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Maddi Damião Júnior Psicologia da Matemática e Matemática da Psicologia: uma discussão epistemológica entre psicologia analítica, matemática e teoria das estranhezas UFRJ - IP Rio de Janeiro 2003

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Maddi Damião Júnior

Psicologia da Matemática e Matemática da Psicologia: uma discussão epistemológica entre psicologia analítica, matemática e teoria das estranhezas

UFRJ - IP Rio de Janeiro

2003

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Maddi Damião Júnior

Psicologia da Matemática e Matemática da Psicologia: uma discussão epistemológica entre psicologia analítica, matemática e teoria das estranhezas

Tese de Doutorado apresentada como requisito para obtenção do título de Doutor em Psicologia Cognitiva, Social e da Personalidade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador: Prof. Dr. Ued Martins Maluf

UFRJ - IP Rio de Janeiro

2003

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Para Elizabeth e Igor.

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Agradeço ao CNPq, à UFRJ, ao Prof. Dr. Ued Maluf, a Dra. Heloisa Cardoso, ao Dr. Geraldo Mourthè pelo apoio e orientação dados ao longo de meu trabalho. Agradeço, especialmente, a Dra. Elizabeth Christina Cotta Mello por ter me acompanhado e suportado ao longo de todo este tempo.

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Resumo: Esta tese tem um duplo objetivo, o primeiro o aprofundamento da teoria

junguiana, de forma a contribuir para uma epistemologia da psicologia. O outro

objetivo é estabelecer um diálogo entre saberes, a fim de proporcionar um

encaminhamento do pensamento epistemológico para uma proposta

transdisciplinar. Para tal abordo o tema da função transcendente, na obra de

Jung, encaminhando-o para suas implicações epistemológicas e ontológicas.

Quanto ao diálogo entre saberes utilizei-me da matemática, por estar implicada na

idéia de função transcendente e ser uma ciência fundamental, considerando a

noção de números imaginários, transcendentes e transfinitos. A base

epistemológica para tal diálogo foi dada pela Teoria das Estranhezas.

Termos - chave:

Psicologia junguiana, Teoria das Estranhezas, epistemologia, matemática,

transcendente

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Abstract: This tesis has a double objective, the first is the amplification of the junguian

theory, in way to contribute for the psychologycal epistemology. The other

objective is to establish a dialogue among knowledges, in order to provide a

direction of the thought for a proposal transdisciplinar epistemology. For such I

approach the theme of the transcendent function, in Jung's work, directing it for

their epistemologycal implications and ontological. I have used the mathematics

for this purpose, for being implicated in the idea of transcendent function and to be

a fundamental science, considering the notion of imaginary, transcendent and

transfinits numbers. The epistemologycal ground for such dialogue was given by

the Strangeness Theory.

Keywords: Junguian psychology, Strangeness Theory, epistemology, mathematics,

transcendent

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Sumário: Introdução.....................................................................pág. 8 A Função Transcendente.............................................pág. 15 O Símbolo e o simbólico: epistemologia e fundamento................................................................pág. 58 A função transcendente, números transcendentes, números imaginários e números transfinitos............................pág. 105 A Teoria das Estranhezas.............................................pág. 146 Conclusão.......................................................................pág. 171 Referências Bibliográficas............................................pág. 188 Anexo A...........................................................................pág. 193 Anexo B...........................................................................pág. 195 Anexo C............................................................................pág. 197

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Introdução

" (...) [Há] aquela fonte desconhecida de energia mais refinada que pode tornar-se manifesta apenas quando o organismo humano é completamente aberto (...) Quando essa condição é alcançada, a individualidade não desaparece; ela é iluminada em todos os aspectos e com isso é capaz de desempenhar o seu verdadeiro papel, que é curvar-se e adaptar-se a todas as necessidades de mudança" (Brook, 2000, p. 173)

Que relação podemos estabelecer entre psicologia e matemática? Como

todos sabemos, no princípio da psicologia como atividade cientifica, os primeiros

métodos, utilizados na investigação dos fenômenos psicológicos, foram os

psicofísicos, que buscavam correlacionar variações da ordem elétrica, corporal-

sensória, aos processos psicológicos, mais propriamente os da ordem da

percepção. Por outro lado, para a psicologia se estabelecer como ciência, foi

preciso que se utilizasse da mesma base epistemológica das assim nomeadas

ciências duras, ou da natureza, como a física, a química e a biologia. Ciências

baseadas no domínio da medida e da quantificação, que procuravam leis

genéricas que dessem conta dos fenômenos observados pelo cientista. Assim, a

ciência se estabelece na aspiração da medida, da quantificação, estando

presente, operacionalmente, seja na forma da estatística, seja na das regras de

cálculo destas leis. A matemática vigora neste empreendimento como instrumento

e modelo para qualquer ciência se fazer de forma rigorosa.

A psicologia, como ciência, não poderia ser diferente: se, por um lado,

tenta enquadrar-se no nível das outras ciências, como rigorosa, por outro, ao lidar

com um problema específico, o homem, tem que se enraizar em uma perspectiva

ontológica do humano, onde este seja considerado como pertencente a esta

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natureza, excluindo-se, assim, qualquer caráter particular, singular, de seus

fundamentos. Ao lidar com o homem através dos métodos científicos,

matematizá-lo, torna-se necessário que este seja mensurável, como qualquer

outro objeto da natureza. Assim, faz-se da matemática não apenas instrumento,

mas também fundamento da própria concepção de vida. Porém a matemática, tal

como se apresenta neste momento, torna-se instrumental, modelo, medida e

parâmetro de delimitação de propriedades constantes. Do ponto de vista formal,

será através da lógica matemática que se construirá o saber válido, baseado na

certeza como fundamento da verdade, excluindo-se qualquer forma de

racionalidade ou pensamento que não corresponda a este princípio de certeza.

Por outro lado, como veremos, a matemática não é apenas quantificação.

Por trás deste aspecto, que foi priorizado pela técnica, oculta-se uma dimensão,

onde se pretende alcançar as bases da própria realidade de uma maneira

incontestável. Exemplos destes casos não faltam na história da ciência, legados

pela antigüidade clássica, seja nos três grandes problemas, que fascinaram,

durante séculos – quadratura do círculo, trissecção do ângulo e duplicação do

cubo – seja através das afirmações de Pitágoras sobre os números, sua natureza

e a organização do cosmos, assim como em seu espanto diante dos números

irracionais. Há, nesta demanda, uma busca pela ordem, ordem superior aos

humanos, que regeria o mundo e o homem. Este aspecto, que poderíamos

nomear transcendente, se perdeu ao longo da história humana, à medida em que

a natureza perdia seu caráter de mistério e se tornava, progressivamente, apenas

"coisa", objeto e elementos agrupados aleatoriamente. Correspondente a isto, o

homem foi, pouco a pouco, tornando-se, também, apenas "coisa". Mas, apesar de

todos os esforços da razão e do pensamento técnico, o mistério ainda perdura e

vigora, operacionalmente.

Este mistério, desde o momento em que o mundo passa a ser cada vez

mais "coisificado", volta-se para outro "espaço", o mundo interno dos homens.

Assim, o grande mistério começa a ser considerado não mais a natureza, mas o

próprio homem, apesar de todas as tentativas para sua redução e controle por

uma ciência fisicalista e reducionista. Nesta corrente, surgem as psicologias das

profundezas, dentre as quais a junguiana. Isto quer dizer que, com a noção de

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inconsciente, se estaria indicando o vigor desta dimensão originária, que é solo e

fundamento de homem e mundo. Dimensão que tanto a ciência quanto as artes,

assim como as religiões e a filosofia, tentam apreender.

Todos os fundamentos em que se enraíza a consciência, tanto em sua

versão inicial quanto em seus prolongamentos, podem ser considerados como

atos de afirmação de valores. Tornam-se frutíferos na medida em que satisfaçam

a necessidade real de dominar o mundo da experiência por meio de sua

interpretação compreensiva, referindo-se a um ser incondicionado. No entanto, os

fundamentos últimos que presidem a escolha das convicções no pensamento

científico são igualmente "atos de valoração". Ao afirmar o valor das energias

multiplicadas de que pode dispor a sociedade humana, pela exploração do meio

físico, criamos uma condição necessária para os critérios de escolha entre

falsidade e verdade. Eles não são arbitrários, no sentido histórico, ou seja, é

possível explicar historicamente seu surgimento e seu desenvolvimento; no

entanto, são arbitrários no sentido lógico, uma vez que não existem regras lógicas

anteriores a eles que permitam fundamentá-los; na verdade, as regras da lógica

são um produto da presença destes critérios.

Assim, toda ciência possui em sua interioridade uma demanda mítica, a

organização do real e o enraizamento do homem no mundo, de forma coerente.

Mas, com a transformação do mundo em um reino da quantidade, esta dimensão

mítica se perde, se encontra esquecida, tendo como conseqüência o

"achatamento" da experiência de homem e mundo. Por "achatamento" entendam-

se o nivelamento e a planificação em uma dimensão uniforme e indiferenciada do

real, a monotonia compreensiva, a constrição do valor.

O que pretendo desenvolver nesta tese é uma tentativa de estabelecer

um paralelo entre duas ciências, aparentemente excludentes, de ordens distintas,

uma humana e outra formal ou exata.

O objetivo é — preservando a singularidade de cada campo do saber,

problematizado — a dimensão da experiência que se encontra implicada,

operacionalmente, sob o impulso humano de organização e compreensão de si e

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do mundo, a aproximação entre saberes, em uma proposta transdisciplinar. Outro

objetivo é o aprofundamento — pelo diálogo com a matemática e a ampliação das

idéias de Jung de um conceito/símbolo, esclarecer as implicações da idéia de

função transcendente e sua cosmovisão.

Para tal, faz-se necessária uma base epistemológica consistente, que

será disponibilizada pela Teoria das Estranhezas, ao se debruçar sobre o

conhecimento de forma minuciosa, dando margem a pensar a totalidade como

fundamento do conhecer. Outro aspecto da Teoria das Estranhezas, que

possibilita fundamentar epistemologicamente o paralelo proposto, seria sua

perspectiva de unidade-múltipla, ou seja, a idéia de mosaico, desenvolvida na

noção de símbolo, tal como apresentado por Jung.

Talvez fosse mais propício afirmar que esta tese se propõe a construir um

mosaico, ou melhor, auxiliar na construção de um mosaico epistêmico-ontológico,

de tal forma que sirva para a colaboração de um saber transdisciplinar. Esta

perspectiva, como apresentada, se encontra tanto em Jung quanto em Maluf.

Através da matemática, ciência fundamental na construção do saber, mais uma

peça se conjugaria neste mosaico.

A idéia desta tese surgiu em função de minha perplexidade ao me

deparar, há alguns anos, com o texto Função Transcendente. Ao lê-lo, percebi

como neste pequeno trabalho de Jung estavam latentes suas idéias mais

fundamentais, assim como indicava uma dimensão da cosmovisão sobre o

homem e sobre o mundo, que colocava em questão o modelo representacional de

subjetividade. Nele, podia perceber que as bases da constituição do modelo de

homem e mundo, para Jung, estavam implicadas. De tal forma que, ao se levar à

última instância o que escrevera, se deduzia que homem e símbolo eram

solidários em sua constituição, ou seja, que o homem é um ser simbólico. Isto não

no sentido representacional, por ele viver em um universo simbólico, mas sim

porque a natureza radical do humano se constitui do mesmo modo que os

símbolos. Havia aí, então, operacionalmente, em todo este trabalho, a afirmação

de que homem e mundo são, de fato, símbolos.

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Por outro lado, outro fato que me intrigou foi o uso de um conceito

matemático, pois Jung, em sua biografia, nos diz que nunca gostou de

matemática. Por que estaria utilizando este conceito? Esta pergunta permaneceu

ressoando em mim, durante alguns anos. Para esclarecer o motivo que o levou a

usar tal conceito, foi necessário que me aproximasse da matemática, naquilo que

ela poderia contribuir para o esclarecimento do seu uso, por Jung. Através desta

aproximação, pude perceber que o que estava presente na idéia de Jung seria

algo além de um esclarecimento metodológico, ou algo além da técnica. Sua

intuição, a idéia que tentava desenvolver, ao longo do texto, apontava para uma

dimensão ontológica em seu pensamento.

Gostaria de deixar bem claro que não pretendo de forma alguma fazer

filosofia da matemática ou uma tese sobre matemática, apenas dar continuidade a

um diálogo entre saberes, iniciado, em 1916, por Jung, com o texto Função

Transcendente. Isto quer dizer que não pretendo reduzir matemática à psicologia,

psicologizar a matemática, ou fazer da psicologia uma ciência.

Para que este objetivo possa ser cumprido, faz-se necessário seguir dois

procedimentos: o primeiro seria pensar as implicações da experiência matemática

do ponto de vista psicológico; o segundo, resgatar a dimensão qualitativa da

matemática. Talvez a metáfora espacial adequada para isto venha à mente ao

pensar que Jung se encontra na fronteira do universo euclidiano, onde as

paralelas não se encontram jamais. Seu universo não é delineado sobre o plano,

mas sim sobre uma circunferência, onde paralelas se encontram em um ponto,

infinito que seja. Desta forma, todas as ciências, ao manterem sua especificidade,

sua singularidade, se encontrariam em um ponto comum, virtual. Este ponto, o

zero, a origem, seria aquele a partir do qual o pensamento poderia delinear uma

real perspectiva transdisciplinar.

Assim, desenvolvi esta tese dividindo-a em quatro principais partes:

a) a primeira trata do esclarecimento da noção de função transcendente,

em Jung. Para tal, utilizei-me do texto de tal forma que delineei os ponto

relevantes para o desenvolvimento do tema. Fiz isto, neste primeiro momento,

tentando permitir que o próprio texto se apresentasse em todo o seu vigor e

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implicações, ou seja, sem buscar uma interpretação a priori para as idéias ali

contidas. Parti, apenas, do princípio de que qualquer definição do que seja função

transcendente seria precipitada, e esta abordagem poderia ser nomeada

fenomenológica, isto é, tentei dar voz ao texto;

b) a segunda: desenvolvo a relação, a solidariedade, funcional e

estrutural, entre função transcendente e símbolo, de tal forma que se manifeste a

identidade entre um e outro, assim como as implicações epistemológicas do

conhecimento, baseado em um modelo epistemológico transdisciplinar, tal como

enunciado por Jung, ao tematizar a noção de função transcendente. Isto

acarretaria, como conseqüência, o desenvolvimento da idéia da natureza

simbólica do humano, o que apresento no mesmo capítulo;

c) a terceira parte: nela, desenvolvo os conceitos matemáticos de

números, dando maior relevância à noção de função e de números

transcendentes, finalizando com os números transfinitos e o continuum. Estes

conceitos são implicados em função da necessidade de esclarecer de forma mais

detalhada as idéias contidas, operacionalmente, no conceito de função

transcendente matemático, ou seja, através de uma abordagem descritiva,

fenomenológica, o que pretendi foi o esclarecimento dos conceitos matemáticos e

suas implicações para a cosmovisão junguiana;

d) na quarta parte: desenvolvi as idéias-base da Teoria das Estranhezas,

em sua articulação com o pensamento junguiano, e os conceitos matemáticos

tratados, com o objetivo de prover de consistência epistemológica o paralelo por

mim traçado, assim como de fundamentar as idéias desenvolvidas por mim ao

longo da tese.

Acredito que não esgotei o tema, nem tive tal pretensão, mas gostaria de

salientar que considero, ao tratar de tal assunto, estar tratando de temas

fronteiriços, isto é, limítrofes, pois, ao nos depararmos com o símbolo, o

inconsciente coletivo ou a função transcendente, estamos lidando com idéias que

estão além ou aquém da possibilidade de uma delimitação absoluta pela razão:

esta é a dimensão do fundamento da própria razão. Desta forma, faz-se

necessário andarmos com cautela, sermos delicados com aquilo com estamos a

lidar. Ao tratar da própria formação do humano, e do mundo, assim como com um

modelo de conhecimento não excludente, estamos, também, trabalhando com

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idéias que nos aproximam da dimensão daquilo que é fundamento da própria

vida, do homem e da natureza. Este fundamento é ilimitado em sua radicalidade

e, assim, nunca se esgota. Além da própria natureza do tema, existem os limites

que a mim são impostos, seja pelo meu tipo psicológico, pela minha história ou

por aqueles que desconheço, porém me fazem o que sou. Assim, desculpo-me

pelos erros aqui cometidos, omissões e equívocos, remetendo-os a mim. Quanto

ao que pude trazer de contribuição para a ampliação deste diálogo entre os

saberes e o aprofundamento da psicologia analítica, estes atribuo a todos aqueles

que me ajudaram ao longo desta jornada.

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A FUNÇÃO TRANSCENDENTE

If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, in- finite-1

(Blake, William The Marriage of Heaven and Hell, plate 14)

Em 1916, Jung escreve um pequeno texto, que se encontra incluído no

Vol. VIII de suas Obras Completas, intitulado “Função Transcendente”2. O que

pretende-se demonstrar ao longo deste trabalho é como neste pequeno texto

encontra-se reunido uma síntese de toda a sua cosmovisão assim como de sua

prática clínica, ou seja, este texto torna-se fundamental para o entendimento da

ontologia e da epistemologia da psicologia analítica. Neste texto ele utiliza-se de

um conceito, extraído da matemática — “função transcendente”. Assim, além de

apresentar os fundamentos de sua cosmovisão e sua técnica, Jung abre espaço

para um diálogo que aproxime as ciências humanas e as ciências exatas, ou da

natureza. Possibilita, desta forma, os primeiros passos para um diálogo

transdisciplinar3.

1 Se as portas da percepção fossem limpas todas as coisas deverão aparecer ao homem como de fato são, infinitas (Tradução minha) 2 É necessário esclarecer que eu utilizei a tradução da editora Vozes em português e a tradução em inglês da Princiton University Press e em francês da Buchet/ Chastel dos textos, simultaneamente, isto conforme a qualidade da tradução apresentada em ambas as edições das obras completas de Jung. Vale notar que a tradução da Vozes é repleta de erros, ausência de passagens, e defeitos de edição, sendo assim suspeita para um estudo aprofundado da obra de Jung. 3 Complementando as definições dos referidos autores seguem-se também as definições de disciplinas, a pluri ou a multidisciplinaridade e a de transdisciplinaridade. Utilizando as definições de Erich Jantsch (apud Crema, Weil e D’Ambrosio, 1993) & Cardoso, (no prelo) de disciplinas, e trabalho inter, multi e transdisciplinar, seguimos nossa discussão. Disciplinas: conjunto específico de conhecimentos que possui características próprias no plano do ensino, da formação, dos

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Neste capítulo veremos como este pequeno texto pode se tornar

fundamental para o entendimento de uma mudança de perspectiva, a partir de um

novo horizonte ontológico, que Jung expõe, isto é, ele irá apontar para os

fundamentos de seu modo de pensar, sua técnica, assim como indicará o

horizonte a partir do qual se constituem, isto é, o fundamento ontológico de seu

método e sua cosmovisão. Aponta para uma mudança no paradigma de

cientificidade seguido até então pela psicologia e marca uma ruptura, ou melhor,

uma virada, no modelo epistemológico, do pensamento do próprio Jung.

Correntemente o que se pode observar quando psicólogos junguianos

utilizam deste termo — “função transcendente”— é um tratamento técnico, ou

seja, um recurso para se dizer do efeito, ou conseqüência, da interação do

inconsciente e da consciência. Porém, o que se pode inferir é que além de ser

mecanismos, dos métodos e das matérias. A pluri ou multidisciplinaridade, conforme Crema, Weil e D’Ambrosio (1993: 31) é a justaposição de disciplinas diversas, mais ou menos ‘vizinhas’ no domínio do conhecimento, “sem nenhuma tentativa de síntese”. Concordando com Cardoso (op. cit.), percebe-se, no âmbito da multidisciplinaridade, uma justaposição de um trabalho com várias disciplinas sem ser possível um trabalho integrado de equipe. As informações seriam de duas ou mais especialidades, sobre mais de um ângulo, mas sem um método comum ou uma estrutura conceitual subjacente. O pluridisciplinar já produziria alguma relação entre disciplinas pressupondo cooperação, “mas excluindo qualquer idéia de coordenação” (Jantsch, apud Cardoso, ibid), como por exemplo, aproximando “disciplinas afins, que se ‘compreendem’, no mesmo campo de estudos e dele resultam, para fins exclusivamente práticos”. Poder-se-ia afirmar que a maior parte dos trabalhos desenvolvidos compreendendo mais de uma disciplina não ultrapassa o nível multidisciplinar, justamente por não contar com especialistas, sendo realizado por um só indivíduo, o que dificulta o equilíbrio entre as fronteiras necessárias entre as áreas e o encontro entre dois conjuntos estruturados. Isso resulta em complicação e não em complexidade, ou pior, em destruição dos fundamentos de pelo menos uma das teorias, tornando, assim uma massa confusa ou produzindo uma área como epifenômeno de outra. Embora estudiosos brilhantes de mais de uma especialidade (como no início dos tempos...) possam realizar essa comunicação interdisciplinar, é um risco concentrar em apenas duas mãos um trabalho que envolve tantas referências teóricas, níveis de prática e especialização heterogêneo, e implicações subjetivas e objetivas. Nesse sentido, devemos contar com estes pesquisadores, mas parece mais apropriado buscar profissionais que dedicaram a vida inteira a uma disciplina ou à fronteira entre elas (filósofos e epistemólogos). A transdisciplinaridade, por sua vez, está envolvida com uma questão adicional que teremos oportunidade de apontar, a noção de regularidade e irregularidade, estrutura e processo e de geral e particular. Dessa forma, a noção de transdisciplinaridade está envolvida com a visão de mundo de determinada teoria e prática. O primeiro autor a usar esse termo foi Jean Piaget (cf. Crema, Weil e D’Ambrosio, ibid) que definiu assim esse novo estágio: “... enfim, no estágio das relações interdisciplinares, podemos esperar o aparecimento de um estágio superior que seria “transdisciplinar”, que não se contentaria em atingir as interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entre as disciplinas” (ibid: 30).

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meramente uma noção operacional, com a idéia4 de “função transcendente”

problematiza-se a própria questão ontológica, ou ainda, o solo a partir do qual

homem e mundo se constituem, ou seja, como situa-se a epistemologia em sua

base ontológica, como cada modo de constituição de conhecimento está fundada

em um modo de compreensão originário.

“Quando eu escrevo sobre uma mudança ontológica , eu digo mais do que

uma mudança em como os humanos vêm as coisas, mais do que uma mudança de paradigma ou uma mudança epistemológica. ... Existem, contudo, mais coisas entre o céu e a terra do que as já sonhadas pela nossa epistemologia. Uma mudança ontológica é uma mudança no mundo sob nossos pés, em todo o contexto no qual nosso conhecimento e compreensão estão enraizados, as coisa mudam antes mesmo que tenhamos consciência do que tem estado acontecendo conosco.” (Heims:1993, p.XIII)

Por questão ontológica5, entenda-se a problematização, a tematização, da

origem radical do existente, rompendo, assim, com a mera descrição de

4 Utiliza-se aqui da palavra idéia para não se fazer referência à “conceito”, pois deve-se ressaltar que Jung não utilizava de conceitos como ferramentas de trabalho, isto é, sua linguagem não era uma linguagem representacional, poderia-se dizer que fosse metafórica, ou simbólica mas nunca conceitual. Isto necessitaria de uma outra tese para sua apresentação, pois é em função desta indistinção que muitas vezes Jung parece “obscuro”, porém ele faz questão de se utilizar da linguagem do Inconsciente como melhor modo de corresponder e aproximar-se do próprio. 5 “ When I write of an ontological shift, I mean more than a change in how we humans see things, more than a paradigm shift or a switch in our epistemological stance. Of course, our access to knowledge changes dramatically as we computorize the arts, sciences, and business. But there are more things in heaven and earth than are dreamed of in our epistemology. Na ontological shift is a change in the world under or feets, in the whole context in wich our knowledge and awareness are rooted, things change even before we become aware of what has been happening to us. We might look upon the automobile, for instance, as a limeted toll, as a human device for transformation. In fact, however, the world itself changed when we introduced the automobile. The widespread use of automobiles opens us up to diferent places, and these connect in news ways that differ from the old places in kind and quality, and the world we live in changes gradually but inevitably. Knowledge in a scientific sense can lag only slightly behind this world transformation because knowledge becomes transformed in the process. The holistic background or world in the basic reality underlying our knowledge and awareness. Ontology, the study of being, is the effort to develop a peripheral vision by wich we perceive and articulate the hidden background off beings, the world or context in wich they become real and meaningful.” (Heims,1993, p.XIII) “Quando eu escrevo sobre uma mudança ontológica , eu digo mais do que uma mudança em como os humanos vêm as coisas, mais do que uma mudança de paradigma ou uma mudança epistemológica. Claro, nosso acesso ao conhecimento muda dramaticamente quanto mais se computadorizam as artes, ciências e os negócios. Existem, contudo, mais coisas entre o céu e a terra do que as já sonhadas pela nossa epistemologia. Uma mudança ontológica é uma mudança no mundo sob nossos pés, em todo o contexto no qual nosso conhecimento e compreensão estão enraizados, as coisa mudan antes mesmo que tenhamos consciência do que tem estado acontecendo conosco. Nós devemos olhar para o automóvel, por exemplo, como uma ferramenta limitada, um instrumento humano para locomoção. De fato, entretanto, o mundo mudou quando introduzimos o automóvel. A disseminação do uso do automóvel nos abre a diferentes lugares, e

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fenômenos assim como a hipertrofia da técnica, o que se sobreporia à

experiência radical de constituição de homem e mundo através das definições, do

“quantificar” a realidade e todas as técnicas de colonizar esta experiência.

Ou seja, com função transcendente nos debruçamos sobre a tematização

da questão ontológica, para além de um método fenomenológico, isto é o

interesse não será pensar a técnica ou suas implicações, mas antes, pensar os

fundamentos da própria técnica, suas condições de possibilidade, o que a torna

possível estabelecer.

Por outro lado, com a discussão a partir do trabalho de Jung, pretende-se

indicar como a problematização ontológica implicaria uma virada no modelo

epistemológico das ciências humanas, mais propriamente na psicologia. Pois, ao

tematizar as bases ontológicas do humano e assim da técnica, o que se

depreende é como a partir deste ponto, um tema local, pontual, seremos

conduzidos para a questão da transdisciplinaridade no pensamento de Jung,

assim como para um modo de pensar que se funda fora dos parâmetros da

representação e do reducionismo sensível, isto é, da dicotomia entre externo e

interno, matéria e psique ou sujeito e objeto.

A partir dessa intuição originária de Jung poder-se-ia então situar o

humano/ mundano como possuidores da mesma origem e natureza que o símbolo

— isso é, ao se considerar o consciente e o inconsciente, estes dois aspectos da

organização do psiquismo, como faces metamorfoseadas da mesma realidade

fundamental, isomórfos não triviais que se constituiriam fundados em um mesmo

idiótipo radical, o Inconsciente Coletivo. Mostrar-se-á que ao se deparar com a

“função transcendente” se estaria situando o símbolo como modelo e referência

para uma episteme-conhecer que atravessaria as dicotomias e limites do

eles se conectam a novas formas que diferem dos antigos lugares em qualidade e maneira, e o mundo em que vivemos se modifica gradualmente mas inevitavelmente. Conhecimento, em um sentido científico, pode atrasar muito pouco apenas seguindo essa transformação do mundo, por que o conhecimento se transforma no processo. O pano de fundo global ou o mundo é a realidade básica que reunifica nosso conhecimento e consciência. Ontologia, o estudo do ser, é o esforço para desenvolver uma visão periférica através da qual nós percebemos e articulamos o fundo oculto dos seres, o mundo ou o contexto no qual eles se tornam real e significativos.” (Heims,1993, p.XIII) Tradução minha.

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pensamento reducionista presente nas ciências humanas e mais propriamente da

psicologia, ainda hoje.

O texto, assim como o símbolo, possui diversos níveis de hermenêutica,

ou variados modos de compreensão, isto é, permite que o leiamos de diversos

modos e nos relacionemos com ele, ao se recompor seu sentido e suas

conseqüências, em variados níveis de existir:

— Em um primeiro momento pode ser entendido como um trabalho

técnico/ clínico, onde se desenvolvem técnicas para acesso ao inconsciente e

para o processo de iteração entre consciente e inconsciente, com ênfase

propriamente na imaginação ativa;

— num outro nível, um texto epistemológico, pois como se verá ele

aborda o problema dos modos de conhecimento do inconsciente e do consciente.

Modo de distinção feita entre uma ênfase que seria dada no aspecto estético do

símbolo ou em sua compreensão, tratando, também, da questão da “visão

sintética”, um modelo de ciência que se basearia no sentido ao invés da

explicação6. Dentro desta perspectiva, existe um aspecto metodológico, do uso do

termo como função e como processo;

— por fim, pode-se entendê-lo em seu aspecto ontológico, ao

caracterizar o processo de formação do indivíduo7, como se originando a partir do

“confronto” e diálogo entre consciente e inconsciente.

6 É interessante ressaltar que Jung, apesar de sua linguagem e seus modelos platônicos, kantianos e metafísicos, se insere em uma tradição do pensamento que poderia-se nomear de místico (Cf. Scholem), isto é, ele é herdeiro legítimo dos místicos renanos (Meister Eckhart, Hildergard von Bingen, Paracelso, Jacob Boehme,....) assim como do romantismo alemão, vide suas referências a Goethe, Holderin, etc... (Cf. Memórias Sonhos e Reflexões). Deste modo ele acompanha o romantismo filósofico alemão ao se colocar na tradição de Dilthey e da fenomenologia hermenêutica ao caracterizar a ênfase em um ciência baseada na compreensão, isso é, no sentido, que seria legítima ao saber psicológico ou humano ao invés de basear-se em modelo explicativo ou causalista. Cabe ressaltar que este tema apenas daria uma outra tese. 7 Surge aqui um problema não apenas conceitual ou descritivo, o modo de se nomear o humano dentro de uma perspectiva junguiana, mesmo ele não possuindo esta preocupação. Evito me referir a sujeito ou subjetividade como referência pois o termo sujeito pressupõe uma dicotomia e um determinado modo de entendimento do humano, sujeito-objeto. Ou seja, um modelo do

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O que pretende-se tematizar aqui é esta dimensão ontológica a partir da

idéia de “função transcendente”, ou fazer-se a pergunta, parafraseando

Heidegger, “que é isto a função transcendente?”. Para tal, ao se fazer tal pergunta

e ver aonde ela nos leva, deve-se resgatar a própria pergunta como uma questão

original, radicalizar seu fundamento, penetrar em sua constituição mais própria.

Isto é, ao invés de meramente repetir, “isto é função transcendente”, “aquilo é a

função transcendente”, tematizar esta idéia como questão é permitir que ela

responda a partir de seu próprio fundamento.

II.

Jung, ao iniciar o texto, levanta um primeiro problema, perguntando ao

leitor “De que maneira podemos confrontar-nos com o inconsciente?” Para ele isto

pode dar alguma visão ou idéia dos esforços de compreensão exigidos pelas

primeiras tentativas de se chegar a uma visão sintética do processo psíquico no

tratamento analítico.

“ J`emploie ce terme à peu près de la même façon que synthétique pour expliquer en quelque sorte ce dernier. Le terme de “constructif” insiste sur l`idée de construire. Par “constructif” et “synthétique” je désigne une méthode qui est à l’opposé de la méthode réductive. La méthode constructive s`applique à l’élaboration des matériaux inconsciente, rêves, imaginations, etc... Son point de départ est la production inconsciente qu`elle considère comme une expression symbolique qui antecipe en image un fragment du dévelopement psychologique. .... Il est certain qu`il ne faut pas se contenter de considérer les produits de l`inconscient uniquement comme quelque chose d`accompli,...Conformément à cette conception, la méthode constructive ne s’occupe pas des sources proprement dites, ni des éléments originels du produit de l’inconscient ; elle cherche une traduction claire et compréhensible en général de la création symbolique.”(Jung: 1921,p.422)8

humano baseado na representação e numa subjetividade que se diferencia constitutivamente do mundo exterior, o que não faz juz ao modelo de homem para o qual Jung aponta. 8 “ Eu emprego este termo aproximadamente da mesma maneira que sintético, para explicar de alguma forma este último. O termo “construtivo” insiste na idéia de construir. Por “construir” e “sintético” eu designo um métdo que é o oposto do método redutivo. O método construtivo se aplica à elaboração dos materiais inconscientes, sonhos , imaginação, etc...Seu ponto de partida é a produção inconsciente que ela considera uma expressão simbólica que antecipa na forma de imagem um fragmento do desenvolvimento psicológico.

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Por visão sintética ou construtiva deve-se entender a necessidade de

estabelecer um método hermenêutico como forma de compreensão dos

processos psíquicos, método que priorize a questão do sentido ao invés de

basear-se somente em um modelo explicativo. Ciências às quais se reporta o

início da psicologia como ciência do “comportamento” humano. Assim, ao invés

de se fundar um saber a partir do modelo da física, biologia ou química, do séc.

XIX, caberia aqui estabelecer um modo de compreensão que seja radicado no

próprio imaginário ou como nomeado por Jung, “inconsciente coletivo”. Deve-se

ressaltar que Jung em momento algum exclui o modelo explicativo ou analítico do

saber psíquico ou do fazer humano, porém ao tentar fundar um modelo sintético

ou construtivo ele estaria apontando para uma episteme simbólica — uma lógica

das imagens9. O pensamento baseado no modelo de organização e constituição

dos próprios símbolos, os quais passariam a ser o horizonte a partir do qual se

pensaria o humano e o conhecer10.

“...De que maneira podemos confrontar-nos com o inconsciente? Esta é uma questão colocada pela filosofia da Índia , e de modo particular pelo Budismo e pela filosofia Zen. Indiretamente , porém, é a questão fundamental , na prática de todas as religiões e de todas as filosofias.” (Jung: 1916a, ,p.XI )

..... É certo que não se deve se contentar em considerar os produtos do inconsciente unicamente como alguma coisa acabada,...Conforme a esta concepção, o método construtivo não se ocupa das origem propriamente dita, nem dos elementos originários do inconsciente ; ele procura uma tradução clara e compreensível, no geral , da criação simbólica.” (Jung : 1921, p. 422) Tradução minha. 9 Principalmente em seus textos sobre alquimia e religião, que iremos encontrar a expressão utilizada por Jung que remeterá a esta fase de seu trabalho, para maiores esclarecimentos conferir Psicologia e Religião e Misterium Conunctionis, onde se refere aos modos de hermenêutica dos símbolos tradicionais. 10 Jung, em Fundamentos da Psicologia Analítica, diz que, quando necessário, é adleriano, outras vezes freudiano, e quando pode simplesmente ele mesmo. Com isto afirma a necessidade de compreender o fenômeno com que se lida em variados níveis hermenêuticos. Ou seja, o que ele quer dizer não é a defesa de uma falta de rigor ou método, mas que num mesmo fenômeno existem múltiplos níveis de interpretação e intervenção, não se exclui, assim, nenhum dos modos, eles se complementam em função das circunstâncias.

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Em um encaminhamento hermenêutico poder-se-ia dizer que Jung — ao

criar novas imagens e metáforas para descrever a experiência psíquica —

atualiza a psicologia como atividade científica. Ele a situa dentro de um modelo de

“ciência” que corresponderia, de modo mais fidedigno, à psique, rompendo com

uma determinada concepção de ciência que se funda na racionalidade . Ao

romper com uma tal forma de compreensão (modelo explicativo do homem

moderno) ele desconstrói , também , uma determinada concepção de sujeito.

Qual a questão da psicologia? Tal é a pergunta feita por Jung; esta

questão, conforme diz, é a mesma colocada pelas religiões e filosofias...Todas as

religiões tratam da questão do Ser, do sentido como manifestação do sagrado e,

como nos diz Kolakowski(1981)11 todas as filosofias , ou melhor , todo filósofo em

ultima instância, estariam a lidar com a questão do sentido de sua experiência e

com algo que é do âmbito do valor; enfim, o fato de se encontrar um certo dia

habitante de mundo e sofrendo suas vicissitudes, sua existência .

A autêntica filosofia pode ser descrita como a pré-ocupação com a

questão do Ser ( Zimmerman, 1986); tarefa que se determina como a escolha

autêntica do filósofo em ser a abertura por meio da qual o Ser se realiza, se

materializa, vem a existir como ente. Tal escolha se dá pela questão sobre o

próprio Ser — através do filósofo que se descobre como sua morada e porta voz.

A filosofia não é, então, um emaranhado de conceitos teóricos a serem

adquiridos ou uma forma de pedagogia do bem viver , não possuindo uma

utilidade prática . Como escolha e abertura que é, torna-se necessário um

retornar constante sobre o próprio Ser, tendo o filósofo que, em sua inefável

fugacidade, se colocar a cada instante à sua escuta, escuta de seus sinais;

11 “8. Todos os fundamentos em que se enraíza a consciência mítica, tanto em sua versão inicial quanto em seus prolongamentos metafísicos, são, portanto, atos de afirmação de valores. Podem ser frutíferos na medida em que satisfaçam a necessidade real de dominar o mundo da experiência por meio de sua interpretação compreensiva, referindo-se a um ser incondicionado. No entanto, os fundamentos últimos que presidem a escolha das convicções no pensamento científico são igualmente atos de valoração. Ao afirmar o valor das energias multiplicadas de que pode dispor a sociedade humana pela exploração do meio físico, criamos uma condição necessária para os critérios de escolha entre falsidade e verdade. Eles não são arbitrários no sentido histórico, ou seja, é possível explicar historicamente seu surgimento e sua história; no entanto, são arbitrários no sentido lógico, uma vez que não existem regras lógicas anteriores a eles que permitam fundamentá-los; na verdade, as regras da lógica são um produto da presença desses critérios.”(Kolakowski:1981 ,p.12)

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símbolos que se realizam e atualizam como corpo e alma do ente. Ao invés de

considerar apenas questões relativas a subjetividade, sua constituição e suas

preferências, há um descentramento , pois a questão não reside no sujeito e em

sua pretensão de fundamento ontológico da verdade, mas no sentido ou

interpretação dos sinais que se manifestam, tomando o indivíduo e o mundo como

sua voz . Neste descentrar-se do filósofo ele se encontrará totalmente e

inevitavelmente implicado, pois poderá (ou não) corresponder a esta questão

fundamental, como a abertura ou horizonte do Ser .

“Minha vida é a história de inconsciente que se realizou. Tudo o que nele

repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade. A fim de descrever esse desenvolvimento, tal como se processou em mim, não posso servir-me da linguagem científica; não posso me experimentar como um problema científico.” (Jung apud Jaffé, 1961, p. 19)

Quando Jung diz que lida com os mesmos problemas impostos pelas

religiões e pela filosofia, pode-se depreender daí, e a partir de uma leitura

fenomenológica, que ele rompe com uma certa tradição científica que toma o

logos como sinônimo de razão e verdade. Sua intenção não seria estabelecer

verdades — rompendo com a necessidade de explicação e busca de causas

originárias — que capturam e dominam a vida na forma de conceitos12. Ao

priorizar o mito e as imagens em sua descrição do trabalho psicológico, ele

estaria indicando a necessidade e reafirmando a tarefa da psicologia como

ciência do sentido, como um trabalho hermenêutico. A partir do mito , dos

símbolos e das imagens, isto é, da questão do sentido, aponta para uma

experiência que subjaz e vigora como fundamento de qualquer possibilidade de

interpretação e domínio do mundo , a experiência “ante-predicativa”.

“O inconsciente , com efeito, não é isto ou aquilo , mas o desconhecido que

nos afeta imediatamente. Ele nos aparece como de natureza psíquica , mas sobre

12 Um conceito pode ser explicado como um símbolo — interpretações do sentido do Ser e explicitação de mundo/homem — cristalizado na necessidade de estabilidade e continuidade do sujeito. Um conceito seria um signo, conforme compreendido por Jung, um “símbolo morto”. Ou seja, um símbolo ao qual em seu processo de entendimento é atribuído um sentido baseado na certeza e categorização de uma determinada delimitação da experiência.

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sua verdadeira natureza sabemos tão pouco - ou , em linguagem otimista — tanto quanto a natureza da matéria....”( Jung: 1916a, p.XI)

Esse “desconhecido que nos afeta” seria a experiência originária, a

experiência ante-predicativa que Jung tenta resgatar em todo seu vigor através

de imagens e símbolos. Experiência radical que se encontra na base de toda

preocupação religiosa, filosófica e psicológica, ou seja, fundamento de todo modo

de compreensão, fundamento que seria inapreensível, impassível de colonização

pela razão, em sua radicalidade e que fundaria qualquer modo de constituição do

humano.

Pode-se fazer um paralelo com a experiência do Dasein como descrita

por Zimmerman ao falar do monge e do filósofo; ambos, no projeto de realização

da questão do Ser, iniciam sua jornada através do trabalho com eles mesmos, em

sua situação concreta, mas tendo como objetivo não apenas a lida com sua

subjetividade. O monge “...procura a presença Divina em todos os seres

humanos” (Zimmerman:1986, p.290). Através do ultrapassamento dos limites do

ego eles alcançam a verdadeira abertura que inclui o ego. O verdadeiro monge

“torna-se si mesmo apenas quando ultrapassa a si mesmo”. Tal é o problema que

se coloca, também, para o filósofo; somente ao se reconhecer como abertura

finita e mortal, pode abrir-se para a questão do Ser em sua situação particular —

trazendo-o para a concretude e exigências da vida diária .

O inconsciente não seria, nessa perspectiva, uma entidade isolada dentro

da subjetividade . O inconsciente, conforme Jung, é esta experiência ante-

predicativa e radical que ultrapassa a subjetividade, tornando-se apreensível

através de metáforas ou símbolos que serão construídos em cada época ou

cultura como modo de falar e apreendê-la; estas metáforas não são produtos de

um sujeito , não há uma vontade a criá-las, surgindo como a mais própria

constituição do sujeito.

“Le symbole ne naît jamais dans l’inconscient ( Plérome) mais, comme vous le dites très justement, “dans le modelage personnel”. Il naît des matériaux bruts de l’inconscient et il est conscientemment modelé et exprimé.....Le symbole a besoin de

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l’homme pour son devenir. Mais, il dépasse l’homme, c’est pourquoi on lui donne le nom de “Dieu”, parce qu’il exprime une réalité spirituelle ( ou un facteur ) plus fort que le Moi. ( je l’appelle le Soi.) Ce facteur est préexistant dans l’inconscient collectif, mais impuissant tant que le Moi n’en a pas pris conscience, alors seulement il devient le maître. (“Ce n’est plus moi qui vis, c’est le Christ qui vit en moi.”) Il remplace le Moi sur des points importants. D’où disparition du sentiment d’impuissance. (“Que Ta volonté soit faite.”).”(Jung:1992 ,p.97)13

III.

Não se deve entender a “função transcendente como algo de misterioso

ou metafísico”, como função diz respeito a um processo, como será visto, baseia-

se em estabelecer uma relação entre dois termos, ou mais. Estes dois termos,

como descritos por Jung são o consciente e o inconsciente. Ao se utilizar da

termo “função transcendente” Jung compara com a função transcendente

matemática, uma função não algébrica, aquela que não possui como raiz

números racionais, inteiros ou negativos. Ele estabelece, assim, um quadro

epistemológico bem definido, pois como ver-se-á, em matemática não restam

dúvidas quanto ao que seja a função transcendente.

" Por ' função transcendente' não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer supra-sensível ou metafísico, mas uma função que, por sua natureza, pode-se comparar com uma função matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e imaginários. A função psicológica e ' transcendente' resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes." (Jung: 1916a, p. 1)14

13 “O símbolo não nasce jamais no inconsciente (Pleroma) mas, como lhes digo justamente, “na construção pessoal”. Ele nasce de materiais brutos do inconsciente e ele é conscientemente modelado e expresso....O símbolo tem necessidade do homem para seu devir. Mas, ele ultrapassa o humano, é por isto que lhe damos o nome de Deus, pois ele exprime uma realidade espiritual (ou um fator) mais forte que o Eu (eu o chamo de Selbst). Este fator é pre-existente no inconsciente coletivo, mas impotente tanto quanto o Eu não tomou consciência, somente então ele torna-se o mestre. (“Não sou mais eu que vivo, é o Cristo que vive em mim). Ele substitui o Eu sobre pontos importantes. De onde provem o desaparecimento do sentimento de impotência. (“Que sua vontade seja feita”).” (Jung: 1992, p.97) Tradução minha 14 CW. VIII § 131 “There is nothing mysterious or metaphysical about the term “transcendent function”. It means a psychologycal function comparable in its way to a mathematical function of the same name, which is a function of real and imaginary numbers. The psychological “transcendent function” arises from the union of conscious and the unconscious contents.”

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Na matemática “função”, “números transcendentes”, “números

imaginários” e “função transcendente” são bem definidos, são conceitos

estabelecidos. Porém dentro do modelo que Jung pretende estabelecer, para a

compreensão da constituição do psiquismo e do humano, não há uma clareza

quanto ao modo de entendimento que ele pretenderia, assim como para quê ele

se utiliza de um termo da matemática ao descrever um processo psíquico.

Para que se possa ter uma compreensão adequada do que sejam os

processos que Jung descreve faz-se necessário que se entenda o que é a função

transcendente em matemática, assim como a compreensão deste fenômeno que

Jung tenta circunscrever. O que se pretende não é — deve-se ressaltar —

simplesmente transpor um conceito matemático para a psicologia ou vice-versa.

Mas esclarecer, através do próprio fenômeno e a partir dele, o sentido desta

intuição que diz sobre o processo de constituição do psiquismo, possibilitar um

diálogo entre a matemática e a psicologia.

Em outras palavra, o que se pretende é o esclarecimento, a

compreensão, através do caminho pelo conceito de função transcendente e

números transcendentes na matemática, assim como dos processos descritos por

Jung. Para tal demanda-se a reconstituição do fenômeno, da intuição e do

horizonte para onde tal intuição aponta, tematizando a noção de psiquismo em

Jung e o conceito matemático. Inquirir o texto a partir dele próprio, ao reconstituir

sua raiz, ao invés de estabelecer algum modo de comparativismo ou associação

que conduza para fora do próprio texto, permite-nos afirmar que estamos dentro

de um projeto hermenêutico. Porém, cabe indicar, não apenas uma hermenêutica

fenomenológica, pois como se verá com a Teoria das Estranhezas será permitido

que se constitua uma hermenêutica que sustente este diálogo dentro do âmbito

de um modelo epistemológico que corresponda ao caráter transdisciplinar das

idéias de Jung, integrando explicação e compreensão.

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É interessante observar que ao Jung “explicar” para o leitor o que seria a

função transcendente em matemática faz uso do conceito de números imaginários

— para não dizer que explica de forma ambígua — ele não se atém a diferença

entre números reais, imaginários e transcendentes, definindo assim, a função

transcendente como constituída de números reais e imaginários. O que do ponto

de vista matemático estaria errado, pois uma das características fundamentais da

função transcendente é possuir como raiz números transcendentes, ela é

composta de números transcendentes15. Do ponto de vista psicológico, para o

que pretende indicar, a noção de números imaginários pode ser considerado

como suficiente para a intuição da idéia originária que se encontra “por trás” do

conceito de função transcendente.

Esta “explicação” de Jung poderia ser considerada como um erro

conceitual, que colocaria por terra toda a tentativa de compreensão

epistemológica do processo descrito. Porém, se não se olhar esta definição

apenas de uma forma redutiva, ou analítica, ter-se-á neste ponto uma indicação

de que existe uma intuição original, um modo de compreensão não racional que

apreende relações totais, não parciais ou categorizáveis, e nos encaminha para a

questão “do que Jung está falando?”, isto é, algo é intuído, apreendido não

conceitualmente, porém que tem necessidade de ser expresso através deste.

Este algo ou esta “coisa” é o que Jung tenta indicar, mostrando que existe uma

afinidade entre isto e a idéia que se encontra operacional na matemática através

do conceito de função transcendente. Tal como o imaginário o inconsciente é esta

“cifra” estranha que entre em operação através da dialética com o consciente e

assim criará a função organizadora do psiquismo.

IV.

15 i = imaginários, √-1. Os números transcentendes são bastante conhecidos em matemática, porém os mais famozos dentre todos são e π, podendo ser entendidos como números que possuem em sua natureza valor infinito, não determinável, presente tanto na natureza quanto no homem.

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A intuição é um modo legítimo de apreensão da realidade, porém diverso

do pensamento ela não se baseia em categorização nem funciona através de

deduções ou indução. Como expõem Jung em “Tipos Psicológicos” a intuição é

uma função de conhecimento que apreende a realidade a partir do inconsciente,

isto é, um modo “irracional” de conhecer e organizar a psique consciente que se

constitui em uma linguagem própria. Linguagem esta que possui uma intensidade

e uma concretude próprias do inconsciente, pois, como diz Jung (1921), a intuição

é um “dado”, uma experiência imediata do inconsciente. Ao mesmo tempo que se

manifesta diretamente do inconsciente, como experiência originária, ante-

predicativa, nos remete de volta a ela, na medida em que devemos dispor de

todos os nossos recursos para integrá-la na consciência.

