MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA · da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda –...

4
58 59 N ú m e r o C a t o r z e S e t e m b r o F o u r t e e n t h I s s u e S e p t e m b e r LUÍS SÁ CUNHA MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA O Português, língua da primeira globalização O anúncio feito há três anos pelo Presidente Xi Jinping de restauração das antigas rotas comerciais – a Rota da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda – provocou imediato impacto nos meios internacionais e algum estremecimento nas geografias mais directamente envolvidas, como em Macau. Talvez, ainda não tenhamos assimilado este desígnio geoestratégico nas suas implicações e dimensões, no delineamento futuro de uma nova geopolítica mundial. Mas a nova era da globalização, força da actual revolução tecnológica e das emergências geoestratégicas já em curso, vai desenhar grandes alterações na cartografia global. E tudo, incluindo políticas da Educação e das Línguas, terá inevitavelmente de se projectar nas novas figuras e acomodar-se aos seus apelos e convocatórias. Porque o factor económico andou sempre a pari passu com o factor linguístico, e porque sempre o factor económico e linguístico trouxeram na sua cauda uma mala cheia de conteúdos epistémicos do Outro, de mundividências, tecnologias, ciências. A Língua, de outra perspectiva, não é apenas um corpus de signos que veicula o epistema e a doxa do Outro, é em si mesma e como tal, um poderoso factor de poder. É um exército soft da potência política. Basta olhar para o império hegemónico do anglo-saxonismo, e lembrar que o Português foi Língua franca em todo o Oriente, do golfo pérsico ao Japão e passando pela Insulíndia [arquipélago malaio, mar do Sueste asiático], no século XVI. O multilinguismo potencia as trocas comerciais, e as trocas comerciais reforçam o multilinguismo, tanto mais quanto mais intensas. Durante um século, que se estendeu em inércia por muito tempo depois, o Português continuou a ser Língua oficial em todo o Oriente, também como recurso comercial e diplomático das concorrentes potências europeias que aqui chegavam e tinham que recorrer à papiação lusófona para comunicar com os potentados asiáticos ou nas trocas comerciais através da intermediação das comunidades de luso-descendentes espalhadas ao longo da contínua linha litorânea das costas asiáticas, esse extenso império sombra que ponderava no uso dos crioulos indo-português e malaio-português, tão representado no patuá de Macau. Recordamos algumas informações de David Lopes sobre o uso da Língua portuguesa nas regiões do continente asiático tão bem ilustrada nesta situação: as autoridades de Urtan (Samatra) mandaram em 1609 a Keeling um mercador inglês que falava português com uma carta de um almirante holandês em língua portuguesa; os moradores de Comores, em frente a Ormuz [Irão], falavam português (1639-1687); em Batávia [Jacarta], falava-se Português e a pregação católica era feita em Português; idem no Ceilão [Sri Lanka], ilha quase conquistada na totalidade pelos portugueses, na única acção de ocupação territorial do império luso, e onde os reis se correspondiam com os holandeses em Português (1647); os reis de Arracão [Rakhine, noroeste da Birmânia] correspondiam-se em Português com o Governador holandês de Batávia, o que não admira, sabendo-se que todo o golfo de Bengala houvera sido dominado por Gonçalves Tibau com um exército de 14000 homens, e onde sabemos IDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTS IDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTS de resquícios da presença lusa; mais para sul, Filipe de Brito Nicote foi rei da maioria do Pegu [Birmânia], com excepção do reino de Ava [norte da Birmânia], onde ainda se encontram memórias e práticas da língua e da religião cristã; jesuítas franceses missionados à China falavam Português com o governador de Batávia; a Companhia Inglesa das Índias obrigava missionários a aprender o Português, e foi com base num dicionário Português-Chinês feito por um jesuíta português (crê-se que Manuel Dias) obtido em Londres que Morrison organizou o primeiro dicionário Chinês-Inglês; no reino do Sião [Tailândia], em Ayuttia [Ayutthaya], também se falava Português, língua em que os padres franceses, por isto, tinham que pregar; no Japão, antes da perseguição e expulsão dos jesuítas, 200000 cristãos falavam Português, como se

Transcript of MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA · da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda –...

