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Luiz Gama e José do Patrocínio: autobiografia, memória e ensino de história
CAROLINA VIANNA DANTAS∗
Esse trabalho é um desdobramento de um curso que ministrei para uma turma da
graduação em História da Universidade Federal Fluminense – no primeiro semestre de 2011 -
denominado “Intelectuais negros brasileiros: identidade, nação, projetos políticos e
modernidade (séc. XIX e XX)”. Nesse curso, eu selecionei um grupo de intelectuais
negrosque tiveram atuação destacada em sua época (Cruz e Souza, Luiz Gama, André
Rebouças, Manoel Querino, José do Patrocínio, Evaristo de Moraes, Juliano Moreira, Lima
Barreto, Carolina Maria de Jesus e Abdias Nascimento) com o objetivo de tratar das formas a
partir das quais eles viveram a experiência do racismo, da integração à sociedade, da
cidadania e da modernidade através de suas próprias obras e trajetórias. Debati com os alunos
projetos políticos, nacionais e de intervenção eas críticas sociais de todo tipo. De modo mais
específico, propus pensarmos acerca de algumas questões:Como lidaram com os dilemas da
“dupla consciência”? (GILROY, 2001)Como queriam ser vistos naquela sociedade?Que
embates político-raciais travaram?Que tipo de inclusão/integração propuseram para os
negros? (GUIMARÃES, 2004) Como lidaram com as massas iletradas e com as
diferenças/desigualdades de classe?Que relações estabeleceram com a “modernidade
atlântica” (DOMINGUES, 2010) Mas como seria possível tentar responder a essas questões a
partir do estudo de um grupo tão diverso de intelectuais negros e que viveram em tempos
diferentes? Contudo, havia um elo entre eles. Podemos destacar dois elementos principais que
uniam esse diverso grupo de intelectuais negros (além de serem brasileiros, negros e
intelectuais, é claro): o fato de terem afirmado a existência da discriminação racial no Brasile
de terem alcançado notoriedade como intelectual e/ou ativista político e, em função disso,
conquistado reconhecimento público.
Além disso, a reflexão sobre a ausência desses intelectuais negros tão atuantes (e de
outros tantos) nos livros didáticos de história também permeou curso. Estávamos falando,
portanto, de homens de mulheres negros envoltos em esquecimentos no campo do ensino de
história. (MATTOS; ABREU; DANTAS; MORAES, 2009)
∗ Doutorado e pós-doutorado em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).
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Todavia, ao longo do curso, dois desses intelectuais chamaram, especialmente,a
atenção: Luiz Gama (Salvador, 1830 – São Paulo, 1882) e José do Patrocínio(Campos, 1853 –
Rio de Janeiro, 1905)Além de negros e abolicionistas e grandes oradores, nutriam admiração
mútua. Transitaram entre mundos distintos1, tecendo redes sociais de sustentação como
estratégia de sobrevivência e ascensão, cada qual criando e integrando seus circuitos de
amizades, favores e de proteção. Os dois souberam utilizar os mecanismos de dependência
característicos daquela sociedade a seu favor. (AZEVEDO, 1999; FERACIN,
2006;ALONSO, 2011) E chamaram a atenção não só porque tiveram trajetórias de vida épicas
e ascensionais, mas porquesentiram na pele a experiência da escravidão: Luiz Gama foi, ele
próprio, escravo dos 10 aos 18 anos e José do Patrocínio, filho de uma escrava. Contudo,
outro aspecto os individualiza e os torna mais singulares ainda (inclusive, de modo mais
amplo na história do Brasil): a partir de registros autobiográficos (FERREIRA, 2011:187-
188)2, assumiram publicamente suas origens africanas e escravas, exaltando a figura de suas
respectivas mães negras quitandeiras e considerando mal seus pais, ambos brancos e senhores
de escravos. O pai de Luiz Gama, um fildalgo de origem portuguesa, embora o filho tivesse
nascido livre, o teria vendido aos 10 anos de idade como escravo para quitar uma dívida de