“...nous présente subitement un contenu sous forme définitive sans que

nous soyons en état de dire ou de comprendre comment il s’est constitué; c’est une sorte d’appréhension instinctive de n’importe quel contenu. C’est une fonction irrationnelle de perception, comme la sensation. Ses contenus, comme ceux de la sensation, sont des données, au contraire de ceux de la pensée ou du sentiment qui ont toujours un caractère de “deduit” ou de “produit”....” (Jung: 1921, p.454)16

Em “Tipos psicológicos” (1921), Jung concebe o psiquismo (consciente –

inconsciente) e a personalidade, como um sistema relativamente fechado,

possuidor de um potencial que permanece o mesmo em quantidade, através de

suas múltiplas manifestações, durante toda a vida de cada indivíduo. Se a energia

psíquica abandona um de seus “investimentos” virá reaparecer sob outra forma,

variando apenas sua distribuição.17

Com o objetivo de fazer uma diferenciação entre os indivíduos e suas

respectivas visões de mundo, Jung concebe o problema dos “tipos psicológicos”

16 “... nos apresenta um conteúdo subtamente sob forma definitiva sem que nos estejamos em estado de dizer ou de compreender como ele se constituiu; é uma forma de apreensão instintiva de qualquer conteúdo. É uma função irracional de percepção, como a sensação. Seus conteúdos, como os da sensação, são dados, ao contrário daqueles do pensamento ou do sentimento que possuem sempre um caráter de “deduzidos” ou de “produzidos”... (Jung: 1921, 454) (Tradução minha)

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como decorrente do direcionamento da “libido”. Este direcionamento é dado pelo

“interesse” maior pelas coisas do mundo “objetivo”, ou pela dependência “do

próprio íntimo do sujeito” (Jung 1921, p.27). No interesse pelo objeto, a

“extroversão”, “...(este) atua como um ímã sobre as tendências do sujeito”(ibidem,

p.29) condicionando seu comportamento. Quando o sujeito é o centro de todos os

interesses “dir-se-ia que toda energia vital é atraída para o sujeito...”(ibidem, p.

29)18.

Junto ao predomínio do “interesse” pelo objeto ou pelo sujeito a

disposição íntima e certas circunstâncias “favorecem também o predomínio de

uma função básica do indivíduo”(ibidem, p.31). Estas “funções” são formas de

“conhecimento”, adaptação e assimilação do mundo que “tanto genuinamente

como essencialmente se distinguem de outras funções - o pensar, o sentir, o

perceber e o intuir” (idem).

As quatro funções são formas legítimas — irredutíveis uma às outras —

de relação com o mundo. Como formas de relação elas são funções de

conhecimento, o que rompe com a primazia do pensamento identificado como

razão e com a imagem de uma unidade do conhecimento e da experiência.

Haveria diversas formas possíveis de compreensão de mundo, indicando a

estrutura polimorfa que constituiria o indivíduo.

“...sentimentos , humores, e estados-de-ânimo não são meras “projeções” psicológicas sobre objetos que subsistem externamente . Ao invés , humores são um aspecto essencial da abertura na qual os serem podem manifestar-se . Diferentes humores possibilitam os seres se revelarem de diferentes maneiras...” ( Zimmerman 1984,p.54).

Nessa perspectiva, Jung estaria criticando uma hipertrofia da consciência

egóica que se identificaria com a racionalidade, conduzindo a um

desenraizamento e a um isolamento do homem moderno. Desenraizamento que

17 “Energia psíquica” é tomada num sentido amplo. Também se usa o termo “libido” ou “instinto” de forma indiferenciada para falar sobre a “intensidade do processo psíquico, seu valor psicológico.” 18O grifo é meu

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através da “...hipertrofia da subjetividade conduz a uma cisão entre homem e

mundo e ao homem como indivíduo de massa”( Adler:1980, p.135).

A intuição convoca para seu esclarecimento, para sua compreensão, o

sentido de um modo de se pensar o fundamento a partir da intuição ou do

horizonte ontológico que se encontra vigorando no conceito matemático de função

transcendente. Intuição ontológica ou idiótipo que possibilitará estabelecer-se o

diálogo entre psicologia e matemática, sem que com isto reduza uma à outra19.

Jung lança a base de uma episteme não mais na razão, na coerência da lógica e

em sua linearidade. Ao dispor da intuição como função de conhecimento e ao nos

referirmos a ela para entender este “erro” conceitual de Jung, o que se pretende é

mostrar como a intuição apreende a realidade em sua verticalidade, isto é,

através de uma linguagem que emerge e se constitui diretamente do inconsciente

e conduz aos fundamentos da mesma experiência. Pretende-se desta forma dizer

que Jung estabelece, operacionalmente, a necessidade de uma epistemologia

não mais baseada na certeza, e sim aponta para ao menos quatro possibilidades

de constituição da episteme, constituição do saber exato, através das quatro

funções de conhecimento. Considera, assim, cada forma de conhecer como

legítima e irredutível à outra, cabendo fundar o conhecimento dentro da esfera de

cada modo de conhecer sem reduzi-lo ou usar como crivo de validação outro

modo que não o próprio através do qual o conhecer se faz; “Um dos grandes

obstáculos para a compreensão psicológica é a indiscreta curiosidade de saber

se o quadro psicológico apresentado é “verdadeiro” ou “correto”.....”(Jung:

1916a,p.22).

A intuição simplesmente mostra as coisas a partir do modo de organizar

ou da lógica do inconsciente, a partir do sentido imediato que se faz presente nos

símbolos e nas imagens, sem pretender que seja correto, verdadeiro ou falso.

Encaminha-se, desta forma, para a questão do sentido ao invés da certeza.

19 Tarefa que pode ser considerada praticamente impossível, pelo menos impraticável para mim, pois constituem-se como dois saberes dispares ou bastante afastados.

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V.

A função transcendente a que se refere Jung, seria composta por dois

fatores “conteúdos conscientes e inconscientes” . Ela é um modo de colocar em

relação dois termos que, como se verá, são indetermináveis, e a partir desta

relação tanto a consciência quanto o inconsciente se constituem. Existe, porém,

uma analogia entre o que ele designa como números reais e a consciência,

conhecido, limitado e os números “imaginários” que seriam os elementos

inconsciente. O termo de relação entre os dois, dinâmica fundamental de

integração e formação do humano, a função. Jung indica, por um lado uma

dicotomia, entre consciente e inconsciente, por outro lado aceita um contínuo

processo de integração, o qual não é apenas produto posterior a uma cisão

originária mas um modo de constituição radical, que se enraíza na própria

organização do psiquismo. Pois, o inconsciente coletivo como origem e matriz de

todos os modos de desvelamento do humano é a fonte da própria consciência.

A consciência não se constitui para Jung a partir de uma cisão em relação

ao inconsciente, pelo contrário, emerge deste, e permanece enquanto um modo

de desdobramento e de atividade específica com suas peculiaridades, distinta do

modo de funcionamento do inconsciente. Porém, como possui sua origem neste

“desconhecido” originário do inconsciente, a consciência é, também, um modo de

ser, de desdobramento do próprio inconsciente. A função transcendente conduz,

assim, para este enraizamento da consciência no inconsciente, para a percepção

da não dicotomia entre ambos, um processo que se atualiza como princípio de

organização operacional encaminha, também, para o princípio através do qual um

e outro emergem como próprios.

Consciência, para Jung, é um processo momentâneo de adaptação, ao

passo que o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado

individual, mas todos os traços fundamentais herdados que constituem a estrutura

do “espírito humano”. O inconsciente contém, também, todas as combinações de

fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e, com o correr do

tempo e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da

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consciência. Existe um processo de constituição através do qual o que será

“produto” da consciência, ou melhor, a própria consciência, emerge do

inconsciente, modifica seu modo de ser, modificação qualitativa que decorre de

trocas de energia entre consciente e inconsciente20 “...Consciousness possesses

a threshold intensity which its contents must have attained, so that all elements

that are too weak remain in the unconscious.” (Jung: 1916a, p. 69 )21

“Teoricamente, é impossível dizer até onde vão os limites do campo da

consciência, porque este pode estender-se de modo indeterminado. Empiricamente, porém, ele alcança sempre o seu limite, todas as vezes que toca o âmbito do desconhecido.”(Jung: 1954, p.3)

Poder-se-ia dizer que entre o inconsciente e o consciente há uma

ambigüidade. Existiria uma consciência coletiva e heróica que seria uma forma de

inconsciência, e o inconsciente possuiria sua própria forma de intencionalidade

operativa, sendo uma forma de consciência. Geralmente ele prefere o termo

consciente para se referir à capacidade de refletir sobre, apreciar. A apreciação

seria a forma própria da intencionalidade encarnada, pré-reflexiva ou vivida

inconscientemente, de apreensão da existência e da experiência.

20 O “eu” se dá como uma imagem não apenas de um, mas de muitos fenômenos e da sua sincronização, isto é, de todos os processos e conteúdos que compõem a consciência do “eu”. A sua multiplicidade forma realmente uma unidade em que a relação do consciente atua como um tipo de gravitação que contrai as diversas partes no sentido de um centro talvez “virtual”. Por isso, Jung não fala em um “eu”, mas de um complexo do “eu”, na suposição fundamentalmente de que o “eu” é de composição mutável e, por isso, transformável, e que, por essa razão, não pode ser pura e simplesmente o “eu”. Psicologicamente, não se possui nada daquilo que não se tenha experimentado realmente. Um reconhecimento intelectual signifa, assim bem pouco, porque se torna conhecimento apenas de palavras através dele , mas não se conhece a matéria por dentro. C.G.Jung: TP p.700: “Entendo como consciência a relação dos conteúdos psíquicos com o ego, na medida em que essa relação é percebida como tal pelo ego. As relações com o ego que não são percebidas como tal são inconscientes. A consciência é a função ou atividade que sustenta a relação dos conteúdos psíquicos com o ego. A consciência não é idêntica à psique, pois a psique representa a totalidade dos conteúdos psiquícos, e estes não são necessariamente, em sua totalidade, ligados ao ego, isto é, relacionados com ele de tal modo que assumam a qualidade da consciência.” 21 “A consciência possui uma intensidade limiar a qual os conteúdos têm que alcançar, assim como todos aqueles elementos que são tão fracos para permanecerem no inconsciente. “ (Tradução minha)

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A apropriação seria o ato de “responsavelmente” (Brooke:1991) o

indivíduo aceitar suas próprias experiências como algo pertencente a si mesmo,

assumindo seu destino ao invés de se massificar. Ela se daria como o processo

pelo qual as coisas, imagens e eventos são percebidos psicologicamente e não

de forma literal. Este processo não é de forma alguma separado da reflexão para

Jung. Reflexão seria o mesmo que tornar-se consciente, sentir que algo é “justo”

(Adler:1980), processo de integração e apreensão22.

“A reflexão não deve ser entendida simplesmente como um ato de

pensamento, mas sim como uma atitude...Como o próprio mundo testifica (“reflexão” significa literalmente “voltar-se para traz”), reflexão é um ato espiritual que vai em sentido contrário ao processo natural ; um ato no qual nós paramos , chamamos alguma coisa à mente, como uma imagem, e estabelecemos uma relação que nos situa com o que vimos.”( Jung:1942, p.48 )

A reflexão não se daria de maneira representativa e sim como resultado

de reconhecimento, “reflexão sobre” e “retenção” da experiência de tal forma que

possibilite o indivíduo integrar isso com o que aprendeu e senti-lo como relevante,

apreendendo e gerando um sentido para sua vida.

O inconsciente seria inconsciente apenas a partir do ponto de vista do

homem, não necessariamente em si mesmo ou por si mesmo; este termo

descreve uma qualidade da vida que é vivida, não alguma entidade metafísica

substancializada. Possui um modo de compreensão, mesmo que não seja

reconhecido pela consciência representacional. Ele seria, então, uma consciência

ambígua, uma encarnação existencial e nascente, à qual faltaria, entretanto, auto-

reflexão e apropriação.

22 “..quando nós sentimos que alguma coisa é “justa” , nós já sentimos que isto “tem um sentido”...Jung observou um dia que o aspecto teleológico destas expressões : “que convém” , “que é em seu lugar” , tais como se encontram no domínio biológico , deveria se formular em psicologia como “significativos” . Em outros termos , a experiência do sentido conduz a um sentimento de “ajustamento” psíquico ou de intencionalidade . Mesmo a expressão “estar no local que convém” é muito pouco definida e necessita de ser explicitada por um exemplo empírico .”(Adler:1980,p.149)

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34

O inconsciente como intencionalidade encarnada, corporificada, estaria

sempre presente nos relacionamentos interpessoais, tornando-se disponível na

experiência. Poder-se-ia dizer que não haveria, então, apenas processos de

projeção — de um inconsciente subjetivo sobre o mundo. O que se chama por

projeção seria a apropriação e vivência de um modo de ser e de uma maneira do

inconsciente se manifestar através dos relacionamentos. O outro e o mundo

fazem parte dessa intencionalidade encarnada e são horizontes de manifestação

e geração de sentido tanto quanto o próprio indivíduo.

O horizonte da consciência poderia apenas refletir de uma forma

incompleta a existência que se encontra desde seu princípio vivida de forma

inconsciente. A auto-compreensão ou o auto-conhecimento nunca seriam

transparentes para o eu, por causa da opacidade impessoal do fundamento da

vida, que é o solo da consciência. Tanto a consciência quanto o inconsciente

seriam inapreensíveis em sua forma última, pois a própria vida ante-predicativa, o

inconsciente, é um momento de abertura e de uma síntese inacabada, se dando

como revelação e ocultamento.

VI.

Jung inicia o texto de “Função Transcendente” expondo que a experiência

na psicologia analítica tem mostrado que o consciente e o inconsciente raramente

concordam em termos de conteúdos e tendências. Existiria uma falta de

“paralelismo”, que é justificado e intencional. Esta justificativa se encontra no fato

do inconsciente agir, ter uma atitude, complementar ou compensatória em relação

ao consciente. Assim, existiria um processo de contínua troca entre ambos, se por

um lado há uma diferenciação por outro há, também, um processo de unificação

deste dois termos em uma unidade dinâmica.

A diferença entre os dois termos, consciente e inconsciente, é como se vê

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35

uma diferença de atitude, ou por assim dizer, de dois modos complementares de

constituição da realidade da experiência. O consciente possui um modo de

“funcionamento” específico que se caracterizaria por:

1. Consciousness possesses a threshold intensity which its contents must have attained, so that all elements that are too weak remain in the unconscious.

2. Consciousness, because of its directed functions, exercises an inhibition on all incompatible material, with the result that it sinks into the unconscious.

3. Consciousness constitutes the momentary process of adaptation, whereas the unconscious contains not only all the forgotten material of the individual’s own past, but all the inherited behaviour traces constituting all the fantasy combinations.23 (Jung: 1916a, p. 69)

A consciência seria formada por um modo de organização que implica

persistência, regularidade e intencionalidade. Desdobra-se, assim, como

temporalidade linear e não contraditória, através da organização da experiência

dentro de um princípio de continuidade e trajetória. A medida em que, ao perfazer

trocas com o inconsciente a energia dos conteúdos deste aumenta ou diminui, a

consciência como um complexo necessita de energia para que os “conteúdos” (a

multiplicidade dos modos de ser e de suas experiências) se mantenham ligados

em uma unidade organizada. Unidade esta que mantém os princípios de

organização e funcionamento da consciência, ou seja, a unidade da consciência

asseguraria a linearidade, a não contradição, concentração e categorização do

mundo como algo estável e permanente, mantendo, assim, a possibilidade de

uma continuidade do próprio existir humano dentro de fronteiras seguras ao evitar

o confronto com a multiplicidade e dinamismo do inconsciente, o que surgiria

como ameaça para a manutenção da consciência.

A consciência é um princípio de relação, o colocar em conjunto, reunir e

recolher:

23 “ 1. A consciência possui uma intensidade limite, a qual seus conteúdos devem ter atingido, assim todos os elementos que são muito fracos permanecem no inconsciente. 2. A consciência, por causa de suas funções diretivas, exercita uma inibição em todo material incompatível, o que resulta em que eles mergulham no inconsciente.

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“Eu entendo por consciência o colocar em conexão com o eu os conteúdos

psíquicos; existe consciência na medida em que o eu percebe esta relação. As relações com o eu que esta não percebe como tais são inconscientes. A consciência é a função, ou atividade, que entretém as relações dos conteúdos psíquicos com o eu. Para mim, a consciência não é idêntica à psique que constitui a totalidade dos conteúdos psíquicos. Ou, todos não são necessariamente ligados ao eu; eles não participam sempre a ponto de possuir a qualidade de consciência.”( Jung: 1921, p.421)

Para a manutenção desta unidade estável faz-se necessário um modo de

compreensão do mundo e do homem onde estes sejam entendidos como

estáveis, passíveis de certeza e determinação. Assim, a consciência se

compreende como algo destacado do mundo, cindida, como uma “mônada”

representacional ou em contraposição à natureza. Pois bem, se existe um

antagonismo desta forma, cabe à consciência assegurar sua preservação, e para

tal deverá estabelecer leis, regras, e a certeza como fundamento do conhecer.

Transforma, como conseqüência, tudo aquilo que não é suscetível de ser

subjugado a estas regras ou leis em algo “irracional” ou “bárbaro”24, ou seja, algo

que não deve ser considerado como possuidor de uma validade a não ser que se

submeta à sua medida.

Já o inconsciente possui como forma de organização o modo de

funcionamento das “fantasias” ou das imagens que o constituem, o modo de

organização do inconsciente é solidário ao modo de funcionamento dos símbolos.

Todas e quaisquer combinações são possíveis, o que vigora aí é o sentido, o

logos , e não a racionalidade, ou a representação.

3. A consciência constitui um processo de adaptação momentâneo, entretanto o inconsciente contem não apenas todo material esquecido individual, mas todos os traços herdados que constituem as combinações de todas as fantasias.” (Jung: 1916, p. 69) 24 Como se sabe “bárbaro” possui como étimo barbarói, que se origina de uma onomatopéia de blá blá blá..... termo pelo qual eram designados os povos que não falavam o grego. Isto é, aqueles que habitavam fora das fronteira da Hélade e cuja língua era ininteligível aos gregos. Como a língua não era compreendida não fazia sentido....O que se deduz, se não faz sentido não há sentido.

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“The unconscious contains all the fantasy combinations which have not yet attained the threshold intensity, but which in the course of time and under suitable conditions will enter the light of consciousness.”25

O fato da consciência possuir um modo de funcionamento que a torna

dirigida para um fim traz desvantagens, pois implica na inibição ou bloqueio de

todos os elementos psíquicos que possam ser incompatíveis. Os elementos

capazes de mudar a direção preestabelecida, conduzem, assim, a um fim não

desejável, rompendo com a trajetória estabelecida pela consciência e sua certeza.

Todo julgamento da consciência, neste âmbito, se estabelece de forma parcial e

pré- concebido, pois escolhe uma possibilidade particular em detrimento de todas

as outras. O julgamento, como diz Jung, se baseia na experiência, isto é, naquilo

que já é conhecido. Não se baseia no novo, no que ainda é desconhecido ou

inusual, o que poderia enriquecer substancialmente o processo da consciência,

através da inserção de novos elementos, ou novas direções. Assim, " o processo

dirigido se torna necessariamente unilateral, mesmo que o julgamento racional

pareça plurilateral e despreconcebido" (Jung: 1916a, p.3).

"...a própria racionalidade do julgamento é um preconceito da pior espécie, porque chamamos de racional aquilo que nos parece racional. Aquilo, portanto, que nos parece irracional, está de antemão fadado à exclusão, justamente por causa de seu caráter irracional, que pode ser realmente irracional, mas pode igualmente apenas parecer irracional, sem o ser em sentido mais alto."(ibidem, p.3)

Todo modo de compreensão se daria, então, a partir de um horizonte pré

estabelecido, ou de um paradigma no qual a consciência se encontra constituída.

A partir desta perspectiva, qualquer conhecimento, ou modo de compreensão de

algum fenômeno extrínseco ao modo de constituição e aos referenciais da

consciência são colocados em suspenso ou mesmo excluídos de seu campo de

tematização. A criatividade, o “novo”, e a imprevisibilidade, seriam transtornos ou

25 “O inconsciente contém todas as combinações de fantasias as quais não alcançaram ainda os limites de intensidade, porém no curso do tempo e sob condições propicias irão entrar na luz da consciência” (Tradução minha)

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“patologias”, distúrbios que necessitariam ser evitados e combatidos para que o

modo de compreensão baseado na certeza, na regularidade, se perpetue26.

Consome, assim, uma grande quantidade de energia a consciência para a

manutenção de sua estabilidade.

Para que o conhecimento se dê seria preciso colocar a própria

consciência em “suspenso” ou com diz Husserl (ver referência) colocar entre

“parênteses”27 o mundo como nos é apresentado. Pode-se desde o início do texto

situar o modo de compreensão necessário, tematizado posteriormente por Jung,

principalmente em seus escritos posteriores sobre alquimia, contos de fadas, e

religião, como um processo hermenêutico, ou melhor sabendo-se que a

consciência parte sempre de um pré-conceito, o que faz com que o método

fenomenológico hermenêutico seja o mais adequado e solidário ao modo de

compreensão do que Jung nomeia por inconsciente ou psique.

VII.

Jung discorre sobre a unilateralidade da consciência. Unilateralidade que

gera uma contraposição do inconsciente, assim quanto maior for a unilateralidade,

a tendência oposta irrompe na consciência. Esta unilateralidade da consciência

traz para si própria um problema, que é o modo de integrar aquilo que se tenta

excluir, como integrar os “conteúdos” inusitados e estranhos à consciência. Ou

seja, implica em como a consciência pode efetivamente se transformar, sem

apenas repetir seus modos de desdobramento ou permanecer num modo de

transformação impróprio, no qual transformação torna-se simplesmente repetir a

si-própria de maneiras variadas, sem modificação em seus modos de relação com

26 A consciência é deste modo sempre conservadora. Por necessecidade e por modo de constituição. Porém talvez nem todo modo de constituição da consciência tenha que ser consevador, isto também é tratado por Jung como veremos mais adiante. 27 Isto é a “redução fenomenológica”; “....ou colocação entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, i. é, como existindo em si, independente de todo ato de consciência."(p.20)

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o mundo. ".....A questão é esta: que espécie de atitude espiritual e moral é

necessário adotar frente às influências perturbadoras, e como se pode comunicá-

la ao paciente?"( ibidem p.5)

O que se observa ao longo do exposto são temas que permeiam o

pensamento de Jung, a partir de sua intuição daquilo que pretende desenvolver

em “função transcendente”. O tema central é da separação/ dicotomia entre

consciente e inconsciente, uma dicotomia que apesar de efetiva não é constitutiva

do humano, pois o que se pretende é a aproximação e a integração de ambos.

Esta dicotomia seria por um lado o que possibilitaria a existência da consciência,

como uma distinção, porém, por outro lado é o que a torna defensiva e rígida,

impedindo sua transformação sem a qual torna-se passível de extinção.

Como exposto acima, em última instância existe uma unidade radical,

multiplicidade que se diferencia e se integra, formando uma unidade que subsiste

enquanto fluidez e potência criadora. Esta unidade emergiria a partir da dinâmica

associativa, integrativa, da multiplicidade, como um “complexo”28, conglomerado

de idéias e afetos, como define Jung.

A resposta para esta cisão, consiste, como diz Jung, em suprimir a

separação vigente entre a consciência e o inconsciente. Porém, não se pode

fazer isto, “condenando unilateralmente os conteúdos do inconsciente”.

A função transcendente seria, assim, formada pela tendência da

consciência e do inconsciente. É chamada de transcendente, porque torna

possível organicamente a passagem de uma atitude para a outra, sem perda do

inconsciente. Isto é, a função transcendente é algo que vigora a partir do âmbito

em que existe uma unidade originária, algo de misterioso, que é o inconsciente

coletivo a partir do qual um e outro se constituem. É um princípio de organização

que indica que existe uma intencionalidade, uma direção, desde a origem, radical.

Esta intencionalidade, princípio de organização é dinâmica, caracteriza-se por

28 Acredito que o modelo de “complexo”, um conglomerado ideo-afetivo, seja o melhor modo de idealizar a “organização” do sistema psíquico em Jung, ou seja o αρχη ou a imagem que melhor

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estabelecer relações, compor malhas, criar símbolos. A função transcendente não

é constituída pelas tendências, como diz Jung, o que se deveria porém ressaltar é

que se ela se manifesta como uma formação a partir das “tendências da

consciência e do inconsciente”, entende-se por isso que ela existiria como uma

virtualidade em sua qualidade de função, forma, princípio ou αρχη de

organização/ unidade, tornando-se manifesta, emergindo, no próprio processo de

unificação das tendências.

Para Jung (1916a, p. 6), o terapeuta, na situação analítica, se faz de

função transcendente, isto é, torna-se o processo de função transcendente, ao

ajudar o paciente a unir o inconsciente e o consciente, promovendo uma mudança

de atitude, passa a se constituir como uma manifestação do processo simbólico.

Assim, clinicamente, ele desempenharia o papel de um símbolo interativo do

psiquismo do paciente, um símbolo que é constituído pela relação entre ambos,

ao mesmo tempo em que se abre como uma dimensão do inconsciente no qual

os dois estão enraizados, realizando a misterium conjunctionis.

Um dos aspectos da transferência reside na função que o terapeuta

assume de encarnar a "função transcendente", ou seja ele se torna uma epifania

do processo de integração e mudança psíquica que do ponto de vista externo, se

nomeia de transferência, porém do ponto de vista interno, é um símbolo que se

refere também, mas não somente, ao paciente, e ao que ele possui de mais

próprio. A transferência é o veículo pelo qual o paciente procura a mudança vital

de atitude, de forma inconsciente, mudança esta que estará associada à relação

com o terapeuta que se encontra diante dele. “ A função da transferência não

deve ser procurada nos seus antecedentes históricos, mas no seu objetivo" (Jung:

1916a, p. 6). Se a transferência se constitui como um processo legítimo de

criação de realidade psíquica a interpretação e o trabalho da transferência no

aspecto redutivo tornam-se limitantes para sua compreensão, requerendo, assim,

um trabalho “construtivo” (ibidem), que se basearia em seu aspecto teleológico 29e

descreveria o modo de organização do sistema psíquico em Jung se basea na noção de uma organização complexa, uma multiplicadade que dinâmicamente faz emergir uma unidade. 29 Por teleológico entenda-se o encaminhamento e a construção de uma direção, o apontar para algo, Telos: fim, cauda.... Lógico = lógos, assim, teleológico é a tecitura de um sentido, o indicar uma direção que não se encontra pré-determinada, somente indicada.

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em seu sentido.

Interessante de se observar é a relação estabelecida por Jung entre este

processo de relação entre duas pessoas que se estabelece na prática clínica. À

medida em que o cliente consegue estabelecer uma relação de diálogo com o

terapeuta e identificá-lo como o outro que se encontra diante de si, torna-se

possível a integração deste outro que é ele próprio. A transferência não seria,

assim, meramente um processo de “projeção” de algo sobre alguém, como é

subentendida a partir do sentido do próprio termo. O que se chama de

transferência pode ser entendida como um processo de interação de uma

realidade, o inconsciente, que não se encontra restrito a uma interioridade.

“espantoso constatar o quão diminuta é a capacidade das pessoas em admitir a validade do argumento dos outros, embora esta capacidade seja uma das premissas fundamentais e indispensáveis de qualquer comunidade humana. Todos que têm em vista uma confrontação consigo próprios devem contar sempre com esta dificuldade geral. Na medida em que o indivíduo não reconhece o valor do outro, nega o direito de existir também do "outro" que está em si, e vice-versa. A capacidade de diálogo interior é um dos critérios básicos da objetividade." (ibidem, p.21)

Como método (Mattoon, The Transcendent Function: A Critical Re-

Avaluation in The Transcendent Function: Individual and Collective Aspects.

Einsiedeln: Daimon Verlag, 1992) a função transcendente, é um processo

natural , uma função psicológica presente em todo indivíduo . Ela se encontra,

assim, intimamente ligada ao método sintético ou construtivo. Mas quanto a

isso Jung parece um tanto ambíguo; “eu peço ao leitor para entender que eu

escrevo sobre coisas que realmente acontecem , e eu não estou propondo

métodos de tratamento”( Jung apud Mattoon: 1992, p. 11). Esta ambigüidade

pode ser entendida como a dificuldade de exposição de uma idéia que

permanece como fundamento e vigora a cada momento do processo de

constituição do humano. Ao falar do processo de individuação e do processo

terapêutico identifica-se como não existe uma solução de continuidade, e

entende-se que Jung fala de uma origem, não um início ou fator causal, origem

como sendo aquilo que vigora desde já, sendo raiz e permanência dos modos

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de ser, aquilo que impera e sustenta em seu horizonte (Heidegger, O que é

isto – a filosofia?, 1955)30 .

"But it can be used as a method too; that is, when the contrary will of the unconscious is sought for and recognized in dreams and other unconscious products. In this way the conscious personality is brought face to face with the counterposition of the uncouscious. The resulting conflict — thanks precisely to the transcendent function — leads to a symbol uniting the opposed positions. The symbol cannot be consciously chosen nor constructed; it is a sort of intuition or revelation."( Jung apud Dehing: 1992, p. 18)31

Jung define a função transcendente , assim , como a “união de

conteúdos conscientes e inconscientes”, “a reconciliação” dos pares de

opostos e a partir desta reconciliação uma nova coisa é sempre criada , uma

nova coisa é realizada. Este processo não lida somente com “conteúdos” mas

como se depreende é a interação e integração em um todo, múltiplo e

dinâmico, do inconsciente com o consciente. Isto é a função transcendente,

que “nasce da união dos opostos”.

O símbolo como se verá desfaz a dicotomia entre externo e interno,

pois este passa a ser uma “incarnação” do psiquismo como uma totalidade não

fragmentada, ou seja, o símbolo reúne em sua constituição todas as

possibilidades de compreensão e reúne os opostos em uma unidade não

fragmentada.

30 Heidegger (1955) ao colocar a questão do “que é isto – a filosofia?” recorre ao etimo de αρχη ao falar do espanto como princípio da filosofia, em Platão (Teeteto), o define, assim, como “Disigna aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” não é deixado para traz no surgir; antes, αρχη torna-se aquilo que é expresso pelo verbo αρχειν, o que impera....” O que conduz e “carrega”, imperando em seu interior. 31 “Mas isto pode ser usado como um método também ; isto é , quando a vontade contrária do inconsciente é vista e reconhecida nos sonhos e em outras produções inconscientes . Neste sentido a personalidade consciente é colocada face a face com a contraposição do inconsciente . O conflito resultante - graças precisamente a função transcendente - conduz a um símbolo unificador dos opostos . O símbolo não pode ser conscientemente escolhido nem construído ; ele é um tipo de intuição ou revelação”( Jung apud Dehing: 1992, p. 18) Tradução minha.

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Pode-se sintetizar esta descrição da função transcendente as em todas

suas facetas e como mecanismo de produção simbólico, do próprio psiquismo,

quando Jung explica o resultado dessa união dos opostos;

“O alternar-se de argumentos e de afetos forma a função transcendente dos opostos . A confrontação entre as posições contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo de vivo , um terceiro elemento que não é um aborto lógico32 , consoante o princípio : tertium non datur [ não há um terceiro integrante ], mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos e que leva a um novo nível de ser , a uma nova situação . A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados .”( Jung: 1916a, p.22)

Como expõe Dehing (1992) , a função transcendente como a função

mediadora entre os opostos é arquetipicamente fundada e constitui, assim, a

estrutura do indivíduo. Assim, aquilo que será experienciado como a

individualidade ou a experiência do humano, surge a partir destes processos de

integração.

Esta função pode se iniciar e conduzir ao processo de individuação

independente de qualquer processo terapêutico ou de reflexão; faz parte de todas

as práticas religiosas e caracterizaria o verdadeiro filósofo33, como exposto acima.

Certas práticas terapêuticas podem desencadeá-la ou conduzir a ela. Sua

atividade conduz à formação de símbolos e à união dos opostos , não como uma

simples reunião de pólos antitéticos . Há um conflito que deve ser assumido ,

integrado pela consciência — o sofrimento não pode ser negado e a tensão tem

que ser suportada. Isso pode parecer um ato heróico , de decisão e vontade a ser

desempenhado pelo ego , mas não é essa a intenção que se percebe em Jung,

pois para ele o ego e a consciência se encontram fundados no vigor e no

32 O grifo é meu 33 Cabe lembrar aqui, com bastante interesse, que os alquimistas se intitulavam “filósofos”, isto é, aqueles que de alguma forma procuravam uma correspondência com o Ser e assim promoveriam uma transformação tanto do mundo/ matéria quanto de si-próprios através de suas operações e estudos. Neste sentido pode-se entender o porque de se nomear a alqumia como uma “filosofia hermética”, ou os alquimistas de filósofos, pois não se trata aqui de filosofia como entendida em nossa época moderna, reflexão e juizo racional, mas sim como transformação por um estar aberto e co-responder a questão do Ser, tornar-se morada do Ser.

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horizonte da psique que conduz e delineia todo o processo. Pressupõe-se , assim,

uma acolhida , uma abertura e uma entrega do sujeito como o hospedeiro dessas

imagens e ao mesmo tempo de sua morte e transformação nelas; o indivíduo,

pela acolhida, recolhe-se junto como uma nova imagem que surge. Para Jung se

é levado pela função transcendente a “um novo estado de ser” , uma nova

consciência , um novo sujeito surge desse encontro, a cada instante em que o

símbolo é criado. A atitude que se requer do sujeito é aquela tida por Filemon — o

personagem que Jung pintou e com o qual passeava e dialogava (acolhia) em

seus anos de crise — o único a abrir suas portas para Zeus.

Como método, com efeito, a função transcendente

“se baseia em apreciar o símbolo, isto é, a imagem onírica ou a fantasia,

não mais semioticamente, como sinal, por assim dizer, de processos instintivos elementares, mas simbolicamente, no verdadeiro sentido, entendendo-se "símbolo" como o termo que melhor traduz um fato complexo e ainda não claramente apreendido pela consciência". (Jung: 1916a, p. 7)

A questão do sentido se faz então vigorar. Por meio do método sintético,

de constituição de sínteses, a função transcendente nos conduz para um modo de

compreensão que seja solidário do modo de constituição de uma realidade não

redutível à explicação. Traz-se à tona a necessidade de um discurso que gere

significados ao invés de categorias que são regidas pela pretensão de validade e

certeza. O analista sustenta a função transcendente, principalmente através da

análise dos sonhos que seria o "método ideal de sintetizar os materiais

conscientes e inconscientes" . Para que se compreenda o que é colocado aqui,

deve-se ressaltar que o método de análise dos sonhos que Jung preconiza possui

uma marca efetivamente fenomenológica e hermenêutica. Pois não se baseia em

uma redução deste a significados fixos e sim em um método de tecitura e

integração entre dois modos de experiências, onírico e vigília. Este método é

estensível a todo modo de trabalho simbólico, independente do material utilizado,

não apenas aos sonhos.

"O tratamento construtivo do inconsciente, isto é, a questão do seu significado e de sua finalidade nos fornece a base para a compreensão do processo que se

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chama função transcendente." (ibidem, p.7)

“...Os sonhos como material fundamental para o contato com os símbolos,

o produto criativo do inconsciente e a realização da função transcendente”(ibidem,

p. 9) tornam-se um referencial para a experiência simbólica sem que com isto

todas as outras formas desta experiência seja descartada.

Para produzir a função precisamos do material inconsciente seja de qual

forma for, isto é, o inconsciente será a matriz, o αρχη a partir da qual serão

produzidos os símbolos como função integradora e transformadora dos modos de

compreender e existir.

"... características do abaissement du niveau mental, da baixa tensão energética: descontinuidade lógica, caráter fragmentário, formação de analogias, associações superficiais de natureza verbal, sonora ou visual, contaminações, irracionalidade de expressão, confusão, etc. Com o aumento da tensão energética, os sonhos adquirem um caráter mais ordenado, tornam-se dramaticamente compostos, revelam uma conexão clara de sentido, e cresce o valor de suas associações." (ibidem, p.9)

O método torna-se meio de produção de fantasias, isto é de símbolos. Os

quais irão resgatar a experiência como enraizamento nos afetos, ou seja, o

aspecto energético da constituição da experiência.

Isso está indicado ao se propor como um começo da função

transcendente que dá através do afeto, anteriormente não relacionado, onde este

converte-se em uma idéia mais ou menos clara e articulada, graças ao apoio da

consciência. A importância do afeto, está em ele ser uma disposição pela qual o

indivíduo se enraíza e se abre qualitativamente ao mundo, o afeto é forma de

compreensão de mundo. O afeto resgataria, assim, a dimensão qualitativa, a

cadeia de vínculos, que enraízam homem e mundo, está relação de enraizamento

se dá através do afeto, e o que era anteriormente não relacionado, converte-se

em uma idéia mais ou menos clara e articulada, graças ao apoio da consciência.

Como um processo, vemos que Jung refere-se constantemente à função

como uma relação entre dois elementos, como uma função matemática , mas em

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outras passagens a define, também, como uma “transição para uma nova

atitude34”(Jung apud Dehing: 1992, p. 17) , “uma experiência pessoal involuntária”

(idem) , “um processo puramente natural”(idem) . Isto “não é um processo parcial

seguindo um curso condicionado ; é um evento total e integral no qual todos os

aspectos são , ou deveriam ser , incluídos”(Jung: 1916a, p. 20).

Nos seus textos sobre o processo de individuação as referências em

torno da relação entre função transcendente e processo de individuação

tornam-se explícitas ; a função transcendente é considerada como parte deste

processo. Algumas vezes a função transcendente é identificada com a

conjunção do inconsciente e do consciente, a transição para o Selbst (Dehing,

1992).

O conflito deve ser assumido , integrado pela consciência , o

sofrimento não pode ser negado e a tensão tem que ser suportada . Isto pode

parecer um ato heróico , de decisão e vontade a ser tomado pelo ego , mas

todo processo e a função se dá determinada pelo inconsciente e no

inconsciente , tendo o homem neste seu fundamento. Pressupõe , assim , uma

acolhida , uma abertura e entrega do homem como o hospedeiro destas

imagens e ao mesmo tempo sua morte e transformação. Como diz Jung, isto

promove “um novo estado de ser” , uma nova consciência , isto é um novo

homem surge deste encontro , surge a cada instante em que o símbolo é

criado, em que há transformação .

Como função (Dehing, 1992), indica um processo de interação entre

variáveis não determinadas “... significa função psicológica” (Jung: 1916a, p. 1),

34 Em alemão, no original lê-se Einstellung , sendo a palavra formada por eins ,próprio, propriedade, auto e pelo verbo stellen ,que posui sentido de colocar , originando-se o verbo do substantivo die Stelle, lugar . A palavra que Jung utiliza para descrever o que em português lemos por atitude ,um substantivo, pode ser descrita, como um colocar-se, encontrar-se disposto em um locus, em um lugar . No original a ênfase é dada ao verbo -stellung , e a situação não se encontra dada e constituída ; podemos compreender seu sentido como a ação que se perpetua no ato contínuo de se colocar e dispor , isto é , não há a determinação de algo que , uma vez colocado, fique estável e determinado . Como diz o caráter temporal da palavra , é um colocar-se uma vez e de novo , é uma ação que se constitui e refaz como possibilidade de se criar um colocar-se e um lugar no qual alguém se põe, ou seja se presentifica. E, assim, neste colocar-se e através desta ação pode-se dizer que se constitui o lugar e o momento do tempo presente. A “situação”, desta forma, da qual fala Jung , pode ser compreendida como algo dinâmico e não como um lugar que uma vez estabelecido se perpetue por si mesmo , como algo estável. A atitude, dentro desta concepção, é própria da atividade simbólica, dinâmica e constituinte de homem e mundo, simbolo este que se dá como temporalidade.

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combinada por elementos conscientes e inconscientes, uma constante co-

operação de fatores conscientes e inconscientes, por colocar em relação

elementos diversos e desempenhar um papel ordenador, porém sem ser

determinista. Isto é chamado de transcendente porque faz a transição de uma

atitude para outra organicamente possível , sem perda do inconsciente e

porque facilita a transição de uma condição psíquica para outra por meio de

uma confrontação mútua dos opostos. A função transcendente unifica os pares

de opostos. Isto está intimamente ligado à formação dos símbolos e o Selbst ,

como o símbolo unificador do psiquismo é considerado o objetivo mais

desejável de todo esse processo.

Sua característica principal recairia, assim, em colocar em relação

elementos do inconsciente e da consciência, ao possibilitar o contato entre

ambos torna viável a modificação de cada parte e o surgimento de uma

síntese. Este processo, proporcionado pela função, possui um aspecto onde a

dinâmica e a interação dos opostos são de profunda importância. Como função

sua tarefa principal seria possibilitar este mesmo processo de interação de tal

forma que a multiplicidade e a dinamicidade dos elementos psíquicos possam

emergir como um todo. Este todo é uma síntese não acabada, pois como

função estabelece relações constantes.

Esta experiência complexa provêm de dentro, ou seja, do inconsciente

(Dehing, 1992). A iniciativa provém do inconsciente , mas toda crítica , escolha,

e decisão repousa na mente consciente. Nas pessoas normais , a função

transcendente atua somente no inconsciente , o qual tende continuamente a

manter o equilíbrio psíquico. A função transcendente não é algo feita por

alguém; ela surge a partir da tensão gerada pelo conflito dos opostos. Ela se

revela como um modo de apreensão mediada pêlos arquétipos e capaz de unir

os opostos. Jung postula, assim , o caráter arquetípico da função

transcendente, processo de ligação e operacionalidade de duas variáveis que

podem ser descritas, em nível psicológico, como elementos provenientes dos

determinantes históricos temporais, ou seja, a função reuniria os aspectos

cotidianos, determinantes culturais, situacionais com o vigor criativo do

inconsciente, formando o que será um novo modo de constituição da

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personalidade. Esta personalidade será assim um novo símbolo, que emerge

como a própria função. É interessante notar que do ponto de vista clínico o que

se caracterizaria com isto é que uma personalidade sadia e forte seria aquela

que permite ser a síntese dos opostos, ao invés de permanecer, apenas, de um

modo estático e conservadoramente preservando um estado de referência para

si-própria imutável.

VIII.

Em seus aspectos clínicos, continuando, Jung discorre sobre a

importância da imagem, que pode expressar o distúrbio emocional, pois a imagem

lhe confere uma forma visível. Para tal,

“importa menos uma descrição tecnicamente ou esteticamente satisfatória, do que deixar campo livre à fantasia, e que tudo se faça da melhor modo possível. Aqui também tem-se um produto que foi influenciado tanto pela consciência como pelo inconsciente, produto que corporifica o anseio de luz, por parte do inconsciente, e de substância por parte da consciência." (Jung: 1916a, p.15)

A formação da função transcendente implicaria em uma atitude de

receptividade por parte da consciência, uma disponibilidade de tal forma que a

consciência se permita situar como mais um elemento dentro de um “sistema”,

que será constituído pela fluidez.

A atitude da consciência é a de se colocar em acordo com oinconsciente,

colocando, assim, seus conteúdos como meio de expressão do inconsciente,

porém sem orientar a forma pela qual o inconsciente lidará com estes elementos.

A condução do processo é deixada à disposição do inconsciente. " Esta situação

representa uma espécie de retrocesso do ponto de vista consciente, e é sentida

como algo penoso" (ibidem, p. 18). Isto, do ponto de vista de uma consciência que

se compreende como regida pelos critérios de certeza e baseia-se em um modo

de pensar onde o logos tornou-se sinônimo de razão. Porém, em função destas

características, a consciência se coloca, muitas vezes, em oposição ao

inconsciente, dispondo de energia considerável para “assegurar” a manutenção

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49

de sua continuidade e identidade.

Jung descreve esse processo de formação de consciência, ou

transformação como sendo um “entrar em acordo” 35 com o inconsciente, onde

tanto valor é dado à consciência quanto ao inconsciente36. Entrar em acordo

significa co-responder, isto é, estar disponível e desta forma responder de

maneira expontânea e em prontidão. Pode-se pensar, assim, que “entrar em

acordo com” é não estar em débito, porque na correspondência, se responde, se

escuta e se está, desta forma, tanto recebendo quando se disponibilizando aquilo

que lhe é demandado. Como acomodação, estar de acordo com algo é se

enraizar neste algo. Acomodar-se é instalar-se, assim, consciente e inconsciente

quando se acomodam significaria que um e outro se encontram instalados

reciprocamente, sem preponderância de um ou de outro, estando, assim, ambos,

enraizados como uma unidade múltipla, porém, estável.

O tratamento das neuroses37 é uma renovação da personalidade geral e

que repercute em todos os domínios da vida. O processo de transformação se

faz, assim, necessário para que a "cura" se realize, sendo cura e transformação

de aspectos indissolúveis, sendo implicadas no processo de formação simbólico,

isto é, entre processo de formação do símbolo, cura e transformação não existiria

solução de continuidade.

Isto implica que, numa perspectiva psicopatológica o sintoma e o

transtorno psíquico seriam decorrentes de uma “cristalização” da consciência. Ou

seja, quando a consciência se fecha para o inconsciente, se posicionando como

35 P. 88 thus, in coming to terms with the unconscious, not only is the standpoint of the justfied, but the unconscious is granted the same authority. The ego takes the lead, but the unconscious must be allowed to have its say too – audiatur et altera pars. P. 89 Simple as the process of coming to terms may be in the case of the inner dialogue, it is undoubtedly more complicated in other cases ....... 36 Comming to terms, pode-se entender como sendo “chegar a um acordo” ou “acomodação”. Informação verbal de Cynthia Lira, 23 de maio de 2002. 37 Na dinâmica dos afetos e a relação do ego com o inconsciente, pode-se inferir que Jung trata operacionalmente o que se costuma chamar como os mecanismos de defesa do ego para lidar com a energia dos afetos que se constelam através das manifestações do inconsciente. "...pressão dos fatores afetivos". Duas formas de lidar com esta pressão são a " estetização” ou a "intelectualização" dos conteúdos do inconsciente. Estas formas de lidar com os conteúdos inconscientes, quando feito de forma cindida, isto é, sem consideração ao simbólico, transformam-se em modos de cristalização e controle do inconsciente.

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medida e parâmetro de avaliação de tais processos, ela se enrijece e perde a

capacidade de se tornar um processo simbólico, o símbolo morre e torna-se

signo.

Outra forma de se ativar a função transcendente é através da

introversão da libido. O que se obtém com o material simbólico produzido pela

ativação do inconsciente, a realização da função transcendente, implica a não

existência de uma resposta a priori, pois somente quando a consciência é

confrontada com os elementos do inconsciente é que se produz aquela reação

“provisória a qual, entretanto determina todo o processo subsequente”.

Só a experiência é capaz de dizer alguma coisa sobre o que aconteceu.

Conforme Jung existiriam duas atitudes diante do conhecimento ou duas

tendências como modos de elaboração da experiência e sua compreensão. Uma

delas vai na direção da formulação criativa e a outra na direção da “compreensão"

(ibidem, p. 16).

"... Até onde é possível, no momento, tirar conclusões de caráter mais genérico, a formulação estética precisa da compreensão do significado do material, e a compreensão, por sua vez, precisa da formulação estética. As duas se completam, formando a função transcendente." (ibidem, p. 17)

A formulação criativa e compreensão seriam maneiras complementares

de entendimento dos processos psíquicos implicados na função transcendente.

Onde predomina o pensamento, este esforça-se para compreender o sentido do

produto inconsciente. Este sentido pode ser apreendido através de uma

compreensão intuitiva. “Cada uma destas duas tendências é fruto da índole

pessoal de cada indivíduo”(idem). A tipologia torna-se, assim, modelo de uma

epistemologia da psique e a função psicológica irá orientar a direção tomada em

relação ao conhecimento. Porém, o perigo do desejo de entender o sentido

material tratado está em supervalorizar o aspecto do conteúdo que está

submetido a uma análise e a uma interpretação intelectual, o que faz com que se

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perca o caráter essencialmente simbólico do objeto.

" O erro destes julgamentos decorre da falta de autonomia e da inconsciência do indivíduo, o qual ou só é capaz de avaliar com base em coletivos ou perde de todo a capacidade de julgar por causa da inflação do ego."(idem)

Quanto ao modo de compreender (ibidem, p.21), o que se depreende é

que a compreensão torna-se um processo onde o entendimento racional ou

conceitual não se faz totalmente necessário. Compreensão seria um processo de

integração da experiência em sua totalidade, não passível de ser totalmente

integrada pela consciência, pois trata-se de uma experiência simbólica. Isto

aponta para um modo de compreensão não representacional — para um modo

de pré-compreensão ante-predicativa38. Como se vê Jung ao discriminar entre

funções racionais e irracionais, estaria indicando a possibilidade de maneiras de

conhecer que não seriam redutíveis somente a uma função, seria preciso para tal

que o homem se pautasse em todas as funções de conhecimento para poder

apreender a experiência. Porém, mesmo assim, algo sempre lhe escapa pois a

experiência é sempre fundada a partir do inconsciente, assim como vigora em

toda a sua originalidade, o “desconhecido”(ibidem, p. 21), desta forma, toda e

qualquer experiência é sempre simbólica.

"... Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que o intelecto em vão lutou por compreender39. Modelando um sonho, podemos continuar a sonhá-lo com mais detalhes, em estado de vigília, e um acontecimento isolado, inicialmente ininteligível, pode ser integrado na esfera da personalidade total, embora inicialmente o sujeito não tenha consciência disto." ".... A compreensão a que aludimos neste estágio consiste em reconstituir o sentido que, hipoteticamente, parece inerente à idéia "causal" primitiva." (ibidem, p.21)

38 Cabe relembrar aqui que por ante-predicativa se entende o termo utilizado por Husserl, em Crisis, onde ele pretende indicar o nível da experiência no qual nenhum predicado poderia ser atribuido, isto é, nada pode ser interpretado, nenhum significado atraibuido. Neste modo de compreensão homem e mundo se constituem como intencionais. O “falar” algo sobre o mundo, interpretá-lo, seria um acontencido posterior, que implicaria em um distânciamento desta experiência, isto é, falar algo sobre, interpretar parte da premissa que há alguém que fala e algo que é falado sobre alguma coisa, ou seja, discriminação. 39 A colocação em negrito no texto é minha, para ressaltar esta afirmação de Jung. Isto traz implicações profundas para o modo de entendimento do que seja inteligência e compreensão em nossa época.

