Maly - Léa Michaan (1º capítulo)

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Maly

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Léa Michaan

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Para Mauricio e à família que juntos construímos.

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Pietro

BenoPai adotivo

Bisavó do Pietro Bisavô do Pietro

Sara RachelAvó da Pietro

BenAvô da Pietro

Arthur

Rebeca

Jonathan

Rafael

Bianca

Lior Pietro

FrancescaMãe adotiva

Max Pietro Martina

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Bisavó de Maly Bisavô de Maly

David Tio-avô da

menina Maly

Maly Tia-avó da

menina Maly

Hanna Avó de Maly

Alfredo

RalphAvô de Maly

Júlia

Henri Noemi Maly

Maly

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Livro um

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.

Há tempo de nascer, e tempo de morrer... Tempo de chorar e tempo de rir.”

Rei Salomão, Jerusalém 971 a.C – 931 a.C.

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Capítulo1

A pequena cidade de Bom Nome está adormecida. Todas as casas da Rua das Laranjeiras se encontram com as luzes apa-gadas; a exceção é a residência da família Greenberg, mais

precisamente é do quarto de Maly que vem, de um delicado abajur, uma bruxuleante luz. Um objeto delicado, contudo, o grande res-ponsável por quebrar a harmoniosa escuridão da área. Se alguém passasse rapidamente pelo conjunto das bem cuidadas e aconche-gantes casas que compõem a rua, veria essa pequena luzinha a ilu-minar o quarto que se deixa transparecer para a penumbra da noite, através da fina cortina cor-de-rosa, uma vez que a menina gosta de despertar sendo envolvida pelos primeiros raios de luz da manhã. Interessante é notar que do mesmo modo que ela não quer perder o início de cada dia, quando chega à noite, também não quer dormir, porque entende que isso seria desperdiçar tempo da vida. Assim, somente após muitas negociações ela aceita se deitar. Isso parece ser quase um ritual. Mas nessa noite, Maly conseguiu que seu pai conte a história de quando ele era pequeno como ela. História essa, que traz também a origem de seu nome.

O pai aceitou recontar sua história porque sabe que a filha, assim como a maioria das crianças, gosta muito de saber que os pais já foram pequenos. Talvez, porque seja muito difícil para elas assimi-larem este fato e por isso, precisam ouvi-lo diversas vezes. Pode ser também que o motivo seja apenas imaginar o pai ou a mãe como um companheiro de brincadeiras. Ou ainda gostem tanto, para te-rem a certeza de que do mesmo modo como seus pais, um dia cres-cerão e serão adultas.

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Alfredo, o pai de Maly, é sábio, e entende que mais que tudo, as crianças apreciam conhecer sobre a vida dos pais para saberem de onde vieram. Assim, provavelmente, isso as ajude a compreender onde se encontram e, futuramente, elas possam escolher o caminho que seguirão.

O pai é um grande contador de histórias. Quando o faz, dá a en-tonação correta a cada palavra, um toque suave quando necessário; transformando a narrativa em cenas muito vívidas. Naquela noite, sem outra opção a não ser se render aos pedidos da filha, cobre-a de maneira a aconchegá-la em sua cama. A menina se deita de lado, dando as costas para a parede, ficando de frente para o pai, e re-pousa a cabeça sobre o travesseiro macio, sentindo-se tranquila e ao mesmo tempo ansiosa, como alguém que aguarda o início de uma bela peça de teatro. O pai apaga a luz e se senta confortavelmente, ao seu lado na cama. A vontade de Alfredo é que no escurinho do quarto as imagens da narração apareçam, com maior nitidez. Ele inicia a história com o nascimento de sua mãe, Hannah, porque reconhece o encantamento que esta passagem tem sobre a filha, pois ela sempre pede que lhe conte os detalhes da história da avó. Naquele instante, Alfredo jamais imaginaria que em breve tudo o que ficaria para Maly seriam as histórias de seus familiares.