jogo. Já o pai de José do Patrocínio - um vigário letrado e senhor de escravos -engravidou 1 Analisando a trajetória de José do Patrocínio, José Murilo de Carvalho menciona cinco dessas fronteiras: a étnica (filho mulato de um pai branco e mãe negra); a civil (mãe escrava, pai senhor de escravos e senhor de sua própria mãe); entre o mundo do interior e o mundo da corte (nasceu e viveu em Campos até os 15 anos, estabelecendo-se na Corte em seguida); a fronteira intelectual (formação superior em farmácia, mas de baixo prestígio; e a fronteira entre o reformismo e o radicalismo políticos). Embora, Luiz Gama não estivesse no horizonte de análise de Carvalho, podemos considerar que também transitou por esses mundos tão “(...) distintos, se não conflitivos” (CARVALHO, 1996:9). E mais do que fronteiras – que traz a ideia mais estanque de barreira - é interessante considerar que foi na dinâmica do trânsito entre esses mundos, que os dois abolicionistas negros fizeram suas escolhas, elaboraram e colocaram em práticas suas estratégias de sobrevivência e luta. 2Ligia Ferreira faz uma importante diferenciação entre Luiz Gama e José do Patrocínio, pois segundo ela, Luiz Gama, teria sido o único intelectual negro brasileiro que vivenciou a experiência de ser escravo, relatando-a a partir de uma narrativa autobiográfica. (FERREIRA, 2011:187-188). De fato, José do Patrocínio não chegou a ser exatamente escravo, embora, provavelmente, sua mãe (Justina do Espírito Santo) fosse escrava quando ele nasceu. Segundo Ana Carolina Feracin, no registro de batismo, Patrocínio aparece como exposto na Santa Casa de Misericórdia, ou seja, filho de pais desconhecidos acolhido por terceiros. Mas, há também uma anotação na margem da folha de registro do batismo (provavelmente feita depois) afirmando que José do Patrocínio era filho natural de Justina do Espírito Santo, sem menção à condição servil ou à cor da mãe, o que livraria a criança de qualquer dúvida sobre sua liberdade. Segundo Ana Carolina Feracin, ao analisar osregistros de batismo de Patrocínio:“(...)acredito que é possível inferir com uma margem razoável de segurança que o nome da mãe não foi registrado de imediato porque Justina era escrava. Desta forma, para “não seguir o ventre”, conforme o princípio vigente até então na escravidão ocidental, a criança foi assentada como exposta. Caso contrário seria natural e juridicamente “escrava”. Isto é, é bastante provável que Justina tenha sido alforriada depois do nascimento e batismo de Patrocínio. (FERACIN, 2006: 1)
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uma de suas escravas (Justina, que veio a se tornar a mãe de Patrocínio) quando a mesma
tinha por volta de 12,13 anos e jamais reconheceu legalmente Patrocínio como seu filho,
embora tenha sido tratado com algumas regalias que o distinguiam dos escravos do seu
pai(MAGALHÃES JUNIOR, 1969:8-11 e 16-17), experiência certamente marcada por
ambiguidades. (FERACIN, 2006:64)
Luiz Gama, além de afirmar positivamente sua origem africana em algumas poesias,
assumiu ser sua mãe uma insubmissa africana nagô, escravizada ilegalmente.José do
Patrocínio, assumiu ser filho de uma “pobre preta quitandeira” (PATROCÍNIO, 1884:1) e fez
do funeral de sua mãe liberta, no Rio de Janeiro, um grande evento abolicionista.
(MAGALHÃES JUNIOR, 1969:195) Ou seja, os dois politizaram suas origens e trajetórias de
vida, utilizando-as como “arma discursiva” (ALONSO, 2011:5) e encarnaram as dores e
violência da experiência escrava, além de reivindicaremuma identidade negra (MATTOS,
2009) – que foi lembrada e politizada no seio do associativismo negro ao longo do século XX,
como veremos adiante.Também havia, contudo, algumas diferenças entre eles: Luiz Gama
destacou como a sua cor o aproximava daqueles homens e mulheres que defendia no tribunal.