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Assim, se entende a ênfase dada ao “primitivo” por Jung, ao originário,

pois esse modo de construção do conhecimento não se baseia apenas em razões

explicativas, baseia-se na experiência primeira, ante-predicativa, como forma de

organização de sentido. Como se vê no “pensamento mítico” (Eliade: 1991),

assim, também os mitos organizam a realidade através do fazer, maneiras de

construção de sentido e organização da relação de homem e mundo, as quais

não demandam para tal de sofisticadas elaborações explicativas ou ferramentas.

Dentro desta perspectiva conhecer é sempre uma tarefa hermenêutica.

Conforme o modo de compreensão existirá a implicação do ego diante da

situação. A “confrontação do eu com o inconsciente” é um processo de

estabelecimento de uma atitude e não apenas de entendimento, pois o ego torna-

se a partir de então fruto deste “confronto”.

Quando se consegue formular o conteúdo inconsciente e entender o

sentido da formulação, surge a questão de saber como o ego se comporta diante

desta situação. Tem, assim, início a confrontação entre o ego e o inconsciente.

Esta é a segunda e a mais importante etapa do procedimento, isto é, a

aproximação dos opostos, da qual resulta o aparecimento de um terceiro

elemento que é a “...a função transcendente que é o resultado da união dos

opostos” , ou seja, o próprio símbolo.

IX.

A função transcendente não é um processo parcial mas um

acontecimento integral. Implica, assim, todos os aspectos do processo psíquico,

bem como, tudo aquilo que se refere à experiência e ao modo de constituição da

relação homem-mundo.

"Como o processo de confrontação com o elemento contrário tem caráter de

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totalidade, nada fica excluído dele. Tudo se acha envolvido na discussão, embora se tenha consciência de alguns fragmentos. A consciência é ampliada continuamente, ou — para sermos mais exatos — poderia ser ampliada pela confrontação dos conteúdos até então inconscientes, se desse ao cuidado de integrá-los." (ibidem, p.23)

O símbolo como experiência que inclui estas características, é uma

experiência total, o que implica constituição de mundo e intencionalidade, e

será aquilo que vigora como princípio de constituição da realidade.

Compreender o símbolo torna-se assim compreender seu modo de ser ,

resgatar a experiência em sua multiplicidade e o modo de ser originário do

indivíduo e constituição da personalidade.

“Quando estudantes de psicologia junguiana ouvem pela primeira vez sobre “função transcendente”, .., muitos são surpreendidos ao saber que Jung iguala isto com “símbolos”. É certo que ele fez assim ; um símbolo verdadeiro é em si transcendente e “função” sugere sua natureza ativa . O símbolo transforma ao reunificar opostos e os transcende . Como Jung coloca , a função transcendente é “a transição de uma condição para a outra”( Let-1,p.268 apud Matoon 1992,p.11)

Ao se falar em objetivo/ subjetivo, matéria/psique, interno/ externo seria,

também, recair em polarizações, que quando dicotomizadas conduzem ao

reducionismo, isto à cristalização de um dos termos do conjunto de possibilidades

infinitas, perdendo a dimensão do todo. Ao tentar abordar um tema tão obscuro,

do ponto de vista psicologia e da epistemologia, Jung estaria indicando a

primazia daquilo que se põe como fundamento da questão do conhecimento tanto

quanto da interpretação, como a base da explicações. Isto quer dizer,

encaminhamo-nos, através da obra de Jung, para a questão do sentido, que se

constrói na dinâmica de constituição do homem e aponta para um modelo não

representacional do conhecimento, modelo este que é a base não-

representacional que possibilita a os modos de conhecer se dar, ou seja,

interpretação e explicação são modos de organizar a experiência de homem e

mundo. Isto implica configuração da realidade — homem e mundo — que é o

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resultado do encontro entre variáveis infinitas, temporalidade e atemporalidade,

dada a forma originária a qual Jung nomeia por inconsciente coletivo.

“Quando alguém reflete sobre o que a consciência realmente é, se é profundamente impressionado pela extrema maravilha do fato que um evento que tem lugar externamente no cosmos simultaneamente produz uma imagem interna, que toma lugar, por assim dizer, também internamente, o que é dizer: torna-se consciente......

Pois na verdade nossa consciência não é criada por si-mesma — ela brota de profundidades desconhecidas. Na infância ela desperta gradualmente do sono de uma condição inconsciente. É como uma criança que nasce diariamente do útero primordial do inconsciente.”( Jung:1943/1980, p.575)

A personalidade é descrita como a integração dos “conteúdos

inconscientes”, um “todo” criado pela aproximação e “síntese” entre consciente e

inconsciente. O inconsciente, para Jung, não é apenas determinado pela história

do sujeito, o “inconsciente pessoal”, mas inclui o “inconsciente coletivo”, sem o

qual não há o surgimento da personalidade. O “inconsciente coletivo” é a

verdadeira realidade psíquica, a “psique objetiva”(Jung, 1946) que constitui a

personalidade.40

“Jung introduz o termo ‘psique objetiva’ para frisar que a psique é dificilmente sujeita à vontade, mas ao invés vive seu próprio destino, e afeta aos indivíduos quer gostem ou não, como certamente faz a ‘realidade objetiva’. A ‘psique objetiva’ é essencialmente equivalente ao inconsciente, (...), a introdução do termo ‘objetivo’ não revela uma nova entidade; ao contrário, é um adjetivo que frisa ‘apenas’ que a psique não deve ser compreendida ou limitada pelas fronteiras da individualidade pessoal, cuja psicologia pessoal é organizada em torno do ‘ego’. Então, não se está estritamente falando da psique dela ou dele mas sim da psique na qual ele ou ela possuem perspectivas individuais e desempenham suas partes.” (Brooke, 1991, p.77)

40 “...ao lado disto devemos incluir tudo que é mais ou menos intencionalmente reprimido, pensamentos dolorosos e sentimentos. Eu chamo a soma destes conteúdos de ‘inconsciente pessoal’. Mas, acima e abaixo disto, nós também encontramos no inconsciente qualidades que não são adquiridas individualmente mas são herdadas, isto é, instintos como impulsos para levar adiante ações necessárias, sem motivação consciente. Neste ‘profundo’ estrato nós também encontramos...arquétipos...Os instintos e arquétipos formam juntos o ‘inconsciente coletivo’. Eu chamo isto de ‘coletivo’ porque, de forma oposta ao inconsciente pessoal, isto não é produzido a partir de conteúdos individuais mas a partir daqueles que são universais e do ocorrência regular. (...)O primeiro grupo compreende conteúdos que são componentes integrais da personalidade individual e por conseguinte poderiam se tornar conscientes; o segundo grupo forma, como se fosse, um onipresente, imutável, e universalmente idêntica qualidade ou substrato da psique ‘per si’.”(Jung, 1940, p. 173)

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A totalidade não é algo determinado, não é a construção de um conjunto

ou de uma estrutura fechada — seria descrita como personalidade — mas sim um

todo que se constitui na indeterminação do “inconsciente coletivo”, a psique

objetiva. “Somente a parte inconsciente, cujos limites não podem ser demarcados,

é que o completa para formar a totalidade real” (Jung, 1943 p. 149)41. A

personalidade torna-se, então, um projeto em processo de realização constante

cuja natureza é fundamentalmente criação e transformação.

“A personalidade, no sentido da realização total de nosso ser, é um ideal inatingível. O fato de não ser atingível não é uma razão a se opor a um ideal, pois as idéias são apenas os indicadores do caminho e não as metas visadas.”(Jung, 1932, p.178)42

A “personalidade” como “realização total de nosso ser” e objetivo da

psicologia analítica, não seria o desenvolvimento e integração de uma

interioridade psíquica, constituída pela retirada das projeções sobre o mundo. Ela

se refere ao desenvolvimento de “relações apropriadas e de fronteiras no interior

da própria ‘realidade psíquica’- isto é, dentro da vitalidade do mundo da vida...”

(Brooke, 1991, p.80).

Situar a personalidade no “mundo da vida” é estabelecer “todo ato de

reflexão, toda tomada de posição voluntária sobre o fundo de uma vida e de uma

consciência pré-pessoal”(Merleau-Ponty:1945, p.241). Ato que cria uma situação

de “ambigüidade” (ibidem), pois a existência no nível desta experiência não é uma

existência em si, “segundo o modo das coisas” ( ibidem), mas também não é

tampouco uma existência pessoal. Jung se utilizará de um termo tirado da gnose

para descrever esta realidade, a realidade psíquica, que seria a verdadeira

41 Quando pensamos no todo pensamos em partes, conjunto, somatória, inclusão, dentro do sujeito ou unidade das partes. Somos colocados diante de um paradoxo quando este “todo” é idêntico a um “nada”, e só a partir do “nada” é um “todo”. O paradoxo está sempre presente na obra de Jung, como formador de suas imagens da psique. É um recurso para quebrar com a disposição de um pensamento tido como natural, sendo também a lógica imposta pelas imagens. 42 A personalidade é o destino mais próprio do indivíduo, destino no qual “desde já” se encontra situado (Heidegger, 1936).

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dimensão formadora de homem/mundo, Pleroma. Tal dimensão da realidade se

situaria entre o mundo físico e o psíquico, nela se situando as imagens

constituidoras da verdadeira experiência fundamental — os símbolos.

Símbolo que se constitui na interação dessas duas instâncias nomeadas

por Jung de inconsciente coletivo e consciência, o homem seria um ser que só

poderia ser compreendido e não explicado. Constitui-se como um mosaico de

isomorfos, pois como mencionado, a consciência tem origem no mesmo arque

que o inconsciência, o inconsciente coletivo, o desconhecido, origem de todos os

modos de compreensão e ser.

Dinâmica de interação e assimilação entre consciente e inconsciente, pela

função transcendente Jung estaria indicando o processo de constituição do

próprio indivíduo, ou seja, o modo pelo qual a consciência e o “eu” se realizam.

Este processo, como se vê, é solidário e análogo ao processo de constituição dos

símbolos, o que permite considerar que o próprio homem, o mundo, e o “eu”,

possuem de uma forma radical uma solidariedade com o próprio símbolo, isto é

são símbolos e como tal devem ser tratados.

“ Esta alguma coisa que surge não é de forma alguma um amalgama de tendências conflitantes , é uma terceira coisa , viva , um símbolo , o qual transcende completamente os predicamentos existentes” (Dehing 1992,p.19)

Em outras palavras, homem e símbolo dentro da perspectiva junguiana

seriam homólogos, sendo assim, o homem, a consciência — a personalidade —

são símbolos, não enquanto representações de algo, mas sim como processos de

integração e síntese de realidades e mundo “desconhecidos”. Síntese forma na

dialética da interação entre imaginário e real, ou inconsciente e consciente, a

função transcendente mostra-se, consequentemente, como um argumento que

nos conduz às formas de organização e às bases de constituição do que

nomeamos como existente.

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Desta forma, a função transcendente irrompe como um texto fundamental

para lançar as bases de uma proposta transdisciplinar, isto ao estabelecer um

diálogo com as matemáticas, procurando estabelecer as bases de um

conhecimento que não se reduza a campos de saber. Epistemologicamente lança

as bases para se desfazer a dicotomia entre um modo de conhecimento que se

baseia na compreensão e no sentido, hermenêutico e o conhecimento baseado

na certeza e na representação, explicativa, desenvolvido pelas ciências da

natureza ou duras. Isto tornar-se-á mais claro ao pensarmos que, assim como

existe uma necessidade de situar Jung dentro de uma perspectiva hermenêutica

ao mesmo tempo que explicativa, a Teoria das Estranhezas é o modelo

epistemológico que possibilita uma fundamentação epistemológica da

cosmovisão junguiana, permitindo desfazer as dicotomias do modo

representacional e metafísico de conhecimento e fundamentando o humano como

um mosaico de isomorfos, como o símbolo, um mosaico epistêmico.

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O Símbolo e o simbólico: epistemologia e fundamento

248 A Sibila que, segundo Herácltio, profere, com a boca possessa, palavras sobrias, sem adornos e sem perfume, atinge com a sua voz mil anos, graças ao deus. (Plutarco, fragmento 92, apud Kirk et Raven, p. 215)

O entendimento da noção de símbolo, de simbólico, assim como de sua

experiência, será fundamental para compreender a intuição originária que se

encontra presente na noção de “função transcendente”. Somado a isto, sua

importância se revela ao situar seu método descritivo do psiquismo, mais

propriamente do inconsciente coletivo, como se efetuando através de uma

linguagem que se utiliza de símbolos e metáforas, pois, como ele mesmo ressalta,

esta é a que melhor corresponde à natureza da psique. Para Jung, como

veremos, o símbolo é a linguagem do Inconsciente, não apenas uma linguagem

expressiva, mas o modo como se organiza e manifesta, formando a base da

experiência.

Cabe sempre ressaltar que o símbolo possui uma dupla função, em

princípio, conotativa, pois comunica uma qualidade, e estruturante, que lhe

confere um status ontológico. O símbolo é um modo de conhecimento legítimo da

realidade, assim como a natureza da mesma; poderíamos dizer, como se verá

adiante, que uma só é possível porque se encontra dada pela outra, ou seja, se o

símbolo é um modo legítimo de conhecimento e compreensão é porque este está

na base da constituição da experiência humana, sendo a melhor condição

possível para sua apreensão.

Como exposto anteriormente, Jung situa o símbolo como o elemento

primordial que permite que a “função transcendente” se realize, ou seja, atue

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como elemento integrador dos opostos. O símbolo se constitui como a união de

opostos e possui a dinamicidade e o vigor do inconsciente. Por outro lado, não se

devem entender os símbolos como um resultado ou a mera conseqüência do

processo nomeado “função transcendente”, mas, sim, como sendo o próprio

processo, que seria um entendimento dinâmico da união dos opostos, enquanto o

outro seria sua manifestação fenomênica. Como vimos, existe uma solidariedade,

uma identidade, entre um e outro. Desta forma, ao esclarecermos o que seja o

símbolo, estaremos realizando duas tarefas. A primeira consiste em clarificar,

estrutural e funcionalmente, a noção de “função transcendente”, e, por fim,

indicando as bases constitutivas da organização do humano, ou seja, sua

dimensão ontológica — a matriz da realidade dentro da cosmovisão junguiana.

Como matriz organizadora da realidade da experiência, os símbolos

serão, também, condição de possibilidade para os modos de compreensão,

adaptação e interpretação do humano. No horizonte da experiência simbólica, o

conhecimento se constrói, e isto se verá através da demanda do símbolo, para

ser compreendido, das funções de conhecimento, tematizadas por Jung, assim

como é a partir desta experiência que qualquer forma de conhecimento se dará.

II.

Jung (1964) distingue dois tipos de símbolos: naturais e culturais. Os

primeiros são derivados dos conteúdos inconscientes da psique e, portanto,

representam um número imenso de variações das imagens arquetípicas43

essenciais. Os símbolos culturais passariam por inúmeras transformações e

mesmo por um longo processo de elaboração “mais ou menos consciente”,

tornando-se, assim, imagens coletivas aceitas pelas sociedades, possuindo sua

raiz igualmente no inconsciente coletivo.

43 Os arquétipos, somente para lembrar, são formas vazias de conteúdos, matrizes fundamentais de organização da realidade, interna e externa, que em si são inapreensíveis. Só se tem acesso

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Assim, uma palavra ou imagem é simbólica quando implica alguma coisa além de seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado, e nem podemos ter esperanças de defini-las ou explica-las. Quando a mente explora um símbolo é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa razão. (Jung: 1964, p. 20)

A diferença que se identifica entre eles seria que, nos símbolos culturais,

existe um processo de elaboração da consciência, sem que, contudo, este perca

sua característica fundamental, isto é, estar ligado a um núcleo arquetípico e

remeter a uma dimensão da experiência que evoca a questão do sentido. Os

símbolos naturais, entretanto, são de caráter espontâneo, podendo romper com

os aspectos culturais ao trazer o novo, até então não existente em uma cultura.

São os símbolos que aparecem em nossos sonhos e fantasias criadoras, aqueles

que possuem como característica a indicação de uma especificidade, que

corresponderia ao que há de mais particular na existência individual de cada um

de nós.

Um exemplo de um símbolo espontâneo ou natural é aquele que aparece

em sonhos e possui um sentido que corresponde à situação específica do

sonhador. Podemos encontrá-los, também, nas experiências individuais dos

místicos e dos santos, que trazem a possibilidade de renovação das instituições a

que pertencem, ao mesmo tempo que, ao terem estas experiências particulares,

ameaçam a ordem estabelecida, que este novo representaria. Destes, podemos

encontrar exemplos na literatura, em biografias, como, por exemplo, as de Jacob

Boehme, Santa Tereza de Ávila, Mestre Ekhart ou outros, que passaram por

processos ou perseguições institucionais, renovaram seu tempo, assim como

perpetuaram a vigência do mistério e do sagrado.

Estes dois tipos de símbolos possuiriam em comum o fato de indicarem

uma dimensão da realidade originária e serem condições de formação dos meios

de compreensão e existência do humano44, ou seja, um símbolo cultural algum

às imagens arquetípicas, aos símbolos, que são os elementos que, por um lado, indicam os arquétipos e, por outro, são formados por estes. 44 Para isto, conferir os livros de Gershon Scholem sobre a mística judaica.

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dia foi um símbolo espontâneo, criado a partir do inconsciente coletivo, tendo

como origem os arquétipos.

Do ponto de vista estrutural, podemos dizer, segundo Jacobi (1959/1989),

em Arquétipos, Complexos e Símbolos, São Paulo: Cultrix, 1989, que, quando o

arquétipo aparece no aqui e agora do espaço e do tempo, podendo, de algum

modo, ser percebido pelo consciente, existe a manifestação de um verdadeiro

símbolo. Diz-se, desta mesma forma, que cada símbolo é também um arquétipo,

que precisa estar determinado por um arquétipo “em si” (que não é perceptível), o

que significa que precisa ter um “esboço fundamentalmente arquetípico”, a fim de

ser considerado símbolo. Porém, como nos diz a autora, “(...) não quer dizer que

um arquétipo necessita ser idêntico a um símbolo.” Os arquétipos, como não

possuem uma definição a priori em seu conteúdo, isto é, como “formas vazias”,

como “sistema de prontidão” ou “centro energético invisível”, irão se dar de

diversas formas, porém permanece o vigor de sua indefinição originária. Assim,

ele será, também, sempre um símbolo potência, necessitando de uma

constelação psíquica adequada, ou uma atitude específica do consciente para

que se possa atualizar e aparecer como símbolo.

Os símbolos são a melhor representação possível do inconsciente

(Jacobi, op. cit.), são informação dos arquétipos, são a única expressão do

inconsciente disponível para nós, onde parecem ser sobredeterminados e

possuidores de uma multiplicidade de significados. Isto não significa que sejam

analisáveis em suas diversas partes, mas, bem mais, que têm a capacidade de

estimular a consciência a extrair novos sentidos deles. Símbolos são os

geradores subjacentes do pensamento e os transformadores da energia psíquica.

“(...) O inconsciente fornece, por assim dizer, a ‘forma’ arquetípica, que é

em si vazia e, por isso, inimaginável.” (Jacobi: 1959, p. 72) No entanto, da parte

do consciente, esta forma logo está sendo preenchida com material imaginado,

vivido, tornando perceptíveis as formas arquetípicas. Do ponto de vista ontológico,

podemos dizer que a própria consciência, o eu, como complexo em constante

formação, possui sua fundação a nível arquetípico; conforme Jung, este

corresponderia ao arquétipo do Selbst. Assim, estes dois pólos que se encontram

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no processo de formação dos símbolos são realidades simbólicas. O “complexo

do eu” e a consciência seriam isomorfos não triviais do “inconsciente coletivo” e

do Selbst.

Para fazer uma distinção bem precisa entre o arquétipo em si, que é

latente, não atualizado e, por isto mesmo, não perceptível, e o arquétipo que já

apareceu na esfera do consciente e passou a ser perceptível, isto é, visível

(tornando-se, por exemplo, uma imagem arquetípica), usou-se, geralmente, para

o último, o termo símbolo. Um símbolo nunca é inteiramente “abstrato”, mas

sempre, ao mesmo tempo, também “encarnado”. O símbolo é a encarnação do

arquétipo, ou seja, o inconsciente, atualizando-se como imagens e formas.

Conforme Jacobi (op. cit., p. 73), assim que o conteúdo puramente

humano-coletivo do arquétipo – que representa a matéria-prima fornecida pelo

inconsciente coletivo – se relaciona com o inconsciente e o caráter formativo

deste, o arquétipo recebe “corpo”, “matéria”, “forma plástica”, etc.; passa, agora, a

ser apresentável e uma verdadeira imagem, uma imagem arquetípica, um

símbolo. E, se quiséssemos defini-lo do ponto de vista funcional, poderíamos

dizer que o “arquétipo em si” é, essencialmente, energia psíquica aglomerada,

mas o símbolo é agregado pelo modo como a energia aparece e se torna

justamente constatável. Neste sentido, Jung define o símbolo também como

“índole e retrato da energia psíquica”. Por esta razão também, nunca se pode

encontrar o arquétipo em si de maneira direta, mas apenas indiretamente, quando

se manifesta no símbolo ou no sintoma ou no complexo. Nada se pode dizer

sobre algo, enquanto ele é inconsciente; por isto, qualquer declaração sobre o

arquétipo permanece uma “conclusão retrospectiva”.

Isto conduz ao símbolo como transformador da energia psíquica, o que

traz uma nova atitude e orientação, que modificam qualitativamente o “eu”, como

diz Jung:

O mecanismo psicológico que transforma a energia é o símbolo. Refiro-me ao símbolo real, e não ao seu sinal. Assim, o buraco feito pelos Watschandis no chão não é um sinal do órgão genital da mulher, mas um símbolo que representa a mulher-

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terra a ser fecundada. Confundi-lo com uma fêmea humana seria interpretar semioticamente o símbolo, e isto fatalmente perturbaria o valor da cerimônia. E é por este motivo que os dançarinos não olham para uma mulher. O mecanismo seria destruído por uma concepção semiótica – seria como despedaçar o conduto que abastece a turbina, sob o pretexto de que se trata de uma queda d’água muito pouco natural que deve sua existência à repressão das condições naturais. Longe de mim afirmar que a interpretação semiótica não tem sentido; não é apenas uma interpretação possível, como também bastante verdadeira. Sua utilidade é indiscutível em todos os casos em que a natureza é frustrada sem que resulte dela uma efetiva produção de trabalho. Mas a interpretação semiótica torna-se sem sentido, quando é aplicada de modo exclusivo e sistemático, quando, em suma, ignora a natureza real do símbolo e o rebaixa à mera condição de sinal. (Jung: 1928c, p. 44)

Compreender a experiência do símbolo é apreendê-la como a “vida

quente e rubra que pulsa nas veias dos homens”. (ibidem, p. 55) O símbolo é

gerador de uma “atitude” (ibidem:1927), atitude que é descrita pelo autor como

“um conceito psicológico”, o que designaria uma constelação de conteúdos

psíquicos expressos em uma Weltanschauung (cosmovisão). Estes conteúdos

são os formadores dos modos de compreensão que determinam a relação da

consciência e do mundo. Assim, esta transformação da energia psíquica permite

entender as mudanças e capturar a dinâmica e as determinações que constituem

a existência psíquica, ou seja, tanto as relações entre o inconsciente e o

consciente como a condição de possibilidade para o surgimento de ambos, como

síntese, nos símbolos.

A partir da experiência serão dadas a atitude e a orientação que implicam

um modo de compreensão em que se constitui a própria consciência, pois, para

Jung, qualquer atitude é “dirigida para um fim ou orientada por uma idéia mestra”

(1927, p. 305), sendo sempre encarnada. Será dada na experiência, uma

“cosmovisão”, uma imagem que o “homem pensante” forma a respeito do mundo

e que o modifica a si próprio; é relevante saber que espécie de “cosmovisão” ou

“imagem” se possui, pois, através do “conceito”45 ou “imagem” que se forma do

45 Jung, mesmo dizendo utilizar conceitos, não faz uso apenas destes. Na tentativa de estabelecer um rigor científico que corresponda à sua época e a suas necessidades, tenta dar à sua linguagem uma rigidez que não corresponde à vida psíquica, ou seja, apresentá-la objetivamente através de conceitos. Seria mais exato dizer que ele faz descrições e apresenta imagens que transmitem o que deseja expor. Penso, assim, ser errado crer que haja conceitos capazes de lidar, globalmente, com o tipo de experiência para a qual Jung aponta, pois os conceitos podem ser considerados “dispositivos para a solução de problemas (... ) o equivalente a tecnologias” ( Needleman: 1982, p. 49), dispositivos utilizados pela razão de tal forma que possa controlar e “medir” o mundo e suas relações. São representações através das quais capturamos o

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mundo, a partir da experiência originária, irá o homem orientar-se e adaptar-se;

enfim, será dada a “realidade” na qual ele habitará. Através desta imagem,

constitui-se a maneira pela qual homem e mundo se formam.

O símbolo, como produto da interação entre consciente e inconsciente,

sempre remete a algo que está além dele, ao mesmo tempo em que circunscreve

um determinado sentido restrito em sua constituição, isto é, os símbolos, em

função de sua forma e da “imagem” que apresentam, possuem uma delimitação

hermenêutica, sem que, com isto, ela seja exaurível pela compreensão. Sua

forma de entendimento é sempre circunstancial, um “como se”. Ao mesmo tempo

que revelam, ocultam, não pelo fato de esconderem algo, mas sim porque se

enraízam como abertura e manifestação do inconsciente em toda sua extensão.

Poderíamos entender filosoficamente o sentido do símbolo, ao pensarmos

na forma pela qual, em Ser e Tempo, Heidegger (1926:58) descreve o que seria o

fenômeno, que, sendo "o que de si mesmo se manifesta", se mostra a si mesmo e

por si mesmo, não se referindo a outra coisa ou sendo indicado por algo. Como

fenômeno, ele é sempre originário, pois seu sentido se encontra em sua própria

manifestação e não em algum saber já dado de antemão.

Os símbolos têm vida, atuam, alcançam dimensões que o conhecimento

racional não pode atingir, ao mesmo tempo que são condição de possibilidade

para que o conhecimento se estabeleça. Conforme Jung, os símbolos são

expressões de coisas significativas para as quais não há, no momento,

formulação mais perfeita, requerem, assim, como modo de entendimento, uma

ciência hermenêutica. Desta forma, entende-se o método apresentado por ele

para o trabalho com o simbólico, principalmente em seu método sobre análise

onírica, quando diz que devemos “circum-ambular”46 em torno de um determinado

símbolo, ao invés de derivarmos em série de associações ao acaso. Esta circum-

mundo, ou tentamos, sem nos apercebermos de que estamos a controlar as representações e a lidar apenas com elas e não o com mundo. 46 Por circum-ambulação podemos entender a reconstituição, em todos os seus aspectos, a apreensão dos detalhes que irão reconstituir a imagem ou a forma total da experiência; isto muito se aproxima da variação eidética, tal como proposta por Husserl, como método fenomenológico. A variação eidética é um método de descrever um determinado fenômeno e evitar qualquer juízo a

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ambulação é a maneira adequada de reconstituir a experiência simbólica em sua

totalidade possível, ao mesmo tempo em que indica a inexistência de um sentido

que esteja além ou aquém do próprio símbolo.

Em seu método de interpretação onírica — trabalho em que

eminentemente lida com imagens e símbolos — pode-se constatar uma

abordagem fenomenológica. Ao longo de sua obra, ele não sistematiza sua

abordagem do fenômeno dos sonhos — material que se encontra disperso ao

longo dos mais de vinte volumes de seus escritos — mas pode-se aí identificar o

uso da “descrição”, na importância dada por ele à “situação” do sonhador; ao

invés de estimular a “livre associação”, atém-se à imagem onírica e busca todas

as associações possíveis à imagem dada, sempre retornando a ela, processo de

interpretação chamado de “amplificação” e “circum-ambulação” (Jung: 1943/1989)

— ato de girar em torno do centro, na tentativa de circunscrever todas as

características, todos os sentidos possíveis da imagem para o sonhador. A

“circum-ambulação” possibilita que a imagem gere um sentido, no encontro com a

situação consciente do sonhador, um processo de tessitura de sentido, realizado

no diálogo entre consciente e inconsciente.

Jung prefere associações “menos livres” (Boudoin: 1993), menos soltas

em todos os sentidos, mais centradas em torno dos elementos do sonho, sobre as

quais ele conduziria a atenção do sujeito, falando tanto em contexto do sonho

quanto de amplificação, distinguindo de “associação livre”.

A amplificação é pois uma forma de trabalho de associação delimitada, coerente e dirigida, que conduz sempre à quinta-essência do sonho e que busca elucidar, esclarecendo todos os lados possíveis (...). (Boudoin: 1993, p. 75)

O ato de fazer-se “amplificação” é decorrente da necessidade, observada

por Jung, de estabelecer o texto do sonho em termos de sua estrutura, examiná-

lo em sua completude. Esta estrutura é o contexto do sonho, o material

situacional em que o sonho é embebido. Este contexto, conforme descreve

respeito dele, é voltar à experiência ingênua do mundo, uma volta que se faz necessária a partir do momento em que se pretende permitir ao fenômeno dizer a que vem.

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Matoon (1978), inclui as associações pessoais, as informações do ambiente do

sonhador e os paralelos arquetípicos.

Esta abordagem feita por Jung, bem como a ênfase na descrição de

todos os elementos do sonho e de seu contexto, só seriam possíveis

considerando-se que, para ele, os símbolos e as imagens oníricas são fenômenos

que se bastam por si mesmos; torna-se, assim, necessário criar uma certa

“disposição” que possibilite o surgimento, ou a criação, de sentido, a partir destes

próprios fenômenos.

O sonho é o que ele é, inteiramente e somente o que ele é, ele não é uma fachada, ele não é alguma coisa de fato, algo não natural, alguma ilusão, mas uma construção acabada. (A idéia que o sonho dissimula algo é uma idéia antropomórfica). (Jung 1962, p. 323)

Ao se ater à “hipótese” de que o sonho é “o que ele é e se contém

inteiramente dentro dele mesmo”, encontrar-se-ia em cada caso, em cada

fenômeno, a limitação necessária à associação livre, o que fará com que a

interpretação permaneça sempre dentro do contexto, dentro da trama e na

“vizinhança” imediata do sonho. Ao se dar margem às associações livres, elas

conduzirão para algo, um referencial, que já não será mais o das próprias

imagens experienciadas.

A descrição se dá como necessária a partir da impossibilidade de uma

palavra, ou da fala, em encerrar o fenômeno em um conceito acabado,

associando-se à questão da interpretação, descrição da síntese em que se

constitui o símbolo. A interpretação e a razão que se originam no próprio ato da

experiência devem-se ater aos fenômenos como forma de possibilitar, a cada

novo ato de compreensão, o vigor da experiência de o inconsciente perdurar.

Uma discussão epistemológica, que se apresenta como fundamental, está

intimamente relacionada com a linguagem e a metodologia do trabalho de Jung.

Como se vê, ele tenta aproximar-se o máximo da experiência imediata dos

fenômenos. Para tal, faz-se necessário que se permita ao inconsciente

manifestar-se em seus próprios termos, ou seja, Jung procura aproximar-se do

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inconsciente e permitir que este se revele através de sua própria linguagem, não

somente com o olhar da consciência, o olhar da razão. Porém, como visto, o

inconsciente é de natureza objetiva e subjetiva e, sendo assim, os conceitos

fazem-se necessários, a consciência faz-se presente como sendo a que irá

procurar categorias, generalizações, etc. Por outro lado, à medida em que se

permite que o inconsciente se manifeste em seus próprios termos, permite-se,

também, que modos de compreensão e de experiências novos se constituam,

devido ao fato de que, neste momento, a consciência tem que desconstruir seus

conceitos, seu saber sobre o que é o inconsciente e deixar que este se apresente

em toda a sua originalidade. A conseqüência desta ação é que novos conceitos

se forjam, criados a partir do instante em que a consciência dá conta desta

experiência originária, para ser desconstruída, posteriormente.

Quando nós traçamos a relação de um poema de Goethe em função de seu complexo materno, quando procuramos explicar Napoleão como um caso de protesto masculino, ou São Francisco como um caso de repressão sexual, um senso de profunda insatisfação vem sobre nós. Estas explicações são insuficientes e não fazem justiça à realidade e ao sentido das coisas. Em que se tornaram a beleza, a grandeza e a sacralidade? Estas são realidade vitais sem as quais a existência humana se tornaria singulativamente estúpida. Qual é a resposta certa ao terrível problema do sofrimento e dos conflitos? A resposta deve ressoar em algum ponto que nos lembre a magnitude do sofrimento. (Jung: 1928, p. 313)

A descrição possibilita ater-se ao fenômeno, ou seja, o símbolo, ao invés

de reduzi-lo a outra medida que não a dada por este. Parte, então, do seu

reconhecimento como legítimo em sua própria natureza, sendo portador de um

sentido, uma determinação, correspondente ao seu próprio acontecimento.

Somente retornando a este, via descrição, poderá ser reconstituído e integrado na

forma de sua interpretação — compreendido em sua singularidade e em seu vigor

simbólico.

Ao apontar para a “complexidade do campo” da experiência (Brooke:

1993), Jung acentua que a busca por explicações apenas, seja da história de

vida, de sonhos, ou da obra de arte, desencaminha do sentido que permanece

imanente a todo símbolo, ou seja, faz com que apenas um significado seja

apreendido pela consciência. Há nisto uma crítica à explicação, como busca de

causas primeiras ou cristalização dos fenômenos que se contrapõem à geração

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de sentido, processo que pode ser entendido como o que dará possibilidade à

construção de conceitos, que poderia ser entendido como a transformação em

signo, a partir dos símbolos. Explicação ou interpretação, deve-se ressaltar, não

são, desta forma, opostos dissociados, mas fazem parte do mesmo processo.

Podem ser entendidos como o sentido objetivo e o subjetivo, aos quais Jung se

refere na interpretação dos sonhos.

Na verdade, Jung admite o eidos47, mas, também, admite a contingência

do histórico-social e pessoal, ou seja, a leitura intersubjetiva do contexto geral e

do momento vivido e a subjetiva. É necessário unir a faceta objetiva e subjetiva do

simbólico, ou seja, o seu eixo de sentido e da produção, que é tecida, no ato de

seu surgimento, pela própria expressão na sua tessitura, seja contextualizada,

seja no calor da situação singular. Há um conceito genérico objetivo, um contexto

intersubjetivo e um aspecto subjetivo que estão amalgamados no vivido48.

O sentido indicaria a necessidade da construção de uma narrativa, que se

dá como história que é contada a respeito do fenômeno, possibilitando a

integração de toda diversidade e dinâmica da experiência — o símbolo faz, então,

com que contemos histórias.

Por símbolo não entendo uma alegoria ou um mero sinal, mas uma imagem que descreve da melhor maneira possível a natureza do espírito obscuramente pressentida. Um símbolo não define nem explica. Ele aponta para fora de si, para um significado obscuramente pressentido, que escapa ainda à nossa compreensão e não poderia ser expresso adequadamente nas palavras de nossa linguagem atual. Um espírito que não pode ser traduzido em um conceito definido é um complexo psíquico situado nos limites da consciência de nosso eu. Ele não produz nem faz nada além daquilo que colocamos dentro dele. Mas um espírito que requer um símbolo para sua expressão é um complexo psíquico que encerra os germes fecundos de possibilidades incalculáveis. O exemplo ilustrativo e mais imediato é a eficácia do símbolo cristão, testemunhada pela história e cuja extensão é fácil de avaliar (...). (Jung: 1926, p. 346)

Jung (A Estrutura do Inconsciente Coletivo, 1916b) descreve os símbolos

como produto da “fantasia criadora”; a “função unitiva” que se encontra presente

nos símbolos teria como origem o processo dialético entre consciente e

47 Informação verbal de Elizabeth Christina Cotta Mello.

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inconsciente, onde este último seria o horizonte de toda criatividade e

“imaginação verdadeira”, assim como sua origem. Nela fluem conjuntamente os

elementos atuantes que se oferecem em todo e qualquer símbolo. Porém,

segundo o autor,

(...) a fantasia, entretanto, goza de má reputação entre os psicólogos. As teorias psicanalíticas, até o momento, não a levaram em conta. Para Freud, bem como para Adler, a fantasia não é mais do que um véu ‘simbólico’ que dissimula as tendências ou impulsos primitivos, pressupostos por ambos os investigadores. Podemos contrapor a essas opiniões – não relativamente ao fundamento teórico, mas essencialmente por razões práticas – o fato de que a fantasia pode ser explicada ou desvalorizada em função de sua causalidade; mas apesar disso ela é o regaço materno onde tudo é gerado e que possibilita o crescimento da vida humana. A fantasia tem, em si mesma, um valor irredutível enquanto função psíquica, cujas raízes mergulham tanto nos conteúdos conscientes como nos inconscientes, e tanto no coletivo como no individual. (Jung: 1916b, p. 293)

A fantasia, como Jung descreve em sua obra, outras vezes nomeando-a

imaginação, ao fazer uma distinção entre os dois termos49, é um processo de

atualização do inconsciente, processo que se encontra presente simbolicamente a

cada momento de sua manifestação. O mal-entendido, ou sua má reputação,

seria a literalização do símbolo; ao invés de nos aproximarmos dele em busca de

explicações apenas, reduzindo-o aos aspectos histórico-culturais, por exemplo,

devemos abordá-lo com uma atitude hermenêutica, isto é, que inclua o aspecto

objetivo e subjetivo, a interpretação e a explicação como um modo de

compreensão. O símbolo é sempre paradoxal, é isto e é aquilo, literal e

metafórico, nos leva ao imaginário, desconstruindo a experiência cotidiana e

literal, assim como organiza nossa experiência momentânea.

O conceito de fantasia será fundamental para a compreensão da relação

da obra de Jung e suas intenções referentes à constituição do símbolo, pois é a

fantasia, a “imaginação verdadeira” (Jung: 1943), que constitui o elo de ligação

48 Informação verbal de Elizabeth Christina Cotta Mello, novembro de 2002. 49 A distinção feita por Jung entre “fantasia” e “imaginação” aparece em alguns textos, onde ele diz que a primeira seria um processo defensivo do “eu”, isto é, uma forma de alienação ou abstração da realidade compensatoriamente a algum conflito vivido. A imaginação seria o produto legítimo do inconsciente, ou melhor, a atividade própria do inconsciente, a natureza deste seria, assim, imaginativa ou imaginária, conforme descrição que podemos encontrar em Jung, ao falar da alquimia, e em outros autores, como Eliade, Gilbert Durand, Henry Corbin e Gaston Bachelard, por exemplo.

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entre uma atitude típica da personalidade com a realidade arquetípica, a “psique

objetiva”. Ao falar de fantasia e imaginação, Jung se utiliza destes conceitos como

análogos aos de símbolo e experiência simbólica; eles serão sempre o meio

através do qual as funções psicológicas serão integradas, trazendo o vigor

constitutivo e integrador de indivíduo e mundo.

A fantasia é tão importante quanto o sentimento e o pensamento; tanto quanto a intuição e a sensação. Não há nenhuma função psíquica que, através da fantasia, não esteja inextricavelmente ligada com outras funções psíquicas. Algumas vezes isto aparece em sua forma primordial, outras isto é o mais extremo e vigoroso produto de todas as nossas faculdades associadas. Fantasia, entretanto, parece para mim a mais clara expressão da atividade psíquica per-si. Isto é (...) onde, como em todos os opostos psicológicos, o mundo interno e externo são reunidos em uma união viva. A fantasia é sempre o que molda a ponte entre o clamor irreconciliável do sujeito e do objeto, entre introversão e extroversão. (Jung: 1921, p. 498)

A fantasia — estrutura definitiva da psique per si — se daria como relação

com o mundo, manifestando-se esta relação como imagem e símbolo. Através da

fantasia, da “imaginação verdadeira”, a síntese da consciência, a experiência

antepredicativa se dá — a fantasia é o modo original de compreensão que se dá à

interpretação. A experiência antepredicativa, esta síntese da consciência que se

dá como relação e interdependência de homem-mundo, se dá como imagem,

imagem primordial, “imaginação verdadeira”, aquela que possui o poder de “’in-

formar’ a matéria” (Jung: 1945), podendo-se dizer, então, que o símbolo é, desde

seu emergir, uma forma de consciência, consciência originária que será

assimilada e compreendida através das funções da personalidade, dos diversos

modos de se assimilar e compreender mundo/homem — a razão, o sentimento, a

sensação ou a intuição. A experiência se daria sempre, conforme Jung, como

simbólica ou, como diz Heidegger, como poiesis50. A partir de sua interpretação,

do sentido que emerge como existência, a imagem, símbolo, será vivida e

compreendida pela consciência em seus vários modos possíveis de ser, como

representação ou epifania. A epifania, assim como a explicação, surgem dentro

de um eixo de sentido; o próprio símbolo, conduzindo-nos para além daquilo que

50 “La poésie est la puissance fondamentale de l’habitation humaine. Mais à aucun moment l’homme ne peut être poète, si ce n’est pas dans la mesure où son être est transpropiré à ce qui soi-même aime l’homme et, pour cette raison, main-tient son être. Suivant la mesure de cette transpropiation, la poésie est véritable ou non.” (Heidegger: 1951, p. 244)

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é dado como seu sentido imediato, possui uma delimitação que pode ser

compreendida como sua própria forma, ou a delimitação de sua imagem; tal

delimitação, em sua relação com o intérprete, será o que delineará o eixo de seu

sentido.

No contexto de toda a sua obra, assim como à luz de outros analistas

junguianos, torna-se claro que a fantasia, para a psicologia analítica, é a

qualidade definitiva desta inter-relação, da síntese existencial, a partir da qual o

mundo e o sentido de “si mesmo” (ego) emergem e derivam.

Intencionalidade como fantasia possui prioridade ontológica, não um sentido espaço-temporal, mas no sentido que qualquer coisa que seja dita sobre eu e mundo se refere em última instância a isto. (Brooke: 1991, p. 47)

A vida psicológica é vivida como um modo de “ser-no-mundo”; não

importa quanto ou como alguém queira retirar-se do mundo, sempre permanecerá

preso a ele. Não existiria uma posição ou situação ontológica metafísica anterior

ou posterior à de se encontrar constituído como ente determinado em uma

situação (Heidegger: 1926); este ente, porém, é aberto como transcendência, pois

é a partir dele que mundo/vida/homem podem vir-a- ser. É desta forma que a

riqueza e a experiência da existência, como intencionalidade, são descritas por

Jung como fantasia. Dentro de sua teoria, encontramos estes aspectos,

apresentados nos momentos em que ele descreve o psiquismo e na importância

que dará à imaginação como forma de meditação, tematizada pelos alquimistas.

A partir da intencionalidade como fantasia, bem como do símbolo como

homólogo à consciência, segue que o homem possui uma compreensão originária

do sentido das coisas e dos relacionamentos com o mundo, ultrapassando a

forma de conhecimento reflexivo, e o reconhecimento e a vivência de tal

compreensão originária caracterizarão a propriedade ou não da vida do indivíduo.

O reconhecimento, a consciência desta forma de experiência originária e sua

aceitação e vivência marcarão o que Jung chama de “processo de individuação”,

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isto é, a transformação do homem, ao realizar sua natureza simbólica, ao se

realizar como símbolo.

O sentido do símbolo não é o de um sinal que oculta algo geralmente

conhecido, mas é a tentativa de elucidar, mediante a “analogia”, alguma coisa

ainda totalmente desconhecida e em processo. Processo pelo qual entremos na

própria etimologia da palavra símbolo, βυλειν, que deriva do verbo “lançar”. O

símbolo é, desta forma, algo que se encontra sempre e desde já lançado; possui

uma direção ou intencionalidade, como raiz de sua dinamicidade e permanência.

Ao fazermos do símbolo um sinal, ou ao literalizá-lo, desprovemo-lo de sua

dinamicidade, de sua intencionalidade, que tem como raiz o inconsciente, fixando-

o e, assim, transformando-o em conceito fechado ou sinal de alguma coisa que

não pode transformar-se. Os símbolos, quando se tornam signos, morrem, e o

que era da ordem da potência criativa do inconsciente se transforma em sintoma,

cristaliza-se como um transtorno que depõe contra a própria vida e o vir-a-ser.

Por outro lado, é na dialética símbolo e signo que o conceito se faz

presente, como tentativa de interpretação e explicação, do ponto de vista da

consciência, de uma experiência transitória, como modalidade de assegurar uma

permanência da experiência, de tal forma que esta possa ser tratada dentro dos

parâmetros do pensamento racional51. Como visto anteriormente, a consciência

possui “propriedades especiais”, isto é, um modo característico de funcionamento

e organização; uma destas propriedades é a “diretividade” ou “concentração” e a

“dis-junção” dos elementos da experiências, de tal forma que possa assegurar um

modo de posicionamento onde os paradoxos não estejam presentes; com isto,

evita o conflito, enquanto, ao mesmo tempo, disponibiliza energia para

intervenção no mundo, para a ação. Assim, a consciência, ao “literalizar” o

símbolo, estaria delimitando um determinado território, de tal forma que possa

nele estabelecer-se com o mínimo de conflito e gasto de energia possível. Este

modo de ser, refletido pela seletividade e pela exclusão da consciência dos

51 Por pensamento racional refiro-me, aqui, ao pensamento como identificado com racionalidade, ou seja, como lógica ou processamento de informação representacional. Desta maneira, pensar seria processar informações a partir de regras, e pensamento lógico seria aquele que, seguindo estas regras, encontra a validade da certeza na não contradição e na universalidade dos

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paradoxos, permite que a “realidade” seja colonizada, isto é, que se possa lidar

com o mundo a partir do princípio da certeza. A conseqüência disto é que, ao

fazê-lo, ao estabelecer o horizonte de seu modo de ser desta forma, a

consciência descarta tudo aquilo que lhe traz conflito: o estranho, o novo, o

inusitado, a fantasia e, assim, tudo que é fruto da criatividade da “verdadeira

imaginação” do inconsciente e que funda a sua existência, como algo inexistente

ou indesejável; ou seja, esquece a atitude simbólica, aquela que a colocaria no

confronto e na necessidade de lidar com os opostos, assumir o conflito como sua

raiz e deparar-se com seus limites. "(...) A assimilação nunca é um isto ou aquilo,

mas sempre um isto é aquilo". (Jung: 1988, p. 149)

Enfrentar a oposição de forma radical é mesmo admitir a necessidade do

conceito, que só se tornará “demoníaco/diabólico” quando perder a fluidez e se

constituir contra o simbólico, quando destruir os elos que tornam a fluidez de

sentido possível e cristalizar os pontos de passagem, as pontes do deus Hermes.

Jung “preserva todas as encruzilhadas”. É a imaginação que pode permitir a

aceitação destes momentos do caminhar e até dos “descaminhos”. Estas portas

invisíveis (Campbell), este material, expresso no dinamismo “insular”, segundo

Byington, ou seja, estes elos virtuais que aparecem por estarmos imersos no

inconsciente coletivo.

(...) l’homme a besoin d’une vie symbolique. Il en a un besoin urgent. Nous ne vivons que des choses banales, habituelles, qu’elles soient rationnelles ou irrationelles – ces dernières font d’ailleurs partie intégrante du champ rationnel, sans quoi nous ne pourrions pas les qualifier d’irrationnelles. Mais nous n’avons pas de vie sumbolique. Quand vivons-nous symboliquement? Jamais, sauf lorsque nous avons part au rituel de la vie. Mais qui parmi nous a véritablement part au rituel de la vie? Fort peu de gens... Il n’y a pas de vie rituelle, symbolique. (Jung: 1954, p. 63)52

resultados, seus fundamentos, em leis que lhe assegurariam uma correspondência entre o que se pensa e o objeto pensado. 52 “O homem tem necessidade de uma vida simbólica. Ele tem uma necessidade urgente. Nós não vivemos senão de coisas banais, habituais, quer sejam racionais ou irracionais — estas últimas fazem, aliás, parte integrante do campo racional, sem as quais não poderiam qualificar-se de irracionais. Mas nós não temos uma vida simbólica. Quando vivemos simbolicamente? Jamais,

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III.

A imaginação, a fantasia criadora, adquire, para Jung, além de um caráter

epistemológico, uma dimensão ontológica, pois é a condição radical a partir da

qual mundo e homem se constituem na dinâmica simbólica. O símbolo, como

união dos opostos e emergência do inconsciente, é produto e produtor desta

fantasia radical, isto é, ao mesmo tempo em que se dá como abertura do

inconsciente, epifania da atividade criadora, indica o enraizamento do humano

naquele. Aponta, conseqüentemente, para a natureza da constituição do

inconsciente em toda a sua radicalidade e estranheza.

