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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X "MÃES DE SANTO, MÃES DE TANTOS 1 ": O FEMININO NEGRO E O SAGRADO NO CINEMA BRASILEIRO Ceiça Ferreira 2 Resumo: Considerando a interseção das identidades de gênero e raça, este trabalho analisa os repertórios imaginários do feminino negro nos cultos afro-brasileiros, retratados nos filmes “Pureza Proibida” (Alfredo Sternheim, 1974) e “Besouro” (João Daniel Tikhomiroff, 2009), especialmente por meio das personagens “Mãe Cotinha” e “Mãe Zulmira”. Utiliza as contribuições teóricas e metodológicas dos estudos de cinema, da crítica feminista e dos estudos culturais para investigar tais narrativas cinematográficas, buscando identificar a partir da liderança religiosa dessas matriarcas, novos discursos, formas de visibilidade e estratégias de resistência do feminino negro no cinema brasileiro. Palavras-chave: Feminino negro. Cinema brasileiro. Cultos afro-brasileiros. Gênero e raça nos estudos de Comunicação e Cinema Desde os anos de 1970, os estudos feministas e de gênero tem discutido a posição das mulheres nas narrativas televisivas e cinematográficas. As contribuições de teóricas pioneiras, como Laura Mulvey (1975) e Elizabeth Ann Kaplan (1983) foram significativas para a abordagem feminista na crítica cinematográfica, que destaca o papel do cinema como veículo de ideologias patriarcais, no qual a mulher só existe como objeto do olhar masculino. O questionamento das subjetividades enquanto instâncias determinadas pela diferença biológica, bem como a compreensão de que a definição dos papeis de homem e mulher são construções históricas, culturais e sociais foram possibilidades abertas pelo conceito de gênero, que indicou ainda o reconhecimento das conexões entre as práticas discursivas e o cotidiano. As assimetrias de gênero, traduzidas e veiculadas pelos meios de comunicação ou pelo cinema passaram a ser analisadas como um continuum das relações de poder naturalizadas no imaginário social. Acerca da materialidade do discurso, Shohat (2001, p.156) defende que “o imaginário é muito real e o real é imaginado. Precisamos constantemente negociar a relação entre o material e sua narrativação”. Também neste sentido e ancorada no conceito foucaultiano de "tecnologia sexual", é que Teresa de Lauretis (1994) elabora a noção de tecnologias de gênero, na qual ela situa o aparelho cinematográfico, que veicula valores e visões de mundo, e reitera os papéis sociais a partir das 1 O título deste trabalho faz referência ao capítulo “As mulheres do sagrado: mães de santo, mães de tantos”, do livro “Mulheres Negras do Brasil”, de Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil (Senac, 2007). 2 Conceição de Maria Ferreira Silva (Ceiça Ferreira) é doutoranda em Comunicação na Universidade de Brasília, na linha de pesquisa Imagem e Som. Atua nas áreas de cinema e culturas negras.

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

"MÃES DE SANTO, MÃES DE TANTOS1": O FEMININO NEGRO E O SAGRADO NO CINEMA BRASILEIRO

Ceiça Ferreira2

Resumo: Considerando a interseção das identidades de gênero e raça, este trabalho analisa os repertórios imaginários do feminino negro nos cultos afro-brasileiros, retratados nos filmes “Pureza Proibida” (Alfredo Sternheim, 1974) e “Besouro” (João Daniel Tikhomiroff, 2009), especialmente por meio das personagens “Mãe Cotinha” e “Mãe Zulmira”. Utiliza as contribuições teóricas e metodológicas dos estudos de cinema, da crítica feminista e dos estudos culturais para investigar tais narrativas cinematográficas, buscando identificar a partir da liderança religiosa dessas matriarcas, novos discursos, formas de visibilidade e estratégias de resistência do feminino negro no cinema brasileiro. Palavras-chave: Feminino negro. Cinema brasileiro. Cultos afro-brasileiros. Gênero e raça nos estudos de Comunicação e Cinema

Desde os anos de 1970, os estudos feministas e de gênero tem discutido a posição das

mulheres nas narrativas televisivas e cinematográficas. As contribuições de teóricas pioneiras, como

Laura Mulvey (1975) e Elizabeth Ann Kaplan (1983) foram significativas para a abordagem

feminista na crítica cinematográfica, que destaca o papel do cinema como veículo de ideologias

patriarcais, no qual a mulher só existe como objeto do olhar masculino.