(AZEVEDO, 2009). Já José do Patrocínio costumava se colocar em uma posição de maior
exterioridade em relação àqueles em prol dos quais lutava. (FERACIN, 2006:76)
O objetivo desse trabalho é problematizar a forma a partir da qual Luiz Gama e José
do Patrocínio assumiram e politizaram identidades negras através das quais queriam ser vistos
naquela sociedadee lutaram contra a escravidão; e dialogar com a hipótese de que tais
intelectuais, no período imediatamente após a abolição, ao frustraram-se com as limitadas
mudanças trazidas pela abolição e pela república - e com o ascensão do pensamento racista de
base científica e da racialização –, ficaram “sem lugar”, optando por um relativo
ostracismo.3Na verdade, Luiz Gama não viveria tais acontecimentos, pois morreu em 1882,
mas José do Patrocínio, passou por todos eles, tendo morrido melancolicamente e,
relativamente isolado, em 1905.(MAGALHÃES JUNIOR, 1969; SILVA, 2006; MATTOS,
2009) Se de fato, como afirma Hebe Mattos, intelectuais negros como Luiz Gama e José do
Patrocínio foram o “(...) fruto mais democrático da modernidade escravista brasileira (...)” e
“(...) com seu término, contraditoriamente, perderiam a antiga visibilidade.” (MATTOS,
2009:33),é possível considerar queparte dessa visibilidade se deveu à dimensão nacional, de
3 Idem, p. 32-33. A autora se refere a Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio. Somente os dois últimos viveram a abolição da escravidão e a proclamação da república.
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massas e aglutinadora que a luta pela abolição tomou naquele momento. E é certo que a
projeção alcançada por Luiz Gama e José do Patrocínio e a própria acolhida dos seus textos e
obras (e não alcançada por outros intelectuais negros que atuaram nas décadas posteriores)
também se deve a isso e não somente à ascensão do pensamento racista e dos processos de
racialização.Segundo Maria Helena P. T. Machado,
(...) o movimento abolicionista poderia ser recuperado como momento privilegiado para observarmos a entrada na cena política brasileira da arraia-miúda, dos deserdados da sorte, negros, pardos, mulatos e brancos, talvez não tão alvos, todos se fazendo notar material e concretamente, fazendo barulho e causando distúrbios, nas vias públicas de cidades como do Rio de Janeiro e SãoPaulo. Note-se que o movimento abolicionista foi o primeiro movimento político de massas na história do Brasil e o primeiro a congregar milhares de despossuídos em torno de lemas gerais emetas menos imediatistas que aquelas características dos riots urbanos que a historiografia tem descrito. (MACHADO, 2000:5)
Depois de 1888 – poderíamos dizer avant la lettre –talvez, o único grande movimento
político-reivindicatório de igual proporção tenha sido o “Diretas Já”, ocorrido entre 1983 e
1984. Pesquisas mais atuais têm mostrado o quanto foi ativa a atuação/participação política de
diversos intelectuais negros no pós-abolição - ao mesmo tempo e posteriormente ao tempo de
Gama e Patrocínio - a despeito dos processos de racialização, discriminação racial e da voga
do próprio pensamento racista. Aliás, questionado de modo formal no Brasil– inclusive, por
intelectuais negros - desde pelo menos a primeira década do século XX (GOMES, 2001;
DANTAS, 2009). Embora nenhum deles tenha atingido a notoriedade nacional conquistada
pelos dois abolicionistas negros em questão, e, talvez, exatamente por isso -isto é, sem esse
peso que as grandes lideranças carregam -não escolheram o ostracismo nem morreram
melancolicamente.Além disso, intelectuais e ativistas negros - fundadores e participantes de
associações e jornais negros – buscaram, ao longo do século XX, manter viva a memória e os
projetos de reforma, notadamente a igualdade civil de fato e ampliação da educação e do
sufrágio popular, defendidos por reformistas do século XIX, comoGama e Patrocínio. Uma
modernidade que incluísse os descendentes de africanos e escravos continuou na pauta do
associativismo negro e de lideranças políticas negras durante o século XX.