Ao falar do “opus” dos alquimistas será quando se encontra mais presente

esta natureza do símbolo como modalidade de existência; assim, em Psicologia e

Alquimia, Jung nos diz que

A ‘imaginatio’, tal como a entendiam os alquimistas, é na verdade uma chave que abre a porta para o segredo do ‘opus’. Sabemos agora que se trata de representar e realizar a ‘coisa maior’ que a ‘anima’, como ministro de Deus, imagina criativamente e ‘extra naturam’.. Em linguagem mais moderna dir-se-ia que se trata de uma concretização de conteúdos do inconsciente que são ‘extra naturam’; não pertencendo ao nosso mundo empírico, são um a priori de caráter arquetípico. O lugar ou o meio desta realização não é nem a matéria, nem o espírito, mas aquele reino intermediário da realidade sutil que só pode ser expresso adequadamente através do símbolo. O símbolo não é nem abstrato nem concreto, nem racional nem irracional, nem real nem irreal. É sempre as duas coisas: ‘non vulgi’, a nobre questão daquele que foi segregado (...), daquele que foi escolhido e predestinado por Deus desde as origens. (Jung: 1945/1991, p. 295)

O símbolo possui uma natureza que aponta para os limites da experiência

pensada e vivida, natureza que Jung nomeia psicóide, termo com o qual pretende

desfazer qualquer dicotomia possível, a nível de conhecimento e existencial.

Uma determinada época cria símbolos, que nascem e morrem, possuindo

como uma de suas funções orientar e criar valores que possibilitem a existência

salvo quando tomamos parte no ritual da vida. Mas quem entre nós toma verdadeiramente parte no ritual da vida? Muito poucos... Não existe vida ritualizada, simbólica.” (Tradução minha)

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desta cultura no mundo (Jung: 1920). A história, qualquer sociedade, numa

determinada época, é uma forma de compreensão desta realidade

“antepredicativa”— que instaura um direcionamento e constitui os homens que

nela se encontram — e realização do símbolo em um determinado modo de ser,

que necessita esquecer a dimensão paradoxal e originária do silêncio como

condição para perpetuar sua identidade, que se dá como historicidade.

As organizações ou sistemas são símbolos (συµβολον = profissão de fé) que capacitam o homem a estabelecer uma posição espiritual que se contrapõe à natureza instintiva original, uma atitude cultural em face da mera instintividade. Esta tem sido a função de todas as religiões. Por longo tempo e para a grande maioria dos homens basta o símbolo de uma religião coletiva. Talvez só temporariamente e para um número relativamente pequeno de pessoas é que as religiões coletivas existentes se tornaram inadequadas. Onde quer que o processo cultural esteja em andamento, seja nos indivíduos, isoladamente, seja em grupos, dão-se rupturas com relação às crenças coletivas. Qualquer avanço cultural é, psicologicamente, uma ampliação da consciência, uma tomada de consciência, que só pode se realizar mediante uma diferenciação. Por isso, qualquer avanço começa sempre com a individuação. Para chegar a isto, deve ele primeiramente retornar aos fatos fundamentais de seu próprio ser, independentemente de qualquer autoridade ou tradição, e tomar consciência de sua diferenciação. Se conseguir conferir um valor à sua consciência ampliada, ele provocará uma tensão entre os opostos que lhe fornece estímulos para seus progressos posteriores. (Jung: 1928c, p. 57)

O processo de constituição simbólico, como instauração do homem no

mundo, no âmbito do “inconsciente coletivo”, é a restauração da experiência do

indivíduo como uma totalidade determinada e constituída a partir deste “silêncio”

pleno de significado — silêncio onde as polaridades se anulam e se cria um

vácuo, um excesso de sentido. Restaurar o indivíduo como “sentido” é poder

reconhecer sua época como um modo legítimo de existir e não negá-la. O mundo

da técnica, da quantidade e do sujeito, lançado neste como res extensa é uma

possibilidade e uma compreensão da experiência, mas não a única. Jung

encaminha, assim, para uma abertura de mundo, onde o problema da verdade

perde o seu valor para a questão da correspondência à situação original do

homem — qual o sentido da história que, ao ser contada, o constitui. Desta forma,

observa-se como o problema do símbolo, no autor, aponta para o que chamará,

do ponto de vista epistemológico, de método sintético ou construtivo53, aquele que

53 “J’emploie ce terme à peu près de la même façon que synthétique pour expliquer en quelque sorte ce dernier. Le terme de ‘constructif’ insiste sur l`idée de construire. Par ‘constructif’ et ‘synthétique’ je désigne une méthode qui est à l’opposé de la méthode réductive. La méthode constructive s’applique à l’élaboration des matériaux inconscients, rêves, imaginations, etc. Son

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melhor corresponde ao seu modo de compreensão, pois se encontra enraizado

no caráter simbólico, ou melhor, no horizonte da “fantasia criativa”, a partir do qual

homem e mundo se constituem, isto é, toda sua epistemologia se encontra

fundada e, assim, corresponde a uma ontologia que se baseia na noção de

“imaginação verdadeira” e realidade psicóide.

IV.

O “inconsciente coletivo” é uma realidade “psicóide” (Jung:1952), uma

qualidade que escapa a qualquer possibilidade representativa, indicando uma

dimensão da experiência onde não se distingue o físico do psíquico — pleroma54.

Com esta idéia de “psicóide”, que Jung compara com a teoria da física quântica

sobre os fótons, procura romper com as dicotomias, ao indicar modos de

realização de uma realidade mais originária, que englobem a noção de uma

unidade múltipla. Tal como os físicos, que criaram a imagem de fóton para

descrever a natureza da luz, descrita ora como partícula, ora como onda, Jung

criará a imagem de “psicóide” para descrever o inconsciente coletivo como algo

que ora se dá como psíquico, ora como físico, sendo esta a natureza última do

símbolo.

point de départ est la production inconsciente qu’elle considère comme une expression symbolique qui antecipe en image un fragment du dévelopement psychologique. (...) Il est certain qu’il ne faut pas se contenter de considérer les produits de l’inconscient uniquement comme quelque chose d’accompli (...) Conformément à cette conception, la méthode constructive ne s’occupe pas des sources proprement dites, ni des éléments originels du produit de l’inconscient; elle cherche une traduction claire et compréhensible en général de la création symbolique.” (Jung: 1921, p. 422) Como se pode ver, o método construtivo é um sinônimo para o objetivo de Jung em criar um processo terapêutico que desempenharia uma “psicossíntese”. Tarefa de criação de sentido a partir das imagens e dos símbolos que, criados pelo encontro com o inconsciente, são reatualizados e integrados. Sua reatualização é a própria interpretação, que proporcionaria, vista como o processo de apropriação de um sentido e uma experiência que se manifestam pelos símbolos. Esta noção de método aponta para a questão da orientação, do sentido. A psicologia, baseada nesta psicossíntese, é direcionada pela questão do sentido, ao invés da explicação etiológica dos fenômenos. 54 Ver anexos.

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‘As camadas’ mais profundas da psique perdem sua unidade individual à medida em que elas se retiram cada vez mais em direção à escuridão. ‘Cada vez mais baixo’, isto quer dizer, à medida em que elas se aproximam dos sistemas funcionais autônomos tornam-se incrivelmente coletivas, até que são universalizadas e se extinguem na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias químicas. O carbono do corpo é simplesmente carbono. Uma vez ‘no fundo’ a psique é simplesmente ‘mundo’.. Neste sentido eu sustento que Kereniy está absolutamente correto quando diz que no símbolo o próprio mundo está falando. (Jung, 1940, p. 173) (Grifo no original.)

Pode-se fazer um paralelo com Merleau-Ponty (1945), que, através da

idéia de “corpo-vivido”, tenta fundar a experiência dentro de uma metáfora

espacial, dando ao sujeito o reconhecimento de sua existência e do mundo,

centrado na experiência corpórea. O corpo não é um sistema biológico ou um

objeto, mas é o espaço onde se dá a constituição da consciência, o encontro de

indivíduo e mundo, é a maneira própria de ser do sujeito e a consciência do

mundo. O corpo é o locus de realização de sentido. Dizer que o corpo é um objeto

ou um corpo fisiológico são maneiras de interpretar esta experiência do “corpo-

vivido”.

A dimensão “psicóide” da realidade é fundamental para a compreensão

da obra de Jung, pois é a experiência instauradora de mundo; ela se confunde

com a estrutura própria do inconsciente coletivo, a partir do qual homem e mundo

se determinam como compreensão e possibilidade. A natureza do “inconsciente

coletivo” é esta experiência instauradora que o homem — no processo de

individuação — recupera através dos símbolos. Reconhecer tal experiência

antepredicativa como instauradora do mundo, bem como a consciência em sua

constituição como “intencionalidade”, é dizer que qualquer disposição do homem

no mundo é uma possibilidade de sentido. O homem, o indivíduo, é uma narrativa

que não esgota o “silêncio” desta experiência fundadora, mas o instaura em todo

o seu vigor, como uma história do “silêncio” da experiência antepredicativa — do

inconsciente coletivo.

A natureza do “inconsciente coletivo” é esta experiência instauradora que

o homem — no processo de individuação — recupera através dos símbolos. Esta

experiência é antepredicativa. O homem será uma narrativa que não esgota esta

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experiência fundadora, mas a instaura em todo o seu vigor, como uma expressão

única da história deste “vazio pleno/silêncio”.

O arquétipo psicóide disponibiliza a conexão entre corpo e psique (von

Franz: 1970) — arquétipos e instintos. E, da mesma foram, pode-se falar em uma

correspondência entre o corpo e a estrutura do ego, que

(...) seria um feixe de raio de luz que pode mudar ao longo do espectro das cores ao qual compara o psiquismo. O pólo infravermelho seria onde as coisas se tornam psicossomáticas e somáticas = o corpo. O ultravioleta seria o corpo. De dentro ou mesmo de fora não saberíamos o que é o corpo em si mesmo — a não ser até certo ponto. (Von Franz: 1970, p. 164)

O mistério do organismo vivo estaria em um dos pólos de realização do

processo psicóide. No outro pólo, o “mesmo mistério” é expresso na forma de

representações, idéias, fantasias, etc. Os dois pólos seriam interligados, formando

dois aspectos da mesmo realidade — o arquétipo psicóide.

A diferença entre instintos e arquétipos seria, em suas manifestações e

determinações, que os instintos são representados pelo comportamento do corpo,

o fora, e os arquétipos, por uma “forma mental de tomada de consciência”, similar

em todos os seres humanos. A realidade física e corpórea, o que vemos como o

lado de fora, enquanto as imagens — idéias e fantasias oníricas — são o que

observamos de dentro. Duas formas de manifestação da mesma estrutura,

variações como as descritas por Maluf, ao falar do processo de “transformação

reversível não-fechada”. (Maluf: 1997, p. 69)

Ao usar o termo psicóide, diz entendê-lo como “o princípio condutor, o

determinante das reações, a potência prospectiva do elemento germinal” (Jung:

1946). É o agente elementar descoberto na ação, a “enteléquia” da ação real —

princípio gerador de sentido. Continua explicando esta noção, dizendo que o

conceito encontrado na história do pensamento é mais filosófico do que científico.

Porém Bleuler, ao invés, usa a expressão “psicóide” como termo coletivo, para

designar, sobretudo, processos subcorticais, que se acham relacionados

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biologicamente com “funções de adaptação”. Entre estas, Bleuler enumera o

reflexo e o desenvolvimento da espécie. Define-a como segue:

O psicóide é a soma de todas as funções mnésicas do corpo e do sistema nervoso, orientadas para um fim e destinadas à conservação da vida (com exceção daquelas funções corticais que estamos sempre acostumados a considerar como psíquicas).

Em outra passagem, descreve:

A psique corporal do indivíduo e a filopsique juntas formam uma unidade que podemos muito bem empregar no presente trabalho, designando-a pelo termo de psicóide. Comum ao psicóide e à psique (...) são a conação e o emprego de experiências anteriores (...) para alcançar o alvo, o que inclui a memória (engrafia e ecforia) e a associação, ou seja, algo de análogo ao pensamento. (Jung: 1946, p. 151)

Embora seja claro o que o autor entende por psicóide, contudo, na

prática, este termo se confunde com psique, como nos mostra a passagem acima

indicada. Por isto, não se entende por que estas funções subcorticais, a que se

refere o termo em questão, devam ser classificadas de “semipsíquicas”. A

confusão provém evidentemente da concepção organicista, observável em

Bleuler, e que opera com conceitos tais como “alma cortical” e “alma medular”,

mostrando, assim, uma tendência muito clara de derivar as funções psíquicas

correspondentes destas partes do cérebro, embora seja sempre a função que cria

seu próprio órgão, o conserva a o modifica. A concepção “organológica” tem a

desvantagem de considerar todas as atividades da matéria ligadas a um fim como

“psíquicas”, tendo como conseqüência o fato de que “vida” e “psique” se

equiparam, como no-lo mostra, por exemplo, o emprego que Bleuler faz dos

termos “filopsique” e “reflexos”. É certamente muito difícil, senão impossível,

conceber uma função psíquica independentemente de seu próprio órgão, embora,

na realidade, experimentemos o processo psíquico sem sua relação com o

substrato orgânico. Mas, para o psicólogo, é justamente a totalidade destas

experiências que constitui o objeto de sua investigação e, por esta razão, deve

abandonar uma terminologia tomada de empréstimo à anatomia.

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Porém, se Jung se utiliza do termo “psicóide”, o faz de três maneiras: a

primeira é que emprega esta palavra como adjetivo e não como substantivo; a

segunda é que ela não denota uma qualidade anímica ou psíquica em sentido

próprio, mas uma qualidade quase psíquica, e a terceira é que este termo tem

como função distinguir uma determinada categoria de fatos dos meros fenômenos

vitais, por uma parte, e dos processos psíquicos, em sentido próprio, por outra.

Esta última distinção nos obriga também a definir com mais precisão a natureza e

a extensão do psíquico e, de modo todo particular, do “psiquismo inconsciente”

(Jung:1946, p. 115).

Da mesma forma que a alma se perde, em seu substrato orgânico e material, em seu domínio interior, assim também se transmite em uma forma ‘espiritual’ cuja natureza nos é tão pouco conhecida, quanto a base orgânica dos instintos (...) Onde predomina o instinto, começam os processos psicóides que pertencem à esfera do inconsciente como elementos capazes de atingirem o nível da consciência. O processo psicóide, pelo contrário, não se identifica com o inconsciente em si, porque este último tem uma extensão consideravelmente maior. Além dos processos psicóides, existem no inconsciente representações e atos volitivos, ou seja, algo parecido com os processos conscientes; mas na esfera dos instintos estes fenômenos se retiram tão profundamente para os desvãos da psique, que o termo ‘psicóide’ provavelmente se justifica (...). (Jung: 1946, p. 122)

Para Jung, a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo

mundo e, além disto, se acham permanentemente em contato entre si e, em

última análise, se assentam em fatores transcendentes e irrepresentáveis, a

matéria e a psique são dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa. Os

fenômenos da sincronicidade, ao que me parece, apontam nesta direção, porque

nos mostram que o não-psíquico pode comportar-se como psíquico, e vice-versa,

sem a presença de um nexo causal entre eles (Jung: 1946). E observa que

(...) nossos conhecimentos atuais, porém, não nos permitem senão comparar a relação entre o mundo psíquico e o mundo material a dois cones cujos vértices se tocam e não se tocam em um ponto sem extensão, verdadeiro ponto zero. (Ibidem, p. 151)

Os fenômenos arquetípicos podem ser vistos como meramente

psíquicos, constituindo a subjetividade psíquica. Porém a natureza psicóide do

arquétipo aqui sugerida — sua materialidade — não está em contradição com as

formulações anteriores de Jung, pois, como ele diz, considera ser um grau a mais

na clareza conceitual e descritiva, que se torna inevitável desde o momento em

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que se vê obrigado a executar uma análise mais geral da natureza da psique e a

clarificar os conceitos empíricos referentes a ela e às relações que há entre estes

conceitos.

Da mesma forma como o ‘infravermelho psíquico’, isto é, a psique biológica instintiva, se resolve gradualmente nos processos fisiológicos do organismo, ou seja, no sistema de suas condicionantes químicas e físicas, assim também o ‘ultravioleta psíquico’, o arquétipo, denota um campo que não apresenta nenhuma das peculiaridades do fisiológico mas que no fundo não pode ser mais considerado como psíquico, embora se manifeste psiquicamente. Os processos fisiológicos, porém, se comportam também desta maneira, mas nem por isto são classificados como psíquicos. Embora haja uma forma de existência que nos foi transmitida por via meramente psíquica, todavia, não podemos dizer que tudo seja exclusivamente psíquico. Devemos aplicar este argumento, logicamente, também aos arquétipos. Como, porém, não temos consciência de sua natureza essencial e, não obstante, eles são experimentados como agentes espontâneos, é quase certo que não temos outra alternativa senão a de definir sua natureza como ‘espírito’, com base em seu efeito mais importante, e isto precisamente naquele sentido que procurei definir em meu ensaio sobre a fenomenologia do espírito. Sendo assim, sua posição estaria situada para além dos limites da esfera psíquica, analogamente à posição do instinto fisiológico que tem suas raízes no organismo material e com sua natureza psicóide constitui a ponte de passagem à matéria em geral. Na representação arquetípica e na percepção instintiva o espírito e a matéria se defrontam no plano psíquico. Tanto a matéria como o espírito aparecem na esfera psíquica como qualidades que caracterizam conteúdos conscientes. Ambos são transcendentes, isto é, irrepresentáveis em sua natureza, dado que a psique e seus conteúdos são a única realidade que nos é dada sem intermediário. (Jung: 1946, p. 153)

A nível epistemológico, assim como ontológico, o fato de o arquétipo ser

psicóide aponta para uma forma de pensamento não linear, isto é, para uma

linguagem que seria o recolher e o tecer de sentido (Heidegger: 1951). O

arquétipo designa “(...) aquilo de onde algo surge (...)” (Heidegger: 1955, p. 15) e

transmite, “liberta”, para a liberdade do diálogo, sentido, com o “que foi e continua

sendo”, ou seja, esta dimensão irrepresentável da realidade. Um pensamento que

inclua o paradoxal e, pelo fato de se constituir como composição de uma estrutura

divergente e não causalista, implicaria em movimento e epifania — o pensar

simbólico. A nível ontológico, indica que a realidade primeva ou fundamental do

humano se baseia nesta natureza paradoxal e não mais em uma realidade

mensurável ou reificada. A estrutura primeira do humano é da ordem do caótico

ou infinito, dinâmica.

O mosaico (Maluf:1997), estrutura múltipla e fluida, traz em si a

concepção da construção de uma rede em que a esta estrutura se manifesta

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como acontecimento, isto é, a estrutura, ao se atualizar, se apresenta como

geradora de sentido, manifestação pontual, enquanto processo de uma estrutura

que a suporta. Composição e relação de uma dimensão do vivido que é implicado

como intuição originária na epistemologia e que, através do método hermenêutico,

creio ser possível tematizar e correlacionar com as idéias de Jung relativas ao

inconsciente, enquanto realidade psicóide. Os arquétipos seriam formas

isomórficas, que, em suas metamorfoses, vão além da forma. Os isomorfos

seriam formas semelhantes aos arquétipos, que mantêm a sua origem e

enraizamento, mesmo se transformando, pois “(...) as transformações são a

garantia para o parentesco no mesmo” (Heidegger: 1955, p. 18). Estas diversas

formas de se manifestar dos arquétipos podem ser consideradas como “(...) as

expressões, ou reflexos (...)”, de uma dinâmica não física e autônoma, “(...) que se

faz presente, sob aspectos múltiplos e singulares, nos diferentes períodos da

história”. (Maluf: 1997, p. 96)

Na Teoria das Estranhezas, a realidade se expressa como um Fluido

Mosaico de Isomorfos. A partir deste modelo de compreensão, articulam-se

conceitos originais, que indicam uma flexibilidade e uma não reificação da

linguagem, que deve ser a característica necessária para se falar da natureza

desta experiência fundadora da realidade, das coisas do homem.

Tal modelo epistemológico necessita de um novo conjunto de signos para

sua explicitação, uma linguagem apropriada. Os velhos conceitos, usados até

agora pelas ciências, se baseiam em um modelo de apreensão e compreensão

de mundo e homem reificados e representacionais, tais como força, quantidade

ou falso-verdadeiro. Trazem em si idéias que determinam o próprio âmbito de

compreensão, o que faz necessária a construção de um novo modelo de

linguagem, talvez uma linguagem que aponte para o poético e o imaginário.

Este problema da linguagem é apontado por Searle (1997), ao falar da

dificuldade dos cientistas que trabalham com a questão da mente em saírem de

um modelo epistemológico dualista e reducionista. Esta dificuldade se encontra

na própria tarefa de se tentar sair de um modelo epistemológico e construir outro,

para o qual não se tem ainda um universo lingüístico que lhe corresponda.

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O vocabulário não é inocente, porque nele está implícito um surpreendente número de asserções teóricas que são quase certamente falsas. O vocabulário inclui uma série de oposições aparentes: ‘físico’ versus ‘mentalista’, ‘matéria’ versus ‘espírito’. Implícita nestas posições está a tese de que, sob os mesmos aspectos, o mesmo fenômeno não pode, literalmente, satisfazer a ambos os termos (...) Assim, espera-se que acreditemos que, se algo é mental, não pode ser físico; que se é uma questão de espírito não pode ser material (...). (Searle: 1997, p. 25)

V.

Os símbolos revelam uma modalidade do real ou uma estrutura do mundo

que não é evidente a nível da experiência imediata, ou seja, abrem o horizonte de

uma experiência que não se encontra determinada por alguma forma de

interpretação ou literalização. Esta experiência não é uma questão de

conhecimento racional, senão da consciência vivente que apreende a realidade

através do símbolo, antes de qualquer reflexão. Assim, por meio de tais

apreensões é que se constitui o mundo, enquanto realidade vivida. O

conhecimento reflexivo se encontra, neste momento, suspenso; a consciência,

como representação, se depara com seu limite, e o pensamento deve ceder à

contemplação. Isto implica na intuição imediata de uma “cifra” (emblema) do

mundo, uma imagem que não pode ser decodificada e na qual a experiência e o

sentido se encontram conjugados como uma unidade tensa e complexa; desta

forma, esta palavra/imagem se apreende imediatamente.

Podemos considerar os símbolos como sendo sempre religiosos, porque

apontam para algo real ou para a estrutura do mundo, o real — o poderoso, o

significativo, o vivente — eqüivale ao sagrado. O símbolo encaminha o homem

para uma atenção minuciosa e respeitosa em relação ao mundo, como diz Jung

em Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, ao definir o termo religião.

Tais afirmações são intuições da natureza paradoxal do inconsciente, o qual não se sabia situar a não ser no aspecto desconhecido do objeto, fosse ele matéria ou ser humano. O sentimento de que o segredo se acha ou num ser vivo estranho ou no cérebro do homem tem sido freqüentemente expresso na literatura (...). (Jung: 1945/1991, p. 452)

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Uma característica essencial do símbolo é, assim, a sua multivalência. A

capacidade para expressar simultaneamente um número de significados, cuja

relação não é evidente no plano da experiência imediata, porém apreensível

através da imaginação, como um modo de ser legítimo ao humano. Para que haja

o “entendimento” do símbolo, faz-se necessário, então, o uso de todas as funções

de conhecimento, como elaboradas por Jung. Todo símbolo possui uma

dimensão que remete a uma experiência sensível; um dado afetivo gera a

possibilidade de entendimento, pela compreensão, e o pensamento, enquanto

meio de interpretá-lo. Por fim, todo símbolo lança para além dele e demanda a

intuição como meio de compreendê-lo, na medida em que sua totalidade não é

“apreensível” nem circunscrita pela consciência – e nunca será. Este é o “círculo

hermenêutico”, que se faz presente na experiência simbólica, onde, pelo fato de o

símbolo abrir a experiência em todas as suas modalidades de ser, conclama a

que seja apreendido da maneira mais legítima possível, através dos variados

modos possíveis de conhecer, isto é, existência e conhecimento serão

entendidos, nesta perspectiva, como correlatos, ou seja, como pólos

complementares da realidade que vigora e permanece como a mesma,

manifestando-se de variadas formas.

O símbolo é capaz de revelar uma perspectiva na qual as realidades

podem articular-se em um todo e, ainda, integrar-se dentro de um sistema, e

expressam a natureza paradoxal da realidade (Eliade: 1967, pp. 131/135).

Através do símbolo o homem, encontra uma certa unidade no mundo e, ao

mesmo tempo, descobre seu próprio destino como parte integrante deste.

O simbolismo permite ao homem imaginar aquilo que o precedeu e que

precedeu o mundo, compreender como as coisas alcançaram a existência e onde

“existiam”, antes de ser. Não se trata de um ato de especulação, uma atividade

explicativa ou onde se pretenda estabelecer uma causalidade, mas sim de uma

apreensão direta do mistério sobre a origem das coisas, e que tem acesso ao que

precedeu a constituição das próprias coisas. Tudo aquilo que concerne a este

princípio tem uma considerável importância para a existência humana, pois

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enraíza o homem em algo que está além ou aquém dele. Desta forma, numa

perspectiva epistemológica, a atividade simbólica remete o homem a uma lógica

do inconsciente, isto é, a “operar” a partir desta lógica, sem que, com isto, se

torne seu discurso irracional ou incoerente. Como vemos, está lógica não é

apenas algo que surja como regras do pensar, mas como o próprio modo do

existir, de homem e de mundo, a partir do horizonte do símbolo e como formas

simbólicas. Esta experiência conduz, assim, ao que poderíamos chamar de um

retorno à intimidade das coisas, intimidade na qual se encontra implicada a

natureza do humano e do mundano como uma unidade indissociável e

diferenciada de uma consciência coletivizada e reificadora. Como diz Jung,

somente “o julgamento subjetivo” pode ser o guia nestes momentos; não havendo

uma forma de interpretação geral ou coletiva que corresponda a esta modalidade

de experiência, somos evocados em nossa singularidade radical.

(...) ‘pensar em paradoxos' (...) Esta conquista potencial significa – no caso de confirmar-se – a renovação da personalidade, com a condição da consciência não perder novamente sua conexão com o centro. Tratando-se de um estado subjetivo, cuja existência não pode ser legitimada por nenhum critério exterior, nenhuma tentativa posterior de descrição e explicação será bem sucedida, pois só quem fez tal experiência poderá compreender e testemunhar tal realidade. A ‘felicidade’, por exemplo, é uma realidade importante e não há quem não a deseje; no entanto, não há qualquer critério objetivo para testemunhar a existência indubitável dessa realidade. Assim, justamente nas coisas mais importantes, é que devemos contentar-nos com nosso julgamento subjetivo. (Jung: 1945/1991, p. 159)

Talvez a função mais importante do simbolismo — importante sobretudo

pelo papel que desempenhará em especulações filosóficas posteriores — é sua

capacidade de expressar situações paradoxais, ou determinadas estruturas de

realidades últimas, de outro modo totalmente inexpressíveis.

Na experiência simbólica, pode-se voar ou passar por frestas no meio de

pedras, subir aos céus ou descer aos infernos, enquanto se possa atuar

“espiritualmente”, isto é, se possua imaginação e inteligência e, em conseqüência,

capacidade para tomar distância da realidade imediata, do reducionismo sensível.

Estes atos revelam a existência de um modo de ser inacessível à experiência

imediata, à consciência coletiva e do homem, massificado pelos padrões

absolutos da racionalidade, o qual não pode ser alcançado senão por meio da

renúncia à crença ingênua na impugnabilidade da matéria.

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O símbolo possui a capacidade de expressar os aspectos contraditórios

da realidade última, como síntese da multiplicidade da experiência/viva que se

manifesta em uma unidade tensa. O símbolo é, desta forma, o resultado de uma

tensão existencial e fundadora entre pólos da constituição da realidade,

consciente e inconsciente. Eles surgem a partir de uma síntese, gerada pela

necessidade de união dos opostos, sem que, com isto, haja uma dissolução da

tensão. Esta tensão ou conflito é o que permite que o símbolo se mantenha vivo,

dinâmico. Isto caracteriza a existência paradoxal de princípios polares e

antagônicos, que Jung nomeia coincidentia opositorum.

Essa unidade é ótimo exemplo da ‘participation mystique’ que LÉVY-BRUHL mostrou como sendo característica da psicologia primitiva, mas que recentemente vem sendo posta em dúvida, numa visão estreita e míope, por certos etnólogos. Não se pretende dizer que a idéia dessa unidade seja ‘primitiva’, mas que a ‘participation mystique’ caracteriza o símbolo. Com efeito, o símbolo engloba sempre o inconsciente, o que inclui também o homem, fato este do caráter numinoso do símbolo (...). (Jung: 1980, p. 224)

Esta condição da realidade, seu caráter paradoxal e tenso, não é algo que

deva ser apreendido como um jogo retórico da consciência, pelo contrário, se há

a possibilidade de a dialética se instalar, é porque repousa na natureza paradoxal

da realidade. O símbolo remete o homem, desta forma, a um diálogo com esta

natureza radical, diálogo que é uma síntese inesgotável entre homem e mundo.

Nele, o homem se localiza como pólo participante e implicado na realização

simbólica, isto é, o homem, como ser localizado histórica e culturalmente, se

apresenta como um dos pólos, que, através do diálogo, irá constituir novos

símbolos.

O valor existencial do simbólico, para Eliade (1967), reside no fato de que

um símbolo sempre assinala uma realidade ou situação na qual se encontra

comprometida a existência humana. É sobretudo esta dimensão existencial a que

destaca e distingue os símbolos dos conceitos. Os símbolos mantêm ainda

contato com as fontes profundas da vida, expressam, poder-se-ia dizer, o “vivido

como espiritual”; possuem algo assim como uma aura “numinosa”, revelam o fato

de que as modalidades do espírito são ao mesmo tempo manifestação de vida e,

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por isto, comprometem a existência humana. O símbolo não só desvela a

estrutura da realidade ou uma dimensão da existência, como, ao mesmo tempo,

outorga um significado à existência humana.

O homem não se sente “separado” no cosmos, mas se “abre” a um

mundo que, graças ao símbolo, se mostra familiar. Por outro lado, os valores

cosmológicos dos símbolos permitem deixar para trás a subjetividade de uma

situação e reconhecer a objetividade de suas experiências pessoais.

A experiência simbólica mostra que quem compreende um símbolo não

só se abre a um “mundo objetivo”, mas, ao mesmo tempo, consegue sair de sua

situação particular e alcançar uma compreensão do universal; isto se explica

porque os símbolos têm uma maneira de fazer “estalar” a realidade imediata,

tanto como as situações particulares... “viver” um símbolo e decifrar uma

mensagem corretamente implica “uma abertura para o espírito” e, por último, um

acesso ao universal.

O mito religioso é uma das maiores e mais importantes aquisições que dão ao homem a segurança e a força para não ser esmagado pela imensidão do universo. O símbolo, observado sob o ponto de vista do realismo, não é uma verdade concreta, mas psicologicamente ele é verdadeiro, pois foi e continua sendo a ponte para as maiores conquistas da humanidade. (Jung: 1986, p. 220)

Os símbolos não só se dirigem à consciência desperta, mas também à

totalidade da vida psíquica — a psicologia junguiana mostra que o símbolo

entrega sua mensagem e completa sua função mesmo quando o seu significado

escapa à consciência. Desta forma,

— Se, em determinado momento da história, um símbolo foi capaz de expressar com claridade um significado transcendente é justificado supor a possibilidade que este significado haja sido apreendido obscuramente em uma época anterior.

— Para decifrar um símbolo não é só necessário considerar todos os seus contextos, mas também se deve refletir especialmente sobre os significados que teve em sua ‘maturidade’ (...) posto que a ‘cifra’ constituída por este simbolismo leva em sua estrutura todos os valores progressivamente revelados ao homem no curso do tempo, ao decifrá-los é necessário ter em conta seu significado mais geral, isto é, aquele que possa articular todos os demais significados particulares e que é o único que nos permite compreender como os últimos armaram uma estrutura. (Eliade: 1967, p. 135)

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Todo símbolo possui uma dimensão epistemológica, é um modo de

conhecimento legítimo, e outra instância, ontológica, pois nos remete a um modo

de ser que não se encontra restrito a qualquer modo de conhecimento. Desta

forma, o símbolo, entendido em sua forma mais radical, nos remete a uma

experiência histórica, através de seus modos de entendimento. Somos, assim,

implicados em uma forma de experiência que se abre como temporalidade, como

modo de ser e compreender, implicando o homem integralmente e sendo

condição para seu enraizamento no mundo e no universal.

O símbolo, sua vivência e integração trazem uma implicação ética, pois a

cada vez que o interpretamos ou vivenciamos, somos levados a um modo de

compreensão que não pode ser reduzido a algum outro, escapando, assim, de

uma normalização. O ethos, entendido como morada, abrigo, será o horizonte no

qual construiremos nosso ser, ou seja, é a experiência originária, a partir da qual

homem e mundo se constituem, e o sentido se manifesta através da experiência

particular de cada um. Juntamente com isto, o símbolo nos leva para uma

“Conjunção misteriosa”, onde o enraizamento particular de um indivíduo se

encontra fundado no mesmo solo de origem de todos os outros, implicando,

assim, uma co-derteminação e uma co-participação de todos num mesmo modo

de uma realidade radical e fundamental, que se manifesta como diferentes modos

de significação, ou seja, como singularidades irredutíveis, porém participantes em

um mesmo destino.

VI.

O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.

A primeira é simpatia; não direi a primeira em tempo, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que ter simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude de cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar.

A segunda é a intuição (...). Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja.

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A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, ordena, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação do que está embaixo. Não poderá fazer isso se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.

A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros Símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a compreensão é uma vida. Assim aceitos, símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes .

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns que é a graça, falando a outros que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo55. (Fernando Pessoa, Obras Completas, Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A.,1986, p. 4)

O símbolo, como se pode perceber, ao lermos a passagem acima, nos

demanda integralmente, isto é, convoca a totalidade do homem para que possa

ser compreendido e tornar-se vivo. Conforme uma interpretação junguiana, pode-

se dizer que se faz necessário o uso de todas as funções de conhecimento, as

quais se encontram disponíveis à consciência e à personalidade como um todo,

para que uma total apreensão do símbolo possa ser vivenciada. Assim, para

iniciar, faz-se necessária a “simpatia”, que, como diz Fernando Pessoa, é uma

atitude de disponibilidade para com o símbolo, que pode ser entendida como

abertura e aproximação, desprovida de preconceitos, isto é, de juízos a priori, que

farão apenas perpetuar o distanciamento da consciência em relação àquilo que

diz respeito ao novo e ao criativo, provenientes do inconsciente.

Conforme o Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua

Portuguesa, de Silveira Bueno (1968) simpatia significa “inclinação, atração

afetuosa entre dois seres, gosto que apresenta alguém a alguma coisa” (vol. 7, p.

3749). Do grego sympatheia, συµπαθεια, indicaria comunidade de sentimentos e

impressões entre os seres. (ibidem, p. 820) Assim, esta simpatia, com a qual nos

deparamos como necessária, seria um dispor-se, homem e símbolo, a partir do

mesmo horizonte de experiência, uma participação mística, como nos diz Jung.

55 Fui apresentado a este texto de Fernando Pessoa pelo Dr. Paulo Pìnho, durante os seminários, por ele proferidos para a turma de trainée, na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, RJ.

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Como sentimento comum, pode-se considerar a simpatia como um afeto que nos

posiciona no mesmo nível que o símbolo, uma abertura através da “função

sentimento”, que se faz presente neste momento. Porém, considerando o sentido

do prefixo συµ, que indica movimento em direção a algo, reunião, a simpatia não

é apenas um sentimento ou afeto que se sente em comum, a partir de uma

identidade indiferenciada; ela implica um movimento de reunião, integração e

aproximação. Existe, assim, a necessidade de um esforço para que haja esta

aproximação e este dispor-se à abertura. Como movimento de reunião, pode-se

considerar que este movimento não é apenas unilateral, não se origina apenas da

consciência ou do “intérprete”, como nos diz Fernando Pessoa, mas parte,

também, do próprio símbolo, fenômeno vivo e dinâmico, que se abre em direção

ao homem, permitindo, desta forma, o “sentir em comum” – que será dado pela

experiência que se partilha.

O afeto torna-se, então, efetivamente, não a expressão de algo, de uma

atividade interna a um sujeito, mas uma episteme, um modo legítimo para o

conhecimento.

Συµπαθεια é formada pelo prefixo sum e pelo radical pathos, que possui

como sentido, segundo o Abrégé du dictionnaire Grec Français, de A. Bailly (p.

642), aquilo que se experiencia, o que se sofre, no sentido de experiência vivida.

Ésquilo diferencia pathos como sendo aquilo que se houve vivenciado,

experienciado, diferenciando, assim, daquilo que se faz, dos atos voluntários da

consciência e do eu. Existe, como se identifica no sentido etimológico de pathos,

uma oposição entre aquilo pelo qual se passa, se vivencia, e aquilo que se faz,

indicando algo que nos dispõe como espectadores e participantes de uma

experiência que não está sob nossa determinação voluntária. Somos passivos em

pathos, mas esta passividade não implica uma falta de consciência ou um

abandono simplesmente. A experiência como pathos se coloca como aquilo que

nos leva a participar do mundo; somos participantes de algo que não se reduz à

subjetividade ou à personalidade individual, podendo, mesmo, dizer que pathos

indica uma experiência que nos conclama de fora, um fora que está além de nós,

porém no qual estamos enraizados com os “outros”, isto é, com os que se põem

como diferentes de mim. A experiência indicada na origem de pathos é aquela

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que nos tem, encontra-se como horizonte determinante daquela afinidade que irá

aproximar e reunir “intérprete” e símbolo, horizonte da experiência que se pode

considerar comum a ambos. Porém, enquanto comum, faz-se necessário o

esforço da consciência do “intérprete”, para que possa corresponder ao esforço

do símbolo de se aproximar e se mostrar.

Por corresponder entenda-se um responder comum a algo, isto é, a um

chamado, reconhecer o chamado e se abrir a ele. Assim, corresponder é

responder a algo que se põe diante de nós, ao mesmo nível deste chamado,

buscando uma posição onde “intérprete”, consciência e símbolo, ou inconsciente,

se encontrem numa simetria harmônica.

A segunda “qualidade” nomeada por Fernando Pessoa é a intuição. Como

vimos anteriormente, como desenvolvida por Jung em Tipos Psicológicos (1921),

intuição é uma das “funções de conhecimento”. Quando descreve as funções ele

as distingue em dois tipos, quanto ao modo de avaliação da realidade: racionais e

irracionais; as irracionais são as que se enquadram na categoria de perceptivas.

A intuição, para o autor, é uma função irracional, ou seja, perceptiva. Como

perceptiva, possui a especificidade de ser uma função de reconhecimento,

apreensão imediata da realidade, isto é, sem avaliações ou juízos de valor que

sirvam de intermediários para o conhecimento. Porém, diferente da “função

sensação”, a intuição apreende a realidade de forma imediata, mas não a

realizada, sensível, sensória, apreendida pelos órgãos dos sentidos, apreende os

processos de ligação e organização que vigoram e a sustentam.

Poderíamos utilizar de uma metáfora – digo metáfora, pois não pretendo

aqui fazer nenhuma comparação entre teorias psicológicas – para a Gestalt

Theorie: toda forma é apreendida sempre a partir de um conjunto de relações e

estas se organizam segundo um princípio nomeado “relação figura-fundo”, ou

seja, quando apreendemos ou percebemos um determinado aspecto da

realidade, apreendemos um conjunto de relações significativas, escapando,

assim, uma série de outras possíveis. O todo deste conjunto de relações seria

aquilo que permite que uma determinada configuração de forma se dê, se

constitua; aquilo que não percebemos é o que sustenta a figura, ou seja, na

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figura, o que vigora com maior intensidade, como uma forma organizada, somente

tem sua possibilidade de configuração porque existe um fundo, que o mantém,

um conjunto de relações que possuem, para o observador, ou para com a relação

do olhar que constitui o campo intencional, uma baixa valência, pouca pregnância.

A intuição, ao nos utilizarmos desta metáfora, seria a capacidade de percepção

do fundo, em sua totalidade.

Em seu livro Lexico Junguiano, Daryl Sharp define a intuição como a

função que percebe possibilidades inerentes às situações futuras, ou seja,

percebe os fluxos e suas relações e tendências. A intuição nos conduz ao “jardim

mágico das possibilidades” (Jung: 1946, p. 267); sendo assim, de forma oposta à

sensação, é um mecanismo de percepção “via” inconsciente, não se restringindo

à apreensão literal das coisas.

Para Jung, na intuição, os conteúdos são apresentados em sua

totalidade, sem serem, com isto, capazes de uma explicação ou de como “vieram

à existência” (Jung: 1921); assim, o conhecimento intuitivo possui uma convicção

intrínseca e é carregado de convicção.

A intuição, porém, conforme segue Jung, é como o que se sente que está

além do símbolo, sem que se veja. Ela nos remete ao desconhecido, que se

apresenta como símbolo, nos dá a direção do inconsciente; por um lado, e, por

outro, nos encaminha para a questão do sentido. Por sentido, pode-se entender a

intuição, como possuidora de uma teleologia, isto é, indicando-nos o “para quê”

da experiência ou a tendência que se encontra, como a concatenação das

experiências vividas em uma totalidade e destino.

Através destas indicações, podemos acercar-nos de uma das funções

mais fronteiriças, pois é um meio de conhecimento que se encontra na divisa

entre consciente e inconsciente, o que leva a um enfraquecimento dos artifícios

da razão para sua conceitualização, e, por outro lado, impõe cautela ao acercar-

se dela. A intuição, como função estruturada a partir do horizonte do sentido,

vigora a partir do mistério do destino, do vir-a-ser, reúne possibilidade e

totalidade, racional e irracional. Para seu entendimento, fazem-se necessárias a

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metáfora e a poesia, pois é palavra que se funda a partir do inominável como

mistério.

“O deus soberano, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta,

mas manifesta-se por sinais”, diz Heráclito (apud Kirk et Raven, p.214). Neste

fragmento (247), somos levados a pensar na intuição como algo sutil, linguagem

que não certifica nem nega, apenas nos lança em nossas incertezas diante da

necessidade de sentido e dos enganos possíveis de qualquer interpretação.

A terceira qualidade é a “inteligência”, que “analisa, decompõe, ordena,

reconstrói noutro nível o símbolo (...)”. A inteligência pode ser correlacionada à

“função pensamento”, função racional para Jung, que se utiliza de juízos e

categorizações para conhecimento do mundo. A capacidade de análise é o

método por excelência de qualquer ciência tradicional, que segue o modelo

proposto por Descartes em seu Discurso do método para bem conduzir sua razão

e procurar a verdade nas ciências. Assim, para se conhecer a realidade deve-se

decompô-la em seus menores componentes possíveis56, após ordená-los,

agrupá-los e tentar apreender a maneira pela qual eles se organizaram. Se a

intuição é a percepção da totalidade, o pensamento ou a “inteligência” é a

decomposição desta totalidade em unidades múltiplas e separadas uma das

outras. Ao decompor e categorizar, torna o símbolo uma categoria formal, um

conceito capaz de ser comunicado como representação de uma experiência e,

assim, de ser unificado como algo constante e repetitivo. O devir, a experiência

que não se repete, torna-se experiência formal, teoria, expressão de algo que

pode ser replicado. Surge, então, a “inteligência” como qualidade explicativa do

símbolo, sua literalização.

56 “Le premier étoit de ne recevoir jamais aucune chose pour vraie que je ne la connusse évidemment être telle; c'est-à-dire, d'éviter soigneusement la précipitation et la prévention, et de ne comprendre rien de plus en mes jugements que ce qui se présenteroit si clairement et si distinctement à mon esprit, que je n'eusse aucune occasion de le mettre en doute. Le second, de diviser chacune des difficultés que j'examinerois, en autant de parcelles qu'il se pourroit, et qu'il seroit requispour les mieux résoudre. [142] Le troisième, de conduire par ordre mes pensées, en commençant par les objets les plus simples et les plus aisés à connoître, pour monter peu à peu comme par degrés jusques à la connoissance des plus composés, et supposant même de l'ordre entre ceux qui ne se précèdent point naturellement les uns les autres. Et le dernier, de faire partout des dénombrements si entiers et des revues si générales, que je fusse assuré de ne rien omettre.“

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Porém, como segue Fernando Pessoa, a “inteligência” possui uma

finalidade, que somente pode ser cumprida depois que se usou da simpatia e da

intuição. Esta finalidade é a “de relacionar no alto o que está de acordo com a

relação do que está embaixo”57. Sua função não é apenas decompor e analisar,

mas estabelecer ligações entre horizontes de experiências distintos, o que pode

ser feito por comparações e pela identificação de “solidariedades”58 entre

aspectos da realidade distintos. O pensamento de “discursivo” torna-se

“analógico”, estabelece paralelos que permitem identificar a unidade múltipla da

realidade e, assim, transpor as fronteiras entre o consciente e o inconsciente,

dentro-fora, acima-abaixo. Quando este se esquece da simpatia e da intuição, a

explicação, que possui seu fundamento na experiência do símbolo, o destrói, ao

decompô-lo apenas. Este é o perigo da explicação, o nivelamento da realidade e

sua literalização, colonizando-a através de conceitos que, uma vez, foram

símbolos.

C’est lui que, conformément à ses propres lois, établit une connexion

conceptuelle entre les contenus représentatifs. C’est une activité aperceptive où l’on distingue la forma active et la forma passive. Le penser actif est une action volontaire; le penser passif, um déroulement. Dans le premier cas, je soumets les contenus représentatif à un acte voulu de jugement; dans le second, des rapports conceptuels s’ordonnent et des jugements se forment qui peuvent en certains cas être opposès à mon intention ou ne pas correspondre à mon but; ils sont alors privés pour moi du sentiment de direction, bien que je puisse, après coup, par un acte d’aperception active, arriver à reconnaître qu’ils sont dirigés. Le penser actif correpondrait donc à mon concept de penser dirigé.. Le penser passif y est défini: “imagination”, ce qui est insuffisant. Aujourd’hui, je l’appellerais penser intuiitif59. (Jung: 1921, p. 459/460)

57 Jean d’Espagnet, em seu livro A Obra Secreta da Filosofia de Hermes Trimegistos, apresenta a primeira gravura alquímica, cujo título é “Sentença Fundamental da Alquimia”, com a seguinte citação: “O que está em cima é como o que está embaixo”, continua explicando que isto significa “O que o céu mostra também a terra freqüentemente possui”. Indica, assim, a solidariedade entre cosmos, homem e mundo, formado uma totalidade una e indissociável. 58 Na clínica, isto se observa como fundamento da possibilidade de sua “eficácia”, pois o que se observa e o que se levará o cliente a identificar é que aquilo que ocorre no setting terapêutico, a qualidade das relações e das fantasias que se estabelecem ali são da mesma ordem daquelas que ele estabelece pela vida afora, em seu viver cotidiano. Assim, o que está “dentro” é como o que está “fora”. Ao tornar possível a mudança de atitude dentro do espaço terapêutico, na relação com o analista, disponibiliza-se uma mudança da atitude do cliente em sua relação com a vida e com aqueles que a partilham com ele. 59 “É aquela que, conforme as suas próprias leis, estabelece uma conexão conceitual entre os conteúdos representativos. É uma atividade perceptível, onde se distingue a forma ativa da forma passiva. O pensamento ativo é uma ação voluntária; o pensamento passivo, um desdobramento. No primeiro caso, eu submeto os conteúdos representativos a um ato voluntário de julgamento; no segundo caso, as relações conceituais se organizam e os julgamentos se formam, os quais podem, em alguns casos, ser opostos à minha intenção ou não corresponder a meu objetivo; eles

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A quarta “qualidade é a compreensão”. Este termo possui uma série de

aspectos, quanto ao seu entendimento. Por compreensão, Jung, ao recorrer ao

seu sentido etimológico, diz que significa “engolir”, isto é, devorar algo. Porém,

pode-se considerar esta sua interpretação apenas como um dos aspectos,

pretende o autor alertar quanto aos perigos de tudo se querer “entender”.

Compreender seria um processo de assimilação da experiência, que, no ato de

assimilar, implicaria um tornar-se o outro. Assim, pode-se ler esta referência de

Jung quanto ao compreender de maneira tal que se entenda como uma tentativa

de assimilação da experiência, onde aquilo que parece estranho e distinto de si se

torne parte integrante daquilo que se é. O perigo do compreender60 estaria na

pretensa capacidade e expectativa de, através da compreensão, esquecer-se de

que esta se constitui como um modo de interpretação, que a certeza, almejada

pelas explicação, é algo que destrói a singularidade e a historicidade do símbolo.

Le diable est donc le dévoreur. Comprendre = comprehendere = katasullambanein, c’est aussi engloutir. La comréhension avale. Mais on ne doit pas se laisser avaler quand on n’a pas l’intention de jouer le rôle du héros, à moins bien sûr d’être vraiment un héros capable de terrasser le monstre de l’intérieur (...) Le désir de comprendre, qui paraît si normal et si universellement humain, dissimule une volonté diabolique qui, si elle ne m’est pas d’abord sensible à moi-même, l’est cependent à l’autre. La compréhension est un pouvoir qui enchaîne affreusement, à la limite un véritable meutre d’âme, dès qu’elle fait disparaître des différences vitales. Au coeur de tout individue est un mistère de vie qui s’éteint lorsqu’il est ‘saisi’. C’est porquoi les symboles eux aussi demandent à garder leur mystère; s’ils sont mystérieux, ce n’est pas seulement parce que la realité qui les sous-tend ne peut être clairement comprise, cést parce que le symbole est là pour prévenir les interpretations (...) qui sont en effet si mensongères qu’elles ne manque jamais leur effet. La compréhension ‘analytique’ produit chez les malades un effet destructeur bénéfique de la même manière qu’un produit caustique ou thermocautère. Mais sur des tissus sains, son action destructive est funeste (...) Toute compréhension, quelle qu’elle soit, qui se contente de rattacher à ses point de vue généraux, porte en elle cet élément

são, então, privados por mim do sentimento de direção, se bem que eu possa, logo após, por um ato de apercepção ativa, chegar a reconhecer que eles são dirigidos. O pensamento ativo corresponderia, então, a meu conceito de pensamento dirigido. O pensamento passivo é definido: “imaginação”, o que é insuficiente. Atualmente, eu o chamaria de pensamento intuitivo.” (Tradução minha) 60 Onde se lê a referência à compreensão, creio se tornar mais claro o que Jung diz, se compreendermos em seu lugar uma crítica à explicação que desfaz todas as dobras e tenta capturar uma verdade a respeito do mundo e do homem. Haveria, assim, um reencantamento de mundo e de homem, que se dispõem como morada do sagrado e logos do mistério inenarrável, gerador das formas de discurso que o homem empreende, na tentativa de criar uma morada para si.