O pai encosta a cabeça na cabeceira macia da cama, fecha os olhos e entra em um passado longínquo.

“Hannah, a avó de Maly, nasceu na Alemanha, em uma época muito diferente. Estamos falando do no ano de 1900, bem no início do século XX, antes mesmo das duas grandes guerras mundiais...

No mês de maio, quando Hannah veio ao mundo, era um lindo dia de primavera, na Europa. O clima aqui no Brasil é tropical e o clima europeu, é bem diferente do nosso. Lá, as estações do ano são

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bem definidas, e a primavera tem um clima ameno que propicia o surgimento de todos os tipos de flores, principalmente a Edelweiss, uma linda flor branca.

Naquele tempo, era comum os judeus habitarem vilarejos agrícolas formando pequenas comunidades, as quais denominavam Shteitel. Cada um desses povoados recebia um nome, e o lugar onde Hannah nasceu, provavelmente devido à grande quantidade de Edelweiss que ornava seus prados, recebeu o nome dessa flor.

Quando a avó de Alfredo entrou em trabalho de parto, estava sozi-nha em casa, apenas seus dois filhos pequenos brincavam no jardim. Contudo, quando Maly, a filha mais velha, ouviu os gritos da mãe, correu em seu auxílio. É daí que vem o seu nome, ele é o mesmo que o de sua tia-avó. Naquela época, Maly tinha apenas seis anos de idade, mas já era capaz de ajudar a mãe na árdua tarefa de dar à luz. A avó de Alfredo era parteira e a filha sempre a acompanhava, e quase que já ajudara todas as parturientes de Edelweiss. Então, a menina sabia o que fazer em situações como aquela.

Enquanto sua mãe fazia força para expelir o bebê já maduro de seu ventre, Maly empurrava-o para baixo com toda a sua força, sob a pele da gigantesca barriga da mãe. Ela trabalhava agilmente com as suas mãozinhas, sabendo muito bem em que ponto do abdome deveria pressionar, distinguindo com facilidade uma boa contração. Naquela época, talvez por não existir TV, e mesmo obter livros ser mais difícil, as crianças tinham um grande acesso ao conhecimento dos fatos naturais da vida. Principalmente aquelas que moravam em vilarejos agrícolas, pois se ocupavam em tirar leite da vaca, dar de co-mer às galinhas, escovar o pelo do cavalo. Também sabiam as regras do plantio, como e quando era o momento mais propício para regar e colher. Elas cresciam aprendendo tudo o que se refere à natureza.

Foi dessa maneira que a pequena Maly e sua mãe realizaram o parto sem o auxílio de mais ninguém. A menina passou por todo

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aquele momento de tensão, enquanto o bebê realizava a passagem entre os dois mundos, saindo do universo das águas para ingressar no do ar. Então, Maly cortou o cordão umbilical com a grande tesoura que já estava preparada para isso na gaveta do criado-mudo ao lado da cama da mãe, pegou com uma das mãos o corpinho, e com a outra a cabecinha, segurando-a com vigor e implorando, silenciosamente, para que o neném inspirasse o oxigênio, que já não chegava ao seu organismo por meio do cordão umbilical rompido. A garota desejava ardentemente que, ao inspirar o ar, o bebê introjetasse a vida e o mundo. Ao vê-lo abrir a boca e admitir a entrada do ar e, por este, o sopro da vida, Maly respirou aliviada e limpou, delicadamente, com um pano úmido, o sangue que estava na pele da criança. E só então se deu ao luxo de reparar no sexo do bebê. A menina ficou muito feliz por sua descoberta; afinal, já tinha um irmão e ansiava por ter uma irmã, mas até aquele momento estivera tão ocupada limpando, cui-dando e ajudando a mãe, que nem pudera comemorar o nascimento da pequena Hannah. E assim, Hannah nasceu no mesmo leito onde havia sido concebida, como era comum naquela época; pois, o univer-so das pessoas restringia-se às suas casas e arredores.