Fig. 2 – José do Patrocínio,
Provavelmente, esses foram
Fig. 1- Luiz Gama
ocínio, 1890 (aprox.)
Provavelmente, esses foram os últimos registros em foto feitos pelos dois antes de morrer.
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Luiz Gama, 1880 (aprox.)
antes de morrer.
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“Quem sou eu?”
Esse é o título de um dos poemas mais conhecidos de Luiz Gama no qual assume uma
identidade negra, baseada em sua origem africana e escrava. Também conhecido como
“Bodarrada” foi publicado pela primeira vez em São Paulo, em 1859, no livro que se tornaria
a sua única obra publicada: Trovas burlescas de Getulino. Segundo Ligia Fonseca, Luiz
Gama foi o primeiro autor negro (ex-escravo) que se afirmou como tal a partir de uma obra
literária – uma espécie de “voz negra inaugural” até então ausente da literatura que se fazia no
país. (FERREIRA, 2009:39) De acordo com a mesma autora o termo Getulino vem de
Getúlia, nome que então se dava a uma parte do território atualmente ocupado pela Argélia,
no norte do continente africano, em função de um povo nômade chamado “getulos” ter
ocupado esse território na Antiguidade.Por um lado, já no título do livro, Gama faz questão de
enunciar, como autor e na sua estreia norestrito mundo letrado, sua identificação com uma
origem africana. Por outro lado, a afirmação de uma identidade negra aparece na maior parte
dos poemas, além de fazer escárnio das hierarquias sociorraciais e de utilizar vários
africanismose saudar musas negras (FERREIRA, 2009:39-43)e imagens referenciais de uma
África idealizada e homogeneizada, mas que poderia ser inteligível ao mundo letrado, de
maioria branca. (AZEVEDO, 1999: xx) Abaixo, alguns versos de algumas poesias – muitas
vezes satíricas, irônicas e em tom de denúncia - que são exemplos ilustrativos de como Luiz
Gama assumiu positivamente uma identidade negra referida a referenciais africanos; de como
fez sátira e crítica às hierarquias sociorraciais e de como buscava afirmar sua proximidade e
identificação com aqueles que defendia nos tribunais:
Lá vai verso! (...) Ó Musa da Guiné, cor de azeviche Estátua de granito denegrido, Ante quem o Leão se põe rendido, Despido do furor de atroz braveza; Empresta-me o cabaço d’urucungo, Ensina-me a brandir tua marimba, Inspira-me a ciência da candimba, Às vias me conduz d’alta grandeza. (...) Quero que o mundo me encarando veja, Um retumbante Orfeu de carapinha, Que a Lira desprezando, por mesquinha, Ao som decanta de Marimba augusta;
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E, qual outro Arion entre os Delfins, Os ávidos piratas embaindo – As ferrenhas palhetas vai brandindo, Com estilo que preza a Líbia adusta. (...) Nem eu próprio à festança escaparei; Com foros de Africano fidalgote, Montado num Barão com ar de zote – Ao rufo do tambor, e dos zabumbas, Ao som de mil aplausos retumbantes, Entre os netos de Gingam meus parentes, Pulando de prazer e de contentes – Nas danças entrarei d’altas caiumbas. (GAMA, 1859) --------------- No Álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral (...) Não borres um livro, Tão belo e tão fino; Não sejas pateta Sandeu e mofino Ciências e letras Não são para ti; Pretinho da Costa Não é gente aqui (GAMA, 1859) ---------------- Quem sou eu? Amo o pobre, deixo o rico, Vivo como o Tico-tico; Não em envolvo em torvelinho, Vivo só no meu cantinho: (...) Das manadas de Barões? Anjo Bento, antes trovões. Faço versos, não sou vate, Digo muito disparate, Mas só rendo obediência À virtude, à inteligência: Eis aqui o Getulino (...) Tem brasões, não – das Calendas. (...) Hão de chamar-me — tarelo, Bode, negro, mongibelo; Porém eu que não me abalo, (...) Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
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Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta. Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos, Uns plebeus, e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios, importantes, E também alguns tratantes Aqui, nesta boa terra Marram todos, tudo berra; (...) Gentes pobres, nobres gentes Em todos há meus parentes. (...) Tudo marra, tudo berra — (...) Nos lundus e nas modinhas São cantadas as bodinhas: Pois se todos têm rabicho, Para que tanto capricho? Haja paz, haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse pois a matinada, Porque tudo é bodarrada!(GAMA, 1859)
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Esses são fragmentos que evidenciam as imagens que Gama desejava construir sobre
si mesmo, valorizando algumas virtudes em detrimento da riqueza e das altas posições sociais.