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diabolique et s’avère mortelle. Elle arrache la vie de l’autre à la voie qui lui est propre, l’entraîne de force dans un monde étranger où elle ne peut vivre. (...) La véritable compréhension cependant paraît être ce que l’on ne comprend pas, et qui pourtant existe et agit (...) On devrait se féliciter d’être aveugle aux mystères de l’autre, car cela nous empêche de commetre des violence diabolique (...). (Jung: 1915/1994, p. 67)61

Segue Fernando Pessoa, esclarecendo que compreensão é “o

conhecimento de outra matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por

várias luzes, relacionados com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo

o mesmo”. Assim, compreender é alcançar a unidade que se encontra como

fundamento da multiplicidade de experiências vividas. Porém, esta unidade não é

algo que reduza todos os símbolos ou toda e qualquer experiência a algo idêntico,

ou ao mesmo, mas a apreensão da unidade múltipla, que, através das

singularidades, se manifesta como princípio que vigora e se manifesta como o

“uno”. Para tal, para que o “uno” possa ser apreendido e não se tornar o mesmo,

ele tem que, a cada vez que se mostra, ser outro, processo e devir, permitindo

que a singularidade de cada símbolo tenha seu vigor original.

198 Por isso, é necessário seguir o comum; mas, se bem que o Logos seja comum, a maioria vive como se tivesse uma inteligência particular.

199 Dando ouvidos não a mim mas ao Logos, é avisado concordar em que todas as coisas são uma. (Heráclito de Éfeso, apud Kirk et Raven, 189)

61 “O diabo é o devorador. Compreender = comprehendere = katasullambanein, é também engolir. A compreensão engole. Mas não se deve deixar engolir quando não se pretende desempenhar o papel do herói, a menos que se esteja bem certo de ser um herói capaz de destruir o monstro interno (...) O desejo de compreender, que parece tão normal e universalmente humano, dissimula uma vontade diabólica que, se não for sensível desde o início a si mesmo, é, entretanto, para o outro. A compreensão é um poder que acorrenta assustadoramente, ao extremo, é na verdade um assassinato da alma, desde que ela faz desaparecer as diferenças vitais. No coração de todos os indivíduos há um mistério de vida que se extingue desde que se torna “preso” (...) É por isto que os símbolos também requerem que seja preservado seu mistério; se eles são misteriosos, não é somente porque a realidade que os subentende não possa ser apreendida claramente, é porque o símbolo está lá para prevenir as interpretações (...) que são, de fato, tão mentirosas que jamais faltam seus efeitos. A compreensão ‘analítica’ produz nos doentes um efeito destrutivo benéfico da mesma maneira que um produto cáustico ou cauterizador. Mas, sobre os tecidos sãos, é uma ação destrutiva e funesta (...) Toda compreensão, qualquer que seja, que se contente em prender em seu ponto de vista geral, porta em si esse elemento diabólico e se mostra mortal. Ela arranca a vida do outro de sua vida própria, e a arrasta à força para um mundo estranho, onde não pode viver (...) A verdadeira compreensão, entretanto, parece ser o que não se compreende, mas que existe e age (...) Dever-se-ia felicitar-se de ser cego aos mistérios dos outros, pois isto evita cometer violências diabólicas (...). (Jung: 1915/1994, p. 67) (Tradução minha)

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Conforme a origem da palavra logos, como Emmanuel Carneiro-Leão62

nos diz, seu sentido é “dizer”, porém era representado como uma rede, uma

malha, que, tecida, reúne em um todo diferenças e singularidades. Como um

tecido, reúne e organiza, faz aparecer algo que é uma síntese de polaridades,

permitindo que os opostos se unam e o paradoxo vigore como reunião. Para a

fenomenologia de Heidegger, logos não designa apenas o discurso, não se

constitui como um “dizer” que expressa algo, como comunicação e representação,

mas é o que "faz ver alguma coisa" e a faz ver "a partir disso mesmo de onde ele

discorre" (ibidem), ou seja, possui um status ontológico, fundamento e princípio

originador de sentido. O que é dito não é tirado do próprio fundo dos

interlocutores, mas daquilo de que se fala, isto é, não é um sujeito que dirá algo

sobre um objeto ou um discurso da intimidade subjetiva dos falantes. O que é dito,

o logos como discurso, não vale senão como revelação daquilo a que diz respeito

o discurso, o horizonte para o qual ele aponta e que vigora como condição de

possibilidade de sua manifestação. Este logos consiste em "fazer ver de si

mesmo o que se manifesta, tal como de si mesmo ele se manifesta". (Ibidem)

Do ponto de vista epistemológico, como uma teoria do conhecimento dos

símbolos, Jung, ao discorrer sobre o método de interpretação dos sonhos, nomeia

esta técnica de “amplificação”, método que “consiste simplesmente em

estabelecer paralelos” (Jung, p. 77) de uma imagem onírica ou símbolo. Segue

esclarecendo que este estabelecimento do contexto é um princípio aplicado pelos

filólogos também: ao se depararem com uma “palavra muito rara, com a qual

nunca antes nos defrontamos, tenta-se encontrar passagens de textos paralelos,

se possível, aplicações paralelas, onde o texto ocorra”. (Ibidem) A “amplificação”

possui dois níveis, enquanto estabelecimento do contexto: num primeiro nível,

dispõe as relações associativas entre a consciência e os símbolos que se

manifestam em sonhos. Num segundo, “amplificação” refere-se ao

estabelecimento do contexto simbólico coletivo, possuindo, assim, o objetivo de

esclarecer e gerar um sentido que se encontre enraizado, ou algum paralelo, com

símbolos de culturas distintas, tanto temporal quanto geograficamente. A

“amplificação” visa enraizar o homem no coletivo, assim como se reconhecesse

62 Informação verbal, realizada durante aulas no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ, 1994.

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que este enraizamento só se torna possível por existir como precondição de

constituição do si próprio, por permitir que se manifeste um sentido próprio e

singular, unindo parte e todo, solidário a uma totalidade da experiência humana.

Este método da “amplificação” é utilizado quando o “intérprete” se depara

com sonhos arquetípicos, sonhos onde aparecem símbolos coletivos,

transculturais, possuidores de um caráter não restrito à subjetividade, isto é, os

sonhos arquetípicos rompem, com seu simbolismo, a dicotomia interno-externo,

sujeito-objeto.

Para a amplificação dos sonhos arquetípicos, conforme explica Mattoon,

paralelos arquetípicos são necessários, em conjunto com as associações

pessoais. O uso de tais paralelos está baseado na compreensão de que, para os

elementos psíquicos comuns a toda a humanidade — arquétipos — amplificações

de toda a experiência humana são relevantes para o sonho de algumas pessoas,

assim como a experiência individual da vida inteira provê associações pessoais

para cada sonho desta pessoa.

O “intérprete” procura amplificações na mitologia, na história das religiões,

na arqueologia, nas práticas dos povos pré-letrados, nos tratados alquímicos e,

inclusive, em “todos os ramos das ciências do homem” (Jung: 1928b, p. 215).

Subjetivamente, a compreensão seria um ato de apropriação, ou seja, de,

“responsavelmente” (Brooke:1991), o indivíduo aceitar suas próprias experiências

como algo pertencente a si mesmo, assumindo seu destino, ao invés de se

massificar. Ela se daria como o processo pelo qual as coisas, as imagens e os

eventos são percebidos psicologicamente, isto é, simbolicamente, e não de forma

literal. Este processo não é de forma alguma separado da reflexão, o que seria o

mesmo que se tornar consciente, sentir que algo é “justo” (Adler: 1980), processo

de integração e apreensão da totalidade simbólica e da experiência singular.

(...) quando nós sentimos que alguma coisa é ‘justa’, nós já sentimos que

isto ‘tem um sentido’ (...) Jung observou um dia que o aspecto teleológico destas expressões: ‘que convém’, ‘que é em seu lugar’, tais como se encontram no domínio biológico, deveria se formular em psicologia como ‘significativos’. Em outros termos, a

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experiência do sentido conduz a um sentimento de ‘ajustamento’ psíquico ou de intencionalidade. Mesmo a expressão ‘estar no local que convém’ é muito pouco definida e necessita de ser explicitada por um exemplo empírico. (Adler: 1980, p. 149)

A compreensão, como reflexão, não se daria de maneira representativa e

sim como resultado de reconhecimento, “reflexão sobre” a experiência e

“retenção” dela — seria entendida como a função sensação, o reconhecimento e

a experiência que se vivem sem julgamentos ou predeterminações, de tal forma

que possibilitem ao indivíduo integrá-la com o que aprendeu e senti-la como

relevante, apreendendo-a e gerando um sentido para sua vida, transformando-se,

a cada ato de compreensão, em um novo ser. Compreender algo seria, desta

forma, tornar-se neste algo que se compreende, não por sua interiorização ou

como conseqüência de seus efeitos, porém um ato de transformação da própria

natureza do “intérprete” e de seu modo de ser no mundo.

A reflexão não deve ser entendida simplesmente como um ato de pensamento, mas sim como uma atitude (...) Como o próprio mundo testifica (‘reflexão’ significa literalmente ‘voltar-se para traz’), reflexão é um ato espiritual que vai em sentido contrário ao processo natural; um ato no qual nós paramos, chamamos alguma coisa à mente, como uma imagem, e estabelecemos uma relação que nos situa com o que vimos. (Jung: 1942, p. 48)

Por último, enumera-se a quinta “qualidade”. Como de imediato

apresentada por Fernando Pessoa, é considerada a “menos definível”, ou seja, a

mais obscura.

(...) Direi talvez, falando a alguns que é a graça, falando a outros que é a

mão do Superior Incógnito, falando a terceiros que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.

Esta qualidade ou função é a que se apresenta como a mais difícil de ser

descrita ou apreendida, devido à sua abstração e, se nos ativermos ao texto, tal

como a “graça”, ela se manifesta como um acontecimento singular e arrebatador.

Poderíamos dizer da “graça”, que,

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213 Se não esperarmos o inesperado, não o encontraremos, porquanto ele é o inescrutável e difícil de abranger. (Heráclito de Éfeso apud Kirk et Raven: 1979, p. 196)

Jung, em Psicologia e Alquimia (1945), disserta sobre as funções

psicológicas e, após descrever as quatro conhecidas e apresentadas em Tipos

Psicológicos (1921), fala de uma quinta função, que seria a mais misteriosa de

todas — simbolizada pela “descida do espírito santo”. Tal função se manifestaria

ou seria alcançada após a conscientização e a integração das outras quatro, que,

como uma quinta função, encontraria sua melhor forma de descrição na imagem

apresentada acima.

O simbolismo do Espírito Santo é apresentado por Jung em algumas

passagens de sua obra, mas principalmente em Psicologia da Religião Ocidental

e Oriental. Nestes textos, refere-se a tal símbolo como uma imagem do Selbst63,

princípio de totalidade integradora da personalidade e conceito diretamente ligado

ao processo de individuação, apresentado como uma palavra utilizada “(...) para

designar um processo através do qual um ser torna-se um ‘individuum’

psicológico, isto é, uma unidade autônoma e indivisível, uma totalidade”. (Jung:

1945, p. 232) Conforme vemos no autor, através deste símbolo o inconsciente se

expressa de maneira altamente contraditória, o que é “indício [de] que não se

trata de uma situação clara, tal como nos ensina a experiência”. (ibidem: 1980, p.

186) Desta forma, identifica-se, da parte do inconsciente, um empenho em

exprimir um estado de coisas para o qual não existem categorias conscientes

claras, conceitos que possam defini-las através do pensamento. No caso do

“Espírito Santo”, trata-se de um conteúdo “metafísico”, porém, como se vê na

linguagem simbólica, qualquer conteúdo ou experiência que transcenda a

percepção e o entendimento literal da realidade dará origem a uma “simbólica

paradoxal”, sendo, assim, portadora de antinomias e conflitos em sua

manifestação. Esta linguagem e a experiência assim expressa adquirem um

caráter transcendental, pois remetem a consciência à dimensão da experiência

63 Jung descreve o Selbst como o “núcleo mais interior da psique” e suas imagens são sempre carregadas de um grande potencial energético, causando, no caso dos sonhos, uma impressão duradoura de maravilhamento. O Selbst representa o “centro” da psique tanto quanto sua totalidade, um centro da personalidade, constituído durante o labor do confronto entre o consciente e o inconsciente, que não coincide com o ego, representando a não fragmentação do indivíduo.

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imediata do inconsciente objetivo, que somente pode ser entendido através dos

símbolos.

Jung, ao longo de sua obra, fala ora de processo de individuação, ora de

personalidade, sem distinguir de forma clara o âmbito destes conceitos; poder-se-

ia considerá-los homólogos, assim como metáforas do novo indivíduo que é

formado a partir deste processo e que ele tenta descrever. Ambos os conceitos se

misturam ao longo da obra; às vezes, é usado “processo de individuação” como a

via para alcançar a “personalidade” — a totalidade que se dá pela integração

entre consciente e inconsciente. Outras vezes, é usado o termo personalidade

para fazer uma descrição da dinâmica da subjetividade — a estrutura tipológica.

Tal como muitos outros termos, estes também possuem uma ambigüidade que,

deve-se lembrar, faz parte da natureza dos símbolos.

A psicologia culmina necessariamente no processo de desenvolvimento que é peculiar à psique e consiste na integração dos conteúdos capazes de se tornarem conscientes. Isto significa que o ser humano psíquico se torna um todo e este fato traz conseqüências notáveis para a consciência do eu, que são extremamente difíceis de descrever. Duvido da possibilidade de expor adequadamente as mudanças que se verificam no sujeito sob o impulso do processo de individuação (...). (Jung: 1946, p. 160)

A personalidade é descrita como a integração dos “conteúdos

inconscientes”, um “todo”, criado pela aproximação, e “síntese” entre consciente e

inconsciente, assim como pela integração das funções de conhecimento. O

inconsciente, para Jung, não é apenas determinado pela história do sujeito, o

“inconsciente pessoal”, mas inclui o “inconsciente coletivo”, sem o qual não há o

surgimento da personalidade, e que é a verdadeira realidade psíquica, a “psique

objetiva” (Jung: 1946), que constitui a personalidade64.

64 “(...) ao lado disto, devemos incluir tudo que é mais ou menos intencionalmente reprimido, pensamentos dolorosos e sentimentos. Eu chamo a soma destes conteúdos de ‘inconsciente pessoal’. Mas, acima e abaixo disto, nós também encontramos no inconsciente qualidades que não são adquiridas individualmente, mas são herdadas, isto é, instintos, como impulsos, para levar adiante ações necessárias, sem motivação consciente. Neste ‘profundo’ estrato nós também encontramos (...) arquétipos (...) Os instintos e os arquétipos formam juntos o ‘inconsciente coletivo’. Eu chamo isto de ‘coletivo’ porque, de forma oposta ao inconsciente pessoal, isto não é produzido a partir de conteúdos individuais, mas a partir daqueles que são universais e de ocorrência regular. (...) O primeiro grupo compreende conteúdos que são componentes integrais da personalidade individual e, por conseguinte, poderiam se tornar conscientes; o segundo grupo forma, como se fosse um onipresente, imutável, e universalmente idêntica qualidade ou substrato da psique ‘per si’.” (Jung: 1940, p. 173)

[MD1] Comentário:

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O Espírito Santo seria um símbolo limítrofe, que conduziria para a

natureza transcendente da constituição humana, pois congrega em si o vigor do

paradoxo e das antinomias próprios ao inconsciente. Ao mesmo tempo,

experiência limítrofe, pois incapaz de ser interpretada ou traduzida de maneira

que não seja apenas através da linguagem simbólica; neste ponto, pensamento,

explicação e conceitos desmoronam impotentes para apreender o que seja.

Somente a reconstituição de tal experiência poderá proporcionar uma real

compreensão de sua natureza, mas, como Graça, esta experiência é de tal

natureza que está fora de qualquer previsibilidade, assim como de qualquer

casualidade.

O Selbst, como foi exposto acima, é o núcleo da personalidade, “centro e

totalidade” da personalidade, entendida como uma unidade múltipla. Desta forma,

com a integração deste todo em uma unidade, haveria uma síntese das funções

que possibilitam a emergência do Santo Espírito. Este estado seria mais bem

entendido como uma apreensão da realidade e do símbolo, onde não haveria

mais fragmentação da experiência, ou seja, seria o conhecimento do símbolo

como experiência imediata e unificadora dos opostos, um processo que

transcenda qualquer dicotomia entre “intérprete” e símbolo, homem e mundo,

externo e interno ou subjetivo e objetivo. Estado de graça, onde os opostos são

superados e o conflito é vivido como força criativa, união incomunicável entre

homem e mundo, ou melhor, volta à “experiência antepredicativa”, onde homem e

mundo formam uma unidade tensa, porém harmônica.

O “processo de individuação” é o caminho para a realização da

“personalidade”, que conduziria a uma transformação da consciência e à criação

de uma nova identidade, que se daria através de um diálogo estabelecido entre o

“eu” e o inconsciente pela “função transcendente” (Jung: 1916).

Esta qualidade, entendida como uma “conversação com o Santo Anjo”,

conduz, assim, ao princípio de totalidade, que se encontra presente como

fundamento de qualquer possibilidade de ser do homem e do mundo. Desfaz as

soluções de continuidade e a fragmentação do saber; aponta, também, que

conhecer ou “interpretar” a realidade e os símbolos está intimamente ligado ao

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processo existencial humano e à sua transformação, tal como descrita por Jung.

Isto eleva o conhecimento, ou melhor, funda-o, com um estatuto ontológico,

indicando como toda e qualquer epistemologia está enraizada em uma ontologia,

ou como conhecer é um modo de ser.

Para Jung (1980, p. 186), todas as vezes que o inconsciente se expressa

de maneira tão contraditória, como no caso presente, é indício de que não se trata

de uma situação clara, tal como nos ensina a experiência. O inconsciente se

empenha, por assim dizer, em exprimir um estado de coisas para o qual não

existe uma categoria nocional no plano da consciência. Não se trata

absolutamente de conteúdos “metafísicos”, como no caso do Espírito Santo; pelo

contrário, qualquer conteúdo que transcenda a consciência, e para o qual não

haja qualquer possibilidade de apercepção, pode dar origem a uma simbólica

paradoxal ou antinômica desta espécie. Numa consciência ingênua e primitiva,

que só entende em termos de preto e branco, o próprio aspecto duplo e inevitável

daquilo que tem por título “o homem e sua sombra” pode adquirir um caráter

transcendental e, conseqüentemente, produzir uma simbólica paradoxal. Por isto,

creio que dificilmente erraríamos, se admitíssemos que são justamente as

antinomias impressionantes da simbólica do Espírito que provam existir uma

complexio oppositorum no Espírito Santo. Entretanto, não há uma categoria

nocional consciente que exprima tal fato, pois esta união só pode ser concebida

pura e simplesmente como uma “coincidência”, que implicaria a supressão, isto é,

a destruição de ambas as partes.

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A função transcendente, números transcendentes,

números imaginários e números transfinitos.

“... em certos momentos da História, alguns

matemáticos, confrontados com um problema que não conseguem resolver, se vêem forçados a consumar atos ilícitos. Fazem-no no segredo de seus gabinetes. Se querem ir mais longe, sabem que precisam sair do universo em que trabalhavam até então. Como Alice, atravessam o espelho. Lá, a salvo das leis que vigem no mundo que deixaram, consumam atos escusos, mas eficazes, que lhes permitem escapar do beco sem saída em que se achavam. Depois, atravessando de volta o espelho, fortalecidos por sua audácia e enriquecidos pelo novo conhecimento, vão, eles ou seus sucessores, aumentar o universo matemático a fim de poder receber esses novos seres gerados do outro lado do espelho”. (Guedj: 1999, p.296)

Como vimos anteriormente, Jung refere-se à “função transcendente”

como sendo algo que não contém nada a ser considerado misterioso ou

metafísico, com isto poderíamos entender que ele pretende dizer que, sobre o

tema do qual tratará, não está se referindo a algum conceito ou idéia que

extrapole a possibilidade do entendimento pelo pensamento ou que seja

confundido com alguma proposta religiosa. Desta forma compara esta idéia com

o conceito de função transcendente matemática, ou seja, uma função não

algébrica, isto é, aquela que não possui como raiz números racionais, inteiros ou

negativos.

De fato como pode-se entender, como fica explícito ao longo da tese, que

com a idéia de “função transcendente” Jung pretende romper com qualquer modo

de dicotomia ou cisão, proporcionando uma orientação para a experiência onde

objetivo – subjetivo, externo – interno, explicação – compreensão, assim como

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qualquer outra forma de dicotomia se encontre desfeita. Conseqüente é supor

que, dentro de uma cosmovisão junguiana, falar em compreensão excluindo a

explicação ou referir-se a subjetividade sem contemplar a objetividade, seria

participar, melhor dizer, permanecer numa dicotomia que não seria condizente

com a cosmovisão junguiana, perpetuando, por conseguinte, o que se chama

pensamento metafísico, isto é, modelo de concepção de homem e mundo

baseado na dicotomia sujeito – objeto.

Em função disso, vemos que Jung refere-se à função transcentede como

constituída de números reais e imaginários, duas ordens possíveis de realidade,

que a principio poderiam ser antagônicas mas que através da função formam uma

complementaridade. Vale lembrar que a característica fundamental da função

transcendente é possuir como raiz números transcendentes, sendo o mais

famoso dentre todos, π. A função transcendente, como se verá através do diálogo

com a matemática, aponta para uma constituição de homem e mundo que tem

como raiz o infinito, possível de ser representado porém não circunscrito pela

mente humana em sua totalidade.

I.

A função a que se refere Jung, transcendente, seria composta de dois

fatores “conteúdos conscientes e inconsciente” .

“There is something peculiar, one might even say mysterious, about numbers .... [If] a group of objects is deprived of every single one of its properties or characteristics, there still remains, at the end, its number, which seems to indicate that number is something irreducible,.... [something which] helps more than anything else to bring order into the chaos of appearances. .... It may well be the most primitive element of order in the human mind. ... We [can] define number psychologically as na archetype of order which has become conscious.” (Jung: 1952, p.40)

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Segundo Robertson (Junguian Archetypes Jung, Gödel, and the History of

Archetypes. York Beach: Nicolas-Hays, 1995), Jung reflete sobre os números,

expressos basicamente como os números inteiros, como sendo os mais primitivos

arquétipos de ordem. Isto é melhor compreendido quando Jung se refere aos

arquétipos em sua natureza psicóide. Sua teoria psicológica, poderia ser

entendida, como uma tentativa de lidar com os problemas apresentados pelo fato

que o que chamamos “mundo exterior” (Robertson, op. cit., p. 280) se encontra

também em nós, enquanto que, da mesma forma, nosso psiquismo e nós

mesmos estamos contidos no “mundo exterior”. Sua pesquisa explora esta

dimensão interna da realidade , especialmente através da imagens, fantasias,

sonhos, mitos e qualquer outra expressão do inconsciente numa perspectiva

claramente hermenêutica. Em todos os níveis do psiquismo ele vê e entende o

mesmo como possuindo ordem e sentido, a mandala seria o símbolo por

excelência da organização e do sentido do psiquismo. Nos níveis mais básicos,

aquém ou além das imagens arquetípicas irá localizar a estrutura mais elementar

da realidade, a qual seria dada através de dois símbolos, na noção de psicóide e

de número, assim, o número possuiria uma qualidade que o torna solidário da

natureza psicóide dos arquétipos ou do psiquismo. Ou seja, os números remetem

para um aspecto quantitativo ao mesmo tempo para uma dimensão qualitativa da

realidade, sincrônicamente. Isto pelos números formarem os símbolos mais

“básicos” ou radicais da organização e da natureza dos fenômenos, seja

psíquicos, interna, ou do real, externa. Distinção esta que seria dada conforme o

modo de interpretação do “observador”, isto é, distinção que não existe em última

instância, pois em suas bases estes dois modos de entendimento formam uma

unidade, “unus mundus.”

“Since the natural numbers were each true symbols of order, the implication

was that the development of order within the psyche. Even more than that, Jung felt that number might be the primary archetype of order of the unus mundus itself; i.e., the most basic building blocks of either psyche or matter are the integers....” (Robertson: 1995, p. 269)65

65 "Desde que os números naturais são cada um verdadeiros símbolos da ordem, a implicação era a de um desenvolvimento de ordem na psique. Além disso, Jung sentiu que o número poderia ser o arquétipo primário de ordem do próprio unus mundus; isto é, os blocos mais básicos de construção tanto da psique quanto da matéria são os inteiros..." (Robertson: 1995, p. 269) Tradução minha.

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Ao explorar na direção contrária, ao ir em direção a realidade objetiva ou

externa, a matemática desempenha uma função fundamental para qualquer

ciência. Desde que todas as ciências dependem de quantificação e têm na

matemática seu modelo estruturante, quanto o modo de organização dos

fenômenos e de análise dos mesmos. As ciências tornam-se, assim, cada vez

mais abstratas, distanciando-se dos dados intuitivos, empíricos, em sua proposta

racionalista, isto é, na tentativa de criar modelos explicativos que dêem conta de

uma realidade que não se encontra perceptível a olho nu. Este empreendimento

requer cada vez mais instrumentos matemáticos, mais sutis e desde que o

método científico é passível de ser utilizado para a análise e investigação de

qualquer fenômeno pode-se dizer que sem matemática não há ciência.

A matemática, porém, assim como qualquer ciência dentro da perspectiva

oriunda do modelo da psicologia junguiana, será vista como indicando, ou melhor,

como um horizonte no qual a dimensão mais originária do psiquismo possa se

apresentar e, assim, tornando possível a apreensão desta realidade pelo cientista.

Como vimos as ciências, filosofias, arte, religião e a própria psicologia junguiana

vigoram a partir do mesmo solo comum, o qual Jung nomeia por inconsciente

coletivo. Desta forma tematizar a matemática como possibilidade de estabelecer

um diálogo com a psicologia, através da teoria dos números, torna-se um

caminho para a compreensão das intuições originárias que se encontram

presentes tanto em Jung quanto nos próprios matemáticos, através daquilo que

será considerado por ele como os símbolos mais originários da natureza psicóide

da realidade. Com isto não queremos afirmar que matemática e psicologia sejam

a mesma coisa, nem queremos utilizar a matemática como modelo de ciência

para dar forma a psicologia em sua tarefa, o que já foi feito durante muito tempo

ao se querer fundamentar a psicologia como ciência da mesma forma que as

ciências da natureza, ao se buscar uma validação de cientificidade da mesma.

Esta proposta se encontra presente ao tentar matematizar a própria psicologia,

fazendo assim uma sobreposição, talvez legítima para alguns que vêm no

pensamento científico e técnico o único modelo do pensar. Poderíamos dizer que

além da dicotomias clássica, a contraposição de ciências da natureza e ciências

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humanas, o que pretendemos é indicar como compreensão e explicação se

encontram como dois pólos opostos porém não antagônicos, isto é, o

entendimento da natureza com base na explicação é, em sua matematização,

pólo complementar da compreensão — compreensão e explicação seriam

isomorfos não triviais. Ou seja, matemática e psicologia se complementam ao se

debruçarem sobre os números entendidos como símbolos como dois modos de

compreensão do mesmo, um objetivo e o outro subjetivo, tal como advogado por

Jung. Dois modos de entendimentos possíveis, cada qual com seu modo de

constituição próprios, porém tendo como fundamento o “mesmo”, o arquétipo.

Este modo de entendimento quantitativo seria uma “apropriação” do símbolo, sua

literalização que somente possui seu modo de ser legitimado por se encontrar

fundado em áreas diferentes que demandam modos de investigação

diversificados, este talvez seja o sentido da afirmação anterior de Jung, ao dizer

que as ciências assim como a psicologia, arte e religião assentam e se originam a

partir do inconsciente coletivo. Para a compreensão do que seja o inconsciente

coletivo, talvez, seja necessário a sua investigação através de todos esses

saberes nomeados por Jung.

Conforme podemos constatar o simples fato do caráter indireto das

determinações do real científico nos colocará num reino epistemologicamente

novo, isto decorrente da nova física que surge a partir do séc. XX e com qual

Jung dialogará. Segundo Bachelard (A Epistemologia, Lisboa: Edições 70, s/d),

as condições de previsão científica, “na química positivista”, não fazem senão

ressaltar a necessidade de uma precisão empírica, baseada na observação e na

medida sensível. Ele chama a isto de “pensamento da medida”, precisão torna-se,

assim, uma idealização do uso da balança. Isto implica na busca de uma

identidade, uma unidade imutável, seja de massa ou equilíbrio, na permanência

do dado empírico e na supressão da imaginação. Não é mais a coisa que poderá

instaurar o que seja a certeza ou fundar a ciência rigorosa, mas ela torna-se um

“pretexto para o pensamento, não um mundo a explorar” (Bachelard, op. cit.,

p.15).

Com a desconstrução da crença nos “elementos” e o surgimento de uma

nova racionalidade, trazida pela física quântica, de partículas e ondulatória, a

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matemática torna-se a narrativa mais apropriada para a descrição dos processos.

O que marcará a primazia da reflexão sobre a percepção, “da preparação

numenal dos fenômenos tecnicamente constituídos” (ibidem, p. 18). Pois, as

trajetórias que permitem isolar os isótopos, por exemplo, não existem na

natureza; sendo preciso produzi-las mentalmente, como processos. Caberá a

matemática ser a narradora destes processos, ou seja, a física deixa de ser a

descrição empírica da natureza e torna-se uma criação, através da linguagem

matemática, dos processos e dos fundamentos dos fenômenos da natureza, os

quais não se encontram mais presentes diante dos olhos. A matemática

corresponderia, assim, a uma dinâmologia (ibidem, p. 23) imaginária, ou seja, a

descrição imaginária dos processos fundamentais da realidade, onde seria

possível, desde então, percebermos sua indicação de uma proposta ontológica.

Como narrativa e construção imaginária, a matemática, estaria se manifestando

como uma nova racionalidade que encontra seu vigor na correspondência àquilo

que está além do puramente sensível ou empírico, alcançando, assim, as

fronteiras entre a ontologia e a epistemologia.

Desta forma o pretenso objetivismo da ciência se encontra, também,

colocado em suspenso, pois conforme vimos anteriormente, fazer ciência torna-se

uma tarefa da imaginação que se manifesta numa racionalidade narrativa. Ao

tratar da natureza o homem finda por se encontrar, não porque ele pertença

simplesmente a esta, mas pelo fato que em última instância homem e natureza

formam uma unidade inseparável.

“A ciência da microfísica, devido à ‘complementaridade’ básica das situações, enfrenta a impossibilidade de eliminar os efeitos da intervenção do observador por meio de neutralizantes determinados e deve portanto, abandonar em princípio qualquer compreensão objetiva dos fenômenos físicos. Onde a física clássica ainda vê o determinismo das leis causais da natureza nós agora só buscamos leis estatísticas de probabilidades imediatas.” (Pauli apud von Franz, p. 308)

Para von Franz (A Ciência e o Inconsciente in O Homem e seus símbolos

(1964), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 104 à 110) isto significa dizer que

na epistemologia da física moderna o observador interfere na experiência de um

modo que não pode ser exatamente medido e que, portanto, não se pode também

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excluí-lo.

“Nenhuma lei natural deve ser formulada dizendo-se “tal coisa acontecerá em tal circunstância”. Tudo o que o microfísico pode afirmar é que “de acordo com as probabilidades estatísticas, tal fenômeno deve acontecer”. Isto, naturalmente, representa um problema considerável para o nosso pensamento clássico a respeito da física. Exige que, na experiência científica, se leve em conta a perspectiva mental do observador-participante. Verifica-se, então, que os cientistas já não podem pretender descrever quaisquer aspectos dos objetos exteriores de modo totalmente “objetivo”.” (von Franz: 1964, p.308)

Os números serão entendidos como símbolos por Jung, desta forma sua

“estranheza” relaciona-se com o fato de nos permitirem a abertura de um

horizonte de compreensão do humano e da natureza onde ambos se encontram

intimamente implicados, como uma unidade indissociável. Torna-se, então,

justificável um diálogo com a matemática no que toca seus fundamentos

ontológicos, através de suas intuições, por uma tentativa hermenêutica de

compreensão do horizonte para o qual aponta, sem que com isto reduza-se esta à

psicologia ou a psicologia transforme-se em matematização do “psíquico”.

“A opacidade de um símbolo relaciona-se com a radicação dos símbolos em

áreas da nossa experiência que estão abertas a diferentes métodos de investigação..... teríamos nós símbolos religiosos se o homem não se tivesse entregado a formas muito complexas e, no entanto, muito específicas de comportamento destinadas a invocar, implorar ou repelir as forças da existência humana, transcendendo-a e dominando-a? (Ricoeur: 1976, p. 69)

Os números, entendidos, simbolicamente, isto é em seu aspecto

qualitativo, assimila, mais do que apreende uma semelhança, pois as relações

entre seus diversos sentidos não se encontram “meticulosamente” articulados a

nível lógico. Ao mesmo tempo que permitem assemelhar alguma coisa com

outras através da imaginação criativa, nos conduzem a assemelharmo-nos com

aquilo que é significado, ou seja, ao pensarmos simbolicamente os números,

aquilo que é da ordem da natureza quantitativa se desfaz possibilitando que

emerja a tensão de sentido que se encontra em sua origem, com isto somos

conduzidos ao que poderíamos nomear como uma atitude simbólica. Conforme

diz Ricoeur (Teoria da Interpretação. Lisboa: Edições 70, s/d 1ª ed. 1976 inglês) ,

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concedemos prontamente que um símbolo não pode ser exaustivamente tratado

pela linguagem conceitual, que há mais num símbolo do que em qualquer dos

seus equivalentes conceituais, a literalização não se oporá ao sentido simbólico, a

não ser que se oponha as duas dentro de um modelo de pensamento

dicotomizado. Não é necessário negar o conceito para admitir que os símbolos

suscitam uma exegese infindável. Se nenhum conceito pode esgotar a exigência

de ulterior pensamento produzido pelos símbolos, esta idéia significa apenas que

nenhuma categorização dada pode abarcar todas as possibilidades semânticas

de um símbolos. Mas só o trabalho do conceito é que pode testemunhar este

excesso de sentido. P. 69 Assim, explicação e interpretação reúnem-se como dois

modos possíveis de investigação e experiência da realidade, que em última

instância não se deixa colonizar pelo pensamento representacional, pela

literalização da realidade.

"O papel que o número desempenha na mitologia e no inconsciente dá o que pensar. Ele é tanto um aspecto do fisicamente real, como do psiquicamente imaginário. Ele não só conta e mede; e não só é quantitativo, mas também faz afirmações qualitativas. Por isso é, por enquanto, algo intermediário, misterioso, entre o mito e a realidade; por um lado descoberto, e por outro, inventado. Por exemplo, as equações que foram inventadas como puras fantasias matemáticas revelaram-se, mais tarde, como formulações do comportamento quantitativo das coisas físicas. E, ao contrário, devido às suas características individuais, os números são portadores e mediadores de processos psíquicos no inconsciente. Assim, por exemplo, a estrutura da mandala é, em princípio, um assunto aritmético. Sim, podemos dizer, como o matemático Jacobi: “Na multidão dos seres olímpicos, reino o número eterno.” (Jung: 1958, p. 380)

Como se verá a área que Jung considerava mais fértil para futuras

pesquisas seria o estudo dos “axiomas básicos da matemática”. O que Pauli

chama de “intuições matemáticas primordiais”, dentro das quais especifica as

noções de série infinita, os números transfinitos se encontra neste campo, e,

consequentemente, o continuum.

Como disse Hannah Arendt,

“na sua modernização, a matemática não expande só o seu conteúdo ou alcança o infinito aplicando-se à imensidade de um universo de crescimento e de expansão ilimitados, mas cessa completamente de se preocupar com as aparências. Ela já não é o princípio primeiro da filosofia ou a “ciência” do Ser na sua verdadeira aparência, mas torna-se a ciência da mente humana.” (Arendt apud von Franz , p. 309)

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Para von Franz (1964, p.310), das muitas intuições matemáticas

primordiais, ou idéias a priori, as que seriam mais interessantes do ponto de vista

psicológico são as de “números naturais”. Pois, estes, não apenas são úteis para

nossas operações diárias, como contar e medir, mas foram, ao longo de séculos,

“...a única maneira existente de “ler” o significado das antigas formas de

adivinhação....” Conforme a autora, os números naturais – examinados de um

ponto de vista psicológico – seriam provavelmente “representações arquetípicas”,

pois somos forçados a pensar a seu respeito de maneira definida. Assim conclui a

autora,

“Ninguém, por exemplo, pode negar que 2 é o único primeiro número par já

existente, mesmo que nunca tenha pensado a este respeito de modo consciente. Em outras palavras, números não são conceitos conscientes inventados pelo homem com o propósito de calcular: são produtos espontâneos e autônomos do inconsciente, como o são outros símbolos arquetípicos.”(von Franz: 1964, p.310)

Os números naturais serão considerados, também, qualidades

pertencentes aos objetos exteriores, servindo para enumerar os objetos ou

elementos. Mesmo quando se despoja os objetos de todos seus atributos como

cor, temperatura, tamanho, etc. ainda resta a sua “quantidade” ou “multiplicidade

especial”, o fato de existirem apenas implica a possibilidade de sua enumeração.

Entretanto, estes mesmos números também fazem parte indiscutível da nossa

própria organização psíquica, isto é, são conceitos abstratos que podemos

estudar sem nos referirmos a objetos exteriores, idéias que nos inspiram a

pensar. Os números parecem ser, portanto, uma conexão tangível entre as

esferas da matéria e as da psique. Assim, de acordo com certas sugestões feitas

por Jung, afirma von Franz, “...havemos de encontrar neles um campo promissor

para pesquisas futuras” (idem).

Em Número e Tempo (1998) von Franz diz que , para Jung, os números

aparecem como indicando uma relação “exata” entre o psiquismo e a realidade,

ou o consciente e o inconsciente. O número forma não apenas um aspecto

essencial de toda manifestação material mas é também “um produto de nossa

mente”, significando o aspecto dinâmico de nosso psiquismo. Para a autora, os

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números, aparecem nos nossos processos mentais como uma base estrutural

puramente arquetípica. Quando observados “abstratamente”, em si mesmos, um

número inteiro, apresenta características que expressam um impulso acausal a

priori, se manifestam assim como virtualidades e potências, isto é, como vir a ser.

Os números possuem, assim, características que os particularizam como

entidades específicas, ou seja, lhes conferem especificidade e uma certa

organização qualitativa irredutível ao seu entendimento apenas como

“instrumento” de contagem ou seriação, redutível ao objetivo. Por exemplo,

"..., it is immediately evident to us that six is the first of numeral of the series to represent the sum of its divisors, (one, two or three). This quality determines, so to speak, the “form” or “structure” of the number six. Such characteristics are inherent to a number, independent of the objects it enumerates. They appear to be absolutely self-evident to us, which means that number’s own nature forces such declarations upon us. " (von Franz: 1988, p. 37)

“Matéria e “espírito”, em Jung, aparecem a nível psíquico como qualidades

distintas de conteúdos conscientes, porém a natureza última de ambos é

“transcendental”, desde que a psique e seus “conteúdos” são a única realidade

que apresentam-se para nós.

" Com estas sugestões, mostro ao leitor que o confronto entre o mundo dos homens e o mundo superior não é nenhuma incomensurabilidade absoluta, mas, no máximo, uma incomensurabilidade relativa, pois a ponte entre este e o além não é totalmente inexistente. Entre eles está, como grande mediador, o número, cuja realidade vale tanto aqui como lá, como arquétipo do seu próprio ser. O desvio para especulações teosóficas não contribui em nada para a compreensão da fragmentação da imagem do mundo, sugerida em nossos exemplos, uma vez que, neste caso, tratar-se-ia só de nomes e palavras, que não nos mostrariam o caminho para o “unus mundus” (para um mundo só). Mas, o número pertence a dois mundos, ao real e ao imaginário; é visível e invisível; quantitativo e qualitativo."(Jung: 1958, p. 381)

Os números mostram-se, portanto, como os mediadores, imagens

arquetípicas, mais originários por se constituírem como a imagens mais

elementares da dimensão psicóide da realidade, ponte entre o externo e o interno,

entre o psíquico e a realidade transcendente à subjetividade. Como natureza dos

números Jung diz, então, que eles pertencem a uma esfera que ultrapassa a

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114

dicotomia entre real e imaginário, ou seja, ele é símbolo. Traz em sua constituição

o paradoxo da reunião dos opostos em uma unidade tensa e a multiplicidade de

modos de ser reunidos em algo que escapa a uma delimitação pela consciência.

Como símbolos os números têm a sua constituição fundada nesta dimensão,

anteriormente citada, psicóide e como tal qualquer número seria transcendente

por princípio, remete-nos para algo que vai além do literal e do aparente.

Os números parecem representar tanto uma atitude material quanto o

fundamento de nossos processos mentais. Por esta razão, os números formam,

de acordo com Jung, aquele elemento particular que unifica os reinos da matéria

e da psique. Isto é “real” em um duplo sentido, como uma imagem arquetípica e

como a manifestação qualitativa no reino da experiência externa. Os números,

assim, lançam uma ponte entre o espaço que existe, o que é passível de

conhecimento fisicamente, e o imaginário. Desta maneira eles operam como um

ponto intermediária, “ainda desconhecido” , entre o mito (o psíquico) e a realidade

(o físico), ao mesmo tempo entre o quantitativo e o qualitativo, representacional e

irrepresentacional. (von Franz: 1998, p.52)

Em um determinado nível de realidade os números se apresentam na

oposição entre qualitativo e quantitativo, desfazendo esta dicotomia, esta

oposição seria produto do desenvolvimento da consciência ocidental, um modo de

compreensão possível porém não o único. A aritmética ocidental lida com os

números principalmente em termos de quantidade ou ordem. Eventualmente a

idéia de ocidental de ordem matemática. Jung ( apud von Franz: 1998, p. 45) ,

entretanto, diz que o número é o mais apropriado instrumento que nossa mente

pode utilizar para compreender a ordem. **

“.... the infinite series of natural numbers corresponds to the infinite (i.e., very

large) number of individual creatures. That series likewise consists of individuals, and the properties of even the first tem members represesnt – if they represent anything at all – an abstract cosmogony derived form monad.

One, as the first numeral, is unity. But it is also “The unity,” the One, All-oneness, individuality and non-duality – not a numeral but a philosophical concept, na archetype and attirbute of God, the monad. It is quite proper that the human intellect is determined and limited by its conception of oneness and its implication. .... Theoretically, the same logical operation could be performed for each of the following conceptions of number, but in pratice the process soon comes to an end because of

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115

the increase in complications, which become too numerous to handle....” (Jung apud von Franz: 1998, p.38)66

Os números são, assim, imagens arquetípicas, símbolos, que indicariam

uma “ordem” originária do psiquismo. Por esta ordem podemos entender a

existência de uma intencionalidade ou direção no psiquismo que seria manifesta

na realidade sensível, de forma consciente como as séries numéricas, um

exemplo seria a série de Fibonacci67. Os números como manifestação desta

intencionalidade seriam um modo de compreensão que podemos designar de

ante-predicativo, ou seja, um modo de organização de sentido anterior a qualquer

determinação ou interpretação da consciência. Com isto quer-se dizer que este

modo de intencionalidade, diretividade, não é um modo absoluto determinado por

uma causa e fins, ou uma direção a qual o fim torna-se passível de ser localizado,

mas sim um princípio de organização que aponta para a necessidade originária

de sentido que funda qualquer experiência humana e essencial para a

compreensão da psicologia junguiana.

Como indicadores desta ordem interna da realidade ou da

intencionalidade psíquica, podemos dizer que os números como símbolos da

ordem nos encaminham para o processo de atualização do Selbst, o arquétipo

organizador de ordem e da totalidade. Esta ordem seria manifesta na noção de

continuum, ou seja, num principio de processo que não se esgota e em uma

organização fundamental dos elementos, tanto físicos quanto psíquicos – desta

forma, o Selbst seria o aspecto psíquico da ordem implicada pelo continuum

numérico. Os números, estes símbolos fundamentais do psiquismo, organizam o

mundo, tanto interno quanto externo, portam sentido e delimitação, números e

66 : “.... A série infinita dos números naturais correspondem ao número infinito de criaturas. Estas séries, da mesma forma, consistem de indivíduos, e as propriedades dos mesmos dos primeiros dez membros representam – se eles representam alguma coisa – uma cosmogonia abstrata derivada da mônada. O um, como o primeiro numeral, é a unidade. Mas é também “A unidade” , o uno, a unidade plena, a individualidade e não dualidade – não um numeral mas um conceito filosófico, um arquétipo ou atributo de Deus, a mônada. È bastante próprio que o intelecto humano seja determinado e limitado por essas concepções de unidade e suas implicações. Teoricamente, a mesma operação lógica poderia ser realizada para cada uma das concepções seguintes dos números, mas em prática o processo logo chega a um fim por causa do aumento de suas complicações, as quais tornam-se bastante numerosas para se lidar.” (Tradução minha) 67 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, .... (uma ótima explicação da série de Fibonacci e suas propriedades se encontra em Enzensberger, H. M. O diabo dos números, São Paulo: Companhia das Letras: 1988)

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116

Selbst possuem, assim, uma solidariedade fundamental, ambos indicam um

processo de organização e de totalidade.

"Assim, também, é um ato de especial importância que o número caracterize a natureza “pessoal” da figura intermediante, a do mediador. Observando do ponto de vista psicológico e considerando as limitações da teoria do conhecimento, que são impostas a todas as ciências, chamei o símbolo de mediador, ou “símbolo unificante”, que, em termos psicológicos, resulta, forçosamente, de uma tensão antagônica suficientemente grande, pelo termo de “si-mesmo”...." (Jung: 1958, p. 381)

II. A noção de função pode ser entendida de diversos modos (cf. Delatre, P.

Funçao in Método - Teoria e Modelo. Porto: Imprensa Nacional - Casa da Moeda,

1992, p. 288-304. Enciclópedia Einaudi vol. 21), dependendo da área à qual se

aplica sua definição. A função de qualquer objeto está ligada ao comportamento

deste objeto num determinado ambiente, ele próprio constituído por diversos

elementos. A noção de função é assim inseparável da de interação e, por

conseqüência, da de sistema. Por outro lado, esta noção encontra-se tanto no

princípio como no fim de qualquer procedimento científico. O conhecimento

começa com a subdivisão dos fenômenos em elementos. Seguidamente,

procede-se à determinação das funções de interação entre os elementos, das

relações de dependência/ independência entre si, procurando sempre uma

redução a interações típicas e extremas (explicação), alcançando assim a

definição dos elementos. Termina aqui o procedimento analítico e indutivo e

começa um outro, dedutivo e sintético. Trata-se agora da precisão do que será o

comportamento destes elementos num sistema não observado

experimentalmente. Isto coloca múltiplos problemas, relativos quer às relações do

sistema estudado com outros que constituem o seu ambiente, quer os níveis de

observação em que se situa na construção das hipóteses ou dos modelos

capazes de permitirem generalizações. Além disso, nas funções finalizadas, o

problema da causalidade complica-se. Nos sistemas abstratos, a presença da

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117

linguagem implica o sujeito, e a função torna-se informação.

Do mundo inanimado ao mundo animado, adverte-se a introdução

progressiva de idéias complementares que dizem respeito essencialmente à

noção de finalidade, ou mesmo intencionalidade, este sentido origina-se pela

introdução de novas especificidades ao termo.

Nas matemáticas, o conceito está associado às situações nas quais uma

grandeza, chamada precisamente “função”, é determinada pelo valor que toma

uma outra grandeza chamada “variável”. Trata-se, pois, de uma relação de

dependência duma grandeza, em relação a uma outra, dependência, aliás,

facilmente transformada em interdependência pela noção de função inversa. Por

generalização, passa-se seguidamente à noção de função de muitas variáveis,

depois à noção de função multívoca, para desembocar na idéia geral de

correspondência, ou de variação concomitante de diversas grandezas. A noção

matemática de grandeza permite assim descrever o papel desempenhado por

esta ou aquela variável, num conjunto de variáveis ligadas entre si duma maneira

que justamente a própria função determina.

Na biologia a noção de função pode ser entendida como, por exemplo, as

propriedades que as moléculas manifestam num dado ambiente, isto é, do papel

que desempenham no conjunto constituído por elas mesmas e pelo que as rodeia

e com o qual estão em interação.