O questionamento das subjetividades enquanto instâncias determinadas pela diferença

biológica, bem como a compreensão de que a definição dos papeis de homem e mulher são

construções históricas, culturais e sociais foram possibilidades abertas pelo conceito de gênero, que

indicou ainda o reconhecimento das conexões entre as práticas discursivas e o cotidiano.

As assimetrias de gênero, traduzidas e veiculadas pelos meios de comunicação ou pelo

cinema passaram a ser analisadas como um continuum das relações de poder naturalizadas no

imaginário social. Acerca da materialidade do discurso, Shohat (2001, p.156) defende que “o

imaginário é muito real e o real é imaginado. Precisamos constantemente negociar a relação entre o

material e sua narrativação”.

Também neste sentido e ancorada no conceito foucaultiano de "tecnologia sexual", é que

Teresa de Lauretis (1994) elabora a noção de tecnologias de gênero, na qual ela situa o aparelho

cinematográfico, que veicula valores e visões de mundo, e reitera os papéis sociais a partir das 1 O título deste trabalho faz referência ao capítulo “As mulheres do sagrado: mães de santo, mães de tantos”, do livro “Mulheres Negras do Brasil”, de Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil (Senac, 2007). 2 Conceição de Maria Ferreira Silva (Ceiça Ferreira) é doutoranda em Comunicação na Universidade de Brasília, na linha de pesquisa Imagem e Som. Atua nas áreas de cinema e culturas negras.

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2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

diferenças sexuais. A autora compreende o cinema, assim como os discursos, as epistemologias e as

práticas institucionalizadas ou cotidianas como mecanismos de poder e controle social, por isso

destaca a necessidade de atentar-se não só para a produção de mensagens, mas também para as

formas como elas são subjetivamente absorvidas3.

No entanto, embora tais instâncias produtoras de sentido sejam reconhecidas como elementos

centrais na formação das subjetividades e na construção das identidades culturais, Montoro (2009);

Escosteguy e Messa (2008) revelam o grande desafio que se configura estudar a comunicação sobre

a ótica feminista e a perspectiva de gênero no Brasil, visto a resistência na incorporação da temática

nos currículos universitários e a inexistência de um levantamento completo da produção científica

sobre tais campos de estudo.

Buscando suprir parcialmente esta lacuna, Montoro (2009) desenvolve um inventário das

teses e dissertações apresentadas aos programas de pós-graduação em comunicação e outras áreas

das ciências sociais durante entre 1995 e 2008, que abordassem temáticas relacionadas a mulheres e

meios de comunicação e estivessem digitalizadas. A partir de tal mapeamento, a autora destaca

dentre outros aspectos, que

[...] há uma escassa produção de teses/ dissertações/artigos que tomem os estudos de gênero no cruzamento com estudos de raça e etnias na análise fílmica e de TV; e também um silenciamento também quanto ao estudo dos velhos e, especialmente, da representação ou protagonismo da mulher na maturidade. (MONTORO, 2009, p.16)

Essa ausência da raça é também um aspecto marcante na maioria dos estudos feministas no

Brasil, conforme aponta Carneiro (2011). Para a autora, esse não reconhecimento, que invisibiliza

ou coloca raça como subitem da questão geral da mulher, tem como resultados uma visão

monolítica das mulheres brasileiras, e a recusa em admitir a dimensão racial na constituição do

gênero, que toma a forma de privilégios para umas e desvantagens para outras.

No âmbito da comunicação e do cinema, o cruzamento do racismo e do sexismo se revela na

conformação de imaginários que perpetuam e naturalizam a condição de invisibilidade do feminino

negro, expressa em “lugares pré-determinados” como de objeto sexual, a “mulata”; ou empregada

doméstica, a “mãe preta” (GONZALES, 1983).

Dessa forma, analisar os repertórios audiovisuais do feminino negro exige compreender sua

experiência histórica diferenciada, marcada pela interseção da dominação de raça, gênero e classe,

3 Os estudos de recepção ainda são incipientes nos estudos de Comunicação e Cinema no Brasil, já que a maioria dos estudos centra-se sobre os sentidos das mensagens. Montoro (2009) e Escosteguy (2008) elucidam a relevância de estudar as diferentes formas de leitura e interpretação da narrativa cinematográfica, que podem revelar uma pluralidade de estratégias de mediação e significação dadas pelos/as espectadores/as em suas práticas culturais e sociais.