Maly tinha consciência de que dali em diante teria muito mais tra-balho, uma vez que a mãe ficaria, durante algum tempo, de resguar-do; tendo como prioridade amamentar a pequena Hannah. Caberia a ela auxiliar a mãe a se recuperar do parto, ajudar a cuidar do irmão menor, da irmãzinha recém-nascida e também, preparar o jantar e se ocupar com as tarefas domésticas.

O tempo foi passando... Após o nascimento de Hannah, a mãe não pôde mais ter filhos.

O que também foi recebido como uma bênção, devido às dificuldades da época. Assim, Hannah era a caçula, e o seu mundo se resumia a uns mil metros para fora do portão da sua casa, entre a vizinhan-ça de Edelweiss e o seu lar. Contudo, o principal atrativo para ela

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não eram as bonecas ou as brincadeiras com as crianças vizinhas, muito menos as atividades destinadas às meninas, dentro de casa. O seu maior interesse era o objeto que estava no quarto ao lado do seu: o violino que pertencia a David; o irmão quatro anos mais velho do que ela. David nunca deixava que ela encostasse um dedo sequer no valioso instrumento. Mas Hannah não se intimidava; muito pelo con-trário. Então, desde o momento em que ele ia para a escola até o seu retorno; o que significava muitas horas, pois a escola era em período integral; ela treinava violino.

Provavelmente, David contribuiu muito para o desenvolvimento musical de sua irmã ao tentar impedi-la de chegar perto do instru-mento. Conforme o dito popular, tudo o que é proibido é mais gos-toso. E também, tudo o que é um desafio possui a força de um eficaz estimulante. É possível ainda que se a mãe tivesse lhe dado um violi-no, e ela tivesse de fazer aulas regularmente, e ainda ouvisse a ordem da mãe; em algum momento do dia: “Hannah, vá estudar violino!”; como acontecia com David; era quase certo que não tivesse tanta pai-xão pelo instrumento. Mas como nada disso acontecera, instigada pela curiosidade, e claro, por um grande talento nato, aprendeu a ma-neira correta de segurá-lo e a postura adequada do corpo e das mãos para tocá-lo. Na verdade, enquanto o irmão tinha aulas ou treinava, ela ficava em um canto, bem quietinha, prestando atenção.

Certa vez, o professor de David contou a fantástica história do maior violinista de todos os tempos; Paganini. Hannah ouviu com atenção cada detalhe sobre a vida do músico, que, segundo o pro-fessor de David, começou em Gênova, no ano de 1782, com o seu nascimento e terminou com sua morte em Nice, em 1848. Ao contrá-rio de Hannah, cuja proibição de tocar fora o seu grande estímulo, Paganini era obrigado por seu pai a estudar violino durante muitas horas, e, se não o fizesse, era castigado de forma muito severa. Aos oito anos de idade, ele compôs pela primeira vez uma sonata para violino.

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Dali em diante, foi se aperfeiçoando cada vez mais. Quando conse-guiu se libertar do pai, desenvolveu a sua carreira ao máximo, mas acabou ficando famoso por seu estilo de vida rebelde, pois gostava muito de jogar e de gastar dinheiro com mulheres. Durante os anos 1800 e 1805 o violinista desapareceu completamente. Muitas lendas foram criadas em torno da vida de Paganini; uma delas conta que ele passou esse tempo na prisão. Outro fato lendário é que as pessoas duvidavam que ele fosse humano. Por tocar tão bem, muitos diziam que ele havia feito um pacto com o diabo. Ao final de sua vida, estava rico, porém muito doente, tuberculoso. A doença o consumiu de tal maneira, a ponto de não poder falar.