Deslocamento de sentido, nas ciências da natureza animada. Se

considera apenas as propriedades que contribuem para a realização de um dado

objetivo. Quando em biologia se fala da função fisiológica dum órgão, não se

consideram neste senão as propriedades que lhe permitem participar em certos

aspectos, considerados essenciais, do funcionamento do conjunto do sistema do

qual é um constituinte. Do mesm modo, a função dum indivíduo numa sociedade

não tem em conta senão o papel desempenhado com vista à realização de

determinados objetivos. Finalmente, por extensão natural, o homem aplica a

mesma noção aos objetos que constrói; por exemplo, a propósito da função de

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118

uma peça num mecanismo, ou a propósito desta ou daquela parte dum edifício

em arquitetura.

Vê-se imediatamente que o segundo sentido do termo “função”, que se

poderia definir como o sentido finalizado, é na realidade uma especificação do

primeiro sentido, que é mais geral e não faz abstração a priori de nenhuma

propriedade, de nenhum dos papéis principais ou secundários que pode

manifestar um elemento no conjunto do qual faz parte. Em conseqüência,

qualquer análise da noção de função implica em primeiro lugar um exame

detalhado da sua significação mais fundamental, isto é, daquilo que aparece in

statu nascendi nos procedimentos gerais que empreendemos para conhecer o

mundo que nos rodeia .

A noção de função transcendente, segundo definição de Leibniz; é aquela

que não pode ser expresso pela raiz de uma equação algébrica formada por

números finito de termos com coeficiente racionais, ex: π (pi). Esses números não

podem se expressar, então, por um número finito de operações algébricas,

estando diretamente relacionados ao cálculo infinitesimal e aos números

irracionais.

Conforme Caraça (1951), Conceitos fundamentais da matemática, a

função será o "que permite fazer o estudo da realidade fluente"(op.cit. p. 127), ou

seja, da continuidade e não divisibilidade ao contrário do digital e previsível.

A função que surge no século XVII, inclui relação entre termos, ex.: x = f

(y) onde a variável é e não é . Ela seria assim "síntese do ser e do não ser" (ibid.)

apontando para algo que é ao mesmo tempo real e irreal. Qualquer número

poderia substituir uma variável, promovendo a presentificação da função como

algo real porém ela ao se limitar, ou atualizar não perde sua propriedade de

fluidez. Assim, a noção de função

" ... sai fora do quadro de idéias que quer ver a Realidade um permanência e irrompe ligada à corrente de pensamento que, expressa ou tacitamente, vê na fluência a primeira das suas características."(Caraça:1951, p.128)

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119

Se existe uma relação de igualdade, dada pelo sinal “=” , essa relação

não aponta para uma resolução de identidade, o que vigora é a relação entre

termos finitos/infinitos e a atualização de um processo que só se torna

apreensível quando se dá através da substituição de seus termos por algo da

ordem do "real". Porém para que essa atualização possa ser legítima somos

remetidos à função, ao "irreal". Irreal que não se instaura de forma caótica ou

puramente fluida, mas que possuí uma forma vazia enquanto não atualizada,

porém plena de possibilidades. A função x=f(y) possui uma dada forma que é

organizada pela relação entre os termos, sendo diferente de x=f(y+1).

Equações algébricas (GARBI, Gilberto G. O Romance das Equações

Algébricas: A história da álgebra. São Paulo: Makron Books, 1997), devem sem

definidas matematicamente, como sendo aquelas em que a incógnita aparece

apenas submetida às chamadas operações algébricas: soma, subtração,

multiplicação, divisão, potenciação inteira e radiciação.

Exemplos: ax +b = 0 ax² + bx + c = 0 x –2 = 4 + x -3 Estas não são equações algébricas: x³ + 2 x² + 2 = ℮ -x

Quando uma equação algébrica é colocada sob a forma a0 x

n +a1 xn-1 + ...+ na-2 x² + an-1 x + an = 0 (n inteiro e positivo)

diz-se que ela está em sua Forma Canônica e passa-se a chamá-la de Equação

Polinomial. O respectivo polinômio é conhecido também como função racional

inteira da variável x. ***

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120

III.

Foram os matemáticos da Índia que desenvolveram primeiro,

conceitualmente, uma álgebra propriamente abstrata. Converteram suas regras

de cálculo em algorítimos potencialmente aplicáveis a qualquer grandeza,

independentemente das naturezas específicas postas em jogo. Isto é, elaboraram

regras aplicáveis a números abstratos segundo propriedades e métodos em que o

zero, bem como quantidades negativas, foi considerado um número inteiramente

à parte, e não mais visto como simples convenção de uso. Foram assim “os

primeiros a discernir o universal do individual”(Ifrah: 1997, p. 559).

“.... com esse tipo de notação, os valores numéricos, deixando de ser

conotados como símbolos próprios, perdem sua individualidade qualitativa. Tornando-se parcialmente funções de posição recíproca dos números que os constituem, vêem acentuar-se seu caráter relativo; a regularidade cíclica de sua construção fornece uma lei que permite engendrá-los ao infinito, sempre de uma maneira idêntica e sem que se perca o conhecimento exato de suas relações” (L. Massignon et R. Alnadez apud Ifrah: 1997, p. 560)

Essa etapa foi decisiva não somente na história da notação, mas

igualmente na do pensamento simbólico, já que tal notação reflete a passagem do

grau de abstração do gramático ao do lógico puro, no qual a abreviação se torna

um símbolo puro. (Koyré apud Ifrah: 1997, p. 661). Até então, as proposições

matemáticas permaneceram encerradas numa linguagem terminológica pura,

submetida ao acaso das interpretações e bloqueadas num pensamento semi-

concreto. Isto significaria dizer que há nesse momento uma “... passagem do

raciocínio científico para o raciocínio global” (Ifrah: 1997,p. 561), ou seja uma

passagem do intuicionismo empírico para a abstração e assim para uma

apreensão da realidade, do mundo, dependente da capacidade do cientista de

perceber o todo.

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121

Contrariamente aos vocábulos e abreviações heterogêneos empregados

para exprimir idéias preconcebidas como o “número”, o x, a incógnita, é

inteiramente independente da natureza dos elementos particulares que se supõe

que eles representem. A notação literal algébrica permitiu passar do individual ao

coletivo. Uma expressão como ax² + bx + c constitui não mais o símbolo de uma

grandeza particular mas, antes, a forma característica de toda uma categoria de

números. Passa-se, assim, de um raciocínio individual, apoiado em propriedades

específicas, a um raciocínio global sobre as propriedades comuns a todos os

casos de uma mesma espécie.

IV. Os três mais famosos problemas na história da matemática foram legados

pela antigüidade grega e como veremos possuem implicação para o tema a ser

abordado. O primeiro deles, talvez o mais famoso por suas conotações filosóficas,

místicas e matemáticas é a quadratura do círculo. Os seguintes são, a duplicação

do cubo e a tricecção do ângulo (Guedj: 1999; Bell: 1949; Kasner et Newman:

2001) . Estas operações, durante muitos anos, provocaram a imaginação e a

habilidade de muitos na tentativa da busca de sua resolução tal como os gregos

propuseram, utilizando-se somente da régua e do compasso. Como se sabe estes

três problemas não podem ser resolvidos como os geômetras gregos

intencionavam. A quadratura do círculo, no qual nos deteremos, tem sua

impossibilidade de ser realizada de tal forma, pois envolve π.

O número π é a razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro.

A área de um círculo de raio π é dada pela fórmula πr2 . A área de um quadrado

de comprimento de lado A é A2 . Desta forma a afirmação algébrica, A2 = πr2 ,

expressa a equivalência entre as áreas do círculo dado e do quadrado.

Tomando-se a raiz quadrada de ambos os lados, a equação gerada é A = r√π.

Como r é uma quantidade conhecida, o problema da quadratura do círculo é, com

efeito, o cálculo de π. Nos deparamos, assim, com um enigma, ou seria melhor

dizer, com um conjunto de paradoxos que nos foram legados pela geometria

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122

grega, isto é, como transpor o infinito para o finito, em outras palavras como pode

um número inteiro ser a correspondência de um número transcendente68.

O conceito geométrico análogo ao conceito de limite e convergência são

igualmente interessantes para a compreensão desta impossibilidade. Um círculo

pode ser considerado como um limite de qualquer polígono de número n de lados

(Kasner, Edward et Newman, James. Mathematics and the Imagination. New

York: Dover Publications, 2001, p. 70), que pode ser sucessivamente inscrito nele,

ou circunscrito, tendo sua área como o limite comum a ambos os conjuntos

desses polígonos.

Se um triângulo é inscrito em um círculo, a área do triângulo inscrito será

menor que a área deste círculo. A diferença entre a área do círculo e a do

triângulo será perceptível como uma região formada por cordas no círculo. Se o

triângulo for circunscrito a área do triângulo será maior que a área do círculo, o

que pode ser identificado facilmente. O valor comum ao qual as áreas dos dois

triângulos se aproximam é o próprio círculo. O círculo é o limite comum das duas

séries de polígonos. Se o raio do círculo é igual a 1, sua área, que é igual a π r2 ,

é simplesmente π .

Esse método de criar polígonos e aumentar seus lados, assim como

diminuindo, para calcular o valor de π era conhecido por Arquimedes que,

empregando polígonos de 96 lados, mostrou que π é menor que 3 1/7 e maior que

3 10/71. Em algum lugar entre ambos está o valor da área do círculo, assim como

de π. Teoricamente, o método de Arquimedes para calcular π através do aumento

do número de lados dos polígonos pode ser estendido indefinidamente, porém os

requisitos para tal cálculo tornam-se impraticáveis rapidamente.

Todas as construções com régua e compasso são geometricamente

equivalentes a equações algébricas do primeiro e segundo grau, assim como

combinações dessas equações. O matemático alemão Lindemann (ibidem p. 71),

68 Um dos aspectos da beleza da matemática, filosoficamente falando, não está em sua capacidade de expressar e corresponder de forma perfeita à ordem do mundo, como queria Pitágoras. Porém, ao pretender apreender de maneira rigorosa esta ordem gerar paradoxos.

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em 1882, publicou a prova que π é um número transcendente, e assim nenhuma

equação que satisfaça essa condição, represente a forma geométrica pretendida

pelos gregos, não pode ser algébrica e certamente não será nem do primeiro ou

segundo grau. Segue, assim, que a afirmação, “a quadratura do círculo é

impossível com régua e esquadro”; faz sentido.

A dificuldade da quadratura do círculo, como apresentada anteriormente,

repousa na natureza do número π . Este número “misterioso”, como Lindemann

provou, não pode ser a raiz de uma equação algébrica com números inteiros

como coeficientes69. Isto não é, desta forma, capaz de ser expresso por

operações racionais, ou pela extração da raízes quadradas, e, assim como, essas

operações não podem ser traduzidas numa construção equivalente com régua e

compasso, é impossível a quadratura do círculo. Uma parábola, que é uma curva

mais complicada que o círculo, entretanto, como já sabia Arquimedes, pode ser

expressa por determinações racionais, assim, a parábola pode sofrer a

quadratura.

Em 1596 Ludolph van Ceulen, matemático alemão, calculou 35 casas

decimais para π . Este matemático, van Ceulen, que trabalhou sobre π quase até

o dia de sua morte, solicitou que os 35 dígitos de π que havia calculado fossem

inscritos como epitáfio em seu túmulo. O valor que ele deu para π é, em parte,

3,141590265350897930238460... Em memória ao seu feito os alemães ainda

chamam esse número de “número de Ludolph.”

69 A raiz de uma equação é o valor que deve ser substituído pela quantidade desconhecida na equação em ordem a satisfazê-la. Assim, na equação x-9 = 0, 9 é a raiz, desde que se substitua 9 por x, a equação é satisfeita. De forma similar –4 e 4 são raízes da equação x2 – 16 = 0, pois quando alguns desses valores substitui x, a equação se equilibra. Equações “algébricas” constituem apenas uma modalidade de equações. Existem, também, equações trigonométricas, diferencial, e outras... O coeficiente de uma equação é o número que aparece antes da quantidade ou quantidades desconhecidas, da incógnita. Na equação: 3x4 + 17x3 + √2x2 – ix + π = 0 3, 17, √2, i e π são os coeficientes. Este é o exemplo de uma equação algébrica com coeficientes "esquisitos" Ao definir uma equação algébrica se exige que n seja natural positivo e os a números naturais.

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124

O número π alcançou sua maioridade com a invenção do cálculo por

Newton e Leibniz (ibidem p. 75). O método grego foi abandonado e um recurso

puramente algébrico foi utilizado, o método das séries convergentes infinitas,

produtos e frações contínuas tornaram-se presentes. John Wallis (1616 – 1703)

contribuiu com um dos mais famosos métodos de produto e Leibniz com séries

infinitas, cada um através de um método diverso do outro. Os produtos

sucessivos e somas dos termos ou dessas séries renderam valores para π tão

acurados quanto possíveis. Esses processo, típicos de métodos poderosos de

aproximação usados não apenas na matemática mas em outras ciências, embora

muito menos incômodos do que o método empregado pelos gregos, ainda

permanecem como um grande desafio para os cálculos.

“Ten decimal places are sufficient to give the circumference of the earth to the fraction of an inch, and thirty decimals would give the circunference of the whole visible universe to a quantity imperceptible with the most powerful telescope70.”(Simon Newcomb apud Kasner et Newman: 2001, p. 78)

Como perguntam Kasner et Newman: “Porque, eles, gastaram tanto

tempo e esforço devotando-se ao cálculo de π ?” (iden) Existe uma dupla razão.

Primeiro, pelo estudo das séries infinitas os matemáticos esperavam poder

encontrar alguma chave para a natureza transcendental de π . Segundo, o fato de

π , uma razão geométrica pura, poder ser gerada por diversas aritméticas — além

das séries infinitas, com aparentemente pouco ou nenhuma relação com a

geometria — era uma fonte sem fim de espanto e estímulo para a atividade

matemática.

Porém, tal como essas relações entre séries infinitas e π ilustram a

profunda conexão entre diversas forma matemáticas, geométrica ou algébrica.

Pode ser considerada uma mera coincidência, um mero acidente que π seja

definido como a razão da circunferência de um circulo em ralação ao seu

diâmetro. Não importa como nos aproximemos da matemática, π forma uma parte

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125

integral de seu universo. Em seu livro Budget of Paradoxes (1967), Augustus De

Morgan ( De Morgan apud Kasner et Newman, 2001) ilustrou como a definição

usual de π sugere minimamente sua origem. Ele estava explicando para um

atuário quais eram as chances, após o fim de um certo tempo dado de uma

proporção de um certo grupo de pessoas permanecerem vivas, e citou a fórmula

utilizada pelos atuários, a qual envolve π , o atuário, que permaneceu ouvindo

com interesse, interrompeu e exclamou,... “My dear friend, that must be a

delusion. What can a circle have to do with the number of people alive at the end

of a given time?71” (ibidem, p. 79)

Quando os filósofos gregos descobriram que a raiz quadrada de 2 não é

um número racional, eles celebraram sacrificando 100 bois. Um número como π ,

a razão da circunferência de um circulo e seu diâmetro, é precisamente expresso

apenas como a soma ou o produto de uma série infinita de uma totalidade de

números aparentemente sem nenhuma relação entre si. A área da mais simples

de todas as figuras geométricas, o circulo72, não pode ser determinada por meios

finitos.

Existem números que não podem ser expressos sob a forma de uma

fração a/b, com a e b inteiros, esta descoberta deve-se aos pitagóricos ao

tentarem calcular a diagonal do quadrado. A denominação irracional vem do fato

de não serem eles o resultado da razão entre qualquer par de números inteiros e

o mais antigo dos irracionais encontrados foi a raiz quadrada de 2, quadrado de

lado 1.

Após a raiz de 2 foram descobertos infinitos outros números irracionais e

a partir do século XVII funções e números passaram a poder ser expressos

através de séries infinitas. Exemplo:

70 “Dez casas decimais são suficientes para dar a circunferência do globo terrestre numa fração de uma polegada, e trinta casas decimais poderiam dar a circunferência de todo o universo visível, numa quantidade imperceptível ao mais poderoso dos telescópios.” Tradução minha. 71 “Meu caro amigo, isto deve ser uma ilusão. O que pode um círculo ter a ver com o número de pessoas vivas ao final de um certo período de tempo?” Tradução minha. 72 Cabe lembrar, neste ponto, que o círculo, para Jung, é o símbolo “natural” da totalidade do psiquismo, ou seja, o símbolo por excelência do Selbst.

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℮ n = lim 1+ 1⁄n

n→∞

Desta forma pode-se decompor ℮ em uma série de infinito termos.

Também o número Π pode ser desdobrado em diversos tipos de séries infinitas,

uma delas é:

π = 4 1- 1⁄3 + 1⁄5 - 1⁄7 + 1⁄9 - 1⁄11 + 1⁄13 - 1⁄15 + 1⁄17 - .....

Por meio das decomposições em séries infinitas foi possível a Euler

demonstrar, por exemplo, que ℮ e ℮² são irracionais. Porém, enquanto a √2

elevada a qualquer expoente par torna-se um número racional, as potências

racionais de ℮ continuavam irracionais. “Parecia que a irracionalidade de ℮ era

mais profunda do que √2, ou que alguns irracionais eram mais irracionais do que

outros”.

Qualquer racional do tipo a/b é raiz de uma equação algébrica da forma

bx – a = 0. Irracionais como 3√3 + √2, pode-se demonstrar, também como são

raízes de equações polinomiais de coeficientes inteiros. Indícios sugeriram,

assim, que os números chamados reais poderiam estar divididos em duas

categorias: os que são e os que não são raízes de equações polinomiais de

coeficientes inteiros. Foram classificados, então, em algébricos, que são raízes de

equações polinomiais de coeficientes inteiros e os transcendentes, que não o são,

eles transcendem as operações da álgebra. Os transcendentes são sempre

irracionais.

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Cálculos estupendos eram necessários para a construção de tábuas

trigonométricas, Napier foi requisitado por este desafio para construir um artifício

a fim de facilitar esses cálculos. Napier alcançou este propósito, ao abreviar as

operações de multiplicação e divisão, operações “so fundamental in their nature

that to shorten them seems impossible” (ibidem, p. 80). Entretanto, através dos

logaritmos, qualquer problema que envolva multiplicação e divisão, não importa

quão elaborado, reduz-se a uma operação relativamente fácil de adição ou

subtração. Multiplicar ou dividir quantidades indefinidamente grandes torna-se tão

fácil quanto somar objetos simples.

A concepção de Napier dos logaritmos era baseada em uma idéia

simples, a comparação de dois pontos em movimentos, um dos quais gerava uma

série aritmética e o outro uma progressão geométrica, ex.:

Aritmética: 0 1 2 3 4 5 6 7 8 ... Geométrica: 1 2 4 8 16 32 64 128 256 ...

As duas progressões possuem entre si esta forma de relacionamento: se

os termos da progressão aritmética forem considerados como expoentes de 2, os

termos correspondentes da progressão geométrica representam a quantidade

resultante da operação indicada. Assim, 20 = 1, 21 = 2, 22 = 4, 23 = 8. ...p. 82

Assim, para determinar o produto de 22 X 23, basta somar os expoentes,

22+3 = 25. Ao se chamar 2 a base, cada termo na progressão aritmética é o

logaritmo do termo correspondente à progressão geométrica.

Se a, b e c são três números relacionados pela equação a b = c, então b,

o expoente de a, é o logaritmo de c na base a. O logaritmo de um número na

base a é a potência a qual a deve ser elevado para se obter tal número.

Os dois sistemas de logaritmos nas duas bases, 10 e e são os principais

usados até hoje, com a predominância da base e. Assim como π, o número e é

transcendente e como π são nomeados como “programas de procedimentos”

(Bridgman apud Kasner et Newman: 2001, p. 87), não representando

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128

quantidades definidas e sim processos, isto é indicando continuidade, desde que

eles não podem nunca serem completamente expressos na forma de um número

finito de dígitos, como a raiz de uma equação algébrica com coeficientes inteiros

ou como possuindo decimais que possam ser previsíveis. Eles somente podem

ser expressos com acurácia como o limite de uma série convergente infinita ou

como uma fração contínua.

A função exponencial, y = ex , é o instrumento usado, de uma forma ou de

outra, para descrever o comportamento de crescimento das coisas. Por isso se

segue que é a única função de x com um grau de mudança em relação a x igual a

própria função73.

Uma função não é apenas adequada para descrever o comportamento de

um projétil em vôo, a mudança do volume de um gás sob pressão, a corrente

elétrica em um circuito, mas todo e qualquer processo que implique mudança, tal

como crescimento populacional, taxa de crescimento de uma árvore, crescimento

de capital e investimentos. O que é peculiar em qualquer processo orgânico é que

a taxa de crescimento é proporcional ao estado de crescimento. Quanto maior

alguma coisa é mais rápida ela cresce. Sob condições idéias, quanto maior a

população de um país aumenta, mais rápida ela cresce. As reações químicas são

proporcionais à quantidade de substâncias reagentes que se encontram

presentes. Ou o aumento de calor liberado por um corpo para o ambiente é

proporcionalmente a sua temperatura. Todos esses fenômenos, os quais são ou

se assemelham a processos orgânicos, podem ser acuradamente descritos sob a

forma de uma função exponencial (a mais simples sendo y = ex), pois isso possui

a propriedade de que sua taxa de crescimento modifica-se proporcionalmente à

taxa de mudança da variável.

Um universo no qual e e π não existissem, não teria dificuldade alguma

para ser concebido. Dificilmente se poderia conceber a paralisação da natureza

pela ausência de π e e. Porém, sem esses artefatos matemáticos, o que nós

73 Uma função, é um quadro que proporciona uma relação entre duas quantidades variáveis, onde a mudança em uma delas implica uma mudança na outra. A modificação na segunda é o correlato da mudança na primeira variável.

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129

sabemos sobre a natureza e nossa capacidade de descrevê-la os fenômenos da

natureza, física, biológica, química ou estatística, poderia ser reduzida a forma

primitivas, com esses conceitos, ou símbolos, nos aproximamos da natureza em

toda sua complexidade e fluidez.

Um imaginário é uma idéia matemática precisa. Esta idéia ocupou espaço

na álgebra da mesma maneira que os números negativos. Para se compreender

melhor os imaginários pode-se usar como recurso o modo pelo qual os números

negativos vieram a uso.

1. O quadrado de um número negativo é sempre positivo.

Seja o número positivo ou negativo. A regra dos sinais se impõe: mais

vezes mais e menos vezes menos dando mais.

2. O que é a raiz quadrado do número a: √a? É um

número que, elevado ao quadrado, dá

a: (√a )² = a . Se fosse negativo teríamos um quadrado

negativo. O que é impossível, pois estaria em contradição com o

resultado precedente. (p. 292)

Assim, não haveria raiz quadrada de números negativos. Cardan, foi o

primeiro a pretender encontrar uma solução para este problema. Com Bombelli foi

inventado o par +√-1 e -√-1 e desenvolveu as regras para o cálculo com estes

números. Números os quais todos os matemáticos anteriores evitaram dar uma

definição, devido ao fato de parecerem fictícios. Simples artifícios sem realidade

sensível ou objetiva, eram usados como intermediários para cálculos.

Como deveriam ser nomeados de alguma forma, pertencerem a alguma

classe de números, foram nomeados em princípio como números impossíveis.

Somente com Descartes eles foram aperfeiçoados, e na tentativa de significar

uma ordem da realidade ao qual pertencessem, chamou-os de imaginários,

posteriormente Gauss os chamaria de complexos.

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130

Por oposição, os números utilizados até então, positivos e negativos,

racionais ou irracionais, foram chamados números reais. Euler, em 1777, substitui

a notação √-1 pelo símbolo i.

Para fazer um número complexo, são necessários dois números reais.

Exemplo, o par (2,3) gera:

2 + 3i

Com o par (2,0), construi-se o número complexo 2 + 0i, que é igual a 2. O

que implica que um número real era um número complexo particular. Assim,

“ .... o trajeto percorrido consistiria em inserir os números reais num conjunto mais amplo. Os matemáticos haviam ampliado o universo no qual haviam agido até então, a fim de tornar possível o que era impossível.” (LIONNAIS: 1962, p. 295)

Os números negativos apareceram como raízes de equações tão logo

estas surgiram, são contingente, assim, do uso da álgebra pelos matemáticos.

Qualquer equação da forma ax + b = 0, onde a é maior que b e maior do que

zero, tem uma raiz negativa.

Os gregos, para quem a geometria era uma jóia especialíssima, a ciência

superior a todas, basta para isto lembrarmos de Platão, tinham na álgebra um mal

necessário, entre eles os números negativos eram rejeitados. Incapazes de

integrá-los na geometria, incapazes de representá-los graficamente, os gregos

não consideravam os números negativos como números de forma alguma. Porém

a álgebra necessitava deles caso desejasse crescer. Existe uma repetição dessa

indiferença do desejo por representações concretas de idéias abstratas nas

teorias contemporâneas da física matemática, as quais, ainda que entendíveis

como símbolos no papel, desafia diagramas, quadros ou metáforas adequadas

para explicá-las em termos da experiência comum. Isto pode ser entendido como

a necessidade de reificação da natureza para que a mesma seja considerada

válida, uma forma de reducionismo intuitivo fundado em uma tradição empírica.

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131

Cardan foi o primeiro a reconhecer a importância das raízes. Porém, sua

consciência científica o levou ao ponto de considerar os números negativos como

“fictícios”. Raphael Bombelli, de Bologna, continuou de onde Cardan parou.

Cardan havia falado da raiz quadrada de números negativos, porém ele não

compreendeu plenamente o conceito de imaginários. Em uma obra publicada em

1572, Bombelli indicava que os números imaginários eram essenciais para a

solução de muitas equações algébricas. Ele viu que as equações com a forma x2

+ a = 0, onde a é qualquer número maior do que 0, não poderia ser resolvida a

não com o uso de imaginários. Ao tentar resolver a simples equação x2 + a = 0,

existiam duas alternativas. Ou a equação é sem sentido, o que é um absurdo, ou

x é a raiz quadrada de –1, o que é igualmente um absurdo. Porém a matemática

prospera sobre absurdos, e Bombelli aceitou segunda alternativa alimentando a

matemática.

Porém mesmo posteriormente o número imaginário não foi considerado

sem revoltas ou críticas, Leibniz chegou a dizer que: “Imaginary numbers are a

fine and wonderful refuge of the Holy Spirit, a sort of amphibian between being

and not being”(ibidem p. 92). Assim como Euler que disse sobre os números

como a raiz quadrada de menos um “are neither nothing, nor less than nothing,

which necessarily constitutes them imaginary or impossible” (idem) Mesmo assim

o imaginário tornou-se extremamente útil e essencial para o desenvolvimento das

matemáticas.

Our general arithmetic, so far surpassing in extent the geometry of the ancients, is entirely the creation of modern times. Starting originally from the notion of absolute integers, it has gradually enlarged its domain. To integers have been added fractions, to rational quantities, the irrational, to positive, the negative, and to the real, the imaginary. This advance, however, had always been made at first with timorous and hesitating steps. The early algebraists called the negative roots of equations falso roots, and this is indeed the case when the problem to which they relate has been stated in such a form that the character of the quantity sought allows of no opposite. But just as in general arithmetic no one would hesitate to admit fractions, although there are so many countable things where a fraction has no meaning, so we would not deny to negative numbers the rights accorded to positives, simply because innumerable things admit of no opposite. The reality of negative numbers is sufficiently justified since in innumerable other cases they find an adequate interpratation. This has no long been admitted, but the imaginary quantities, formerly, and accosionally now, improperly called impossible, as opposed to real quantities – are still rather tolerated than fully naturalized; they appear more like an empty play upon symbols, even by those who would not depreciate the rich contribution which this play upon

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symbols has made to the treasure of the ralations of real quantities.”74 (Gauss apud Kasner et Newman, 2001, p.92)

Os números imaginários, assim como a geometria tetra-dimensional,

desenvolveram-se como a extensão lógica de certos processos. Os processos de

extração da raiz são chamados de evolução. O que é um nome apto, pois os

números imaginários evoluíram literalmente como a extensão do processo de

extração de raízes. Se √4, √7, √11 têm sentido, porque não √-4, √-7, √-11? Se x2

- 1 = 0 tem uma solução, porque não x2 + 1 = 0? O reconhecimento dos

imaginários requeriam apenas a sanção formal e a aprovação, isto é, a

necessidade de uma mudança da racionalidade dos matemáticas e a inclusão de

um novo paradigma que o incluísse, pois a sua existência era inegável.

√-1 é o mais conhecido dos imaginários. Euler o representou pelo símbolo

“i”, o qual ainda é hoje usado. Seria válida a preocupação com a questão, “Qual o

número multiplicado por si mesmo que é igual a –1?” (Guedj: 1999; Bell: 1949;

Kasner et Newman: 2001) Como todos os outros números “i” é um símbolo que

representa uma idéia abstrata, porém um idéia bastante precisa. Ele obedece a

todas as regras da aritmética com a convençao, própria a ele, que i X i = -1. Sua

obediência a essas regras e seus múltiplos usos e aplicações justificam a

74 “Nossa aritmética geral, que tanto ultrapassa em extensão a geometria dos antigos, é inteiramente a criação dos tempos modernos. Iniciada originalmente a partir da noção de inteiros absolutos, ela teve gradualmente ampliado o seu domínio. Aos inteiros foram adicionadas frações, às quantidades racionais, o irracional, ao positivo, o negativo, e ao real o imaginário. Esses avanços, entretanto, foram sempre feitos de princípio com passos hesitantes e tímidos. Os primeiros algebristas chamavam às raízes negativas das equações de falsas raízes, e esse é o caso, inclusive, quando o problema com o qual eles se deparavam eram estabelecidos de tal forma que o caracter da quantidade não permitia nenhum oposto. Mas, assim como, na aritmética em geral ninguém hesitaria em admitir frações, embora existam diversas coisas onde a fração não tem o menor sentido, assim nós não devemos negar aos números negativos o direito concedido aos positivos, simplesmente porque inumeráveis coisas não admitem o oposto. A realidade dos números negativos está suficientemente justificada desde que em inumeráveis outros casos eles encontram uma interpretação adequada. Isto foi durante muito tempo não admitido, porém as quantidades imaginárias, formalmente, e ocasionalmente agora, impropriamente chamadas de impossíveis, como opostas às quantidades reais — This has no long been admitted, but the imaginary quantities, formerly, and accosionally now, improperly called impossible, as opposed to real quantities – são ainda toleradas em lugar de totalmente naturalizadas; elas aparecem mais como um jogo vazio sobre símbolos, mesmo por aqueles que não deveriam depreciar a rica contribuição que este jogo simbólico tem dado para o conjunto das relações das quantidades reais.” Tradução minha.

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independência de sua existência, apesar do fato de que pode ser uma

“anormalidade” para o pensamento.

Existe uma fórmula famosa desenvolvida por Euler a partir da descoberta

do matemático francês, De Moivre: eiπ + 1 = 0. Considerada a mais elegante de

todas as fórmulas, concisa e cheia de significados, ela apela igualmente ao

cientista, ao místico, ao filósofo assim como ao matemático. Para cada um ela

possui o seu próprio significado. A fórmula de De Moivre’s chegou a Benjamin

Peirce, um importante matemático do séc. XIX, como uma revelação. Tendo a

descoberta certo dia, ele voltou-se para seus alunos e fez uma observação

dramática e pungente a seu respeito:

“Gentlemen,” .... , “that is surely true, it is absolutely paradoxical; we cannot understand it, and we don’t know what it means, but we have proved it, and therefore, we know it must be thruth75.” (De Moivre apud Kasner et Newman: 2001, p. 103)

O número i é um número algébrico e não transcendente, fazendo parte,

assim, do conjunto dos números reais. Pode-se verificar esta atribuição de i ao

conjunto dos números algébricos através da fórmula de Euler (Guedj: 1999; Bell:

1949; Kasner et Newman: 2001);

℮πi + 1 = 0

A beleza desta fórmula reside no fato de conter os cinco principais

números da matemática. Com ela Lindemann provou a transcendência de π. O

raciocínio é o que se segue: ℮πi é algébrico, pois –1 é. Portanto π i é

transcendente pois ℮ elevado a um número algébrico continuaria a ser

transcendente. Se π i é transcendente, sendo i algébrico (por ser solução da

equação algébrica x² + 1 = 0), então π só pode ser transcendente. Através desta

demonstração fica provada a impossibilidade da quadratura do cículo, problema

que perseguia os matemáticos e curiosos desde a antiguidade até a época

moderna, através do uso da régua e compasso.

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A matemática possibilita insights contínuos naquela região que existe

além da intuição e além da imaginação. Os matemáticos, assim como os filósofos,

não dizem nada sobre a verdade última, porém pacientemente, como os cientistas

que constróem os grandes telescópios, se preparam para enxergar.

V.

Apart from the journey which strives to be carried out in the imagination [ Phantasie] or dreams, I say that a solid ground and base as well as a smooth path are absolutely necessary for secure traveling or wandering, a path which bever breaks off, but one which must be and remain passable wherever the journey leads. (Cantor apud DAUBEN, J. W. George Cantor: his mathematics and philosophy of the infinite. Cambridge: Harvard University Press, 1990 p. 127)

Após saber-se que os números reais, e particularmente, os irracionais,

estavam divididos entre algébricos e transcendentes, foi-se colocada a questão

sobre qual dos dois números seria mais abundante. A pergunta era

particularmente difícil pois pressupunha a comparação de duas infinidades. “As

mais belas descobertas, entretanto, costumam surgir quando algém ousa pensar

o impensável”. Esta tarefa coube a Cantor76 (1918), quando decidiu-se a estudar

os conjuntos de infinitos elementos, o que originou os chamados números

transfinitos.

O conceito de infinito foi sempre algo que provocou discórdias e levantou

questões para os matemáticos. O primeiro a colocar o problema pode ser

considerado Zenão, no séc. V a. C., que utilizando-se da idéia de infinito criou

uma série de paradoxos famosos.

75 “Cavalheiros,”... “isto é certamente verdade, isto é absolutamente paradoxal; nós não podemos entendê-la, e nós não sabemos o que ela significa, mas nós a provamos, e desta forma, nós sabemos que ela dever ser verdadeira.” Tradução minha.

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Galileu Galilei observou algo aparentemente estranho na primeira metade

do séc. XVII. Tome-se a sequência dos números naturais e ao lado de cada um

deles coloque-se seu quadrado. Como poder-se-á ver para cada número da

coluna da esquerda corresponde um e um só número da coluna da direita e vice-

versa, se tem dificuldades em aceitar que as duas têm a mesma quantidade de

elementos. Entretanto, todos os números da direita também podem ser

encontrados à esquerda, ou seja, no conjunto infinito dos naturais a parte era

igual ao todo(Garbi: 1997, p.203).

Como diz Garbi (op. cit.) esta constatação traz um sério problema, pois há

séculos era uma verdade estabelecida que para quantidades finitas a parte era

sempre menor que o todo, isto era um axioma indiscutível. Fato que não ocorre

quando trata-se de quantidades infinitas, neste caso não se pode fazer tal tipo de

generalização de conceitos. Isto seria demonstrado por Cantor que procurou

atribuir “tamanhos”, que ele chamou de potências, aos diversos tipos de conjuntos

de infinitos elementos.

Ao conjunto dos números inteiros 1,2,3,.......n.... foi atribuida a potência

representada pela primeira letra do alfabeto hebraico 0א que é o menor dos

números transfinitos, potência do conjunto dos números naturais. Este transfinito

Cantor passou a usar para estudar outros conjuntos de infinitos elementos.

Quando os elementos de um conjunto podem ser colocados em correspondência

biunívoca com o conjunto dos números naturais, diz-se que ele é contável ou

enumerável e que sua potência também é 0א Alefe-zero, quando isto não ocorre o

conjunto não é contável e sua potência é diferente de 0א.

Cantor descobriu que os números algébricos são contáveis, portanto sua

potência é Alefe-zero. Ao continuar investigando o conjunto dos números provou,

também, que os números reais não são contáveis e chamou a potência daquele

conjunto de C (de contínuo) ou Alefe-um. Para prová-lo Cantor supôs o oposto, ou

seja, que os reais fossem contáveis.

76 O melhor livro sobre as teorias de Cantor e sua vida, onde podemos encontrar a sua luta para provar a possibilidade de uma aritmética do infinito é DAUBEN, J. W. George Cantor: his

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Esta prova é uma demonstração indireta que existem os transcendentes

pois se os reais não são contáveis e se os algébricos o são, então existem reais

não algébricos e não contáveis, ou seja, o conjunto dos números transcendentes.

Ficou, assim, demonstrado que existem muito mais números transcendentes que

algébricos.

Conforme salienta Gabri (op. cit.), Cantor demonstrou que para o conjunto

de números infinitos a parte é igual ao todo. Provou isto ao demonstrar que em

qualquer intervalo real (a, b), por pequeno que seja, existem tantos números

quanto em todo o conjunto dos reais.

Nós devemos entender que “muito grande” e “infinito” são inteiramente

diferentes. Através do método de correspondência “um a um”, os prótons e

elétrons no universo podem, teoricamente, serem contatos facilmente. Para

contar qualquer coleção finita, e os prótons são, não é necessário nada além que

os números naturais, são plenamente suficientes para contar qualquer elemento

de ordem finita.

Problemas relativos ao infinito tiveram, e ainda hoje têm, desafiados a

mente dos homens assim como sua imaginação. O infinito aparece ao mesmo

tempo como algo familiar e estranho, algo além do nosso alcance, algumas vezes

como algo que se apresenta como natural e fácil de se entender. Desvelar a

existência do infinito, ou integrá-lo em nosso modo de experiência, seria romper

com as barreiras que limitam o homem. Como um conceito limítrofe, no qual nos

deparamos com as fronteiras de nosso entendimento e existência, requebre todas

nossas capacidades para compreendê-lo, razão, intuição, a fantasia poética de

nossa imaginação e a aspiração pelo vir-a-ser.

O método para fazer uma matemática do infinito se baseia na capacidade

de se pensar por recorrência, sem nenhum senso de descontinuidade, rompendo

com a dicotomia entre finito e infinito.

mathematics and philosophy of the infinite. Cambridge: Harvard University Press, 1990.

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137

No sentido que se dá ao infinito como “sem fim, sem fronteira,” ou

simplesmente “não finito”, provavelmente todos entendem seu sentido. Quando

nenhuma precisão é atribuída nenhuma dúvida existe.

O primeiro paradoxo de Zenão — a Dicotomia — afirma que é impossível

percorrer uma dada distância. O argumento: Primeiro, a metade da distância deve

ser percorrida, então novamente a metade da distância que falta, em seguida, a

próxima metade que permanece, e assim por diante. Segue-se que sempre

permanecerá uma metade da distância ainda a ser percorrida, assim, o

movimento é impossível.

As distâncias sucessivas a serem cobertas formam uma série geométrica

infinita, cada trecho que é a metade daquela anterior. Embora estas séries

tenham um número infinito de termos, sua soma é finita e igual a 1. Nisto, é dito,

consiste o erro da dicotomia. Zenão assume que qualquer totalidade composta

por um número infinito de partes deve ser infinita, apesar de que se vê que um

número infinito de elementos os quais perfazem a totalidade finita, a qual é 1.

O paradoxo da tartaruga e de Aquiles, que corre para ultrapassar a

tartaruga, primeiro deve alcançar o ponto do qual esta começou a correr, porém a

tartaruga já iniciou sua corrida. Esta situação é repetida indefinidamente, pois

quando Aquiles alcança este ponto a tartaruga já não se encontra mais ali, ela já

partiu e está sempre a sua frente. Aquiles corre como se estivesse em um circulo

com a tartaruga correndo a sua frente, não podendo, assim, alcançá-la de forma

alguma.

Por fim o paradoxo do movimento da flecha, esta está em vôo, movendo-

se a cada instante de tempo. Porém, a cada instante ela deve se encontrar se

encontrar em um determinado ponto no espaço. Mas, se a flecha deve estar em

algum lugar no espaço, ela não pode ser em todo instante estar em algum outro

ponto, assim, ela não pode estar em trânsito também em todo instante. Pois estar

em trânsito é estar em qualquer lugar.

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O método moderno de dispor dos paradoxos não é desafazer deles como

mero recursos retóricos ou sofismas, desprovidos de uma atenção séria. A

história da matemática, pode-se dizer, possui uma dívida com Zenão e suas

afirmações. Zenão foi, como disse Bertrand Russell, “A notable victim of

posterity’s lack of judgement” (Russell apud Kasner et Newman: 2001, p. 44). Ao

dispor sobre o infinitamente pequeno, Weierstrass mostrou que a flecha em

movimento está na realidade sempre em repouso, e que nós vivemos no mundo

sem mudanças de Zenão. A obra de Georg Cantor, mostrou que se nós

estivermos dispostos a acreditar que Aquiles pode alcançar a tartaruga, então

temos que estar prontos para aceitar um paradoxo maior do que qualquer um que

Zenão pudesse conceber: o todo não é maior que suas partes ou sua totalidade.

Uma classe infinita tem como única propriedade que o todo não é maior

do que a soma de suas partes.

Existem partes que compõem uma classe infinita as quais são tão

grandes quanto a própria classe. O todo não é maior que a soma das partes.

Inclusive, a partir de qualquer classe enumerável pode-se sempre

remover um número enumerável infinito de classe sem que com isso se afete a

cardinalidade dessa classe.

Classes infinitas que podem ser colocadas numa correspondência “um a

um” com os números inteiros, e assim “contadas”, Cantor chamo de infinito

contavel ou enumerável. Desde que todo conjunto finito é contável, e nós

podemos designar para cada um número, é natural tentar estender esta noção e

designar para a classe dos números inteiros um número representando sua

cardinalidade. Ainda que isso seja óbvio a partir da descrição feita de “classe

infinita” nenhum número inteiro ordinário poderia ser adequado para descrever a

cardinalidade da totalidade dos números inteiros. Assim, o primeiro dos números

transfinitos foi criado para descrever a cardinalidade de classe infinitas contáveis

— ℵ0 .

Os números irracionais são números que não podem ser expressos por

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frações racionais. Por exemplo, π, e, √2, √3. A classe dos números reais é

formada por números racionais como, 1,2,3, ¼, 17⁄32, e irracionais como os

anteriores.

Por causa da suspeita de que existia outros números transfinitos, de fato

um número infinito de números transfinitos, e a cardinalidade dos números

inteiros seria o menos deles, Cantor, afixou ao primeiro ℵ um pequeno zero

subscrito. A cardinalidade da classe enumerável infinita é dessa forma referida

como, ℵ0 Alefe – Zero. A classe dos números transfinitos forma uma hierarquia

de alepehes: ℵ0, ℵ1, ℵ2, ℵ3 ....

Uma restrição apenas deve ser colocada para que se possa entender e

acompanhar esse raciocínio, que se abdique das regras da lógica corrente e

suportemos um novo modelo lógico, onde o paradoxo vigore.

Como conseqüência da extensão do processo de contar é evidente, de

imediato, que nenhum número finito pode, adequadamente, descrever uma classe

infinita. Se qualquer número aritmético comum descreve a cardinalidade de uma

classe, essa classe deve ser finita.

A classe dos números reais, composta dos números racionais e

irracionais é maior do que ℵ0 . Ela contém aqueles irracionais que são algébricos

assim como aqueles que não são, os números transcendentes.

Cantor descobriu que as frações racionais são contáveis porém o

conjunto dos números reais não é. Assim, apesar do que o senso comum diz não

existe mais frações do que há números inteiros e existem mais números reais

entre 0 e 1 do que elementos em toda a classe de números inteiros.

Desde que os números racionais e os algébricos são conhecidos como

enumeráveis e a soma de qualquer número contável de uma classe enumerável é

também uma classe enumerável, a única classe que pode fazer a totalidade dos

números reais não enumerável é a classe dos números transcendentes. Segue-

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se que estas são suas propriedades:

1. A classe dos números transcendentes não é apenas

infinita mas também não contavel, isto é, incontavelmente infinito.

2. Os números reais entre 0 e 1 são infinitos e não contáveis.

3. Como conseqüência, a classe dos números reais é não enumerável.

A classe não contável dos números reais Cantor designou um novo

cardinal transfinito. Este é um dos alefes, mas um que continua insolúvel até hoje.

Suspeita-se que este transfinito, chamado de “cardinal do continuum”, o qual é

representado por c ou C, seja idêntico a ℵ1 , mas não há uma prova ainda bem

fundada que seja aceitável por todos os matemáticos.

Assim como os números inteiros servem como um meio de medida para

as classes com cardinalidade igual a ℵ0 , a classe dos números reais servem

como meio de medida para as classes com cardinalidade C. Além disso, existem

classes de elementos geométricos que não podem ser medidas de nenhuma

maneira que não seja pela classe de números reais.

A partir da noção geométrica de ponto, desenvolve-se a idéia de que em

qualquer segmento de reta dada existe um número infinito de pontos. Os pontos

em um segmento de reta são também, matematicamente falando, “densos em

todo lugar” . Isso significa dizer que, entre dois pontos existe uma infinitude de

outros pontos. O conceito de dois pontos imediatamente adjacentes, dessa forma,

é sem sentido. Essa propriedade de ser “em todo lugar denso”, constituí uma das

características essenciais do continuum. Cantor, ao se referir à “cardinalidade do

continuum”, reconhece que se aplica de forma semelhante para os números reais

e para a classe dos pontos em um segmento de reta. Ambos são em todo lugar

densos, assim como ambos têm a mesma cardinalidade C. Em outras palavras, é

possível parear, um a um, os pontos de um segmento de reta com os números

reais.

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141

As classes com cardinalidade C possuem uma propriedade similar com as

classes com cardinalidade ℵ0 : elas podem ser reduzidas ao menores elementos

sem que com isto se afete sua cardinalidade. Nessa conexão se vê, de uma

forma bastante contundente, a propriedade, anteriormente citada, que é um

princípio da aritmética transfinita, ou seja, o todo não é maior que as partes que o

constituem. Por exemplo, pode ser provado que existem tantos pontos em uma

linha um centímetro quanto em uma linha de cem metros.

Isso se caracteriza como o poder do continuum. A afirmação espantosa

de que possa haver em um centímetro de comprimento tantos pontos quanto em

uma linha em volta da terra. Ou seja, se traçarmos uma linha da terra ao sol é

impressionante o fato que nela existem tantos pontos quanto em uma linha que

seja traçada em torno de uma célula ou em todo o espaço tri-dimensional do

universo. Não existe assim disparidade entre a parte e o todo, um não sendo

maior que o outro dentro da perspectiva da aritmética transfinita. Podemos dizer

com isto que a relação Macro-Micro, tão cara aos filósofos e poetas, se encontra

comprovada e fundamentada através do pensamento de Cantor.

O todo não ser maior que as suas partes. Essa propriedade não pertence

apenas às classes finitas, pertence apenas quando se refere ao infinito, ou às

classes infinitas. Assim, pode-se definir uma classe infinita, matematicamente

falando, como aquela a pode ser colocada em uma relação recíproca de

correspondência “um a um” com qualquer subclasse ou subconjunto próprio a

ela.

Ao início do século vinte era geralmente reconhecido que o trabalho de

Cantor havia clarificado o conceito de infinito, assim podia-se falar sobre ele ou

tratá-lo como qualquer outro conceito matemático respeitável. Porém ainda hoje

devido as controvérsias que despertou entre os matemáticos e filósofos da

matemática, demonstram que é um erro considerar assim. Pois levanta-se a

questão, ao se falar de infinito, sobre sua existência de fato, ou sobre a existência

de uma classe infinita. Deve-se considera o problema da existência, por

conseguinte, se quisermos tratar dessas questões.

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142

Existência, no sentido matemático, é algo considerado de forma diferente

da existência empiricamente, assim como um fenômeno matemático não pode ser

considerado da mesma forma que um fenômeno empírico. Epistemologicamente

pode-se considerar a consistência de tal conceito, se há nele contradição interna

que não o sustente ou não. Porém, podemos dizer que da mesma forma que uma

árvore existe, com propriedades, densidade, altura, pertencente a uma

determinada espécie, frutífera ou não, em seu tronco podemos determinar uma

relação entre o diâmetro e a circunferência que é dada por π, assim como em

seus galhos podemos encontrar a Série de Fibonacci, porém tanto a árvore

quanto π , possuem existências distintas. Cada qual possuindo sua consistência

própria, assim como suas determinações ou propriedades, irredutíveis uma à

outra. O que vemos é o fato que novos problemas e paradoxos surgiram a partir

da teoria de Cantor sobre o infinito. Esses problemas e paradoxos são dispostos

como um limite de um determinado modelo de lógica e entendimento de mundo,

devendo nos conduzir para outros modos de entendimento e de experienciar a

realidade, não mais como restrita e enclausurada.

Aos alefes de Cantor devemos atribuir o mesmo tipo de existência que é

designado ao número 7, por exemplo. Uma declaração de existência livre de auto-

contradição deve ser relativizada para ambos. A esse propósito não há razão

melhor ou pior para se confiar no infinito do que confiamos na existência do finito.

Podemos descartar o infinito da mesma forma que podemos descartar as

impressões dos nos órgãos dos sentidos. Não há determinação científica que

corrobore a validade maior ou menor de algum deles. Pode-se dizer que sobre

esse assunto, numa análise final, isto é determinado pelo nosso modo de

compreensão, ou pelo que queremos crer. O que deve-se é se isentar de julgar as

classes infinitas a partir de um referência que não seja vigente a ela, isto é, julgar

o infinito através do modelo de pensamento finito, gera mais contradições e

absurdos que são considerados como inerentes ao próprio infinito. Quando o

infinito é avaliado dentro de seu próprio parâmetro, ele perde a sensação de

estranheza, perde-se o sentimento de mal-estar, e sua ordem de existência torna-

se tão normal em sem pensado quanto qualquer número inteiro, ou condição de

realidade finita.