Page 1: MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA · da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda – provocou imediato impacto nos meios internacionais e algum estremecimento nas geografias

58 59 N ú m e r o C a t o r z e S e t e m b r o F o u r t e e n t h I s s u e S e p t e m b e r

LUÍS SÁ CUNHA

MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA

O Português, língua da primeira globalização

O anúncio feito há três anos pelo Presidente Xi Jinping de restauração das antigas rotas comerciais – a Rota da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda – provocou imediato impacto nos meios internacionais e algum estremecimento nas geografias mais directamente envolvidas, como em Macau. Talvez, ainda não tenhamos assimilado este desígnio geoestratégico nas suas implicações e dimensões, no delineamento futuro de uma nova geopolítica mundial. Mas a nova era da globalização, força da actual revolução tecnológica e das emergências geoestratégicas já em curso, vai desenhar grandes alterações na cartografia global. E tudo, incluindo políticas da Educação e das Línguas, terá inevitavelmente de se projectar nas novas figuras e acomodar-se aos seus apelos e convocatórias. Porque o

factor económico andou sempre a pari passu com o factor linguístico, e porque sempre o factor económico e linguístico trouxeram na sua cauda uma mala cheia de conteúdos epistémicos do Outro, de mundividências, tecnologias, ciências. A Língua, de outra perspectiva, não é apenas um corpus de signos que veicula o epistema e a doxa do Outro, é em si mesma e como tal, um poderoso factor de poder. É um exército soft da potência política. Basta olhar para o império hegemónico do anglo-saxonismo, e lembrar que o Português foi Língua franca em todo o Oriente, do golfo pérsico ao Japão e passando pela Insulíndia [arquipélago malaio, mar do Sueste asiático], no século XVI. O multilinguismo potencia as trocas comerciais, e as trocas comerciais reforçam o multilinguismo, tanto mais quanto mais intensas. Durante um século, que se estendeu em inércia por muito tempo depois, o Português continuou a ser Língua oficial em todo o Oriente, também como recurso comercial e diplomático das concorrentes potências europeias que aqui chegavam e tinham que recorrer à papiação lusófona para comunicar com os potentados asiáticos ou nas trocas comerciais através da intermediação das comunidades de luso-descendentes espalhadas ao longo da contínua linha litorânea das costas asiáticas, esse extenso império sombra que ponderava no uso dos crioulos indo-português e malaio-português, tão representado no patuá de Macau. Recordamos algumas informações de David Lopes sobre o uso da Língua portuguesa nas

regiões do continente asiático tão bem ilustrada nesta situação: as autoridades de Urtan (Samatra) mandaram em 1609 a Keeling um mercador inglês que falava português com uma carta de um almirante holandês em língua portuguesa; os moradores de Comores, em frente a Ormuz [Irão], falavam português (1639-1687); em Batávia [Jacarta], falava-se Português e a pregação católica era feita em Português; idem no Ceilão [Sri Lanka], ilha quase conquistada na totalidade pelos portugueses, na única acção de ocupação territorial do império luso, e onde os reis se correspondiam com os holandeses em Português (1647); os reis de Arracão [Rakhine, noroeste da Birmânia] correspondiam-se em Português com o Governador holandês de Batávia, o que não admira, sabendo-se que todo o golfo de Bengala houvera sido dominado por Gonçalves Tibau com um exército de 14000 homens, e onde sabemos

IDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTSIDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTS

de resquícios da presença lusa; mais para sul, Filipe de Brito Nicote foi rei da maioria do Pegu [Birmânia], com excepção do reino de Ava [norte da Birmânia], onde ainda se encontram memórias e práticas da língua e da religião cristã; jesuítas franceses missionados à China falavam Português com o governador de Batávia; a Companhia Inglesa das Índias obrigava missionários a aprender o Português, e foi com base num dicionário Português-Chinês feito por um jesuíta português (crê-se que Manuel Dias) obtido em Londres que Morrison organizou o primeiro dicionário Chinês-Inglês; no reino do Sião [Tailândia], em Ayuttia [Ayutthaya], também se falava Português, língua em que os padres franceses, por isto, tinham que pregar; no Japão, antes da perseguição e expulsão dos jesuítas, 200000 cristãos falavam Português, como se