Essa história deixou Hannah muito intrigada. E acabou servindo de inspiração, pois passou a sonhar com o reconhecimento como mu-sicista, mas quis também, ter uma história de vida oposta a do maior violinista do mundo. Muito nova ainda, intuiu que existem diferentes caminhos para se chegar ao mesmo objetivo. E, realmente, com o tem-po, ela ganhou grande prestígio, embora, não tanto quanto Paganini.

Hannah se escondia para treinar, e como em casa, todos estavam sempre ocupados com seus afazeres, ninguém percebeu o que aconte-cia. Até que um dia, David saiu com alguns amigos, e Hannah apro-veitou a oportunidade. A mãe e Maly remendavam meias, na sala, enquanto ouviam o pai contar o que lhe acontecera durante o dia de trabalho na oficina. Hannah entrou no aposento, posicionou-se como um profissional e tocou graciosamente a peça “Ondas do Danúbio,” de Johann Strauss. David vinha tentando incessantemente tocar, li-vre dos mesmos vieses que teimavam em se repetir, sem muito sucesso. O que era motivo de muita irritação para ele. Mas as notas fluíam em perfeita harmonia, nas mãos de Hannah.

Durante toda a apresentação, os pais e a irmã permaneceram bo-quiabertos. Após a execução impecável da composição, tocada com beleza e suavidade nas pequenas mãos de Hannah, bateram muitas

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palmas e até ficaram em pé, consagrando a grande musicista que eles nem desconfiavam que tivessem em casa. Naquele momento, Hannah selou o seu destino, ele seria diferente ao da maioria das mulheres daquela época, ela não ficaria em casa ocupada com os afazeres e as prendas domésticas.

Por mérito próprio, Hannah começou a ter aulas com os melhores professores de violino da cidade, e, em pouco tempo, transformou-se no spalla, o primeiro violinista, da orquestra filarmônica de Berlim.

Aquele era um tempo de reis e imperadores, e o talento de Han-nah era muito admirado pelos membros do Império alemão. Assim, sempre que um nobre visitava oficialmente o país, lá estava Hannah entre os profissionais. Aos 18 anos, Hannah tocou para a família real e seus convidados uma das composições mais belas e difíceis de Pa-ganini, Os 24 Caprichos Para Violino Solo, Opus 1. Na noite dessa apresentação, Hannah conheceu Ralph. Ele era um jovem que pres-tava serviços para o governo de Berlim, e encantou-se ao ouvi-la. O som que ela extraía do instrumento era primoroso, dava a impressão de vir do paraíso. Também, o modo como ela tocava era lindo. Seus movimentos eram naturais, leves, harmoniosos. Parecia até que o vio-lino era uma extensão de seu corpo.

Ralph era um rapaz sedutor e para estar perto de Hannah subor-nou um serviçal do palácio para ser informado sobre todas as apre-sentações que ela faria. Estando perto, ele passou a cortejar Hannah. Dois meses depois de se conhecerem e mesmo sem o consentimento de seus pais; que não aprovavam o namoro, pois Maly, por ser a filha mais velha, deveria casar-se primeiro; Hannah fugiu de casa e casou--se com Ralph. Esse foi um ato de muita coragem e ousadia para a época, mas não para Hannah, dona de uma personalidade impetu-osa. Para ela era branco ou preto, oito ou oitenta, ou, dito de outro modo, em sua concepção, era o tudo ou o nada. Ela não conseguia enxergar o leque dégradé de opções e possibilidades. Do mesmo modo

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que decidira estudar violino e se atracara nesse objetivo com todas as suas forças até sentir-se boa o suficiente para se apresentar à sua família, com a mesma garra também decidira casar.

Hannah e Ralph foram viver na Romênia, e lá ela refez todo o ca-minho já trilhado, até conseguir ingressar como violinista na orques-tra filarmônica local e mais tarde voltar a ocupar o lugar do spalla.