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143

A TEORIA DAS ESTRANHEZAS “caos massa rude e indigesta apenas peso inerte desconjuntada semente da discórdia das coisas terra, mar e ar ciciam confundidos” (Leminski, P. Metamorfose, São Paulo: Iluminuras: 1994, p.11)

I.

A teoria das estranhezas concebe a realidade como um Fluído Mosaico

de Isomorfos, ou seja como uma multiplicidade dinâmica e em constante

transformação, porém tal como um mosaico a multiplicidade ao organizar-se

como uma totalidade emerge como uma unidade tensa e múltipla, harmonizando-

se como o um e o todo. Nesta visão articulam-se conceitos originais que suscitam

a necessária flexibilidade que deve ser característica de qualquer pretensão de

compreender o homem assim como de qualquer forma de concepção de vida/

mundo que escapem de espaços localizados em espaço-tempo particulares, tal

como o newtoniano. O que se encontra implicado em seu horizonte é o fato que

para falar daquilo que faz parte do âmbito do coletivo, seja externo ou interno

(social e inconsciente), assim como das ciências, da matemática dos infinitos, da

microfísica e da macrofísica precisaremos necessariamente de um novo modelo

de linguagem e de pensamento.

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144

Conforme Maluf (1986a) as transformações que se deram no fim do

século XIX e início do século XX77, desestabilizaram a noção de equilíbrio linear

(Pedro, 1989) próprio da física. Dito de outra maneira, a crise epistemológica

científica contemporânea se funda no

“reconhecimento da hegemonia de um pesamento linear, legado epistêmico aristotélico que a ciência moderna não chegou a abolir, pois, memso após a revolução científica de Newton, deparamo-nos com um mundo racional, mensurável, geométrico, bem nos moldes Aristotélicos” (ibidem, p. 106).

Como observa Maluf (no prelo) a história da teoria das estranhezas

remonta a investigações realizadas no período 1978-1990, em instituições como o

Centro Brasileiro de Ergonomia e Cibernética, FGV/RJ, e no Departamento de

Fisiologia e no Instituto Biomédico, UFF. A amplitude da proposta possuía um

caráter peculiar, sendo a expressão das propriedades epistêmicas de um sistema

abstrato, envolvendo a “interação entre aspectos filosóficos da aritmética, da

evolução e da história das ciências” (op. cit.) e tendo delineado o campo de

estudos com o título de “epistemologia teórica”. A teoria das estranhezas foi se

desenvolvendo e gerando frutos em diversas áreas, no início fundamentando as

humanidades e processos mais abertos, pelo menos até a década de 50;

atualmente, inserindo-se no domínio da ciência natural e humanas, como nessa

tese de doutorado, e se articulando com a matemática de forma mais detalhada.

Trabalhos de diversos temas compõem o grande mosaico da Teoria das

Estranhezas, abrangendo também diversas teorias psicológicas, psicologia da

epistemologia e epistemologia da psicologia, arte e informação etc. Dissertações

e teses estão sendo organizados, em diferentes áreas, nos Programas: de

Mestrado e Doutorado em psicologia, UFRJ; de Mestrado em Ciência da Arte,

Instituto de Arte e Comunicação Social, UFF; de Mestrado em Ciência Ambiental,

Instituto de Geociências, UFF.

77 É importante lembrar que o diálogo de Jung se dá com a epistemologia de uma ciência que emerge rompendo com o modelo newtoniano, sem que com isto o negue. A física de partículas, ondulatória e gravitacional.

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145

Em 1983, foi publicado por Maluf, U. M. nos Arquivos Brasileiros de

Psicologia a obra “Prolegômenos a uma epistemologia irracional em psicologia”, o

primeiro artigo a

“respeito da viabilidade de ‘uma nova epistemologia’ cujas bases estariam completamente desvinculadas de qualquer ‘testemunho dos sentidos’ ou da consistência da lógica clássica (racionalidade linear)” (no prelo).

Esse feito somente agora está sendo absorvido, com o estudo de um

quarto momento em psicologia, e com a própria cultura IV detectada pela teoria

das estranhezas, pode-se romper o cenário de tempo e espaço linear, bem como

admitir epsitemologias que convivam com polaridades. A organização de forma

mais ampla da teoria das estranhezas, o enriquecimento com múltiplas áreas e a

articulação inicial com a psicologia analítica se deram, respectivamente, na última

publicação de Maluf (1997), e no simpósio “O Diálogo das Epistemologias - A

Proposta da Teoria das Estranhezas”, nos dias 22, 23 e 24 de novembro de

2000, e, anteriormente em Nunes (1989), junguiana, que escreveu sobre

sincronicidade e a nova proposta epistemológica de Ued Maluf.

Essa nova abordagem se originou de uma "reação à constrição conceitual

dos quadros da psicologia, atrelados ainda a uma epistemologia fisicalista"

(Nunes, 1989: 152). A psicologia na busca de sua cientificidade associou-se a

modelos e conceitos de outras áreas, "não só inviabilizando-os, em razão da

ruptura contextual, como também afetando, com essa tradução imprópria, o

discurso a que se propôs inicialmente fundamentar" (idem). Ao preparar o campo

para se tornar ciência privilegiou o método em detrimento de seu objeto de

estudo. Diante da situação da psicologia, o Dr. Ued Maluf desenvolveu sua

perspectiva teórica trazendo à luz essa epistemologia que "advinda da física para

se constituir como um tipo de postura em relação à realidade, que estaria

enraizada nas próprias bases de nossa visão de mundo herdada dos gregos"

(ibidem, p. 153). Para esclarecimentos indicamos o autor Maluf, 1986a, 1985 a,

1986a. Como sintetiza Nunes (1989, p.4):

"A necessidade dessa ruptura exprimiu-se inexoravelmente, no âmbito da

física, mais propriamente a partir do advento da física quântica, onde passou-se a lidar com um 'universo participativo' (cf. Wheeler e Patton, 1978), impondo-se uma reestruturação da noção de objeto (...). Porém, nos sistemas humanos, de um modo

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146

geral, essa necessidade se apresenta como a própria viabilização ou não da eficácia de seu conhecimento. (...) Daí a crítica de Maluf (1983a) às ciências humanas, desde que, nessa área, não se lida com ‘coisas’, mas com fenômenos que se encontram em "processo de relação" com outros fenômenos, em razão de o comportamento, a ‘vida mental’, se constituir num contínuo não comensurável, intuitivamente diverso do contínuo (clássico) e do discreto (quântico). Essa natureza não-comensurável, característica dos sistemas humanos, em contraposição aos sistemas físicos, exige, assim, uma epistemologia apropriada para fundamentá-la ".

A necessidade de transformações epistemológicas começou a se

estruturar e ganhar espaço em todas as áreas, além das humanidades, ampliando

essa discussão para o mundo “vivo”, com autores como Maturana e Varela (cf.

apud Maluf, 1985b e Nunes, 1989). Posteriormente a teoria das estranhezas

ganhou espaço de forma sistemática para o mundo da física, em especial da

cosmologia quântica (Maluf, notas de aula, 1999), assim como trazendo para o

diálogo as matemáticas, prioritariamente através da teoria do infinito, como

desenvolvida por Cantor78. Desde o início, porém, a Teoria das Estranhezas

organizou-se, utilizando os avanços da física, que rompera com a noção de

sujeito e objeto separados e com todo o fechamento dos modelos científicos

baseados nos pressupostos de uma perspectiva newtoniana, ou seja, baseada na

causalidade e no reducionismo ontológico.

Há uma perspectiva de união de opostos envolvendo sistemas que

possuem uma forte interação ao mesmo tempo que "uma auto-referência da

própria história do sistema" (Maluf, ibidem: 30). O sistema seria linear e não

linear ao mesmo tempo (cf. Nunes, 1989, Maluf, 1985a). Para marcar essa

diferença com outras teorias, o autor chama de mosaico os sistemas que

possuem essa característica de manter-se em uma estrutura processual

fechada/aberta, ao mesmo tempo. Esse isomorfismo é em parte igual e em parte

diferente, cunhado por essa razão de não-trivial. Isso permite com mais facilidade

que seja utilizado não só para os sistemas sociais, ou vivos, mas para própria

física assim como para a noção de uma aritmética transfinita, para o inorgânico.

Na verdade, é a cosmovisão científica newtoniana ou clássica que tornou a

Natureza morta como um objeto passivo de ser manipulado pelo ser humano, o

78 Conferir em Maluf, A TEORIA DAS ESTRANHEZAS: A Dinâmica não-física dos Sistemas Autônomos não-ordinários, no prelo.

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147

observador. Ao unir sujeito e objeto, permite-se uma interdependêcia entre

observador e observado, que se amplia para a totalidade da experiência de

homem e mundo, assim como rompe com o debate entre explicação e

interpretação dispondo estas duas formas de compreensão da realidade como

antagônicos não excludentes, ou seja isomorfos não triviais. Na teoria das

estranhezas isso ocorre no sentido não-ordinário, ou seja, através de aspectos

lineares e não lineares ao mesmo tempo. Rompe-se aqui definitivamente com

qualquer concepção mais ampla de elementos no sentido de unidades

cristalizadas, ou elementos últimos.

Nos voltaremos para o tema mais evidente dessas últimas questões

contemporâneas, a temporalidade e continuo. As características da teoria das

estranhezas na perspectiva temporal, incluem o tempo linear, histórico e o não-

linear, tanto no tipo de temporalidade de ruptura (bifurcação) quanto no tipo tempo

eterno (vazio pleno, silêncio e anterioridade). Nesse sentido, falamos de uma

nova não-linearidade que é o encontro desses dois tempos: a linearidade e a não-

linearidade que instaura uma singularidade isomórfica, de forma não repetitiva.

Unindo a teoria das estranhezas e a questão de tempo abordada por Jung no

fenômeno da sincronicidade, podemos estabelecer um paralelo entre as

propriedades de pré-temporalidade e de pré-espacialidade com tempo e espaço

autogênicos. Nesse sentido, os sistemas poderiam gerar seu próprio tempo e

espaço (cf. Nunes, 1989: 167 e Maluf, 1986a). E nas propriedades trazem

embutida a idéia de criação.

Assim, o símbolo em seu processo de criação e auto-geração é tempo

que se constitui como ruptura e transformação e tempo que permanece

linearmente como fixado pela consciência. Como instaurado pela dinâmica do

inconsciente a imaginação, ao se atualizar, desvela uma temporalidade que não

se constitui pela ordem da consciência. Porém, como o símbolo é reunião de

polaridades, o tempo linear encontra a possibilidade de se tornar contínuo e

possuir um fluxo na medida em que há esta união entre o inconsciente e o

consciente. Podemos considerar que na síntese do símbolo, ou pela função

transcendente, o tempo se constitui como unidade existencial, vivida, como

símbolo, o tempo de Zenão e de Cantor.

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148

Esse tempo-espaço instalado pelo símbolo opera dentro de uma

dimensão intermediária, no sentido de instabilidade (Nunes, ibidem: 167). Jung,

lembrado pela autora, chama de relatividade psíquica e outros autores nomeiam

como "estados de fluxo" (Csikszentmihalyi, 1986 apud Nunes:1989) e "estados

alterados de consciência" (Tart, apud Nunes: 1989).

Essa formulação epistemológica procura observar os sistemas onde a

“interação é 'desorganizada', até aparentemente caótica”, conforme classificação

de Hofstadter79 (1980, p. 137).

O primeiro aspecto essencial é a interação não-ordinária, típica dos

sistemas não-ordinários que traz como característa abarcar o paradoxal e a

autodeterminação, fundamental para o entendimento dos sistemas vivos. Ou seja,

os sistemas autogênicos não-ordinários possuem um crescimento "de forma ativa,

não cumulativa, devido à vigência de regimes governados por forte interação"

(Maluf: 1986b, p.163). O crescimento pode ser imprevisível ou previsível, mas

seguramente dá-se através de uma auto-referência da própria história do

organismo.

Inicialmente se pensou na importância de produzir uma epistemologia

para uma melhor reformulação de uma cosmovisão para as ciências biológicas,

humanas, sociais, etc. (cf. Nunes, 1989; Medrado, 1994). Porém, mesmo as ditas

ciências não referentes ao vivo também necessitam de outro modelo que inclua

os aspectos da não-linearidade, interatividade etc., como possibilita a teoria das

estranhezas. Lembremo-nos dos cortes operados pelo pensamento ocidental, sob

o risco de repetirmos com essas ditas ciências a mesma cristalização e

categorização que as inclui em um grupo sem vida. Existe variabilidade entre

mosaicos mais abertos ou mais fechados, porém, a característica de uma parcial

79 HOFSTADER, D. R. Gödel, Escher, Bach – Um Entrelaçamento de Gênios Brilhantes. 1.

ed., Brasília: Editora da Universidade de Brasília. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

Page 149: Mad Did a Miao Junior

149

instabilidade flutuante, em todos os campos, aparece como característica de

todas as disciplinas.

II.

O isomorfo se caracteriza por possuir uma “transformação reversível não-

fechada”. Transformação aplicada a um protótipo, resultando na sua preservação

sob múltiplos formatos distintos e singulares – idiótipos. Assim, considera-se que

os protótipos junto com os idiótipos constituem os isomorfos não-triviais.

A fluidez caracateriza-se como o resultado dessas operações, que se

constituem em um conjunto, não-fechado, nem completamente aberto por

possuírem uma totalidade de sentido.

Através do mosaico de idiótipos e protótipos vigora uma relação entre os

diversos idiótipos como manifestação de um protótipo. Podemos discutir se há

combinações de protótipos que se configuram com os demais idiótipos, gerando

novos idiótipos. Como em um mosaico existem idiótipos que estão mais atrelados

a determinados protótipos, e outros idiótipos que se transfiguram de forma tão

singular que podem ser associados ao que Jung descreveu como o processo de

tornar-se único, justamente por aceitar seu aspecto coletivo da humanidade e

caminhar na busca de sua combinação única como ser humano. Esse mosaico

advoga a criação de uma unidade de movimento sem fim, o que pode ser

entendido como o processo, do qual fala Jung, de totalidade ou individuação.

O essencial aqui é identificarmos que, ao nos depararmos com uma

discussão teórica, matemática, aparentemente neutra, uma regra, por exemplo:

“energia igual a massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz” (Maluf:

1997, p. 17), pode-se desdobrar seu entendimento através de um processo

hermenêutico onde verifica-se a implicação em todo método ou episteme de uma

dimensão que nomeia-se por ontológica:

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“A partir do lado esquerdo, o mistério da criação - energia metamorfoseando-se na matéria; energia como a outra face da matéria;

A partir do lado direito, a hecatombe do artefato nuclear - matéria se metamorfoseando em energia; matéria como a outra face da energia; a cultura do aniquilamento total. Companheira da humanidade desde Hiroshima...” (ibidem).

Poderíamos entender tal regra como uma passagem dos opostos, um processo

de transformação contínuo, do caos para a ordem e da ordem para o caos. Onde

um não seria um antagônico excludente do outro, mas uma face metamorfoseada

que na dinâmica de interação e oposição se complementam pela totalidade do

mosaico a partir do qual vigoram. Dissolve-se a perspectiva dicotomizada da

realidade, a qual sustenta a pretensão do homem em estabelecer um controle e

manipulação da realidade através da razão e da representação, seja esta

realidade interna ou externa, há a sua redução a um feixe de leis e elementos

passíveis de serem determinados.

"... Jung's language with that of chaos theory leads to na interisting description of the process of individuation: when the tension betwen consciousness and the unconscious reaches a certain critical value (...), chaos enters the psychic realm (bifurcations and period doubling). This leads to a psychic situation that consciousness finds virtually impossible to diferentiate. Yet, if the chaos is allowed to continue (the tension of opposites maintained), recognisable patterns (symbols/ fractal attractors) eventualy appear. These patterns represent the emergence of order from chaos and, if correctly interpreted, give insight into the status of the process." (Eenwyk: 1992, p. 10)80.

O modelo da Teoria das Estranhezas busca o rompimento de verdades

absolutas e ao mesmo tempo uma inseparabilidade da unidade do Universo de

alta complexidade que reúne “(...) na mesma unidade todas as formas de

80 “a linguagem de Jung com aquela da teoria do caos conduz a uma descrição interessante do processo de individuação: quando a tensão entre consciente e inconsciente alcança um certo valor crítico (...), caos adentra no reino psíquico (bifurcação duplicação periódica). Isto conduz a uma situação psíquica em que a consciência encontra-se virtualmente impossível de diferenciar. Ainda, se é permitido ao caos continuar (a tensão entre os opostos ser mantida), padrões reconhecíveis (símbolos/atratores fractal) eventualmente aparecem. Esses padrões representam a emergência de ordem a partir do caos e, se corretamente interpretado, darão compreensão sobre o estágio do processo” (Eenwyk: 1992, p. 10) EENWYK, E. J. R. V. Archetypes: The Strange Attractors of the Psyche in: Journal of Analytical Psychology, 1991: 36, 1-25. Tradução minha.

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existência nos mundos sagrado, profano e imaginário” (Eliade apud Maluf: 1997,

p. 92). Na teoria das estranhezas (Maluf, 1997; Maluf, no prelo) são analisadas

diferentes culturas81. Cada cultura representaria a instalação de um paradigma,

científico e ontológico82.

Inicia-se, na Cultura III a grande revolução que permite uma reconexão

entre as diferentes áreas do saber, assim como uma amplitude e flexibilização

necessárias para que a criatividade do saber não seja destituída de seu poder,

como veremos no ressurgimento da complexidade. Como sintetiza Maluf (no

prelo)

“com o advento das epistemologias da mecânica quântica e da teoria da

relatividade, tornou-se possível ilustrar a vigência da “experiência enigmática”: de fato, Heisenberg, em 1927, ao estipular o “princípio da incerteza” (Cultura III), instaurou com isso uma base para o conhecimento, na qual tanto o “testemunho dos sentidos” quanto a validade de uma consistência lógica ficariam abolidos da epistemologia científica; ficaram desvelados, com isso, inimagináveis cenários de ciência; o que veio culminar, inicialmente, com a “união espaço-tempo” de Einstein, implicando “diferentes geometrias”, e, mais tarde, paradoxalmente, com o “colapso da trajetória”: “As relações de incerteza de Heisenberg asseguram que, se se tenta medir a trajetória do elétron ... [ entre pontos A e B ] ... o movimento do elétron é completamente alterado e se acaba com o experimento. É possível até conhecer-se as condições iniciais... e os resultados finais; mas não é possível conhecer-se a trajetória entre A e B”. É o “fim das certezas” - Cultura IV. Todo o exposto, de certo modo, é o que o artigo, ao início referido, antecipava, e que meu livro, também referido, veio a definir como suspensão da redução ontológica” .

Na Cultura IV, o fundamental é o surgimento da “tetrachtis da emergente

humanidade: (...), conformando, ao final, o fluido mosaico desses isomorfos

numa especial unidade de alta complexidade, que é o humano” (Maluf: 1997, p.

80) Somente com a quarta cartografia chegamos a uma unidade do mosaico

múltiplo humano. Uma

81 Cultura foi iniciamente entendida como uma “série de hábitos, compartilhados por um grupo de uma área geográfica, mas biologicamente condicionados” (Maluf: 1997, p. 89). É também, uma “complexa trama de comportamentos e dos resultados de tais comportamentos, uma faceta do coletivo de um grupo” (idem). As quatro culturas estruturadas por Maluf são81: I - a epistemologia da ciência antiga aristotélica: certeza como evidência do senso comum; II - a epistemologia da ciência moderna: certeza como evidência da trajetória; III - conforme a cartografia do pensamento ocidental: certeza do espaço-tempo; IV - colapso da trajetória. 82 Somente tratarei nesta tese das duas últimas culturas, pois considero serem as mais importantes diante do tema tratado, ou seja, as que se referem às implicações entre ontologia e

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“era pré-Tertuliano: ‘o universo considerado numa perspectiva sacralizada, quer se trate da pedra, da flora, da fauna ou do homem’ para usar as palavras de Mircea Eliade” (ibidem: 90). Essa perspectiva forma os “4 ângulos da base de uma ‘pirâmide’- Homo ludens, Homo sapiens, Homo religious, Homo faber - cujos lados convergem para o ápice dessa pirâmide, o Homo virtualis, conformando, ao final, o fluido mosaico desse isomorfo” (ibidem):

Nessa perspectiva entende-se uma re-volução83 epistemológica que se

instala, onde um novo modelo de compreensão onde homem e mundo se

encontram implicados. Tal como vimos, ao tratar dos símbolos, o conhecimento

torna-se um mosaico, constituindo-se dos variados modos de ser possíveis que

se encontram dados a partir de uma perspectiva ontológica da não ruptura e da

não fragmentalidade. Entende-se, assim, como em qualquer epistemologia se

encontra dada uma ontologia, qualquer saber, científico ou não, se encontra

implicado em uma visão ou modo de desvelamento de homem e mundo.

Ao considerar-se o homem como “ludens”, “sapiens”, ‘religiosus” , assim

como “faber” , implica-se a necessidade da construção de um modo de

conhecimento que leve em consideração estas modalidades de constituição do

mosaico nomeado como homem – mundo. Isto nos remete para o poema de

Fernando Pessoa ao descrever as qualidade para entendimento dos símbolos e

rituais. O conhecimento para constituir-se, assim como a realidade para ser

apreendida em sua inteireza necessitam de uma episteme que corresponda a sua

complexidade múltipla e fluida84.

Poder-se-ia dizer que a tipologia de Jung é uma forma de delinear os

modos típicos de ser-no-mundo, descrevendo os parâmetros existenciais (ônticos)

epistemologia e a ordem de uma lógica paradoxal e fluida, o que se encontram implicadas em um modelo organizacional baseado na unidade múltipla. 83 Por re-volução entenda-se, um retorno à origem dos variados modos de definição ou fragmatação da experiência em sua totalidade, não é uma revolução, ou melhor um processo de transformação onde se abandone o passado ou o presente indo em direção a um futuro radicalmente distinto e antagônico aos momentos anteriores. Compreenda-se a re-volução como um “volver em torno de si próprio”, dirigindo-se àquilo que se possui como o mais original e radical, volver-se à origem, mostrar-se pelo avesso, a singularidade do protótipo que permite com que se apreenda os idiótipos como transformações não triviais, porém fundados num mesmo. 84 Isto corresponderia ao que Jung chama por Função de Conhecimento, os modos possíveis do indivíduo estar no mundo ou de desdobramento, a sua maneira privilegiada de organização do fluxo da consciência.

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para a vida psicológica, a psique ou o inconsciente coletivo. Estes parâmetros

existenciais são os modos de compreensão e interpretação, dispostos dentro de

um horizonte histórico e circunstancial, determinado por uma cultura, história,

perspectiva, que tornam possíveis a criação de um modo de orientação do

homem no mundo, simultaneamente, possibilitando através desses mesmos

parâmetros que o conhecimento — seja como interpretação, avaliação afetiva,

delineamento de espaço e explicação — se constitua, sem que com isto haja uma

hierarquização, um modo de conhecer como superior ou melhor do que outro.

Assim, como todo indivíduo possuí estas quatro formas de construção do

conhecimento seria legítimo dizer que com a tipologia e as funções Jung estaria

construindo uma episteme baseada nos modos de desdobramento da consciência

e do ser — a tipologia lançaria as bases do que porder-se-ia nomear como um

mosaico epistêmico – tipológico.

“um esforço para lidar com o relacionamento do indivíduo e o mundo, das pessoas e das coisas. Se discute as várias atitudes que a consciência pode tomar diante do mundo, e isto constitui uma psicologia da consciência observada a partir do que poderia ser chamada de um ponto-de-vista clínico”. (Jung, 1961,p.182).

III.

A teoria das estranhezas tem como contribuição fundamental a união de

polaridades, através da noção de mosaico de isomorfos. Existe um nível de

autonomia relativa, mesmo nos sistemas vivos, já que há um

“imbricamento de determinismo e indeterminismo, proveniente do aspecto não-ordinário, não sendo nem uma coisa nem outra, mas as duas ao mesmo tempo o que vem a romper decisivamente com o princípio de contradição aristotélico” (Nunes, p. 166-167),

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154

Ao absorver dualidades em uma totalidade múltipla. Na cultura IV, a

dualidade ordem/caos fica suspensa, já que em determinados momentos a

concomitância possível de uma ordem implícita no caos, ou do caos na ordem, o

que torna os fenômenos em parte previsíveis e imprevisíveis e, “em outros

totalmente imprevisíveis” (ibidem p. 172). O isomorfismo aparece como uma

"transformação reversível não fechada". Transformação essa que se aplica sobre

algo: o "protótipo" (Maluf, 1997). O prefixo iso- vem do grego: (Bailly: 1901, p.

439) e significa correspondência, estabelece relação, semelhança. Protótipos e

idiótipos são isomorfos não-triviais. Isomorfos são aqueles que possuem uma

estrutura processual e permitem desdobramentos, uma espécie de eixo comum,

mas que, também, possuem singularidade. As diversas áreas do saber podem ser

melhor contempladas na Teoria das Estranhezas como partes e totalidades em si

mesmas. Isso significa que, como idiótipos, fazem parte de um mosaico. A

própria metafísica, como afirma Maluf (no prelo), começa a surgir das

“prateleiras das bibliotecas dos filósofos”. Mas “talvez a lição mais incisiva (e singular) dessa intertextualidade física/metafísica seja o reconhecimento de que não se pode admitir (...) uma província fechada (exlusiva) do conhecimento.”

Sob risco de um colapso (ibidem), poderíamos acreditar em

“engessamento”, caso isso ocorra.

A natureza se expressa em diversos níveis hermenêuticos, e, apesar das

diferentes linguagens e das especificidades de cada área, pensar em protótipos é

saber sobre individualidade e sobre interconexão. Maluf depreende a mesma

preocupação nos estudiosos atuais revelando-se através das palavras de Novello:

“toda vez que se questionar a ‘rigorosa distinção entre passado e futuro’, uma decorrência natural será o inevitável confronto com o dilema da violação da causalidade. Em outros termos, a indução de uma ‘metamorfose’ da noção de tempo (ou de espaço) acarretará, de algum modo, uma essencial transformação da noção de causalidade. De fato, foi isso que aconteceu, quando Heisenberg instituíu, de maneira drástica, a violação do caráter absoluto da noção de simultaneidade. O que leva a uma concepção, inteiramente, ‘estranha' de ontologia ! Mais tarde, isso ficará claro. Não foi à toa, inclusive, que inserimos no título da presente seção: os ‘as-pectos metafísicos'...” (ibidem).

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155

A noção matemática de função e equação são utilizadas dentro da Teoria

das Estranhezas para incluir esses dois aspectos estruturantes do conhecimento:

a noção de parte que não se esgota no todo e o todo que é maior do que a soma

das partes, discussão levantada entre o horizonte da explicação e da

compreensão. Ao explicitar o paradoxo entre uma estrutura que permanece, mas

sem seus constituintes jamais se repetirem, utilizará a noção de função, como

uma forma virtual (como o arquétipo/protótipo) e a equação como uma

singularidade - e expresão viva - que dela (função) emana, sem a ela ser reduzida

(imagem arquetípica/idiótipo). A função é comumente concebida como:

“um tipo especial de correspondência ‘um par de varáveis, x e y, ligadas por determinada relação funcional. A dependência funcional de y com relação a x, notada pelo simbolismo f= f(x), significando que a cada valor de x corresponde, pelo menos, um valor de y.” (Maluf, no prelo).

Maluf (idem), porém, afirma que a noção de função, é fundamental como

um tipo “especial de transformação” que viabiliza a transcriação de variáveis

ligadas, umas sob o formato de outras.

“Função pode ser considerada sob outro prismo: como um tipo especial de transformação [notada f] e que permite transcrever variáveis ligadas, umas sob o formato de outras, as primeiras ditas variáveis dependentes, notadas y; as segundas, variáveis independentes, notadas x – a transformação global notada

y = f(x)”

Segue Maluf, alertando ao leitor que o que escreve não deve ser lido

como “um mero texto de introdução à álgebra escolar”, porém como “se fosse um

texto teatral”. Isto se deve ao fato do que expõem necessitar de uma

“interpretação”. Da mesma forma que não se deve estranhar o use de letras nas

equações algébricas, estas servem como substitutas “intermináveis de números

apropriados”, “geram uma economia”, preservando-se, assim, “integralmente, a

estrutura da operação aplicada.” Esta forma de leitura, à que nos convida Maluf,

seria o que disponibilizaria o entendimento da dimensão ontológica na base de

um novo modo de construção do conhecimento. Ou seja, em cada forma de

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156

organização do saber, na base da explicação dada por uma determinada função,

ou qualquer conceito matemático, existe uma “inspiração”, uma intuição originária

que vigora. A função matemática indicaria, por exemplo, a relação entre estrutura

e processo, as varáveis permitindo com que uma determinada organização

permaneça são o ponto de síntese entre o infinito de possíveis com os quais

podem ser substituídas e o finito da determinação da organização da função.

Além disso, como dito anteriormente, a própria noção de função traz a presença

do fluxo, da síntese, da interação, assim como da transformação de elementos.

O significado é espantoso e pode representar a relação entre a noção de

atrator estranho85 e de simbólico. Algo se transforma, dependente de cada

contexto (na psicologia da combinação única de cada indivíduo, família e fatores

socioculturais a que pertence) ou condições iniciais (como se inicia o processo

matemático), mas não há como fugir a sua marca-impressão relativa a sua

totalidade funcional assim como não há como prever o resultado desta função de

transformação a partir das condições iniciais, rompe-se com todo o determinismo

de uma ciência newtoniana.

Rever a epistemologia é necessário em todas as áreas do conhecimento.

As ciências naturais necessitam enfrentar sua pretensa “naturalização” como

forma definitiva de verdade: mas também precisam ter cuidado para não cair em

um relativismo, uma vez que, para termos rigor científico não devemos eliminar as

diferenças entre áreas nem mesmo os paradoxos encontrados Um aspecto

polêmico é a discussão sobre a unidade, sem a negação da singularidade. Dentro

da perspectiva junguiana e da Teoria das Estranhezas podemos admitir que

exista na transdisciplinaridade insinuada no momento paradigmático, envolvendo

uma axiomática única, permitindo uma expressão múltipla, fluida e infinitivamente

criativa de isomorfos não-triviais ou, na linguagem junguiana, imagens

arquetípicas, símbolos que se manifestam no que Jung denominou por Função

Transcendente. Assim, é possível uma totalidade, mas dentro da perspectiva de

um “mosaico”. O mosaico de isomorfos necessita mais do que relações entre

partes: de um contexto de nível de compreensão que chamaremos de quarto,

85 Adicionar nota explicando a noção de atrator estranho e matemática do caos.

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157

associado à quarta cultura da Teoria das Estranhezas. Como veremos a seguir, a

esta foi buscar na proporcionalidade da seção áurea uma relação entre todo e

partes específicas, em que duas qualidades opostas, apesar de contrastantes,

são complementares, sendo totalidade múltipla (Ostrower, 1998: 219): “a divisão

da totalidade e, ao mesmo tempo, a coerência das múltiplas partes formando uma

totalidade”.

Em “Uma interpretação do mosaico cênico na criação coreográfica” Souza

(no prelo) levanta a questão do intérprete e do personagem. Esse momento único

pode ser analisado dentro da Teoria das Estranhezas e revela de forma clara a

questão dos protótipos e seus inúmeros isomorfos não-triviais. Este estudo

apresentado no I Simpósio do “Diálogos das Epistemologias – a proposta da

Teoria das Estranhezas”, pode ser um bom exemplo sobre as contribuições desta

epistemologia para o diálogo transdisciplinar. A encenação e a discussão sobre a

personagem Teresa D’Ávila, fica claro que as “ ‘Teresas’ construídas pelas

atrizes podem ser isomorfos não triviais do grande Mosaico personagem Teresa

D’Ávila um protótipo (...). As ‘Teresas’ interpretadas e dirigidas não têm a mesma

forma, mas abraçam semelhanças advindas do estudo e da pesquisa do sentido

de cada frase do texto”; (no prelo: 2-3).

Também sua imagem dançada e sua história falada cumprem a dupla

possibilidade de interpretação por caminhos díspares e únicos, duas

manifestações de um sentido desta Teresa anterior, mítica.

Quando um indivíduo histórico vira um personagem passa a ser um

protótipo, pois se consegue exprimir um processo vivo, ou seja, transforma-se em

um arquétipo e seu intérprete, a possibilidade de trazer à luz a força simbólica de

seu sentido, aquele que produz o “re-nascimento”. Cada nascimento é, porém,

inigualável, já que aquele quem interpreta exprime a energia do modelo original

como uma revelação singular. A “interpretação” estará sempre presente

marcando a generalidade do papel com seus contornos únicos. As

transformações entre o ser e o não ser manifestam-se na questão entre

qualitativo e o quantitativo, e são enfatizadas por estudiosos como que da área da

criação coreográfica, afirma:

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158

“O movimento cênico do intérprete é a possibilidade de ser e não ser ao mesmo tempo. O sujeito e o personagem como seres independentes que criam uma relação entre si de forma muito intimista. Um não existe sem o outro” (ibidem p. 1).

A partir de uma objetividade constrói-se um caráter subjetivo único. Um

intérprete em um momento, talvez essa seja a mágica do teatro a que os atores

se referem, a cada dia uma surpresa, uma nova gestação. A atitude

fenomenológica se expressa aqui de fora clara: só existe o que ganhou vida. A

potência está presente mas somente quando a grande unidade se expressa entre

o outro que interpreta (simbolizado pela dualidade, ou o número 2), o personagem

que de virtualidade (uno – totalidade de possibilidades) transforma-se em um (1),

em uma única possibilidade vivida, ou como escreve Vernant (apud Mello, 2002),

relega outras versões ao silêncio86. Eis a contribuição da psicologia de Jung e da

matemática, o número como símbolo é quantitativo e qualitativo. Cada um não

será igual mas também não é completamente diferente. Há uma quantidade

anterior mas que se manifesta na vida, logo aparece quando se manifesta. Inclui-

se nessa epistemologia o genérico e o particular.

A diferença que o particular nos lembra é que a ciência clássica e o seu

paradigma positivista quis esquecer os outros olhares, a própria “existência de

coisas que escapam ao alcance do ‘olhar’ meramente sensorial” (Maluf87, no

prelo), o subjetivo e o singular.

Em função dessa participação inevitável daquele que produz a obra não

há como desvincular, também no caso da psicologia, aquele que faz com sua

teoria. Um primeiro aspecto é a questão do amalgama entre a ação e o protótipo.

Para Jung ação produzia consciência mas partia de possibilidades virtuais.

Dentro desta abordagem haveria a necessidade conhecer o observador para a

um só tempo perceber “o erro” como seu subjetivismo, mas também sua

participação no campo como aquele capaz de expressar aspectos do outro e da

86 Comentando sobre mitos, Mello (2002), comenta que o ditado popular afirma que quem conta um conto aumenta um ponto. Relatar um mito é interpretá-lo, em certa medida: Contar um mito não é repetir mas sim reviver. Por isso precisamos resgatar o relato oral: "a escrita ignora o que dá substância e vida ao relato oral: a voz, o tom, o ritmo, o gesto" (Vernant, 1999: 14).

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relação. Deixar-se influenciar – e até ser contaminado – pelo inconsciente e

consciência do outro foi elevado a nível de técnica por Jung, em especial quando

se necessita de uma relação dialética. A teoria de Jung propõe o deixar fluir

através da relação dialética, seja na ciência, assim como na prática clínica, o

termo de imaginação ativa, mencionado inicialmente usado no texto sobre função

transcendente. Esse termo tem um significado especial para a psicologia

analítica por ser uma técnica que é na verdade um método amplo que une o

aspecto receptivo e ativo, quantitativo e qualitativo.

A contradição ou o paradoxo em uma mesma teoria produz o conflito que

permite que os opostos produzam o novo. Talvez seja necessário comentar que

o paradoxo dentro da cosmovisão junguiana se diferencia da contradição pois há

polaridades que podem conviver sem se harmonizar, estando integradas dentro

de um contexto de fundamentos, teórico e prático amplo o suficiente para abarcá-

los. Mesmo a contradição teórica na teoria e entre ela e sua prática pode levar a

adaptação de novos tipos de pacientes, novas necessidades atuais. Cabe,

porém, o compromisso nesses casos de uma reflexão constante se o sujeito

ainda estaria no âmbito da mesma teoria; e no caso de ambigüidades na própria

teoria, se haveria necessidade de uma epistemologia que organizasse em um

sistema mais apropriados conceitualmente.

IV.

Pitágoras88 inicia estudos com a matemática e ao conceber a idéia de

harmonias, estabelece ligações entre freqüências sonoras e os números. Ele

ampliou a percepção do equilíbrio dos acordes musicais para um sentido

87 Capítulo “O mosaico das informações – complexidades, informação e teoria das estranhezas”. 88 “Apesar de suas descobertas fundamentais da matemática, Pitágoras tinha uma outra faceta, apenas parcialmente explicada pela cultura de sua época e lugar. Em particular, a respeito do cosmo e da relação deste com a matemática, ele tinha uma crença que se afigura totalmente estranha. Hoje em dia, muitos cientistas acham que a matemática tem uma relação marcante com a realidade. Alguns chegam até a crer que, de algum modo, a matemática rege e controla a

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universal de harmonia. Os números eram entendidos como princípios

ordenadores que incluíam o singular e o geral. A abstração quantitativa que

conhecemos estava unida à qualidade de cada número, que representava um

significado deste número, constituindo entidades próprias. Dois pontos são

relevantes aqui: a união indissolúvel entre a quantidade e a qualidade dos

números e o fato de que a seção áurea significou sacralidade e transcendência

(idem). O primeiro aspecto refere-se à união do empírico com o racional,

dicotomia que aparece nos fundamentos de todas as áreas científicas e a Teoria

das Estranhezas vai resgatar a unidade, o mosaico desses dois isomorfos. O

segundo ponto marca a natureza diferenciada dessa relação tão estreita entre o

todo e as partes, trazendo uma sensação de síntese de tensões tão cara à

definição de arte ou grande obra, ao longo dos séculos.

Cabe afirmar que essa seria uma condição necessária à uma grande arte,

mas não suficiente pois, apesar de sua singularidade, necessita da tradução

ainda mais particular que só uma sensibilidade individual é capaz de revelar. Os

homens do tempo mítico e poético, no dizer de Fayga Ostrower, talvez

“pressentiram de alguma maneira que, com essa proporção - e com nenhuma

outra - estavam tocando em um algum princípio fundamental da natureza”

(ibidem, p. 242). Se isso aconteceu foi intuitivo, pois eles não dispunham de

qualquer aparato técnico, ou forma objetiva de chegar à investigação, ou mesmo

“cogitar da existência de fenômenos físicos fora do alcance de sua percepção

sensorial” (idem); afinal estamos anteriormente à cultura I da Teoria das

Estranhezas, que vai sistematizar o apenas sensorial (Maluf, 1997).

O que a seção áurea89 indicaria é uma proporcionalidade observada em

inúmeros lugares da natureza e da criação humana. Uma definição compreensível

é que a

“pro-porção (...) indica a relação e disposição de partes dentro de um

todo. Várias comparações ocorrem simultaneamente: das diversas partes entre si, das partes com o conjunto que constituem e, inversamente, do conjunto em relação às suas respectivas partes (ibidem p. 219).

realidade. Mas, quem poderia acreditar que a matemática rege e controla a realidade? Pitágoras acreditava.” (Dewdney: 2000, p. 7) 89 Durante muito tempo o número transcendente π foi considerado por muitos autores como sendo a Seção Áurea.

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161

Essa harmonia tensa, espécie de síntese de proporções, que comungaria

a noção de espaço e tempo (Ostrower, 1998), aparece em inúmeros idiótipos, na

ciência, na religião (Maluf, 1997) e na arte (Ostrower, op. cit.). Exemplos famosos

são os megalitos de Stonehenge na Inglaterra (Maluf, op. cit.), o Boeing 747, os

números de Fibonacci, a filotaxia, uma aproximação do cógico genético; a

disposição fibonacciana das folhas parece contribuir para a proteção do solo

contra erosão, e por fim, mas não menos importante, “todas as medidas do corpo

da mullher - sobretudo - devem obedecer, fiel ou aproximadamente (segundo

nossos olhos), às proporções da seção áurea” (ibidem, p. 84). Observa-se,

segundo os autores citados acima, essa proporcionalidade na arte como na

Última Ceia de Salvador Dali (Maluf, op. cit.; Ostrower, op. cit) Mona Lisa de

Leonardo da Vinci, etc...

A criação, como singularidade, é uma espécie de “sensibilidade individual”

(Ostrower, 1998: 221). Quando aliada ao encontro com uma proporcionalidade

radicalmente justa, medida, apropriada, aconteceria a arte que Jung associa ao

coletivo, uma espécie de “íntimo senso de equilíbrio” (op. cit.) que traduz

questões eternas marcadas pela genialidade particular e fundamentalmente

“estranha”, ou seja, nova. Estamos falando de “formas expressivas” e não de

abstrações (idem). União de flexibilidade e ordenação interior (ibidem, p. 234).

O encontro com o idiossincrático e o universal faz do mosaico um caso

especial, já que as formas produzidas por essas combinações possuem como

propriedade que: cada parte se relaciona com o todo, e o expressa em outro

nível hermenêutico; unindo todos esses níveis chegamos a uma forma

harmoniosa, apesar de assimétrica. Um exemplo seria um vitrô que se forma de

pequenos pedaços de vidro, revelados em seu apogeu pela luz que os atravessa,

produzindo uma unidade. Para ser um vitrô áureo, entretanto, precisaria ser

ainda mais completo: ofereceria uma proporção em cada fragmento colorido,

tendo uma relação de formas ou cores que emerge e possui uma direção. A

transformação do desenho total pode inspirar cada parte na revisão e recriação

de uma nova imagem. O que sustenta a noção de mosaico de isomorfos é a

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existência da seção áurea, pois senão seriam apenas multiplicidades

desarticuladas com relações circunstanciais.

A psicologia de Jung, ao postular a existência do Selbst como totalidade

múltipla, porém una, envolve o paradoxo entre o único e o global, o particular e o

universal, assim como entre o contínuo e o descontínuo. Esta espécie de

expressão psíquica da combinação única do DNA, o Self aparece como uma

totalidade múltipla que inclui o psíquico e o biológico. Esses dois idiótipos seriam

parte de um protótipo, onde cada manifestação é única e singular, porém

resguardando a proporcionalidade.

Isso encontra-se presente no pensamento junguiano , dando-lhe coesão e

coerência90, ao afirmar que o indivíduo em seu processo de constituição se

encontra fundado no que nomeia-se como sendo o processo da função

transcendente, ou seja, a consciência e o inconsciente em seu processo de

interação e síntese irão constituir este indivíduo, múltiplo e uno, coletivo e

singular, sujeito e objeto simultaneamente. Sobre este indivíduo, que podemos

nomear como sendo um processo simbólico, cabe compreendê-lo através de

todos os modos possíveis de conhecimento, assim como calarmos diante do

mistério que se desvela diante de nós. Por outro lado, isto permite dizer que

consciente e inconsciente são idiótipos ou se constituem através de um processe

de em que cada um poderia ser descrito como isomorfos não triviais. Através

deste processo de interação e transformação constitui-se o mosaico que

denominar-se-á de “eu”, o que na psicologia junguiana é descrito como “complexo

do eu”91, este conglomerado dinâmico e múltiplo de atitudes e libido que na

90 Caberia ressaltar que há um extrema consistência interna ao pensamento junguiano, por exemplo, ao se falar de processo de individuação temos que incluir a noção de simbólico como sendo necessária ao seu entendimento. Da mesma forma processo compensatório e união dos opostos são processos dinâmicos que encontraremos presentes em todo seu sistema descritivo do pensamento. Assim, mesmo baseando-se em uma lógica paradoxal, em uma linguagem metafórica, e em princípios não determinísticos, há na teoria junguiana uma profunda coesão que sustenta a consistência de sua obra e suas idéias e como conseqüência a validam. 91 Segundo Jung, cada complexo é constituído primeiro de um elemento núclear ou portador de significado, estando fora do alcance da vontade consciente, ele é inconsciente e não-dirigível; em segundo lugar, o complexo é constituído de uma série de associações ligadas ao primeiro e oriundas, em parte, da disposição original da pessoa, e, em parte, das vivências ambientalmente condicionadas do indivíduo. O complexo do eu forma o centro característico de nossa psique. Este, porém, é apenas um entre vários complexos. Os outros entram, com maior ou menor frequência, em associação com o

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dinâmica de suas interações possibilita com que emerge a unidade da

consciência.

O desenvolvimento científico ocidental abandonou as diferentes interfaces

da vida, tornando-se irracional em sua racionalidade. “A unidade de alta

complexidade” do homem (idem) explode em fluidez, isto será um choque das

mesmas proporções que a afirmação de Cantor da possibilidade da afirma uma

aritmética do infinito, ou seja sua positividade; conforme diria Jung, quando as

“fadas”, do conto da bela adormecida não são convidadas, assolam-nos com

maldições. Com a dificuldade de lidar com polaridades como o sapiens e o

religious, ou o sagrado e o profano, que Eliade (apud Maluf, 1997) registra e Maluf

reitera (idem), alternamos essas polaridades em nossa história ocidental. O

processo de fluidez, para a Teoria das Estranhezas,como para a psicologia

analítica, em seu paralelo com o processo denominado por função

transcendente, é a um só tempo, mineral, vegetal, animal e humano. A totalidade

múltipla envolve uma singularidade em termos de diferença e a circularidade do

reencontro, como enfatiza a Teoria das Estranhezas. Na tradição mítica, que a

vivência é única no ritual, o objetivo é o encontro do tempo mítico (onde

encontramos o protótipo) com a atualização posterior, em cada indivíduo, ou seja,

o idiótipo. Cada cultura convive com o novo e o sempre atualizado desde os

inícios. Como um resgate do "Era uma vez...” Vernant (1999) abandona o

pesquisador e se torna um contador de histórias para o neto, segundo suas

palavras. Conforme o autor (op. cit.), conhecer o mito não é repetir, mas sim

reviver. Por isso precisamos resgatar o relato oral: "a escrita ignora o que dá

substância e vida ao relato oral: a voz, o tom, o ritmo, o gesto" (Vernant, 1999:

14). O ritmo se traduz nas tradições míticas; como cada época de trevas é

seguida por uma de luz, o tempo é cíclico, o universo é símbolo. Como veremos,

a luz também tem um significado importante no mito, além de na física e na

psicologia de Jung (como símbolo da consciência). A relação entre luz e

obscuridade simboliza, segundo (Chevalier & Gheerbrant, 1997), os “valores

complementares ou alternantes de uma evolução”. Seja em termos internos ou

complexo do eu e desse modo, se tornam conscientes. No entanto, eles também podem existir por tempo mais longo sem entrar em contato com o eu, como que, aguardando no fundo da psique, até que uma constelação adequada os chame à esfera da consciência.

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164

externos, como por exemplo as imagens da China arcaica, cuja época sombria é

seguida, nos planos cósmicos, por outra luminosa. Como nos mitos de criação do

mundo e na alquimia (e da transformação da consciência humana segundo Jung),

a saída das trevas só é possível após a dissolução e reorganização (através da

discriminação e reunião de elementos). Nesse momento pode surgir o novo; no

caso das civilizações: uma nova era regenerada.

Somente com o surgimento do homem e o rompimento posterior com a

participação deste na natureza, e, finalmente com a filosofia ocidental e a ciência

que o movimento linear e a continuidade são introduzidos, e com eles a própria

noção de evolução. Nesse sentido (Cavalheiro, notas de aula, 2000), as teorias

psicológicas que se pretendem circulares em suas interpretações no sentido de

regularidade, certeza e repetição, correm o risco de mitologizar o humano,

produzindo um pensamento somente circular.

V.

Com a noção de símbolo rompe-se definitivamente com a caracterização

de um modelo único, que corresponda de forma unívoca à realidade.

Epistemologicamente o símbolo nos leva a desfazer um modelo dominante de

entendimento da mesma, pois como vimos, este nos evoca para uma pluralidade

de modos possíveis de conhecimento, o mosaico epistemológico. Um modelo só

será amplo o bastante quando se admitir método paradoxal que inclua a diferença

e a similitude, quando explicação e compreensão forem situados como modos

complementares e singulares de apreensão da realidade ao invés de antagônicos.