Page 2: MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA · da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda – provocou imediato impacto nos meios internacionais e algum estremecimento nas geografias

60 61 N ú m e r o C a t o r z e S e t e m b r o F o u r t e e n t h I s s u e S e p t e m b e r

Francisco Pina, intérprete na corte dos Nguyên, e que organizou um método de transcrição fonética baseado na escrita da Língua portuguesa, e logo de seguida uma gramática, trabalho que seria continuado pelo autor do primeiro dicionário Vietnamita-Português (1634), o padre Gaspar Amaral, e do primeiro dicionário Português-Vietnamita (1636), organizado pelo padre António Barbosa. Dado o criptografismo de algumas línguas orientais para os ocidentais, a transcrição fonética através de caracteres romanizados foi um expediente que muito veio facilitar a comunicação linguística, seguido mais tarde por Wades Gilles e pelo pinyin na República Popular da China (RPC).

Talvez não se tenha tido ainda a cabal consciência de que o patuá

macaísta não é sobrevivência curiosa e passadista do falar de casa das nhonhas da Macau antiga, é o compêndio vivo do corpus linguístico que foi a Língua de comunicação da primeira era da globalização, entre a Europa e todo o Oriente, e que, assim rememorado e considerado, devia incontornavelmente ser alçado a património mundial. Quando cheguei a Macau tive a sorte de estar num jantar com o maire de Malaca (o Sr. Mikael), uma jovem senhora macaense, o Dr. Isaú Santos (notabilíssimo Director do Arquivo Histórico de Macau, de ascendência cabo-verdiana). Ia-se falando arrimados ao bordão do Inglês quando, alguém alvitrou, porque não falar em crioulo? E tudo continuou, mais gostoso, animado e humorado, no patuá luso-sino-malaio, no luso-malaio

e no luso-africano, sem qualquer recurso a dicionário... E este, e outros aspectos, mereciam mais investigação e estudo comparativo, porque neles surpreendemos o fenómeno da operação, pelos vulgares e vários “usadores” do veicular linguístico, dos afeiçoamentos do cânone erudito à comunicação corrente, nas depurações da gramática e da sintaxe e na simplificação e adoçamentos glóticos, que enfatizados na expressão e nos ademanes resultam em comunicação prática, expressiva, e acessível.

Macau, centro de multilinguismo e de tradução

A perduração de Macau ao longo dos séculos só tem sustentação no ter sido entreposto de apoio a comércios e operações culturais entre a Europa e o Extremo Oriente, sobretudo a China Imperial, funcionando como centro de traduções e de multilinguismo. Com consciente missão intercomunicadora ou pontifical, fazedora de pontes para o curso de produtos e ideias. Este é o ADN eterno de Macau, não é o jogo, tardio enxerto de recurso ante o desespero da falência seguinte à 1.a Guerra do Ópio, desde os tempos de Ferreira do Amaral.

Depois do curto período de animação económica prestado pelas cerca de duzentas lorchas de pequenas empresas macaenses na protecção ao comércio marítimo internacional, e às embarcações dos mandarins das províncias chinesas, até às imediações de Xangai / Ningpó, Macau caiu em estagnação só socorrida pelos finais de oitocentos por uns surtos de sorteios ou jogos de fortuna e azar. Dois governadores portugueses, entre a última década de oitocentos e a primeira do século passado, lançaram o grito de alarme de que a dependência exclusiva do jogo seria o cancro de Macau. Porque o

fácil recurso às indústrias do jogo iria provocar o emurchecimento ou a anestesia de outras pulsões vitais de incubação de alternativas soluções para as carências económicas e o desenvolvimento harmónico de Macau. Não se tratava de recomendação de secundarização dos jogos, apenas considerar que o jogo é o aparelho digestivo e reprodutor, quando o coração e a cabeça foram sendo obnubilados pelo seu fulgor e imediatismo lucrativo.