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3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

que ainda se mantém e são constantemente alimentadas no imaginário, considerado por Baczko

(1985) como um lugar estratégico, responsável pela apropriação dos símbolos e das relações de

sentidos, os quais podem ser usados para a manutenção do poder e do controle social.

Neste âmbito, é que se propõe uma reflexão sobre o feminino negro nos cultos afro-

brasileiros, por meio de personagens que atuam como sacerdotisas, “mães-de-santo” 4 nos filmes

“Pureza Proibida” (Alfredo Sternheim, 1974) e “Besouro” (João Daniel Tikhomiroff, 2009),

buscando identificar novos discursos, formas de visibilidade e estratégias de mediação e resistência.

O feminino negro na religiosidade afro-brasileira e no cinema

Os vazios e esquecimentos presentes na historiografia brasileira acerca da população negra,

suas culturas, tradições e religiosidades, juntamente com outras reminiscências de um imaginário

patriarcal/colonial apontam a invisibilidade da história das mulheres negras no Brasil, somente

reconhecidas e retratadas como objeto sexual e/ou parte da criadagem.

Mas é também por meio da análise destes silêncios, que diversas pesquisas têm revelado uma

outra história invisível, composta de lutas, resistências e protagonismos do feminino negro, que

ainda hoje emerge no enfrentamento cotidiano do racismo, do sexismo e da pobreza.

Atuando na manutenção material e simbólica/espiritual da fuga, as mulheres negras tiveram

um papel fundamental na resistência negra durante toda a história do Brasil. Posteriormente nas

cidades, como quitandeiras ou vendedeiras, elas aproveitaram a liberdade de circulação e tornaram-

se o elo de integração e resistência entre comunidades diferentes; depois ganharam destaque nos

terreiros de candomblé, como ialorixás, liderança religiosa e também política.

As práticas religiosas agregaram e mantiveram incontáveis agrupamentos afrodescendentes em torno dessas mulheres. A despeito da imposição hegemônica da religião católica romana e do extenso período de trevas do regime escravocrata, essa peculiar centralidade significou, entre outros aspectos, a perpetuação de algumas manifestações culturais coletivas que viriam a se tornar marcas inconfundíveis de brasilidade. Apesar de enfrentarem perseguições extremas durante séculos, as comunidades negras organizadas ao redor destas sacerdotisas, as chamadas famílias de santo, foram capazes de resistir e preservar vivas suas cosmogonias, seus ritos e símbolos de imensurável valor. (SCHUMAHER; BRAZIL, 2008, p.107-108)

Considerando a relevância desse exercício feminino do sacerdócio nas religiões afro-

brasileiras é que se busca analisar quais são e como são construídas as mães de santo da ficção.

4 “Mãe de santo” é a designação popular dada à Ialorixá, chefe do terreiro, sacerdotisa suprema do terreiro de candomblé.

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4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

Em “Multiculturalismo Tropical”, Robert Stam (2008) investiga a raça na cultura e no cinema

brasileiros e constata a ausência de negros e índios, e suas expressões culturais e religiosas.

O filme “Bahia de todos os santos”, dirigido por Trigueirinho Neto em 1960 é uma das

produções analisadas pelo autor. Ao mostrar a perseguição ao candomblé, durante o governo

Vargas, o filme inova ao enaltecer a postura altiva de Mãe Sabina (interpretada pela mãe-de-santo

Massu), diante da destruição de seu terreiro pela polícia. Essa sacerdotisa representa a identidade

negra negada por seu neto Tonho, o protagonista da trama.

Este filme, assim como “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte e outras produções

do Cinema Novo, lançadas em 1962, como “Barravento” (o primeiro longa de Glauber Rocha) e “A

grande feira”, de Roberto Faria, compõem o que Stam (2008, p.297) chama de “Renascença Baiana

– a redescoberta cinematográfica das riquezas culturais de Salvador no começo dos anos de 1960”.

Embora utilizada como referencial estético do pobre e vista por meio da crítica dialética, a

religiosidade de matriz africana e sua riqueza cultural são retratadas e apropriadas pela narrativa do

filme “Barravento”. Logo, o destaque dado ao papel de “Mãe Dadá”, a musicalidade e mitologia

dos orixás indicam a contradição entre a intenção do diretor, que nega o candomblé, e a composição

da obra, que o afirma como elemento central daquela comunidade de pescadores, já que ultrapassa o

espaço do terreiro e influencia diretamente a vida de todos/as.5

Nas décadas seguintes, as expressões culturais e religiosas populares passaram a ser

reconhecidas como matriz de significações na cultura e no cinema brasileiro. Logo, diversas

produções de ficção ou documentário retrataram o candomblé, a umbanda e história da população

negra, como por exemplo, “O amuleto de ogum” (1974) e “Tenda dos Milagres” (1977) de Nelson

Pereira dos Santos; “Deusa Negra” (do diretor nigeriano Ola Balogun,1978); “Iaô” (Geraldo Sarno,

1970), “Orí” (Raquel Gerber, 1989) e o “Fio da Memória” (1988/1991), de Eduardo Coutinho.