“O protótipo realiza a estruturalidade universal, a informação que se preserva. O

idiótipo leva às multiformes configurações, aos vários formatos possíveis” (ib

idem, p. 3)

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Esses formatos são similares, dentro de um aspecto, mas se constituem em

infinitas combinações singulares. Eis o paradoxo da união das polaridades de

forma complementar que a teoria das estranhezas e a psicologia analítica de Jung

propõe. Essa direção está associada a instauração de uma ruptura científica que

promova a união dos “aspectos bífidos de objetividade (segundo a distinção de

d’Espagnat): objetividade fraca X objetividade forte. (...) [onde] a objetividade

forte não pode ficar instaurada”. Porém, segundo o autor (op. cit), precisa ser

obedecida, em um determinado sentido. Isso significa uma dupla objetividade,

aquela que é independente do sujeito, e a objetividade dependente dele. Esse

dilema reflete, o que Maluf já havia detectado anteriormente (Maluf, no prelo)

O conceito matemático de função e equação surge na teoria das estranhezas

como duas polaridades imprescindíveis do conhecimento: um todo que é maior

do que a soma das partes, e partes que não se esgotam nessa totalidade. Da

mesma forma se apresenta o diálogo entre o contínuo e a discontinuidade. Há um

paradoxo entre uma

“estrutura que permanece, mas sem seus constituintes jamais se repetirem, utilizará a noção de função, como uma forma virtual (como o arquétipo/protótipo) e a equação como uma singularidade - e expresão viva - que dela (função) emana, sem a ela ser reduzida (imagem arquetípica/idiótipo).” (Mello, 2002:)

Maluf (op. cit.) reconhece que a noção de função, é fundamental como um

tipo particular de transformação que viabiliza a transcrição de variáveis ligadas,

umas sob o formato de outras. O que pode-se relacionar a noção de arquétipo e

do processo simbólico. Onde,

“Algo se transforma, dependente de cada contexto (na psicologia da combinação única de cada indivíduo, família e fatores socioculturais a que pertence) ou condições iniciais (como se inicia o processo matemático), mas não há como fugir a sua marca-impressão relativa a sua totalidade funcional.” (Mello, no prelo)

A função como compreendida por Maluf implicaria no entendimento de

uma correspondência, em seu aspecto psicológico, entre consciente e

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inconsciente de tal forma que quando ocorre alteração em uma das “variáveis”

altera-se a outra, sendo interdependentes as duas instâncias. Este princípio

explicaria o processo de compensação tal como advogado por Jung e a

possibilidade do consciente afetar o inconsciente da mesma forma que este

àquele.

O ser humano como uma singularidade a partir de aspectos gerais seria

entendido como equações que surgem das funções que são idiótipos, mas

essas equações podem ser repetitivas ou "iterativas". Diferente das equações

lineares, que se desenvolvem de maneira ordenada para um resultado posterior

previsível, equações iterativas determinam seu próprio destino. Seu resultado é

raramente previsível, onde elas parecem freqüentemente ter pouco efeito é o

caminho que seguem. De fato, equações iterativas são tão imprevisíveis que

mesmo duas que tenham começado com pouca diferença desenvolvem-se de

formas totalmente diferentes.

Ao se utilizar a matemática como um campo fértil para paralelos

podemos perceber o número como algo real e imaginário ao mesmo tempo. Essa

dupla faceta é observada também na psicologia de Jung quando este aponta para

a idéia de objetividade e subjetividade concomitantes. Esses dois idiótipos, o real

ou objetivo e o imaginário ou subjetivo podem ser entendidos como duas faces da

mesma moeda. O mundo do inorgânico ou mesmo do abstrato em sua

diferenciação do mundo animado implicaria a inclusão da noção de finalidade, ou

intencionalidade, como vimos, se levarmos em consideração o aspecto psicóide,

ou seja, o resgate da organização não-fortuita da natureza como um todo

indissolúvel. Lembremos que há dentro da possibilidade do protótipo a inclusão

da diferença e da similaridade. Mais que isso, cada “microcosmo” como pode ser

entendido o idiótipo é um infinito conjunto de possibilidades. Ao evitar reduzir os

próprios números a elementos quantitativos a Teoria das Estranhezas, bem como

a Psicologia Analítica resgata a integração da quantidade com a qualidade.

Admitir esse paradoxo é viabiliza a compreensão nessas áreas e na matemática,

como vimos anteriormente, Cantor ao demonstra que para o conjunto de

números infinitos a parte é igual ao todo. Provou isto ao demonstrar que em

qualquer intervalo real (a, b), por pequeno que seja, existem tantos números

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quanto em todo o conjunto dos reais. Não há, assim, dentro do universo dos

infinitos, qualquer desequilíbrio entre a parte e o todo, nem este ultrapassa o

conjunto das partes nem estas seriam destituídas de harmonia com aquele.

Dentro da postura epistemológica junguiana isto significaria que o homem

e o mundo seriam, como o inconsciente e a consciência, como vimos através do

conceito de símbolo, duas faces matemorfoseadas da mesma realidade

fundamental, isomórfos fundados em um mesmo idiótipo radical, o Inconsciente

Coletivo. Por sua vez, esse idiótipo humano, que é anterioridade, está

inevitavelmente ligado a mundo concreto: o cosmos como um todo é resgatado

como uma totalidade, um protótipo. A Teoria das Estranhezas e a Psicologia

Analítica, bem como os estudos sobre Matemática e imaginário, estão resgatando

o todo, mas aceitando as polaridades evitando a exclusão contida no princípio da

não-contradição. As fronteiras fluidas permitem a um só tempo, integrar a

delimitação necessária de cada especificidade, e diluir a abstração de como se

constituiu o olhar científico clássico. Como sabemos esse olhar congelado que

sempre operou estabelecendo um distanciamento frio da natureza, adotando um

limitada, porém aparentemente segura, forma artificial.

O vazio que une todos os idiótipos não é uma nulidade, nem uma

virtualidade qualquer. Dentro da abordagem junguiana há um eixo de sentido,

uma condensação energética que marca um caminho mas não pode ser dedutível

por um observador.

O homem poderia ser considerado a memória dos sistemas vivos e

interativos, assim com suas linguagens, em especial a simbólica, encontra-se

disponível para ele a síntese dessas interações. Para a nova compreensão das

disciplinas a serem estudadas, faz-se premente a linguagem simbólica, por ter

como característica básica ser síntese comunicativa, surgida do inconsciente,

parte da historicidade do indivíduo e também da coletividade. A simbologia será,

desta forma, uma forma privilegiada de “circunscrever” a totalidade anterior da

origem, seja ela do Universo, do homem enquanto humanidade ou ainda

enquanto indivíduo ao mesmo tempo em que traz a vantagem de ser inesgotável

em sua multiplicidade pluri-significativa.

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No caso do homem em sua ontogênese psíquica pode-se dizer que

descrição desse momento seria como no mito:

“(...) aquilo que desejaria toda a descrição não mítica, porque aquilo que descreve o ego e aquilo que é descrito - o princípio, que antecede todo ego - mostram ser grandezas incomensuráveis tão logo o ego tenta captar o seu objeto conceitualmente, como conteúdo da consciência” É por essa razão que, no princípio, há sempre um símbolo, “cuja multiplicidade de sentidos será a maior possível e cujo caráter indeterminado e indeterminável é o mais marcante” (Newmann, 1990, p. 25).

A própria definição etimológica de símbolo já traduz essa noção de união,

ela traduz a expressão: “lançar com”, “arremessar ao mesmo tempo”, “conjugar”

como diz Junito Brandão (1988) o símbolo era um indício de reconhecimento, um

objeto partido, que, ao acontecer o ajuste, permitia aos portadores de cada uma

das partes se reconhecerem. “Bulein” (βυλειν) é um verbo que significa lançar e

“sym” (συν) traz a noção de simultaneidade, ou seja, são duas metades que são

lançadas ao mesmo tempo. O mito, que tem como forma de expressão o símbolo,

é a maneira que o homem tem de conjugar através dos símbolos os significados

imaginários.

Para C.G. Jung o inconsciente coletivo é de um lugar anterior, original,

fonte de toda a criatividade que já se expressa na criança através de formulações

imagéticas em sonhos, fantasias e temores. Imagem igual ao chamado pré-

universo (Novello, 1988). Para Jung o simbólico é muito mais que isso, ele é a

máquina que transforma energia que, como tal, permite síntese e reequilibrações

do sistema psíquico como um todo. E em função de “(...) referir-se à origem e à

essência, ele é um clarão pluridimensional (...) um microcosmo” (Mello, 1991, p.

8). É justamente a partir dessa concepção de inconsciente de C.G. Jung que a

sua noção de símbolo tem sentido. O símbolo é um fato psicológico não

solucionável de forma causal, não determinista, mas com sentido múltiplo e

multideterminado. Ao mesmo tempo que o símbolo anula os antagonismos, ao

unir permite que as polaridades se separem ao se fazerem presentes em sua

unidade, falando de uma mobilidade permanente.

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169

VI.

No mosaico, para falarmos de origem e transformação, a sucessão

recursiva de transformações se desenvolve, tanto na direção do passado quanto

na direção do futuro. Neste sentido, não haveria a condição de um mosaico

inicial. Para Maluf, através da noção de isomorfos, indica-se a transformação

reversível não-fechada de algo original - protótipo- em idiótipos. Sendo que a

caracterização tanto do protótipo quanto do idiótipo é sujeito dependente. O fato

de ser sujeito dependente garante a quebra da dicotomia sujeito-objeto, ao

mesmo tempo em que rompe com a idéia de uma ontologia cindida da

epistemologia. Nesse sentido, o conhecimento seria construído pelo sujeito,

estaria implicado como historicidade e temporalidade, rompendo com o ideal de

uma neutralidade científica. Através da propriedade de fluidez, “a sucessão de

transformações iteradas se desenvolve, sem obedecer a uma seqüência, e sem,

nunca, se tornarem completas ou fechadas.” (Maluf, 1996).

A busca da integridade no ser humano, ou mesmo nas ciências, é o

enfrentamento dos paradoxos, das polaridades e da diversidade em geral. O

símbolo é local privilegiado de estudo, então, já que não teríamos acesso à

unidade original, seja através de suas manifestações individuais e coletivas, seja

nos sonhos dos indivíduos ou nas representações coletivas simbólicas, nos mitos,

religiões em geral ou nas artes. Seria desnecessário, porém essencial pontuar

que esses símbolos se transformam. Retomando a questão do símbolo no seu

aspecto de totalidade, pode-se dizer que este traz a totalidade porque embute

polaridades em geral tal como racionalidade e irracionalidade e é pluri-

significativo. A percepção de duas metades que alcançam uma unidade original

no símbolo foi já pontuada por Léa Sholl e Priscila Kuperman (apud Teves, 1992)

quando em seus artigos sobre imaginário e símbolos, escreveram,

respectivamente “(...) a memória simbólica poderá ser o ‘processo pelo qual o

homem não só repete suas experiências passadas, mas as reconstrói’ (Cassirer,

apud Teves, 1992, p. 34). Ou ainda:

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170

“(...) se faz necessário uma restauração do estatuto do pensamento simbólico, (...) como uma forma de conhecimento que se deve conciliar com o conhecimento científico, de modo a prestar esforços para que se defina uma base epistemológica na busca de soluções criativas para os impasses do pensamento e da prática social contemporânea”. (idem)

Na combinação do pensamento convergente e divergente que se cria e se

estrutura uma ciência. O imaginário, com sua infinita possibilidade simbólica, é o

local onde abre-se a possibilidade de se trazer à tona o material essencial para

reflexão e transmissão de informações, saber sobre a existência, como coloca

Kuperman (in: Teves, 1992), precisamos “estar à escuta da fala da imaginação”

(pág. 37). A criação está, então, relacionada com o símbolo, e pode ser o resgate

da importância do processo imaginativo, seja na crença para facilitar a educação,

ou no estudo epistemólogico que vai permitir um acesso mais amplo ao real.

A Teoria das Estranhezas em sua proposta transdisciplinar, assim como ao

disponibilizar um modelo epistemológico, onde a ruptura entre as categorias

indicativas de uma dicotomia entre sujeito e objeto, interno e externo, psíquico e

físico, etc..., sejam desfeitas torna-se o melhor instrumento para se pensar o

modelo junguiano em toda a sua originalidade e a partir do âmbito paradigmatico

proposto pelo próprio Jung, ou seja, como a “união dos opostos”. Ela nos

permite, também, tratar o conhecimento como um processo hermenêutico, tanto

quanto como definições explicativas, sem que com isto caiamos em uma

dicotomia onde o paradoxo torne-se contradição. Simultaneamente, permite-nos

articular um diálogo entre as “ciências humanas” e as “ciências da natureza”,

desobjetivando a primeira e subjetivando as outras, isto é, apresentá-las como

idiótipos e ismorfos não triviais, que em seu processo de fluidez constitutiva, não

rompem com o protótipo que se encontra como a possibilidade de suas

manifestações. Este protótipo poderia ser entendido, como sugere Jung, pelo

nome de inconsciente coletivo, o solo no qual assentam todos os saberes. Assim,

pelo fato de serem isomorfos não triviais cada qual permanece com sua

singularidade e é através desta mesma que somos encaminhados à possibilidade

de um diálogo entre as ciências de tal forma que este diálogo seja uma abertura

para a atualização deste protótipo e assim uma nova re-volução epistemológica.

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Conclusão

"Os matemáticos amam a matemática porque, como as Graças sobre as quais escreveu Safo, o assunto tem espinhos como as rosas silvestres. Se a beleza governa a alma dos matemáticos, a verdade e a certeza lembram a eles seu dever. No fim do século XIX, matemáticos curiosos a respeito de seus fundamentos se perguntaram por que a matemática era verdadeira e se era exata e, para seu assombro, descobriram que não podiam responder e não sabiam...." (Berlinski: 2002, p.18)

“Un devient deux, deux devient trois et du troisième vient l’Un comme quatrième92” (Jung: 1946, p. 209)

I.

Como podemos identificar ao longo da obra de Jung, em suas pesquisas,

desde seus primeiros trabalhos com a teoria dos complexos, utilizando-se de uma

metodologia experimental, ou seja, psicofísica, passando pelo contato com a

psicanálise e chegando aos seus estudos alquímicos, há uma preocupação com o

rigor científico, rigor metodológico. Por outro lado, existem a emergência e a

relevância de certos temas, operacionalmente ao menos, que serão considerados

tabus pelo método científico, ao qual Jung tenta se ater. Um destes temas é o seu

interesse pelas religiões e pela arte. Não nos podemos esquecer de que Jung

teve uma formação médica, psiquiátrica, baseada em princípios empíricos e

reducionistas; por outro lado, através de um método específico e uma cosmovisão

própria, irá incluir no campo da ciência psicológica áreas do humano, sem que,

92 “O um torna-se dois, dois torna-se três e do terceiro vem o Um como quarto.” (Tradução minha)

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com isto, procure reduzi-las, conforme uma ciência empírica, ou seja, sem que

reduza a diversidade da experiência a um modelo explicativo uniforme.

Assim, podemos dizer que, apesar desta formação e do compromisso

com o método científico, sempre houve na cosmovisão de Jung o vigor de algo

que remetia às fronteiras da ciência de sua época, baseada no reducionismo

empírico ou no racionalismo cartesiano. Isto se encontra presente em seus

trabalhos sobre os fenômenos ocultos, assim como em suas palestras e leituras.

Se quisermos fazer justiça ao pensamento junguiano, devemos remetê-lo a duas

fontes: por um lado, ao que há de mais tradicional em termos de pensamento

científico, empírico; por outro, aos místicos renanos (Mestre Ekhart, Jacob

Boehme, Paracelso, etc.), assim como à ciência romântica. Este modo de

proceder nos conduz a nomear Jung como um pensador da totalidade, múltipla e

dinâmica.

Há, como se pode identificar, uma aspiração pelo todo, tanto em sua obra

como em sua vida. Este todo seria a união que pretende estabelecer entre ciência

e filosofia ou, melhor dizendo, entre tradição e modernidade. Existe, como dito

anteriormente, uma extrema coerência no pensamento de Jung. Mesmo não

sendo considerado por alguns como um pensador sistematizador93, há uma

integridade de fundamentos em sua obra que corresponde a uma cosmovisão

coerente; assim, há um sistema fundamental que a provê de coerência e

integridade. Isto podemos identificar ao se mapearem as relevâncias de certos

conceitos e idéias e sua importância para o entendimento de sua obra. Basta

pensarmos na idéia central, em torno da qual sua obra se desenvolve, o

“processo de individuação”, que é descrito, sucintamente, como o processo de

tornar-se inteiro, completo, a que se refere, diferenciando de tornar-se perfeito.

Tal processo implicaria a união do consciente e do inconsciente, porém, como diz

Jung, não sabemos, nem saberemos jamais, quais os limites do consciente e do

inconsciente94, processo de concretização da totalidade, encarnada no indivíduo.

93 Informação verbal de Dra. Heloisa Cardoso. Segundo ela, existiriam dois tipos de pensadores, os sistematizadores e os problematizadores. 94 “Teoricamente, é impossível dizer até onde vão os limites do campo da consciência, porque este pode estender-se de modo indeterminado. Empiricamente, porém, ele alcança sempre o seu limite, todas as vezes que toca o âmbito do desconhecido.” (Jung: 1954, p. 3)

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173

Tornar-se inteiro significaria, então, algo que não é passível de ser

representado conceitualmente, porém poderia ser compreendido vivencialmente,

isto é, simbolicamente. Outro aspecto interessante do processo de individuação é

que, à medida em que este processo se dá, mais e mais o homem se aproxima

da natureza, expressa como a idéia de inconsciente coletivo, solo comum a todos

os homens, assim como a tudo que existe. Bem, se há esta aproximação, que

não é “um ir a algum lugar”, mas que poderia ser entendida como um “retornar à

morada originária”, quanto mais o homem cumpre o compromisso mais legítimo

que possui consigo mesmo, na perspectiva junguiana, mais e mais se torna uno

com a humanidade. Assim, o processo de individuação é o de enraizamento do

homem no todo, não mais como uma parte indiferenciável, mas sim como

consciência de sua especificidade e da interdependência entre todos os seres, o

que implicaria a desconstrução de um modelo de consciência subjetiva e

representacional. O uno se torna o todo e o todo se torna uno, ao longo do

processo de individuação95.

Entender este processo como ponto de reunião da obra é situá-lo como

um símbolo do próprio pensamento de Jung. Como apresentado anteriormente, a

totalidade múltipla que se encontra presente a nível humano, individual, no

processo de individuação, possui uma correspondência com a noção de unus

mundus96, ou seja, de uma unidade da realidade que preexiste a todas as

dicotomias criadas. A noção de unus mundus aponta e traz o vigor desta unidade

primordial, ou seja, da totalidade, que reúne e congrega a multiplicidade em um

todo tenso e dinâmico.

Na idéia de unus mundus encontramos, também, a dissolução de toda a

perspectiva reducionista, no modelo de ciência newtoniana e cartesiana, ou seja,

nem empirismo nem idealismo, a solução seria um tertium non datur, que,

95 “Muito embora a tomada de consciência da individualidade possa corresponder ao destino natural do ser humano, ela não é o fim último. Isto porque não é possível que o objetivo do homem se reduza a um conglomerado anárquico de existências individuais. Contrapondo-se a isto, o processo da individuação natural produz uma consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à consciência o inconsciente95, que é o que une todos os homens”. (Jung: 1945, p. 103)

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174

apresentado através do símbolo, permitiria que se desfizesse a pretensa

esperança da redução do mundo a elementos ou a idéias puras.

Pode-se identificar, através deste exemplo, que, para se entender o

pensamento de Jung, se faz necessária, desta forma, a compreensão de sua obra

como um todo; isto significa dizer que precisamos buscar uma “co-

respondência”97 com sua cosmovisão, o que implicaria em uma abertura para a

totalidade e na tarefa de nos situarmos como a abertura através da qual os

opostos se reúnem. Isto porque, sob a multiplicidade de temas que aborda, há

uma coerência intrínseca, que se manifesta como a interdependência de todos os

seus temas e como uma sistematização, que poderíamos nomear ontológica, por

apontar e permitir que vigore uma visão unificada e fundamental do modo de

construção e organização da realidade – entenda-se – homem e mundo. Esta

unidade e esta organização seriam expressas pela noção de inconsciente

coletivo, unus mundus ou pleroma98, a realidade objetiva. A especificidade da

idéia de inconsciente coletivo diz respeito à noção de uma interioridade que se

distingue da noção de subjetividade, que permite que os símbolos se constituam e

que os conceitos sejam criados, sem que, no entanto, um ou outro a reduzam, de

alguma forma, pois, como condição de origem de ambos, não se esgota em

nenhum.

Outro aspecto, do ponto de vista epistemológico, refere-se à circularidade

das idéias de Jung, o que poderíamos nomear como o “círculo hermenêutico”,

pois cada idéia que desenvolve remete para alguma outra, operando como

fundamento. Este horizonte, que se encontra como limite e raiz de todas as

outras, é a imagem da totalidade, presente nas noções de “conjunção dos

96 A idéia de unus mundus remete à noção da união dos opostos a nível macrocósmico, possui solidariedade com a noção de complexio oppositorum, coincidentia oppositorum, unio mystica, etc. 97 Talvez o necessário para nos tornarmos junguianos seja refazer o caminho indicado por Jung, isto é, aproximarmo-nos de sua obra como de um texto poético, tanto quanto “científico”, e reencarnar a experiência do inconsciente tal como ele propôs. Em minha dissertação de mestrado, discuti que este caminho seria abandonar Jung enquanto figura real, histórica, e olhá-lo como um símbolo do processo de reconstituição de mundo e homem, tal como indicado por ele. Neste sentido, considero sua biografia como um dos livros mais valiosos em sua bibliografia, pois nela ele se apresenta como símbolo do processo de individuação, assim como indica o caminho, isto é, apresenta o método, de tal forma que nela podemos identificar a íntima relação entre episteme e ontologia, ou seja, entre seu método, terapêutico e de trabalho, assim como a cosmovisão de mundo que desvela para nós.

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opostos”, “inconsciente coletivo”, Selbst, unus mundus, pleroma, “processo de

individuação, complexo”, etc. Cada idéia destas, quando tematizada, evoca a

noção de totalidade, assim como esta se encontra implicada em cada uma

daquelas. Este círculo hermenêutico não se reduz a um círculo vicioso, devido ao

fato de que, a cada modo de explicitação, explicação e construção da realidade,

assim como de elaboração de um novo conceito, um aspecto específico deste

todo estaria sendo mapeado, manifestando-se e sendo delimitado. Poderíamos

dizer que há, no círculo hermenêutico, um processo no qual um protótipo se torna

um idiótipo, que se torna um protótipo, o que produz isomorfos não triviais, sendo

que estes poderão, posteriormente, tornar-se protótipos. Compreendido desta

forma, o círculo vicioso desfaz-se e o círculo hermenêutico torna-se mais uma

forma de prover de consistência interna a teoria de Jung99.

Entenda-se da seguinte forma: processo de individuação e Selbst são

isomorfos não triviais; o Selbst é o protótipo por excelência, pois traz em si a

noção de totalidade múltipla e de fluidez, de processo e estrutura. Considere-se

também o Selbst como o protótipo do “complexo do eu”, o idiótipo do outro, que

são isomorfos não triviais, assim como processo de individuação seria um

isomorfo não trivial do processo de formação da personalidade. Não triviais, pois

um não se reduz ao outro, o que implica a união dos opostos, consciente e

inconsciente, porém o inconsciente, para Jung, origem da consciência, é protótipo

desta, da mesma forma que corpo e psique podem ser considerados como

isomorfos. Há, desta forma, uma iteração, onde os processos se sucedem sem

que, com isto, haja repetição, sua não trivialidade; o que se funda no mesmo

gera, a cada nova manifestação, o novo. Como processo, possui uma dinâmica

que caracteriza sua fluidez, que permite que a multiplicidade se congregue em

uma unidade, isto é, a dinâmica dos elementos será o que permite que haja a

iteração e se manifeste uma totalidade posterior. Talvez o melhor exemplo disto

seja a noção de complexo, que, funcionalmente, se encontra na base do modelo

98 Quanto às definições de unus mundus e pleroma, ver anexos. 99 “(...) o inconsciente coletivo é qualquer coisa menos um sistema pessoal encapsulado; ele é objetividade absoluta, tão amplo como o mundo e abre para todo o mundo. Nele eu sou o objeto de toda subjetividade, em completa oposição de minha consciência ordinária, onde sou o sujeito que possui um objeto. Lá eu sou completamente um com o mundo, do mesmo modo uma parte dele, de forma que o eu esquece muito facilmente quem eu realmente sou. ‘Perdido em si-mesmo’

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dinâmico de toda organização do psiquismo, para Jung. Esta totalidade, que

emerge da interação dos elementos em um todo, como o autor descreve a

formação dos complexos, pode ser considerada como sendo um idiótipo da

unidade e da totalidade originária, nomeada unus mundus100.

Seguindo o princípio do pensamento da totalidade, assim como o de uma

epistemologia que corresponda a tal, através da idéia de função transcendente,

ela pode ser considerada como um protótipo, que será tematizado por Jung

através de uma intuição originária, remetendo a um modelo epistemológico

transdisciplinar. Como protótipo, a idéia de função transcendente permite

compreender-se como algo, que se daria de diferentes modos de manifestação,

em áreas de saberes distintas, remeteria, porém, à mesma experiência. Com isto,

o que se quer dizer é que, ao buscar o paralelo na matemática, não estamos

afirmando ou sugerindo que psicologia e matemática sejam a mesma coisa, mas

indicando como a intuição, que remete a um modo de organização de mundo,

pode ser localizada presente em ambas. Por outro lado, encaminhamo-nos para

um diálogo entre saberes que, tradicionalmente, se encontram delimitados por

uma distinção irredutível, ou seja, a matemática como um ciência formal e a

psicologia como um saber empírico; a primeira, o conhecimento abstrato das

condições de organização do todo, e a outra, um conhecimento da organização

do homem. Para Jung, estes saberes podem estabelecer um contato através dos

protótipos que os permeiam — psicologia e matemática formariam, deste modo,

isomorfos não triviais.

II.

é uma boa maneira de descrever este estado. Mas este ‘Selbst’ é o (próprio) mundo (...).” (Jung: 1936, p. 46) 100 “O Selbst é uma realidade ‘sobre-ordenada’ ao consciente. Abrange a psique consciente e inconsciente que também somos (...) Mas não devemos nutrir a esperança de chegar a uma consciência aproximada do Selbst; por mais consideráveis e extensas que sejam as realidades interiores e os setores apreendidos pela consciência, não desaparecerão a massa imprecisa e uma soma desconhecida de incoerência, que também fazem parte integrante da totalidade do Selbst.” (Jung: 1961, p. 358)

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A noção de função transcendente remete a alguns aspectos, abordados

ao longo da tese, interessantes de serem ressaltados, em função do valor

compreensivo desta realidade para a qual apontam. Como vimos, há, na função

transcendente, matemática, quatro aspectos implicados:

1. A noção de função,

2. Os números imaginários,

3. Os números transcendentes e

4. Os números transfinitos e o continuum.

Para se entender a importância destes conceitos, epistemologicamente,

no que se refere à psicologia analítica, faz-se necessário o seu esclarecimento

compreensivamente, conforme a proposta de Maluf: “ler o texto como uma peça

teatral”, ou seja, metaforicamente.

A noção de função, o processo de interação de variáveis, implica a fluidez

e a própria relação entre variáveis, que serão conceitos fundamentais para o

entendimento da psicologia junguiana, em seu processo de conjunção dos

opostos, ou de integração de consciente e inconsciente. Sem esta integração não

haveria a possibilidade da realização desta totalidade, que Jung nomeia Selbst

ou processo de individuação, a nível pessoal. Para ele, toda a psicologia culmina

na união dos opostos, tema tratado ao fim de sua vida, nos volumes de Mysterium

Conjunctionis. O Selbst, como totalidade, não é algo a que se chegue

definitivamente, mas um processo que emerge como um todo, na interação entre

consciente e inconsciente, à medida em que se estabelece um diálogo entre um e

outro, surgindo como síntese deste diálogo a totalidade do psiquismo. Porém esta

totalidade não é fechada, como sabemos; para Jung, não há limites para o

psiquismo, que, sendo assim, é processual, algo que está em constante processo

de realização101. A fluidez está implicada na própria noção de função, no

estabelecer relação, relação entre variáveis, que podem ser consideradas valores

não fechados, não determinados.

101 Esta seria uma das diferenças básicas entre a completude e a perfeição, pois a última implica em um término, um fechamento, que poderia ser entendida como o alcançar um ponto final no processo.

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Como função, poderíamos dizer que o homem é uma síntese inacabável,

possuidor de uma forma, uma combinação única, porém cujos elementos

formadores não se encontram determinados, formas vazias de conteúdo.

Através da idéia de números imaginários Jung nos remete à característica

mais fundamental do inconsciente, a capacidade de criar formas, a “imaginação

verdadeira”.. Este seria o aspecto estruturante do inconsciente, incapaz de ser

representado racionalmente, ou representacionalmente. Esta característica do

inconsciente é um operador, uma estrutura funcional geradora dos símbolos e,

sendo assim, da realidade. Com isto, poder-se-ia entender que Jung estaria

indicando que a natureza do inconsciente é da ordem do não racional, nem

racional nem irracional, mas daquilo que provê condições para que a

racionalidade e a irracionalidade se manifestem; o inconsciente estaria além do

sem sentido e do sentido. Da mesma forma, o inconsciente é o horizonte que

confronta o homem em sua pretensão de tudo compreender e tudo explicar.

Por outro lado, com o conceito de imaginário e de inconsciente coletivo,

rompe-se com o reducionismo fisicalista, pois é um conceito que ultrapassa as

possibilidades das operações convencionais; matematicamente, no que refere às

raízes quadradas, os números imaginários são operadores que não são

localizáveis sensivelmente, são impossibilidades lógicas aparentes.

Transportando esta idéia para a psicologia, poder-se-ia dizer que o inconsciente

não é físico nem psíquico, escapa a qualquer tentativa de delimitação ou

colonização. Rompe-se, assim, com a busca de fundamentos elementaristas ou

fisicalistas quanto à sua origem, não está em algo orgânico nem em um

psiquismo autônomo, desfazendo-se com isto a metáfora biológica do psiquismo,

assim como sua idealização.

O conceito de número transcendente, ou de função transcendente, seria

uma das mais ricas idéias para o entendimento da cosmovisão junguiana. O π102 ,

talvez o mais famoso de todos eles, é um exemplo das conseqüências de tal

102 O número π, como dito anteriormente, foi, durante muito, considerado como a Seção Áurea.

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idéia, tematizada por Jung. Como vimos, sempre intrigou os matemáticos, ao

longo dos séculos, na tentativa de sua determinação, sem que, contudo,

conseguissem determinar uma fórmula que o calculasse ou determinasse o seu

valor total. Assim, neste simples número, simples pela sua natureza singular,

encontra-se dado um dos maiores mistérios que se possa conceber, como o

infinito se encontra dado no finito, ou, em outras palavras, para se calcularem

formas geométricas simples, o círculo, faz-se necessário nos utilizarmos de um

número incalculável103, eis aí a manifestação do paradoxo que, traduzido em

linguagem psicológica, seria dizer que o homem é síntese entre o infinito e o

finito.

O círculo, como apresentado anteriormente, é o símbolo por excelência

da totalidade e do Selbst; desta forma, tem-se como conseqüência, do ponto de

vista psicológico, que, para se representar a totalidade, o infinito tem que se fazer

presente. Isto traz em seu bojo um paradoxo, pois, como poderia algo da ordem

do sensível, da ordem da consciência, dos elementos comuns, para se constituir,

ter que integrar o infinito? Isto nos remete, epistemologicamente, por um lado, à

condição assinalada por Maluf, em que a realidade é sujeito dependente, em

outros termos, toda realidade objetiva alcança sua objetividade somente em se

incluindo a subjetividade como participante. Na clínica, poder-se-ia dizer que só

há objetividade se houver a inclusão, o comprometimento, da variável do analista.

A objetividade só se torna de fato consistente quando incluímos o sujeito; desta

forma, desfaz-se a concepção tradicional da ciência na crença de objetividade

absoluta ou na certeza, o que excluiria a interferência de qualquer observador104.

103 “(...) a seção áurea pode representar de forma muito surpreendente a idéia de algo que se repete mas é totalmente diferente em termos de expressão singular e possui uma proporcionalidade que demonstra um equilíbrio entre polaridades. O self poderia ser considerado a um só tempo a seção áurea como uma totalidade virtual, a expressão singular daquela vida (o círculo como um todo); o ponto no meio que nos faz uno com o universo; e a união dos dois, o eixo ego-self que só se torna real quando unimos a flexibilidade extrema e a firmeza que caracterizam a proposta de realização do self.” (Mello: 2002, p. 41) 104 “Na epistemologia de acordo com a teoria das estranhezas - A interdependência entre observador e observado se amplia para a totalidade do vivido, no sentido não-ordinário, ou seja, através de aspectos lineares e não-lineares ao mesmo tempo. Rompe-se definitivamente com qualquer concepção de elementos no sentido de unidades cristalizadas ou elementos últimos. A fluidez (Maluf, 1997) é inclusiva: leva em consideração o linear e não-linear.” (Mello: 2002)

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Por outro lado, outra conseqüência desta intuição original de Jung é situar

o homem como infinito ou, dizendo com suas palavras, é compreendermos que o

homem é criatura e criador, simultaneamente. Isto foi desenvolvido por ele em

seu livro Resposta a Job, ao longo do qual situa o homem, na figura de Job, como

interlocutor de deus105, e, como tal, dele demanda explicações sobre sua

existência e seus sofrimentos, ao mesmo tempo que os padece sem se lamentar

ou com eles se identificar. O homem, como criador-criatura, aquele que possui a

capacidade de criar e destruir mundos, está, também, preso à sua condição de

participante na natureza e inserido no mundo. Talvez seja por este fato que

possui a capacidade de modificar seu mundo, com isto, modificando-se. Ele seria,

nesta perspectiva, o ponto de convergência, onde o infinito, inconsciente, e o

finito, consciente, se encontram, formando um símbolo do mundo e de deus.

Como símbolo, traz em si a união destes opostos e a tarefa de ser a abertura pela

qual estes se fazem presentes, ou seja, a tarefa do homem seria constituir-se

como a possibilidade da união dos opostos.

O conceito de números transcendentes implica duas intuições ontológicas

que encontramos, também, presentes ao longo da teoria junguiana. A primeira

delas, problematizada por Cantor, seria a realidade do infinito de forma positiva,

isto é, a possibilidade de se fazer uma aritmética do infinito de tal forma que ele

não seja apenas uma idéia filosófica ou entendido como conceito limítrofe. Desta

forma, reencontramos uma solidariedade fundamental, como isomorfos não

triviais, entre os números transcendentes e os números transfinitos. Isto

encontraria eco na noção de realidade psicológica, tal como desenvolvida por

Jung, tanto como na noção do inconsciente coletivo como sendo a realidade

objetiva.

Outra característica, conseqüência da aritmética transfinita, é o fato de

que, no nível infinito, a parte é igual ao todo, não existe uma dissociação entre o

conjunto infinito que se apresenta com uma cardinalidade inferior e outro como

sendo superior. Um exemplo seria a demonstração dos pontos infinitos que

105 Por deus, entenda-se, do ponto de vista psicológico, o Selbst. Por outro lado, seria a imagem que representaria o mistério e a totalidade da vida, que constitui o homem como possibilidade de possibilidade.

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existem em uma reta finita, isto é, em uma dada reta, existem tantos pontos

quantos são o número transfinito de cardinalidade 0א. A correspondência, do

ponto de vista psicológico, desta idéia, por exemplo, poderia ser encontrada na

noção de que tanto o inconsciente quanto a consciência não possuem uma

delimitação dada, não há um maior que o outro. Segue-se daí que, a nível infinito,

não haveria uma separação entre a parte e o todo, ou, em outras palavras,

homem e cosmos formam uma unidade indissolúvel.

Por último, a aritmética transfinita traz a noção de continuum de volta à

discussão. Com isto, retoma-se a idéia de uma unidade múltipla e não dissociada.

A realidade não seria mais entendida como se constituindo de elementos

isolados, não haveria espaços vazios, mas seria um todo fluido e contínuo. Esta

idéia encontra ressonância, na teoria junguiana, na noção de teleologia106 e na

existência de um inconsciente, coletivo, que seria anterior e matriz originária de

toda a realidade, a dimensão da realidade antepredicativa, como nomeada por

Husserl. A partir da noção de continuum, infere-se a existência de um processo

ininterrupto, uma direção para um fim. Porém este fim não é algo dado ou

previsível, mas pode ser entendido como uma “intencionalidade” que se encontra

presente na natureza e no psiquismo. Esta intencionalidade não implica a

existência de alguma entidade superior ou demiurgo, que regeria o universo, mas

decorre da própria inter-relação entre todos os seres, de tal forma que o

movimento se repercute e ressoa, como em uma rede, onde cada nó se encontra

vinculado ao outro, independente da distância. Outra forma de se entender a

noção de continuum é através da necessidade de construção de um sentido, a

organização das experiências vividas em um todo, ou seja, a realização de uma

narrativa que organize a experiência humana e de mundo.

Outra característica seria a possibilidade de desfazer-se a noção de um

inconsciente subjetivado e situar-se o homem como se constituindo e estando

enraizado em seu âmbito, ou seja, não é o inconsciente que está em nós, mas

nós é que estamos no inconsciente. Reencontramos, aqui, a noção de pleroma,

106 A noção de teleologia não deve ser compreendida de forma reducinista. Jung não diz em momento algum que haja um ponto para onde se dirija a vida psíquica; este fim, que se identifica com o processo de individuação, é algo a ser realizado, sempre e de novo, onde o sentido vigoraria como seu determinante, sem ser determinado. O fim, o telos, é a própria necessidade de sentido.

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esta idéia como conseqüência do fato de que não há separação entre os

elementos constituintes da realidade. Com isto, identifica-se uma organização ou

estrutura unificada, na forma de uma totalidade múltipla e dinâmica, onde um

conceito e uma idéia de base se encontrariam implicados em outro.

III.

Com a tematização da idéia de função transcendente, abordada por Jung,

torna-se claro que ele não está apenas descrevendo um processo psicológico, ou

seja, não estaria trabalhando somente com os aspectos metodológicos de sua

teoria, o modo como os símbolos são formados ou o processo de interação entre

consciente e inconsciente. O que estaria sendo indicado é uma perspectiva

ontológica, isto é, dos fundamentos da dinâmica radical da constituição do ser,

assim como o modo através do qual o ser opera e se manifesta. Assim, esta idéia

de Jung torna-se um ponto vital para a compreensão de sua obra, não apenas no

sentido metodológico, isto é, como indicativo dos processos observáveis e

caminho para uma descrição dinâmica do psiquismo ou como fundamentos para o

desenvolvimento de uma técnica. Ele vai além, abre uma dimensão fundamental

de sua cosmovisão, a partir de uma intuição em que podemos vislumbrar algumas

características do que seriam estes fundamentos ontológicos do humano, ou seja,

fluidez, totalidade e unidade – múltipla. Por outro lado, pode-se dizer que, ao

desfazer o reducionismo ontológico, as categorias que se referem apenas à

subjetividade estariam situando o homem e o mundo como compreensão e como

morada do mistério, que se estaria manifestando através da singularidade vivida

individualmente, como o indivíduo que se constitui em sua especificidade única

entre o finito e o infinito, como coletivo e singular. Este homem que é, ao mesmo

tempo, biológico e psicológico, homem que é símbolo. Da mesma forma, o mundo

se encontra ampliado como horizonte do mistério, como símbolo.

Devemos entender que a compreensão não se obtém, desta forma,

somente pela via da reflexão ou pela razão, ao homem, torna-se necessário

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voltar-se sobre si próprio, adquirir uma atitude contemplativa, estática, isto é,

buscar o equilíbrio nesta singularidade plural que o funda. A compreensão e a

vida se dão, assim, ao homem, através dele ou advindas de fora dele, mas não

apenas pela via da razão. A compreensão é vivida como o próprio que o homem

é.

O que pretendi apresentar nesta tese foi esta perspectiva, que se

encontra latente operacionalmente em Jung, onde homem e mundo são

entendidos como realidades simbólicas. Por outro lado, através de um tema

nuclear, um aspecto específico de sua obra, a idéia de função transcendente,

esclarecer algumas conseqüências de suas idéias naquilo que contribuem para

um modelo transdisciplinar de pensar a ciência e o humano. Como observado ao

longo do diálogo com a matemática, podemos considerar que Jung procurou a

forma de pensamento mais rigorosa e abstrata naquilo que se refere a refletir e a

delimitar os fundamentos da realidade; por outro lado, muito ainda resta a ser

pensado, a partir daquilo que o autor abre como possibilidade, com suas intuições

e reflexões. O desenvolvimento desta tese, natural, seria pensar as relações entre

biologia e psicologia junguiana, principalmente no que se refere à neurobiologia

de Francisco Varela, às suas reflexões sobre os fundamentos dos seres vivos,

assim como à aproximação que começou a realizar, em seus últimos trabalhos,

com a fenomelogia de Husserl.

Para uma proposta transdisciplinar, tanto a Teoria das Estranhezas

quanto o pensamento junguiano se fazem particularmente fecundos, devido à

cosmovisão que se encontra inerente a ambos, que se fundam em noções de

totalidade, unidade – múltipla e dentro de lógica inclusiva, paradoxal. Desta forma,

há a possibilidade de um diálogo entre os saberes, no horizonte dos dois, assim

como a inclusão da diversidade em um todo, um mosaico de isomorfos, sem que,

com isto, se reduza a diversidade a uma unidade amorfa e desprovida de vida.

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Page 193: Mad Did a Miao Junior

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ANEXO A

Álgebra

Parte da matemática que estuda os processos racionais de realizar operações

como adição, subtração, multiplicação e divisão. Operando com os números e

com símbolos que representam entidades ou elementos não especificados. O

problema fundamental da álgebra é encontrar solução para as equações obtidas

pela associação dos símbolos, empregando apenas métodos racionais. Os

símbolos empregados podem representar números, quantidades variáveis,

medidas, objetos materiais, etc... (Enciclopédia Britânica do Brasil Barsa. Rio de

Janeiro/ São Paulo, 1985. Vol. 2, p. 265)

Números Inteiros

Números inteiros 1, 2, 3, .... O conjunto dos números naturais é denotado N.

Algumas vezes o 0 (zero) é incluído na lista dos números "naturais" e, não existe,

aparentemente, nenhum acordo sobre sua inclusão.

Conjunto Nome Símbolo

...., -2,-1,0,1,2,... Inteiros Z

1,2,3,4,.... Inteiros positivos Z+

0,1,2,3,4,... Inteiros não negativos Z*

0.-1,-2,-3,-4,... Inteiros não positivos

-1,-2,-3,-4,.... Inteiros negativos Z-

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Números Reais

O conjunto de todos os números racionais e irracionais é nomeado de números

real, ou simplesmente "reais". O conjunto dos números reais é também chamado

de continuum, denotado C. O conjunto dos reais é chamado Real na matemática,

e um número x pode ser testado, para ver se ele é membro dos reais.

Números Racionais

Um número que pode ser expresso como uma fração, onde p e q são inteiros, é

chamado de um número racional de numerados p e denominador q. Os números

que não são racionais são chamados de números irracionais. O conjunto de todos

os números racionais é denominado "racionais" e denotado Q. Todo número

racional é, trivialmente, um número algébrico. O conjunto dos números racionais

podem ser submetidos às operações algébricas elementares, da mesma forma as

frações. Sempre é possível encontrar um outro número racional entre dois

membros do conjunto dos racionais. Entretanto, contrário à intuição sensível, o

conjunto dos números racionais é um conjunto contínuo, porém são, ao mesmo

tempo, contáveis.

Números Irracionais

Os números que não podem ser expressos por uma fração de nenhum inteiro p e

q. O mais famoso irracional é √-2, algumas vezes chamado de Constante

Pitagórica. Outros exemplos são; π, ℮, etc... Todo número transcendente é

irracional.

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195

ANEXO B107 PLEROMA "No 1o Sermão, Jung faz uma espécie de cosmogonia, indicando a

natureza do elemento primordial, o PLEROMA, segundo a terminologia gnóstica, isto é: o Nada ou Vazio primordial, que paradoxalmente, contém potencialmente Tudo ou a Plenitude. Trata-se de uma dialética de ambigüidade. O conceito de inconsciente coletivo pode ser entendido como o PLEROMA dos gnósticos, em nível psicológico individual. É infinito e incognoscível, é eterno, transcendental, incriado e intemporal. Nele os conteúdos são indiferenciados, e, portanto, incognoscíveis, no entanto, ele é, ao mesmo tempo, a fonte e matriz da consciência e de todos os seus conteúdos.

Para Jung, o mundo criado se constitui de emanações e é penetrado pelo Pleroma, assim como um corpo é penetrado de luz. Daí, poder-se falar do Pleroma em nós, como um ponto pequeno e hipotético, no firmamento ilimitado do cosmos. Tudo que é definido e sólido é sujeito à mudança. A criação dos seres é fruto da diferenciação que exige o Principium Individuationis.

Nesse Sermão, Jung fala, pois, do princípio de individuação, um dos pilares de sua teoria, e que se constitui na diferenciação a ser feita entre os pares de opostos que emanam do Nada primordial. Tal diferenciação não é, para Jung, apenas uma questão intelectual, mas a necessidade de que cada ser atinja a verdade de sua própria natureza. Para ele, há, assim, uma dialética de implicação mútua entre o Criador e os seres criados, cabendo ao homem realizar a soma de suas potencialidades latentes, integradas no Si-mesmo, sua totalidade transconsciente.

A indiferenciação é como a morte, já que os opostos se anulam no Pleroma e, assim, Jung, diferentemente, de certas posições orientais dá grande valor ao trabalho consciente do ego, capaz de diferenciar os opostos. Na verdade, o estado anterior de igualdade é, para Jung, a anulação do indivíduo enquanto tal.

Esses representam emanações do Pleroma e se apresentam como syzygias (pares complementares de opostos), significando as qualidades do Pleroma em nós, pois o Pleroma em si é vazio e não tem qualidades. Dessa forma, Jung se apresenta não como um dualista, pois cada um deve transcender o fascínio de cada pólo e guardar a distância de cada um (função transcendente). Jung apoia-se aqui na idéia do conflito de opostos de Heráclito.

Diz ele: “Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação”. Daí Jung recomendar que cada um de nós deve lutar por realizar sua verdadeira

107 Este material, referente ao Pleroma, foram extraídos de CARDOSO,

Heloisa O Que você Deve Saber Para Entender Jung I, Rio de Janeiro: Aion, no prelo.

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196

natureza, mantendo o raciocínio sob controle, através da gnose, sem anular as forças da vida. Trata-se de seguir o caminho fáustico, existencial, de viver a vida em sua plenitude.

A salvação do homem constitui, pois, em sua libertação dos pares de opostos, das syzygias que, em termos junguianos, se constituem dos aspectos positivos e negativos dos arquétipos. Como, para Jung, o inconsciente é a matriz da consciência, nós não temos os pensamentos, mas eles fluem para nós a partir do Pleroma (função psicológica da intuição) e abrem nossa consciência para a plenitude do Ser.

Assim, a verdadeira natureza do homem implica a relação dialética entre a consciência e a inconsciência, entre a moral e o instinto, sendo que nós no Ocidente privilegiamos a consciência, enquanto o Oriente desenvolveu mais seu relacionamento com o inconsciente.

Daí que o desejo de autoconhecimento, da mesma natureza que o desejo por alimento ou por sexo, é o movimento pela transformação, superando as unilateralidades da consciência pela compensação exercida pelo inconsciente. Se vida e liberdade se reconquistam a cada dia, podemos dizer que Jung é um precursor da psicologia existencial.

Na verdade, para ele, as teorias são apenas abstrações que nos afastam do mundo concreto e das conexões com nossa criatividade transformadora. Diz ele: É preciso mudar não os conceitos, mas a si mesmo, pondo o pensamento sob o controle do Self. " (Cardoso op. cit. p. 33)

O homem, como alquimista e sacerdote dessa nova gnose, é um modelo unitário da realidade com conexões causais e acausais, reconciliando espírito e matéria, na unidade do mundo, na síntese do unus mundus. Vida e espírito se reúnem: o espírito dá o significado, mas ele não é nada sem a vida... (Cardoso, p. 42)

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197

ANEXO C108

(...) Após seus estudos alquímicos, Jung passou a aceitar, como verdade psicológica a noção do unus mundus, a ela fazendo menção, em vários de seus textos, por exemplo, em seu livro MYSTERIUM CONIUNCTIONIS v.2 (1990:290-1), não uma especulação metafísica - como em Plotino; mas, a projeção do inconsciente, do mundo potencial antes da criação - conceito do alquimista Dorneus - potencial e extratemporal; e ainda, como o lapis alquímico. Tal unidade latente do mundo encontra seu correspondente empírico nas mandalas e tem na sincronicidade o análogo parapsicológico (Progoff, 1989). (...)

(...) Expressamente, assim Jung se manifesta:

Com a aceitação de uma identidade do psíquico e do físico, aproximamo-nos da concepção do unus mundus (mundo uno) dos alquimistas, aquele mundo potencial do primeiro dia da criação, quando ainda nada existia de separado...Paracelsus e sua escola, entretanto, admitiram que a matéria é um `increatum' (incriado ou não-criado), e desse modo, portanto coexistente e coeterna com Deus. Se eles imaginavam essa concepção como monista ou dualista, não consegui averiguar...para todos os alquimistas a matéria tinha um aspecto divino, seja que Deus estivesse detido na matéria sob a forma de anima mundi (alma do mundo), ou a anima media natura (alma no meio da natureza), ou seja, que a matéria representasse a `realidade' de Deus." (idem: 294-5).

É impressionante a consistência das idéias em Jung, pois em 1898, ainda estudante, ele escrevia: "O campo do absoluto não é dividido em dois campos distintos, a Ding an sich [em alemão, na tradução inglesa] de um lado, e o mundo fenomênico, de outro. TUDO É UM. (ZOFINGIA LECTURES, 1983:77). Ou então: "Vistas as coisas sob esta luz, podemos conceber a existência de um número infinito de mundos que se relacionam um ao outro como círculos concêntricos e excêntricos. (ibid.). [antevisão da tese dos universos paralelos?] (op. cit. p. 47)

108 Este material, referente ao Unus Mundus, foram extraídos de

CARDOSO, Heloisa O Que você Deve Saber Para Entender Jung I, Rio de Janeiro: Aion, no prelo.