Cerca de sessenta anos depois do estabelecimento tolerado, contavam-se em Macau quatrocentos jurubaças, ou intérpretes, que não reunindo todos as normais habilitações suficientes à função, tinham capacidades para intermediações, em Macau e no interior, entre empresários chineses e comerciantes estrangeiros, que saltavam de alívio e euforia quando se viam socorridos no interior por algum deles. Na maturidade da segunda fase da expansão europeia na Ásia, e nas imediações da I Guerra do Ópio, Macau foi a base de recepção e encaminhamento dos navios de comércio de todo o

ilustra na vasta integração de termos portugueses no léxico nipónico. Mas, ao nível mais elevado das trocas culturais, puro domínio do espírito, a exigência de conhecer o Outro gerou a notável geração de jesuítas na China, que durante duzentos anos, todos sinólogos de elevado nível, verteram cerca de trezentos livros em Língua chinesa e Línguas europeias, apresentando o essencial da herança greco-romana à China Imperial e o essencial epistémico sínico à Europa. O multilinguismo foi uma característica básica dos inacianos, os primeiros a gizar e executar um plano internacionalista à escala global, que para tanto procuravam o domínio das línguas locais; exemplo disto é a língua do Tum Kim, Tonquim ou Vietname, que existe assim hoje graças ao jesuíta português mundo para o interior, Cantão em

especial, com as suas estruturas de avalizador, secretário, intérprete e comprador, no enquadramento às operações comerciais. A abertura dos portos do Tratado esvaziou esta estrutura de serviços de Macau, mas ao longo do século e princípios do século XX, manteve-se a chama da imprescindibilidade de sinólogos, intérpretes e tradutores, para a diplomacia, e a intercomunicação diária entre as comunidades de língua chinesa e de língua portuguesa, e os contactos com autoridades do interior.

O desmantelamento da Companhia de Jesus pelo Marquês de Pombal alquebrou profundamente a grande sinologia da igreja de Roma, que por isso foi continuada com a escola civilista da Procuradoria dos Negócios Sínicos, extinta em 1894, e que contou nos tempos finais com sinólogos ilustres como José Baptista de Miranda Lima, António Feliciano Marques Pereira, Pedro Nolasco da Silva e Leôncio Ferreira. A sucessora Repartição Técnica do Expediente Sínico herdou os estudos da língua sínica até 1945, onde se distinguiu

IDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTSIDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTS

Page 3: MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA · da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda – provocou imediato impacto nos meios internacionais e algum estremecimento nas geografias

62 63 N ú m e r o C a t o r z e S e t e m b r o F o u r t e e n t h I s s u e S e p t e m b e r

Nolasco da Silva com substancial obra pedagógica a ser usada nos estabelecimentos de ensino de Macau. Luís Gonzaga Gomes foi o derradeiro continuador desta cadeia de bilinguismo que procurou implementar nos estabelecimentos de ensino de Macau, mas sem resultados positivos. No Pe. Joaquim Afonso Gonçalves (1781-18) e no Pe. Joaquim Guerra (1908-1993), considerados figuras de topo da sinologia internacional, esgotaram-se os grandes sinólogos de Macau de extracção religiosa.

da hegemonia tributária sínica desta rota tradicional marítima, já procurada pela mítica embaixada chinesa que no século III AC perseguiu esta busca do reino de Ta T’sin, o Império de Roma, (v. Sir Yule ) que também almejava trocas com o país de Seres (a China). A identificação de Ta T’sin, e da religião de Ta T’sin, foi largamente debatida durante a longa polémica sobre a Estela Nestoriana, apontando os vários informes para a situar para o sul de Antioquia [antiga capital de Síria dos Selêucidas], que Álvaro Semedo logo

centrou na Galileia (e Nazaré) lugar de nascimento de Jesus Cristo, e da religião da Cruz.

É esta rota que Vasco da Gama vem contornar, em sequência da queda de Constantinopla e da emergência do forte império Otomano que isolara a Europa do Oriente e, a partir daqui, a Rota Marítima da Seda prolonga-se para sul e ocidente, pela costa oriental africana, Abissínia [Etiópia] e Quénia (Melinde), Ilha de Moçambique (primeiro entreposto e

IDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTSIDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTS

As longas negociações para a transferência de Macau para a RPC não contaram com um único abalizado sinólogo português de Macau, e a dinamização do bilinguismo, que cresceu dos finais de 90 e se intensificou depois de 1999, foi de sinal quase único, no alargamento da área da Língua Portuguesa para satisfazer o novo papel de Macau como plataforma entre a China e os países lusófonos.