O universo religioso afro-brasileiro também foi tema de produções televisivas neste período.

Em 1985, a Rede Globo exibiu a minissérie “Tenda dos Milagres”, baseada no romance homônimo

de Jorge Amado. Escrita por Aguinaldo Silva e Regina Braga, este minissérie teve a atriz Chica

Xavier6 no papel da mãe de santo Magé Bassã.

5 Ver SILVA (2010). 6 Na novela “Duas Caras” (também de Aguinaldo Silva, exibida pela Rede Globo em 2007/2008), Chica Xavier interpreta outra mãe de santo, “Dona Setembrina”.

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5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

Em 1990, a TV Manchete exibiu a minissérie “Mãe de Santo”. Escrita por Paulo César

Coutinho, essa produção foi composta por 16 capítulos, que sob a narração de uma ialorixá

interpretada pela atriz Zezé Motta7 abordavam as divindades do candomblé.

Matriarcas negras em narrativas cinematográficas

Nos filmes “Pureza Proibida” e “Besouro”, as personagens “Mãe Cotinha” e “Mãe Zulmira”

têm em comum a liderança religiosa e principalmente, a “maternidade simbólica”, aspecto

evidenciado pela rede de convivências que tais matriarcas desenvolvem com os outros personagens.

Semelhante aos cultos afro-brasileiros, nas duas produções, as casas dessas duas matriarcas são

lugares onde se encontra apoio, acolhimento, festa e cura.

“Pureza Proibida” aborda o envolvimento de Irmã Lúcia (uma religiosa católica) com o

pescador Chico. Eles enfrentam a oposição das outras freiras e o ciúme de Anésia, personagem que

nutre um amor não correspondido por Chico, e recorre à Mãe Cotinha (Ruth de Souza) para

conquistá-lo.

“Besouro” retrata a história de Manoel Henrique Pereira (capoeirista mais conhecido como

Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro), que após a morte de Mestre Alípio (líder dos

negros), recebe a missão de continuar a luta contra as injustiças cometidas pelos antigos senhores,

no Recôncavo Baiano de 1920. E quem vai ajudá-lo é Mãe Zulmira e as divindades do candomblé

(os orixás).

Para investigar os repertórios imaginários do feminino negro, serão analisadas uma sequência

de cada produção, que destacam as duas matriarcas e se configuram como unidades fundamentais,

fragmentos de distinta amplitude e complexidade (Casetti; Di Chio, 2007), capazes de revelar a

totalidade de cada filme.

A análise fílmica deve observar como a narrativa é construída a partir dos diversos

elementos que compõem a linguagem cinematográfica, como enquadramentos, disposição do

espaço fílmico, iluminação e trilha sonora; e também, segundo Aumont e Marie (2008, p.89) se

mostrar sensível às cadeias e redes de significação que podem ser internos ou externos ao cinema.

Para estes autores, “a análise não tem nada a ver com um fílmico ou um cinematográfico ‘puros’,

mas também com o simbólico”.

7 Além desse personagem, a atriz Zezé Motta interpretou também outra líder religiosa do candomblé, a“Mãe Ricardina” na novela "Porto dos Milagres" (escrita por Aguinaldo Silva, Glória Barreto e Ricardo Linhares; e exibida em 2001) e recentemente “Tia Celeste”, mãe pequena do terreiro de Mãe Marina, na microssérie "O Canto da Sereia" (escrita por George Moura, Patrícia Andrade e Sergio Goldenberg; e exibida em janeiro de 2013).

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6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

Com base nessa dimensão simbólica, é que aproxima-se dessas produções, visando

identificar: (a) a forma como os discursos e imaginários do feminino negro são inseridos e

retratados nas narrativas cinematográficas; (b) as relações, mediações, afetos e estratégias de

subversão e resistência que tais personagens desenvolvem nos territórios de pertencimento das

religiosidades afro-brasileiras e no contexto social; e (c) os processos de conformação e

transformação de imaginários no cinema brasileiro em filmes dos anos de 1970 e anos 2000.