Ao apresentar-se como negro e ex-escravo, desejou assumir publicamente que era alguém que
carregava as marcas da escravidão e, que, como letrado passava a ocupar um lugar que, em
princípio não seria o seu. Assim promovia, conforme mostrou Elciene Azevedo, a valorização
de sua ascendência para que ela pudesse ser aceita. E esta era uma estratégia discursiva
fundamental para Gama, uma vez que ao evocar um passado e uma origem africana comuns a
todos os brasileiros – afinal, depois de tanto anos de escravidão, quem poderia garantir que
não tinha ascendes africanos? – e que não estariam somente na cor da pele, Gama embasava o
seu ideal de igualdade entre brancos e negros.
Assim como nas poesias acima, Gamatambém assumiu sua origem escrava e africana,
a partir de um peculiar registro autobiográfico: uma carta a um amigo, ou seja, um texto de
natureza íntima que não fora intencionalmente produzido para se tornar público, como
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apontou Ligia Ferreira. A autora destaca ainda que essa carta não era conhecida pelos seus
contemporâneos, tendo vindo a público, pela primeira vez, somente em 1930 (FERREIRA,
2009:187-188) Na carta - datada de 25/07/1880 e endereçada ao amigo Lucio de Mendonça -
Luiz Gama também faz uso político de sua trajetória e identidade assumidas publicamente.
Assim, Gama diz que nascera em 1830, na cidade de Salvador (BA), filho de uma “africana
livre”, da “Costa da Mina (Nagô de nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o
batismo e a doutrina crista. Minha mãe era de baixa estatura, magra, bonita, a cor era de preto
retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa,
insofrida e vingativa.” Também acrescenta que ela era quintandeira, trabalhadeira e que por
vezes foi presa como suspeita de envolver-se em “plano de insurreições de escravos.” Seu pai
– Gama diz que não revelará seu nome para poupar a sua memória de uma “injúria dolorosa –
era branco, fidalgo, membro de uma tradicional família de origem portuguesa da Bahia
(GAMA, 1880) e rico, Em 1840, falido em função de dívidas de jogo, vendendo Gama como
escravo. Embora esteja implícito o mau caráter de um pai que vendo o seu filho como
escravo, Gama destaca que seu pai foi “muito extremoso” para ele, tendo-o criado “em seus
braços.” (GAMA, 1880) A partir daí, a narrativa da vida de Luiz Gama é uma grande epopeia:
em pouco tempo livra-se do cativeiro ilegal a que estava submetido, se alfabetiza, vira militar
e deixa de ser militar por insubordinação, passa a exercer o ofício de copista, depois
amunuense, rábula, poeta e articulista, abolicionista, republicano, maçom, tribuno ... e torna-
se uma figura pública popularíssima. Não deixou de destacar nominalmente as pessoas que o
ajudaram nessa trajetória incrivelmente ascensional.