No decurso desses últimos anos, clamava-se por manuais de apoio

ao ensino da Língua chinesa, olvidando-se nas prateleiras de bibliotecas e arquivos os inúmeros e prestáveis manuais pedagógicos para aprendizagem da Língua chinesa de Nolasco da Silva e do Pe. Afonso Gonçalves, este admirado por Abel Remusat por ter concebido uma nova fórmula de redução a 121 dos 214 radicais usados na consulta dos dicionários chineses.

Fazer a rota ao contrário

A geopolítica é a política da continuidade e das constantes porque a geografia está sempre no mesmo lugar. Macau está no mesmo sítio e é agora chamado por análogas solicitações do seu passado. O que a reanimação da Rota Marítima da Seda representa nestes e futuros tempos é o percurso da torna-viagem, já agora em sentido inverso de seiscentos, em que é a iniciativa chinesa a propulsionar a ida de reencontro à Europa, pelos mapas das antigas vias terrestres e marítimas. A antiga via marítima da seda, com vários delineamentos, começou num entreposto chinês na costa do actual Vietname, recuou mais tarde a Ningpó e Amoy [Xiamen], derrotando pelo Nanyang [Mar do Sul da China], em direcção a Malaca, Sião, Ceilão (com desvio ao cume do Coromandel passando entre o Ceilão e a ponta sul da Índia) e subindo pela costa indiana até ao golfo de Aden e entrada no Mar Vermelho pelo estreito de Bab el Mandeb. Daí subia os 1900 Km do Mar Vermelho até ao seu fecho no golfo de Aqaba, marginado por Arábia, Djibuti, Egipto, Eritreia, Iémen, Israel, Jordânia e Sudão (nomes actuais). Estava então a um passo do itinerário terrestre da ligação ao Mediterrâneo e daí a Veneza, de novo por via marítima. As viagens do almirante Zheng Ho não terão sido outra coisa mais importante do que o reconhecimento e marcação

escala entre o Atlântico e o Índico), Angola, S.Tomé, Ajudá, costa da Guiné, arquipélago de Cabo Verde, arquipélago dos Açores e Madeira

Page 4: MACAU, A LUSOFONIA E A NOVA ROTA DA SEDA · da Seda (terrestre) e a Rota Marítima da Seda – provocou imediato impacto nos meios internacionais e algum estremecimento nas geografias

64 65 N ú m e r o C a t o r z e S e t e m b r o F o u r t e e n t h I s s u e S e p t e m b e r

IDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTSIDEIAS À SOLTA RANDOM THOUGHTS

e Porto Santo, até à escala final em Lisboa. Muitas vezes derrotava para o continente sul-americano, para o Rio de Janeiro e sobretudo para o activo entreposto comercial com o Oriente, a cidade da Baía. Nos mares orientais, era assinalada por inúmeras escalas de comércio, passando por Malaca, o estreito de Sunda entre as ilhas das especiarias Java e Samatra, e para Timor, Solor e Flores, e Sião e costa do Andaman, Pegu, Arracão, Meliapor, Gale, Goa, Damão e Diu, até subir a Ormuz e Aden [Golfo do Iémen] e estender-se às Maldivas.

De tudo isto, alguma coisa ficou, mormente a expressão linguística.

Apesar da generalização do Konkani [ou canarim, língua vulgar em Goa] e do crescimento do Inglês, não é exacto dizer-se que na Índia o Português é apenas a língua da casa ou dos velhos, tendo nova procura pelas novas gerações, e leccionado em escolas oficiais e privadas em currículos universitários (universidades de Goa, Nova Deli, Calcutá) e em cursos em Damão e Diu. No Japão ensina-se em quatro universidades e é língua corrente em fortes núcleos citadinos de imigrantes japoneses provindos do Brasil. Da Tailândia, Vietname, Malaca e Coreia têm acorrido crescentemente a Macau alunos de Português aos cursos de Verão da Universidade de Macau. É preciso actualizar e refazer o mapa dos crioulos lusos, sub-dialectos, falares e sub-falares em toda esta área geográfica da Ásia e Oceânia: Damão, Jaipur, Korlai [Goa], Diu, Malaca, Sri-Lanka, Java e pelo vasto arquipélago indonésio onde se sabe da existência certa de várias regiões onde persiste o papiá luso. Porque a retoma por estas comunidades de uma nova religação às redes da lusofonia lhes trará potencialidades de internacionalização e de progresso sócio-económico, na memória dos

afectos e da expressão linguística. Agora, será a Língua o factor promotor do comércio, na aspiração à “nucleação” de pequenos entrepostos ou “feitorias” de intermediação comercial entre os centros chineses e a vasta geografia lusofóna, motivados pelas vantagens sociais.