Contudo, Ralph era um apaixonado por mulheres. A alma femini-na o atraía de mais, e, quando a paixão por Hannah perdeu o ardor, ele passou a ficar muito tempo longe de casa. Apesar de ela sofrer em sua solidão, não teve coragem de voltar para a casa dos pais. Preferiu viver infeliz a ter que admitir o seu erro. Além disso, naquela época não existia divórcio, e Hannah sabia que, caso voltasse, seria muito malvista pelas pessoas da comunidade de seu antigo vilarejo. A últi-ma coisa que queria era ouvir um sermão de seus pais e ver as pessoas cochichando ao passarem por ela. Decidiu guardar em segredo o fra-casso de seu casamento e dedicar-se de corpo e alma à música.

Muitos anos se passaram, a família fez as pazes com Hannah, pois conseguira superar sua fuga e seu casamento. Tudo parecia estar em seu devido lugar. Contudo, havia um pedaço incompleto na vida de Hannah; faltava-lhe um filho. Muitas e muitas vezes, seu coração ficara apertado diante da expectativa de ter um bebê em seus braços. Apesar das diferenças entre ela e Ralph, ambos ansiavam muito por um filho. Hannah imaginava como seria ter um pequenino correndo pela casa. Também, gostaria de olhar para uma criança e ver nos traços dela, parte de seus traços também. Contudo, o tempo passava e nada acontecia. Mas quando já havia se conformado com o fato, e não mais esperava, descobriu-se grávida. Meses mais tarde, deu à luz a Alfredo. O menino foi muito amado e extremamente mimado por seus pais.

Enquanto o menino crescia, Hannah passou a ficar em dúvida sobre cuidar do filho ou tocar na orquestra, uma vez que ocupar esse

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posto exigia muitos ensaios e uma dedicação extrema. Então, em uma de suas raras visitas à casa dos pais, Hannah confidenciou seu dilema para a irmã. Ela contou sobre a necessidade de fazer uma escolha en-tre cuidar do filho ou seguir sua carreira. Assim que ouviu o problema, Maly decidiu que moraria com a irmã e ajudaria a criar o sobrinho.

Maly nunca se casara, pois sofrera uma grande desilusão amorosa em plena juventude, e a proposta de Hannah foi vista como uma oportunidade de mudança. Aquela era a chance de ela viver na cida-de e, finalmente, mudar o rumo de sua história, saindo do pequeno vilarejo agrícola onde morara até aquele momento. Infelizmente, o passar do tempo e a não realização de seus sonhos trouxeram uma grande dose de frustração para ela. Um de seus sonhos não realizados era o de ser mãe. É verdade que ajudara a mãe a cuidar dos irmãos, mas desejava ardentemente ter tido filhos de seu sangue, de sua carne. Então, naquela altura de sua existência a oportunidade de cuidar de Alfredo pareceu-lhe uma forma de deixar fluir todo o amor que havia dentro de si. E quem ganhou com isso foi o menino, que recebeu mui-to carinho de duas “mães”; a sua própria mãe e de tia Maly. Foi em um gesto de amor e gratidão pelo afeto recebido, que anos mais tarde, Alfredo homenageou a tia, dando a filha o seu nome.

Já a influência e o amor de Hannah, na vida de Alfredo, eram manifestos em forma de cultura. Desde muito pequeno, ele foi ba-nhado, alimentado e ninado ao som de músicas clássicas ou óperas cantaroladas pela mãe. Também, Hannah lhe contava as histórias dos grandes clássicos da literatura de forma bem simples, em uma linguagem que ele pudesse compreender. Hannah se ressentia, sem se perdoar, por não possuir mãos hábeis para o trabalho comum. Ela bem que tentava, mas por mais que o fizesse quando se via às voltas entre os afazeres domésticos, sentia como se estivesse jogando a sua vida dentro das panelas da cozinha, na limpeza dos cantos sujos da casa, ou nos remendos das roupas, e tudo o que fazia dava errado.

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No fundo, suas mãos seguiam o desejo de sua alma. No entanto, cuidar do filho era extremamente prazeroso. Decidiu então, que os cuidados a ele dispensados estariam imersos em transmissão de cultu-ra, artes e valores.