Como afirma Hebe Mattos, não há comprovações sobre o pai, a mãe e a forma através
da qual Gama se livrou do cativeiro ilegal, o que também não suficiente para negar os
episódios e acontecimentos contados na carta. Essa comprovação em si não é o elemento
fundamental a ser destacado, mas sim a forma como Gama assume positivamente sua origem
africana e escrava, encarnando nele próprio a luta contra a escravização ilegal – algo que tanto
combatia. (MATTOS, 2009:26-27)
Ademais, assumir uma identificação com a África ancorada na positivação do negro
estava, para ele, atrelado ao argumento de que no Brasil todos tinham uma origem, uma
tradição em comum. O que pressupunha a integração de brancos e negros em pé de igualdade
na nação. Aí está, segundo Azevedo, a dimensão política dessa construção identitária de Luiz
Gama. (AZEVEDO, 1999) Mas Gama não seria o único a politizar suas origens e trajetória.
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“Uma explicação” José do Patrocínio também politizou suas origens, a partir de um relato autobiográfico,
ao assumir ser filho de uma escrava, ou em suas próprias palavras de uma “pobre preta
quitandeira em um artigo publicado na Gazeta da Tarde, em 29/05/1884. Diferente da
narrativa de Gama, a de Patrocínio tinha exatamente o sentido contrário: ser um texto para
conhecimento amplo do público, já que seu objetivo principal, diante das acusações de estar
utilizando verbas da Gazeta da Tarde e dinheiro arrecadado pela Confederação Abolicionista
em benefício próprio, era se defender e explicar como um filho de uma “preta quitandeira”
ascendeu socialmente a ponto de conquistar o lugar de destaque que conquistou na corte
(FERACIN, 2006) Assim, Patrocínio deu uma certa ordenação às fases e momentos de sua
vida e destacando suas virtudes, a fim de convencer o público de que sua ascensão social foi
conquistada honestamente, às custas do seu próprio esforço e da ajuda de amigos. Relatou
também as enormes dificuldade pelas passou até então.
Há já muito tempo sou continuamente alvo das mais dolorosas calúnias e das mais cruciantes injúrias. Os meus adversários, em cuja vida privada nunca penetrei, muitas vezes só em respeito à compostura da imprensa, divertem-se em pintar-me como chaga mais cancerosa da nossa sociedade. (...)Não quero, porém, deixar que por mais tempo o povo brasileiro acredite, sob palavra dos meus amigos, na minha honra e no desinteresse com que tenho servido à causa da abolição, que eu entendo ser a da reorganização moral e econômica da minha pátria. Passo a citar fatos. Perguntam-me como vivo e de que vivo e têm razão. Quem sabe que eu sou filho de uma pobre preta
quitandeira de Campos deve admirar-se de me ver hoje proprietário de um jornal e de que eu pudesse fazer uma viagem à Europa. Vamos a explicações. Comecei minha vida como quase servente, aprendiz extranumerário da farmácia da Santa Casa de Misericórdia, em 1868. (...)Fui sempre trabalhador, mas sempre altivo. Desde 1868 comecei a estudar. (...)Não é possível dar minuciosamente todas as informações uma a uma. Devo, porém, ao público, o nome das pessoas com que tive relações: são estes cavaleiros, os meus amigos Dr. José Américo dos Santos, Manoel ribeiro, Antônio Justianiano Esteves Jr. Dr. André Rebouças, Dr. Ubaldino do Amaral, comendadores Moreira Filho, Martins Pinho, João José dos Reis & Comp., Luís ribeiro Gomes, visconde de Figueiredo, Luiz A. F. de Almeida e a diretoria do Banco do Comércio. A todos estes recorri, pedindo crédito e obtendo-o, satisfiz os meus compromissos, de modo que se evidenciava o meu trabalho e o meu sacrifício. (...)Eu sinto realmente não ter podido dar a meus inimigos a satisfação de me verem pálido e morto. Desculpem-me esses senhores, se eu vivo com a cabeça alta e curado do meu fígado. O pecúlio que eu como é o do trabalho e da honra, a Kermesse que me sustentou na Europa foi o tino e a dedicação dos meus companheiros de trabalho e dos meus amigos do comércio a quem abraço
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daqui afirmando-lhes que sempre fui, sou e que serei digno deles. (PATROCÍNIO, 1884:1) (grifos meus)
Nota-se o esforço de Patrocínio para reverter os estigmas negativos associado à cor da
sua pele, encarnando em si próprio o exemplo de superação de barreiras sociorraciais que
destinavam, quase que naturalmente, um lugar de subalternidade/inferioridade naquela
sociedade. É interessante notar, contudo, que Patrocínio faz uso de uma estratégia
argumentativa bem parecida com a de Luiz Gama, com muitos elementos coincidentes. As
conexões entre os dois ainda precisam ser melhor investigadas.