A Rota Marítima da Seda é, sem dúvida, eminentemente portuguesa, rasgada pela ciência náutica e experiência lusas, conversada em Língua portuguesa, ainda hoje assinalada por patrimónios palpáveis, memórias locais, compenetrações de genes e de mundividências e crenças religiosas, de crioulos e de sobrevivências culturais e aculturações várias e onde Macau, no termo da rota, recebendo e alquimizando todos as afluências do caminho, detém,vivas, ainda hoje, no patuá e na culinária, as heranças da língua oficial da primeira globalização e a gastronomia da inteira rota da sua viagem.Tudo isto deveria estar presente na delineação de uma política educativa de expansão da Língua portuguesa na Ásia-Pacífico, liderada por Macau.

É a hora da Educação (e também da Cultura)

Macau tem agora à sua frente um grande desafio, que é o da abertura de novas vias ao seu futuro e desenvolvimento, mas que se alicerça na reanimação e reactualização de vivências do seu passado, na sua exploração dentro do novo enquadramento e dinâmicas geopolíticas. Macau tem que se destacar como centro de multilinguismo de qualidade e de tradução especializada, e que convocar parcerias da lusofonia para mais e melhor poder estabelecer-se como rampa de lançamento da Língua portuguesa para a Ásia-Pacífico e alfobre de formação de formadores

da Língua, sendo necessários muitos mais professores de Português para satisfazer as novas exigências, quando se verifica ainda agora a escassez de professores para responder às actuais solicitações da procura. Quando o Chefe do Executivo da RAEM vem a público reconhecer que há falta de 126 intérpretes / tradutores na Administração Pública de Macau, algo tem que ser feito para equilibrar as disparidades provindas da fuga dos jovens para os empreendimentos dos casinos e afins, e a absorção de bilingues pelo interior. Nos ombros de Macau pesará ainda mais: a vaga de intérpretes que será necessária para socorrer os grandes empreendimentos que a China irá ser chamada a realizar nas geografias lusófonas e nas vastíssimas regiões vertebradas pelas redes das rotas da seda. O Professor Carlos Ascenso André apontava recentemente este exemplo: se o consórcio chinês ganhar o concurso para a construção da rede de TGV (comboio de alta velocidade) no Brasil, quantos milhares de tradutores, quem os formará e quem formará os formadores? E para outros, tantos, empreendimentos? E os professores para os Institutos Confúcio? E para concretizar uma política editorial de traduções imprescindível à complementação cultural (na área da História, da Literatura, doTurismo, etc.) da formação linguística? E, pura e simplesmente, para operar a transmissão da sinologia ao universo lusófono e mais conteúdos lusófonos à China? Quem ensinará nas Universidades da Lusofonia o quadrivolume de Confúcio? Porque é que o grande projecto em curso sobre o pensamento e obra de Confúcio, realizada em Pequim por uma equipa de linguistas e filósofos, considerado o único até agora fiável, é editado em seis Línguas mas não em Português?

Na tradução especializada tem que se partir do domínio cabal de uma Língua e de um conhecimento técnico-científico específico (finanças, direito, filosofia, artes, etc.), e que se abrir carreiras e compensações atraentes da opção e profissionalização de tradutores de qualidade. E não poderá colher o argumento que é difícil contratar professores de Português, por razões de salários: se é basicamente fundamental a sua contratação, como não criar condições para contratar três professores formadores que podem deixar aqui uma dúzia de formadores de formadores? Notícias recentes da iniciativa do Instituto Politécnico de Macau (IPM ) para criar aqui cursos de formadores de docentes será por certo um princípio de solução para esta urgente lacuna.