Mãe Cotinha e o cuidado com os outros

Mãe Cotinha é constantemente mencionada pelos personagens principais e também outros

moradores, como alguém a quem se pode recorrer para a resolução de problemas de ordem física,

psicológica ou espiritual. Também com este objetivo é que Anésia, inconformada com a rejeição de

Chico, pede ajuda à matriarca. Porém, a líder religiosa orienta a jovem a esquecer o rapaz, pois se

trata de uma determinação de Oxum (orixá feminino que rege o amor, o dinheiro e a fertilidade).

Como porta-voz dos desígnios divinos, a matriarca tem a responsabilidade de zelar por

aquela comunidade e seus moradores. Tal função é legitimada pelo conhecimento que a personagem

tem do uso terapêutico de ervas e plantas, com as quais realiza as curas.

Interessada em tais saberes, é que Irmã Lúcia (que além de religiosa é também estudante de

enfermagem) procura Mãe Cotinha e vai até sua casa, aprender com ela sobre o uso medicinal das

folhas e ervas. Pode-se considerar que a narrativa já dê indícios de um possível reconhecimento da

liderança religiosa afro-brasileira, visto que em vez criar uma assimetria de poder entre as duas

personagens, coloca-as juntas no centro do quadro.

Protagonismo religioso

Um dos momentos mais significativos da atuação de Mãe Cotinha é a festa que ela oferece

para São Cosme e São Damião (Fig.01), na qual aparece centralizada no enquadramento, e de

maneira imponente canta um ponto de Umbanda para aqueles que participam do louvor às

divindades infantis católicas, também reverenciadas nos cultos afro-brasileiros.

A parede cor de rosa, a cortina com fios coloridos e as imagens dos santos meninos são

aspectos que fazem alusão ao universo infantil e também compõem outro ambiente da casa de Mãe

Cotinha, espacialidade que agrega ao mesmo tempo as funções doméstica e religiosa, enfatizando a

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7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X

relação com o sagrado como uma experiência indissociável de sua vida cotidiana, também uma

peculiaridade dos cultos afro-brasileiros.

Outro aspecto relevante nesta sequência é a disposição dos personagens no enquadramento

(a matriarca está cantando sozinha de um lado, enquanto os demais integrantes estão no lado

oposto). A participação de Irmã Lúcia e Padre José, e vários moradores da comunidade confirmam

o protagonismo de Mãe Cotinha, que pelas relações de afeto e solidariedade ultrapassa os territórios

de pertencimento dos cultos afro.

Mãe Zulmira: zeladora de deuses e humanos

O papel central que Mãe Zulmira ocupa na narrativa de “Besouro” é indicado pela

reverência que outros personagens lhe prestam, ao pedir-lhe a benção, ato comum nas religiões de

matriz africana, e que significa o respeito à autoridade e a experiência dos mais velhos.

Após um embate com os capangas do coronel Venâncio, Besouro foge pulando de um

precipício em um rio, o que faz seus opositores darem por certo sua morte. Porém, ele reaparece sob

as águas. Tal sequência constitui-se numa montagem paralela que sob a narração de Mestre Alípio

alia cenas de Besouro no rio, sendo cuidado pelos orixás; e em outro ambiente, onde é cuidado por

Mãe Zulmira (Fig. 02).

Figura 01 – Festa de Cosme e Damião na casa de Mãe Cotinha .

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De forma poética, o narrador fala para Besouro e também para o espectador o que são os

orixás8; juntamente com imagens que revelam as características, os elementos da natureza que tais

divindades regem, e principalmente, mostra como a partir de seus domínios (as folhas, os rios, os

ventos e os metais) oferecem auxílio ao protagonista (Fig.02).

O filme apresenta e articula símbolos e elementos visuais das iabás (por meio das cores e

adereços). Essas divindades femininas são reverenciadas pelo capoeirista de formas diferentes, de

acordo com características de sua personalidade (flores amarelas para Oxum e vermelhas para

Iansã). Além disso, as cenas que acompanham a narração reiteram as características apontadas,

como por exemplo, o movimento das águas do rio sobre o corpo de Besouro fazem alusão ao caráter

maternal e protetor de Oxum, como se ela o embalasse em seus braços; assim como a ação de fazer

o capoeirista levitar pode ser relacionada à força e ao caráter guerreiro de Iansã.