Hannah o levava para diversos lugares. Ela o vestia impecavelmen-te, com uma calça escura de tecido nobre com o vinco bem marcado, uma camisa branca engomada com barbatana no colarinho, presa às calças por suspensórios de elástico com uma lista ao centro e sapatos pretos de verniz. Seus cabelos eram bem penteados e mantidos assim com uma pasta, que tia Maly preparava, semelhante ao gel que co-nhecemos hoje. Era com essa elegância que mãe e filho frequentavam exposições de arte, apresentações de orquestras sinfônicas, balés e as grandes produções de óperas. Foi assim que Alfredo tornou-se o pe-queno companheiro da mãe, já que o Ralph nunca estava presente. E o menino sentia-se muito poderoso por ocupar tal cargo.

Infelizmente, a vida artística e culturalmente rica que a mãe pôde oferecer a Alfredo durou pouco. Hannah descobriu que estava muito doente. Durante a rápida duração da enfermidade, o sentimento que ela sempre nutrira por Maly, tornou-se mais forte. Hannah sentia que devia algo à irmã. Ela se culpava por tê-la deixado cuidando sozi-nha dos velhos pais, e quando eram mais jovens, pela irmã ajudar a mãe nos afazeres domésticos enquanto treinava violino. Ela também sabia que Maly fora decisiva no seu nascimento, talvez sentisse que tinha uma dívida com a irmã quanto a sua própria vida em todos os sentidos: nascimento, amor; mesmo que frustrado; criação do filho e música. Assim, ela possuía a crença de que todas as suas conquistas se deram graças aos sacrifícios da irmã. Pensar e sentir assim a atordoa-va de mais. No entanto, Maly sabia que isso não era verdade. Embora fossem irmãs, cada qual era dona de uma personalidade distinta e possuía um dom, uma tendência, um caráter, assim como também, cada qual, por sua vez, inspirara de forma diferente o pai e a mãe e,

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por isso, recebera coisas distintas de cada um dos progenitores e da própria vida. Cada irmã fizera a sua escolha, e, de alguma maneira, em alguns momentos sentiam-se impedidas de se responsabilizar pela vida que elegeram, fosse esta boa ou ruim, frustrante ou satisfatória. Maly fez o que pôde para convencer a irmã disso.

Poucos meses depois de descobrir sua doença, Hannah faleceu. Tia Maly continuou cuidando das necessidades físicas do sobrinho, porém, seu estado mental e emocional ficou completamente tomado pelo sofrimento da irmã. Deste modo, Alfredo que se acostumara com duas mães, viu-se, de repente, sem nenhuma. A tia entrou em um in-tenso estado de amargura, pois não apenas presenciara como também fora imprescindível nos dois momentos cruciais da vida da irmã: o nascimento e a morte...

Alguns anos após o falecimento de Hannah, quase toda a famí-lia Greenberg foi exterminada nos campos de concentração nazista. Alfredo foi o único sobrevivente. E, não tendo mais um lar para vol-tar, foi levado de navio para as terras de Israel”.

Quando Alfredo terminava de contar uma história para a fi-lha, sempre esperava que ela já tivesse dormido. E, geralmente, era assim. Mas quando contava a história de sua vida, era certeza encontrar um par de olhinhos brilhando na penumbra do quarto. A razão é porque quando Maly escutava a história da vida de seu pai, os personagens tomavam forma em sua imaginação, transfor-mando-se em exemplo para ela. A avó Hannah tornara-se o modelo da perseverança, e a tia-avó um exemplo de devoção. Quando ouvia o pai contar sobre tudo o que seus antepassados haviam vivido, Maly intuía, de alguma maneira que, o fato de seu pai ter sido o único sobrevivente de uma linhagem inteira, faziam-na uma pessoa com muitas responsabilidades para com a sua família e o com seu povo.