Nos últimos anos têm-se feito progresso notáveis, no IPM / Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa, na Universidade de Macau (UM), no Instituto Português do Oriente (IPOR ), nas Universidades da RPC; no socorro à escassez de materiais digitais pedagógicos e didácticos; e na geometrização e harmonização das diversas instituições e dinâmicas parcelares, com a criação da Comissão Mista entre Portugal e a Região Administrativa Especial de Macau e as reuniões da Subcomissão da Língua Portuguesa e Educação, donde têm resultado decisões comuns importantes, confirmando a urgência de um centro de coordenação, em que o Gabinete de Apoio ao Ensino Superior (GAES ), na continuidade da sua meritória acção, deverá ver competências reforçadas.Também o IPOR, responsável pela criação e gestão dos centros de Português e dos leitorados na região asiática terá que ter mais condições de operação no novo enquadramento. Prontamente, foi criada a Associação de Estudos de Língua Portuguesa da Ásia (AELPA),

com o objectivo de incrementar e intercambiar a informação na área da investigação de Estudos Portugueses, e naturalmente, na troca de experiências e articulações entre todos os estabelecimentos e centros de ensino do Português na Ásia.

Mas o novo cenário exige olhar e articulação mais vastos, abarcando toda a lusofonia, seus governos e instituições, porque se trata já agora de um projecto geopolítico de dimensão global que implica todos e cada um dos países lusófonos. É imperiosa a definição de uma estratégia lusófona da Língua portuguesa, o estabelecimento comum de uma glotopolítica da Língua, instrumento de afirmação e crescimento no quadro do aprofundamento e expansão da globalização. A plataforma de Macau para a expansão da Língua portuguesa na Ásia-Pacífico exige o compromisso, colaboração e apoio de todos os países lusófonos, (e especialmente de Portugal e do Brasil) porque o todo também se reflecte nas vantagens posteriores de cada uma das partes.

Mas, outras condições básicas se requerem, sem as quais todos os esforços se frustram no final dos cursos. É com simpatia e sensível solidariedade que muitas vezes presenciamos o esforço de alguns jovens licenciados e intérpretes na soletração pública de textos em Português. É que uma Língua não se domina em quatro anos, e imaginamos a dedicação dos competentes professores para o fazerem em tempo tão limitado. É condição básica os alunos chegarem já com aptidões capazes ao ensino superior. Por iniciativa do Brasil, o continente sul-americano caminha para o bilinguismo Português-Espanhol, com leccionação das duas Línguas no ensino oficial de todos os países sul-americanos, tendo já começado

na Argentina e no Uruguai. Amanhã já, todo o continente sul-americano será também lusófono. Em Macau, com estatuto de bilinguismo Chinês/Português pela Declaração Conjunta, seria muito aconselhável, em nome do realismo e pragmatismo, alargar-se selectivamente o ensino do Português ao ensino básico sem o que estaremos a altear torres sem rés-do-chão.

Parece ainda relevante chamar áreas da História aos currículos da Língua, ou paralelamente incluir nos cursos de História os temas das Rotas da Seda, dos seus comércios, políticas comerciais e diplomáticas, o comércio no Índico e no “mediterrâneo sueste-asiático” (Denis Lombard, Fernão Mendes Pinto), a política comercial e marítima dos Ming, o impacto da expansão europeia nas sociedades locais e as dádivas tecnológicas bilaterais etc., etc., tudo na perspectiva dos cenários a vir.

Em Macau, a Educação tem que reclamar direitos de nau capitânea da nova navegação, porque por ela passam todas as ferramentas fundamentais ao novo desafio. A Educação e a Cultura, geradoras de agentes multilingues e de tradução/interpretação, são elementos decisivos nos futuros intercâmbios comerciais e culturais, assim factores de uma área mais vasta de civilização do universal, e de comércios, ciências e tecnologias em serviço do progresso e solidariedade com outros povos, factor que será de equilíbrio de desigualdades.

Macau pode agora reencontrar a sua alma e vocação e, com mais intervenção no movimento da globalização, tornar a inscrever o nome na grande história do mundo. •

Contém ilustrações reproduzidas

de RC n.os 14/15, ICM 1991