Em algumas ocasiões, ainda que de maneira não intencional como na narrativa cima,
Patrocínio também mencionou elementos estratégicos de sua trajetória naquele momento de
luta pela abolição, no qual recebia tanto ataques, muitos, inclusive, exatamente por ser negro.
E em alguns outros momentos, de modo não menos contundente, assumiu-se positivamente
como negro e descendente de escravos.
Em 1880, diante de uma injúria que o inferiorizava em função de sua origem,
respondeu, assumindo e politizando a sua origem escrava:
(...) A resposta é fácil de ser dada. O folhetinista não tem vexame da consanguinidade com os escravos; pelo contrário, faz desse fato a inspiração santa do seu ardor pela causa da abolição. Apela desassombradamente para as suas faces, onde mais do que a cor da sua raça, vê-se a escuridão do destino dela. Tem mesmo orgulho quando pode encarar de frente um senhor de escravos. É o orgulho do descendente do roubado diante do ladrão: é o orgulho do homem do trabalho diante do que vive a chupar o sangue dos seus irmãos. (PATROCÍNIO, 1880)
Nesse momento, a sua origem aparece como fonte de inspiração para sua luta e não
razão para constrangimentos. (FERACIN, 2006:121). Em outro ataque, vindo de um
fazendeiro em meio às batalhas pela abolição, quem o defendeu foi Luiz Gama, em artigo
publicado na Gazeta do Povo, de São Paulo. Ao referir-se a Patrocínio, Gama evoca a
solidariedade racial que existia entre eles e denuncia a discriminação que compartilhavam:
“Em nós até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e
vão ao ponto de esquecer que essa cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que
nos insultam; (...)” (GAMA, 1880)
Em 1885, fez menção à vergonha que sentia de seu pai por ser ele um escravocrata
(PATROCÍNIO, 1885). Dois anos depois, em meio a um comício, ao responder a um insulto
racial, retrucou: “Quando Deus me deu a cor de Otelo foi para que eu tivesse ciúmes da minha
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Raça!” (Mariano, 1927). Já no século XX, voltaria a mencionar o seu pai e o fato de todos
saberem que o vigário de Campos era seu mais, mas que jamais o reconheceu legalmente
(PATROCÍNIO, 1901).Assim como Gama, “Patrocínio (...) fez da cor de sua pele o próprio
dispositivo que dava sentido a sua luta contra as diferenças que se impunham contra ele”
(FERACIN, 2006: 200)
A memória de Gama e Patrocínio e o ensino de história
A despeito da derrota do reformismo defendido por Gama e Patrocínio e do fato de
terem ficado “sem lugar” na modernidade republicana não significou o fim da adesão ou
visibilidade dos projetos de poder que defendiam.
Estudos recentes sobre oassociativismo negro e imprensa negrae sobre a atuação de
artistas negros têm demonstrado que a despeito da forma truculenta com que os negros foram
tratados pelo regime republicano, encaminharam suas próprias demandas e reinvindicações no
espaço público. E ainda que essas iniciativas políticas não tenham resultado em grandes
conquistas em termos de cidadania, há que se investigar as lutas e o acúmulo que elas
proporcionaram ao que se constituiu posteriormente como como movimento negro.
As demandas reivindicadas no fim do século XIX por Gama e Patrocínio continuaram
sendo lembradas por intelectuais e ativistas negros ao longo do século XX. Mas não só elas.
