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LUIZ CARAMASCHI "A modéstia convém ao sábio, mas não às idéias que o habitam e que ele deve defender". Jacques Monod - Prêmio Nobel GRANDES PONTÍFICES "Não importa que eu fique só. Não importa que eu esteja na obscuridade, em silêncio e no esquecimento. Não importa que ninguém saiba. Eu sei". Leonardo da Vinci 1983 1

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LUIZ CARAMASCHI

"A modéstia convém ao sábio, mas não às idéias que o habitam e que ele deve defender".

Jacques Monod - Prêmio Nobel

GRANDES PONTÍFICES

"Não importa que eu fique só.

Não importa que eu esteja na obscuridade, em silêncio e no esquecimento.

Não importa que ninguém saiba. Eu sei".

Leonardo da Vinci

1983

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ÍNDICE

Prólogo

I - Fala de Saldanha Marinho

II - Grande Projeto

III - Nossa Civilização em Queda

IV - O Iluminismo

V - O Progressismo

VI - Jerusalém Celeste

VII - Alfa e o Ômega

VIII - Acaso e a Necessidade

IX - Evolucionismo

X - O Pontificado da Razão

XI - A Crença no Desconhecido

XII - A Razão não é a Verdade

Enunciado Primeiro

Enunciado Segundo

Enunciado Terceiro

Enunciado Quarto

Enunciado Quinto

Enunciado Sexto

Enunciado Sétimo

Enunciado Oitavo

Enunciados Nono e Décimo

Enunciado Undécimo

Enunciado Duodécimo

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APRESENTAÇÃO

Apresentar aos maçons brasileiros esta magnífica obra de Luiz Caramaschi, é para nós honroso e gratificante. Não iremos nos deter em comentar o tema fundamental do livro, pois que isto foi muito bem rebuscado no prólogo do próprio autor cuja perícia, ao sintetizar o conteúdo em poucas páginas, conduz o leitor de forma natural ao coração do livro.

Expondo sua filosofia condizente com os dias que vivemos, sempre apoiado pelos maiores pensadores e filósofos que o mundo conheceu e co-nhece, Caramaschi tem o zelo de promover a mais perfeita adequação entre as ocorrências da vida hodierna e as suas demonstrações filosóficas, deixando bem claros a desorientação do mundo atual e o único caminho que se abre às gerações que buscam uma nova filosofia. Filosofia que se torna imprescindível e que se alicerça nos fraternais e divinos princípios da nossa Sublime Ordem escudada pela Jerusalém Celeste.

Com autoridade de Mestre, fustiga as clamorosas falhas dos homens que maculam, com suas imperfeições, os trabalhos das Instituições, des-viando-as dos seus reais objetivos; calcina a educação despudorada e des-pida de fundamentos que presentemente vitima as nossas gerações. Desperta para a realidade a todos nós que, engolfados no lufa-lufa incessante e nervoso do dia a dia, nos tornamos cegos aos fatos que nos cercam, insensíveis ao desmoronar lastimável da civilização. A grande tarefa que se nos propõe, está, em primeiro, a Ordem salvar-se a si própria, e, depois, ela salvar a civilização.

Por que a nossa civilização está em queda? Estará a Maçonaria falin-do? A busca das causas desses fenômenos tem que preocupar a todos os "homens livres e de bons costumes" que agora têm mais que ser detentores de "mentes abrangentes", na opinião do autor.

Os Irmãos que se deixarem mergulhar na leitura das páginas profundas do "Grandes Pontífices", irão beber da mais pura sabedoria, da filosofia do amor, do "amor ao próximo", através do qual se pode amar a Deus.

Regozijamo-nos com a Maçonaria Paulista e Brasileira que, mercê do Grande Arquiteto, é brindada com esta jóia de profundo fulgor da li-teratura Maçônica.

GRANDE ORIENTE DE S. PAULO (S. Paulo) JULHO DE 1982 Dionísio Pereira de Souza - Grão Mestre José de Campos Chagas - Grande Secretário de Cultura

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PRÓLOGO

"Porque Anco Márcio fez a Ponte Sublícia, da ponte e de a fazer lhe formou Roma a dignidade de pontífice, cujo nome, antes ainda de a mesma Roma ser cristã, se uniu ao Sumo

Pontificado. Tanto honra este gênero de fábricas a seus autores!"

