutilizada pelas mais diversas correntes polticas, numa sucesso em que ocupa lugar de honra o Manifesto dosiguais, a partir do qual se constituiu o babeuvismo neste sentido, o documento de 1848 insere-se numa
respeitvel tradio.62 O contedo estritamente programtico do Manifestos comparece ao fim da segunda seo (ou captulo, sese quiser) e na quarta; observe-se, comparativamente, o espao que ocupa e ver-se- que ele no excede a umquinto do conjunto do texto.63 Este radical anti-utopismo (que, como observou Vranicki, em passo que reproduzimos nas primeiras pginasdeste prlogo, fez com que Marx e Engels se negassem a aderir Liga dos justos) ser sempre umacaracterstica do pensamento de ambos. No Manifesto, l-se: As proposies tericas dos comunistas no sebaseiam, de modo nenhum, em idias ou em princpios inventados ou descobertos por este ou aquelereformador do mundo. So apenas expresses gerais de relaes efetivas de uma luta de classes que existe, deum movimento histrico que se processa diante dos nossos olhos (cf., neste volume, a p. 21). Contudo, nestapassagem apenas ressoa algo j explcito nA ideologia alem: Para ns, o comunismo no um estado decoisas que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade dever se adequar. Denominamoscomunismo o movimento realque supera o estado de coisas atual. As condies deste movimento resultam depressupostos atualmente existentes {inMarx, 1982, III: 1067).64
Marx e Engels afirmam, mesmo, que a importncia do socialismo e do comunismo crtico-utpicos inversamente proporcional ao desenvolvimento histrico. Na medida em que a luta de classes se desenvolve eganha formas mais definidas, o empenho em elevar-se acima dela e a oposio fantstica a ela perdem todovalor prtico e toda justificao terica (cf., neste volume, a p. 43). Valeria a pena investigar, diante dareabilitao contempornea da imaginao utpica (largamente estimulada pelas recentes derrotas do
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Entretanto, h algo mais e essencial que o anti-utopismo situando a
programtica a partirda anlise. Marx e Engels, j por esta poca, tinham suficien-
temente esclarecida a questo do papel do sujeito social (coletivo, classista) na
histria: sabiam-no livre em suas opes dentro de um marco determinado de
alternativas concretas. Compreendiam que a ao poltica eficazno podia derivarunilateralmente da vontade do sujeito nem da sua passividade diante do movi-
mento social; ao contrrio, a ao poltica eficiente deveria ultrapassar as antteses
do voluntarismo e do fatalismo. A liberdadede escolha na indicao de objetivos
polticos est na razo direta do conhecimento dos processos em curso: quanto
mais conhece os processos em que est inserido, mais livre o sujeito para
circunscrever os fins a que visa. Assim, o conhecimento mais aproximado das
determinaes e conexes sociais torna-se a base imprescindvel para viabilizar aconcreta liberdade de ao. A programtica comunista (e a ao conseqente) no
resulta de escolhas abstratas: resulta de opes que se tornam factveis pelo
conhecimento que se adquire dos processos em cujo interior so tomadas.
Por isto mesmo, leituras voluntaristas e/ou deterministas do Manifesto so
igualmente equivocadas65, embora ambas no se contem raramente na tradio
marxista66. O projeto comunista, assim como proposto no texto, realizvel porque
as tendncias efetivas e estruturais da dinmica da ordem burguesa pem pro-
blemas tais, e possibilidades tais, que s podem ter a sua resoluo positiva com a
passagem do proletariado a classe dominante, [que significa] a conquista da demo-
cracia pela luta(cf., neste volume, a p. 29; os itlicos no so originais); somente
esta articulao de tendncias determinadas objetivamente e vontade poltica
(de classe) organizadaque pode assegurar que a queda da burguesia e a vitria
do proletariado so igualmente inevitveis (cf., neste volume, a p. 20). Sem esta
articulao, no h qualquer garantia de xito para a classe operria porque, nas
sociedades de classes, sempre h alternativas para a resoluo dos antagonismos
sociais o que nos lembra o Manifestonas suas primeiras linhas: as lutas de
classes so uma guerra que sempre terminou ou com uma transformao re-
volucionria de toda a sociedade ou com a destruio das classes em luta (cf.,
movimento proletrio e comunista), se esta avaliao marx-engelsiana no demanda novos desenvolvimentospara manter-se qualificadamente.65 Em face do Manifestoe, mais amplamente, do conjunto do pensamento e da obra de Marx, inmeros analistaschegaram a identificar a dominncia de uma viso determinista ou a coexistncia de dois marxismos, um
libertrio e outro cientificista aqui, a documentao a ser referida seria largussima e me limito a uma nicaindicao, que tem mritos incontestes: Gouldner (1983).66 E, freqentemente, umas pretendendo corrigir os desvios das outras, e numa concomitncia tal que umanalista chegou a considerar voluntarismo e fatalismo uma polaridade antittica, contraditrios apenas numaperspectiva no-dialtica e no-histrica (Lukcs, 1965: 21).
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neste volume, a p. 5; os negritos no so originais). O Manifesto, portanto, no
absolutiza, deterministicamente, a chance nica da vitria proletria e da
emancipao pelo comunismo (ainda que, compreensivelmente, dado o seu papel
de manifesto, tambm destinado a convocar adeses apaixonadas, privilegie esta
alternativa); pode muito bem ocorrer como o Manifestoassinala inequivocamentelogo no segundo pargrafo da sua seo inicial , ao invs da conquista da
emancipao, a instaurao da barbrie.