No seio do associativismo negro a própria memória de Gama e Patrocínio foi guardada e
cultuada, imediatamente após a morte de um e, depois, do outro. Assim, é possível encontrar
jornais e entidades fundados e lidos/frequentas por negros, cujos nomes faziam homenagens a
ambos: O Patrocínio, SP, 1913 (jornal); Getulino, SP 1923 (jornal); O Patrocínio, SP, 1928
(jornal); Luiz Gama, SP, 1926 (jornal); Sociedade Beneficente Luiz Gama, Campinas, 1888
(associação); Grêmio Recreativo José do Patrocínio, Campinas, 1917(associação); Grêmio
Dramático Luiz Gama, Campinas, 1919(associação);Dentro Dramático Luiz Gama, SP,
década de 1920 (associação);Centro Humanitário José do Patrocínio Campinas,
1920(associação); Clube José do Patrocínio, Pelotas, 1905 (associação); Liga José do
Patrocínio, Pelotas 1919(Liga de futebol só para times de negros); S. B. União Operária José
do Patrocínio, Pelotas, 1934 (associação). Do mesmo modo, também é possível localizar
homenagens (romarias, discursos e etc.) feitas nos túmulos de Gama e Patrocínio e ao busto
de Gama. Segundo Petrônio Domingues, os periódicos da imprensa negra manifestavam
constantemente uma preocupação em construir heróis negros, no sentido de funcionarem
como exemplos positivos e como motivo de orgulho para os negros. Luiz Gama e José do
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Patrocínio estavam entre os mais exaltados nesse sentido. Henrique Dias, Cruz e Souza e
André Rebouças também apareciam como exemplos positivos que esses intelectuais negros
desejavam construir. E tais escolhas estão permeadas dos sentidos políticos do seu próprio
tempo. (DOMINGUES, 2004; 2009) Além disso, também era comum lideranças negras nas
primeiras década do século XX invocarem o nome de Gama e Patrocínio em seus discursos
como prova do valor e da capacidade dos negros e como motivo para que eles se orgulhassem
de seu passado e sentissem que pertenciam à nação, já que ambos seriam exemplos de
patriotismo e abnegação pelo Brasil. (DANTAS, 2009;ABREU e DANTAS, 2011) Portanto,
seus sonhos, lutas e reivindicações continuavam vivos, pelo menos, para parte da população
negra.
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No campo do ensino de história, nos livros didáticos de história atuais, especialmente,
ainda que haja avanços, quando de aborda o período posterior à abolição da escravidão os
negros praticamente desaparecem da História do Brasil. Entre a abolição e o racismo na
atualidade, os negros não são mais destacados como portadores de alguma identidade especial
ou como atores políticos. Estão relegados ao “tempo do cativeiro”. (MATTOS, ABREU,
DANTAS, MORAES, 2009) Não se trata se trocar Joaquim Nabuco e Rui Barbosa por Luiz
Gama e José do Patrocínio, invertendo os polos da heroicização, mas de problematizar
experiência negra ao longo do tempo no Brasil que é complexa – entrecortada, inclusive, por
diferenças de classe - e vai além muito além da escravidão, da subalternidade, da apatia e de
uma perspectiva que apaga a cor, a raça e essa identidade negra a partir da qual Gama e
Patrocínio, intelectuais e ativistas negros das primeiras décadas do século XX estabeleceram
vínculos entre si.
No campo da pesquisa em história, se cristalizou-seuma abordagem, tanto de Gama
quanto de Patrocínio, que de detém apenas na face de militantes abolicionistas de ambos,
negligenciando que suas trajetórias foram muito mais amplas. Gama, afinal de contas, era
poeta e um grande conhecedor do direito – sobretudo em relação à escravidão - sendo, em seu
tempo, consultado constantemente por outros advogados e juízes. (FERREIRA, 2011)
Patrocínio, além de farmacêutico, escritor e jornalista, era um empresário do ramo da
tipográfico e da comercialização de jornais (FERACIN, 2006). O papel e a contribuição
desses homens negros - que racializaram suas identidades - nesses variados campos de saber e
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no próprio campo intelectual precisa ser aprofundado, inclusive a partir de uma ótica que os
dimensione no chamado “atlântico negro”.
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