Pe. António Vieira

A filosofia que se acha exposta neste livro dominará o futuro, se houver futuro; mas o autor não tem esperança de ver, em vida, o triunfo desta idéia..., porque o mundo já se acha, na sua melhor parte descuidado, indiferente, displicente, e, na pior, tão estragado, que não há mais quem se dê nem mesmo ao trabalho de ler algo novo.

No meio de uma perdição universal, de que adianta alguém descobrir um modo de transformar o antigo em moderno? (eis que faço novas todas as coisas - Apoc. 21, 5), se nem ao menos dispõe de meio para transmití-lo aos demais?; se para esse alguém, insólito, a televisão, o jornal e o rádio estão interditados?; interditados por aqueles que (chefe de secção ou de setor, animador de programa, etc.), para cederem um canal ou coluna, querem saber do que se trata, e, para sabê-lo, em síntese, falta-lhes o entendimento, e, para uma exposição analítica, eles não têm ânimo, nem podem perder tempo? De que adianta expormos a matéria, em síntese, dizendo que a FUNDAMENTAL REALIDADE DO UNIVERSO, da qual tudo o mais descende, É O AMOR, se o sujeito faz cara de quem não vê novidade nisso, e nos despacha logo exclamando: "– Hum! já ouvi qualquer coisa sobre isso!..."? Oxalá todo este esforço... em escrever e editar não se frustre, de modo que este livro venha só a servir de pasto às traças e de ninho aos ratos!...

Ocorre que nossa civilização ocidental está em decadência, e, dentro dela, a Instituição Maçônica também o está. Todavia, a única Instituição que pode salvar-se (afora o Cristianismo que aqui também se enriquece com a explicitação daquilo que, no Evangelho, até agora, esteve encoberto - "eis que faço novas todas as coisas" - Apoc. 21, 5), é a Maçonaria por três razões:

A primeira é que a Sublime Instituição se dá como sendo "nova

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mas antiga", e até pôs esta frase no seu sinete em que se lê: "NOVAE SED ANTIQUAE". Quer dizer: quando ela se organizou, na Idade Média, na sua forma moderna de pedreiros aceitos na Corporação dos Pedreiros Operativos, ela, era nova; mas como a arte de lavrar pedras vem de tempos imemoriais, ela é também antiga. Todavia, em sua forma "moderna", a Maçonaria já tem quase quinhentos anos, se admitirmos que ela estava completamente formada no Pré-Renascimento, lá por volta de 1.500. Concedamos ainda que sua idade é de apenas duzentos e sessenta e quatro anos até esta data, tendo em vista sua remodelação a partir da fundação da Grande Loja da Inglaterra em 1717. Com esse passado, já é tempo de revitalizá-la outra vez, a começar pela inversão do dístico do seu sinete, e, em lugar de NOVAE SED ANTIQUAE (porque já não é nova), pôr: ANTIQUAE SED NOVAE. Por que ANTIGA MAS NOVA? "Antiga" porque na sua forma "moderna" conta já duzentos e sessenta e quatro anos: e "nova" porque, agora, ou ela se remodela outra vez, ou desaparece!, com tudo o mais que se está deteriorando hoje, e que bem pode ser que receba o golpe final por meio duma guerra, como soe sempre acontecer no declínio das civilizações. No entanto, é exatamente nesse momento do entardecer duma civilização que a ave de Minerva, a coruja, levanta o seu vôo... Está, pois, na hora!...

Por causa de a Sublime Instituição ter-se remodelado já duas vezes: quando passou de Maçonaria Operativa para Maçonaria Moderna, com a entrada dos maçons aceitos, não operativos, e, depois, quando se reorganizou a Grande Loja da Inglaterra, por isto mesmo ficou aberta a porta para suas renovações ulteriores. Nisto consiste a segunda razão: a possibilidade de a Maçonaria renascer de si mesma, isto é, revitalizasse, quantas vezes forem necessárias.

A terceira razão consiste em que a Maçonaria, em nenhum lugar de sua Doutrina, se declara como detentora da verdade. Não sendo dona da verdade, mantém-se aberta para a discussão democrática. Como se não bastasse afirmar não possuir a verdade em regime de exclusividade, nem em definitivo (que este é o calcanhar de Aquiles de todas as religiões sectárias), ainda põe na cabeça do seu Estatuto Mor, como ponto primeiro de sua Declaração de Princípios que um dos três modos pelos quais ela luta pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e social da Humanidade, é a "investigação constante da verdade". Ora, se ela se dá como investigadora incessan-

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te da verdade, não pode fechar-se; é, portanto, uma Instituição aberta à sua renovação: ÁNTIQUAE SED NOVAE!