O estilo de formulao poltico-programticado Manifesto, como se verifica,
supe uma fundamentao analtica para a prtica poltica; donde a j evocada
unidadeentre teoria e ao, donde a justeza da notao segundo a qual sem teoria
revolucionria, no existe movimento revolucionrio (Lnin) notao que no
pode fazer esquecer que o movimento revolucionrio dinamiza a teoria que lhecorresponde: como vimos, a perspectiva de classe configura-se como espao de
mediaes entre ambos. Entretanto, o ritmo e a dinmica (para alm da
especificidade estrutural de cada uma) da teoria e da ao so diversos; mas isto
no significa, obviamente, que acmulos e diferenciaes numa instncia deixem de
rebater em outra. com esta pontuao que podemos tratar da posio do
Manifestono conjunto da obra marx-engelsiana.
Afirmamos h pouco e o reiteramos literalmente: o Manifesto preparado
quando Marx e Engels j dispem das referncias terico-metodolgicas funda-
mentais com que trabalharo pelo resto de suas vidas; o documento redigido
quando ambos j tinham assentadas as linhas-de-fora de sua concepo terica da
histria, da sociedade e da cultura67. Por isto mesmo e porque a perspectiva de
classe proletria igualmente j estava elaborada , eles nunca, numa atitude que
mantero at o fim de suas vidas, se propuseram a revisar e/ou retificar o
documento em seus princpios gerais, que, ainda em 1872, consideravam como
plenamente corretos68.
67 Um dos aspectos mais risveis na atual cruzada anti-marxista a acusao segundo a qual Marx (e Engels)no teriam ponderado, em suas concepes tericas, a gravitao e o peso da cultura. Se acusaes destegnero querem demonstrar que Marx e Engels no foram antroplogos (como no foram especialistasacadmicos de nenhum gnero), elas so tolices acabadas; se querem sugerir que no deram ateno cultura,mesmo no modernosentido do termo, so ineptas como se pode comprovar textualmente ao longo da obramarxiana; vale apenas um nico exemplo, extrado de um texto econmico, para dar uma idia da atenomarxiana cultura: discutindo a perdurabilidade da forma comum da propriedade da terra entre os eslavos, Marxdebita-a fora com que eles se prendem a suas tradies (Marx, 1965, I: 261).68
Cf. o prefcio edio alem de 1872 (neste volume, pp. LXXX1-LXXXII); neste prlogo, darei por conhecidase, portanto, no as retomarei, as observaes (auto)crticas dos autores feitas ali. Mas releva notar que eles nodeixam dvidas sobre o fato de, passado um quarto de sculo desde a publicao do documento, os pontosprogramticos especficos demandarem uma reavaliao.
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Todavia, no mesmo passo em que fizemos aquela observao, salientamos
que tanto Marx quanto Engels estavam longe dos ganhos tericos que acumulariam
na sua trajetria ulterior. A continuidade de suas pesquisas, a experincia prtico-
poltica e o seu pleno amadurecimento intelectual haveriam de conduzi-los a novas
determinaes tericas e a descobertas que no poderiam estar contempladas noManifesto e que, mesmo que no digam respeito aos seus princpios gerais,
colocam problemas que devem ser levados em conta numa leitura crtica. Uma
leitura com esta caracterstica, por seu turno, precisa distinguir destes problemas as
questes que interpelam o Manifesto nos seus cento e cinqenta anos de
divulgao: as que se referem a antecipaes tericas que no foram confirmadas
pela experincia histrica.
Concepes do Manifesto:superao e infirmao
Uma leitura do Manifestono quadro de conjunto da obra de Marx e Engels
revela com meridiana clareza que algumas das concepes estritamente
econmicas (no sentido da economia poltica clssica) expressas ou subjacentes no
documento de 1848 foram superadas pelos autores no curso dos anos seguintes
mais exatamente, no caso de Marx, entre 1857 e 1865 (perodo que configura, alis,
o seu apogeu intelectual)69. Elas dizem respeito, primariamente, teoria do valore
dinmica do sistema capitalista como totalidade.
No primeiro caso, o Manifesto mesmo considerando o carter explorador
do capital na sua relao com o trabalho est longe de compreender que o
trabalhador no vende ao capitalista o seu trabalho (tal como se afirma nas suas
sees I e II), antes a sua fora-de-trabalho. No se trata de uma simples preciso
conceituai, introduzida posteriormente por Marx: trata-se do apuramento de uma
distino que permitir discernir o tempo de trabalho necessrio do tempo de
trabalho excedente, com o que a teoria do valor-trabalho recriada por Marx e a
modalidade especfica da explorao capitalista com a categoria rigorosa da
mais-valia pode ser apreendida pela teoria. Conseqentemente, a determinao
precisa do valor desta mercadoria peculiar que a fora-de-trabalho est
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Sinalizo estas datas porque no decurso temporal marcado por elas est a redao dos j citados Grndrisse, ados manuscritos de 1861-1863e a dos de 1863-1865, esta ltima concluda pouco antes do incio da redaodefinitiva do primeiro volume d0 capital (janeiro de 1866); para uma aproximao histria deste conjuntomonumental (inclusi