Ao afirmar que “a capoeira por si só não livra ninguém da maldade”, Mãe Zulmira

enaltece a importância da religiosidade, “alimento” do corpo, da espiritualidade e principalmente,

8 A narração discorre sobre Ossain, Ogum, Oxum e Iansã, apesar de Exu também ser mostrado. Este orixá, que rege os caminhos, e também agrega o poder da mudança e da continuidade aparece em sequências que antecedem a esta e com uma postura provocadora parece ter a função de instigar o protagonista para a missão que ele deve seguir.

Figura 02 – Mãe Zulmira e orixás cuidam de Besouro

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da luta empreendida pelos negros. Logo, a matriarca e os orixás atuam de forma conjunta, no filme

e na religião afro-brasileira.

De acordo com Bastide (1989), a religião foi o catalisador da resistência negra. As fugas

coletivas, a criação dos quilombos ou as grandes revoltas e insurreições sociais sempre tiveram a

casa de candomblé como lugar de inspiração.

O colar de metal, que nas cenas anteriores foi utilizado pelos orixás Ossaim e Ogum para

tratar o corpo de Besouro, agora é dado a ele por Mãe Zulmira. Ela enfatiza o significado daquele

objeto, que passa a ser a proteção dele, pois foi “dormida aos pés de Ogum” (o orixá que é dono de

sua cabeça (Fig. 02). Essa sequência evidencia a estreita relação entre orixás e humanos e o lugar

central que Mãe Zulmira ocupa nessa religiosidade. É ela quem tem o poder e o saber de chamar as

divindades.

Ao pedir a benção à Mãe Zulmira, Besouro reverencia a autoridade e sabedoria dessa

matriarca, que demonstra reciprocidade ao jovem. Na última cena, Besouro aparece no centro do

quadro e como se caminhasse em direção à câmera, mostra que está fortalecido e pronto para a luta.

Considerações finais

Analisar as mães-de-santo na ficção significa refletir também sobre o significado da

maternidade para as mulheres negras, que submetidas às funções de objeto sexual ou mãe-preta

tiveram tal função negada, e ainda continuam invisibilizadas na historiografia, na literatura e nos

meios de comunicação. Mas por meio da reconstituição da família (real ou simbólica), essas

mulheres desenvolveram estratégias de sobrevivência e resistência, restituíram na família-de-santo e

no terreiro de candomblé sua humanidade, seus afetos e memórias.

Esse exercício feminino do sagrado e seu protagonismo se fazem presentes, mesmo em

produções hegemônicas, como nos dois filmes analisados, o que confirma a amplitude das

representações audiovisuais, que agregam também ambiguidades, polissemias e devires.

Neste sentido, pode-se se considerar que apesar dos filmes “Pureza Proibida” e “Besouro”

não se referirem às religiões afro (Umbanda e Candomblé) de forma institucionalizada, revelam

suas relações de pertencimento, simbologias, ritos, elementos sonoros e visuais, e principalmente, a

postura altiva das mães negras e sua relação com o sagrado.

Em “Besouro”, destacam-se ainda os orixás femininos, Oxum e Iansã. Oxum é o orixá que

rege a riqueza, o amor e a fertilidade. É considerada a rainha do Candomblé, por que foi a ela que

Olodumare (Deus supremo) atribuiu a responsabilidade de preparar os humanos para receber os

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deuses, e assim os orixás puderam voltar à terra para, ao som de atabaques e xequerês reviver seus

mitos por meio da música e da dança.

Iansã é uma divindade guerreira, por isso muitos dizem que “as filhas de Iansã não fogem da

briga”. É ela quem governa o vento, as tempestades e a sensualidade feminina, também é a senhora

do raio e soberana dos espíritos dos mortos, pois é somente ela quem os direciona para o outro

mundo. Iansã é uma mulher sedutora, charmosa, uma mãe protetora, uma mulher apaixonada.

Conforme enfatiza Carneiro (2007), essas iabás, juntamente com Obá, Ewá, Iemanjá e Nanã

conformam arquétipos que alargam e complexificam nossa compreensão do feminino, e servem de

inspiração para capacidade de resistência das mulheres negras brasileiras contra a escravidão, o

machismo e o preconceito.

Nos filmes analisados e na religiosidade afro-brasileira, essas matriarcas são ponto de

referência e união, são guardiãs e provedoras de uma memória ancestral. Contrariando o racismo e

o sexismo, as mulheres negras reinscrevem no sagrado seu papel político e sua identidade feminina

e negra, são mães santo, mães de tantos.

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