O livro "Grandes Pontífices" não é místico, senão científico-filosófico, embora a coroa da obra ou corolário do desenvolvimento venha a dar na Jerusalém Celeste do Apocalipse de S. João, na Glória dos Bem-aventurados de Cristo, na Ilha Afortunada ou Mundo Celeste de Sócrates-Platão. A Jerusalém Celeste, tema central do grau maçônico Grande Pontífice, é uma cidade celeste, toda ela um oráculo, oráculo do Cordeiro de Deus que é Cristo. E é este quem diz: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro" (Apoc. 22, 13). Mas que vem a ser esta afirmação de Cristo?

Nos Evangelhos ele declarou ser o Caminho, a Verdade e a Vida; e a Pilatos disse ter vindo dar testemunho da Verdade (Jo 18, 37). E noutro passo afirmou: "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará" (Jo 8, 32). Quer dizer: conhecereis a Verdade, e ela vos fará sábios; e porque sábios, por isso mesmo, também santos; e só o sábio e o santo são livres..., e não escravos das limitações próprias do inferno da animalidade. Todavia, que Verdade é essa da qual não se pode dar definição, como o pedira Pilatos, mas apenas dar dela testemunho, ou seja, falar a respeito dela? É Deus; e em se revelando ele à intuição de Moisés como sendo o SER por excelência, declarou-lhe: EU SOU O QUE SOU, dize ao povo que O QUE É te envia (Gên. 3, 14). A Verdade é Deus, e "Deus é Amor" (I Jo 4, 7)... e também Luz (I Jo 1, 5). E foi que Cristo personificando este Amor que é Deus, por isto indefinível, já com sua vida, já com sua Doutrina, deu deste Amor que é indefinível, o inolvidável testemunho. Mas Pilatos, como péssimo filósofo, confundindo testemunho com definição, perguntou a Cristo, com descaso: - O que é a Verdade?" (Jo 18, 38). Ora, a mais suave e delicada resposta para uma pergunta inadvertida, desatenta, idiota é o silêncio; e esta é causa por que Cristo emudeceu... Tal é o sentido do silêncio de Cristo: é que da Verdade não se pode dar definição...

Então, a Jerusalém Celeste é o oráculo do Amor representado pelo manso e dócil Cordeiro que é Cristo. Logo, o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim de tudo é o Amor. E como o Amor é, também, Luz ("Deus é Luz" - I Jo 1, 5), e sendo a luz energia-substância, também é Energia-Substância o Amor. Por conseguinte, essa Energia-Substância-Amor é o começo e o fim de tudo; é onde tudo teve princípio e onde tudo terá fim.

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Ora bem: quando algo, seja lá o que for, vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, dizemos que perfaz um ciclo. Assim é o ciclo do carbono, o das águas, o da matéria nos seres vivos. Se, pois, tudo principia e acaba na Energia-Amor, então é traçar uma circunferência como a que se vê abaixo:

O ponto de partida e de chegada é Alfa e ômega - o Amor. A seta curva do lado esquerdo é o do movimento que, saindo do Mundo Celeste, o primeiro que Deus criou, se dirige para o CAOS, "C", para o máximo desfazimento, de onde a Ciência diz, hoje, ter saído o nosso universo, por Evolução. Portanto, existe, hoje, a Evolução, porque houve, antes a Involução... cantada, em verso, no "Paraíso Perdido" de Milton, e referida na Bíblia em mais de um ponto. Este nosso mundo, pois, não é Criação direta de Deus, mas, indireta, pelos caminhos da Evolução.

O gráfico visto atrás é o do Universo na sua forma esquemática mais simples. Podemos, todavia, construir a fórmula desse Universo, pondo a forma esquemática na expressão linear. Dando-se às setas a designação de vai para, "A" e "Ω" representam a Energia-Substância supra-sumo do Universo - o AMOR... que era no princípio e sê-lo-á no fim, sendo o "C", o CAOS:

A→C→Ω

A = Ω

Substituindo-se, no texto de São João (Jo 1, 1), a palavra Verbo por Amor temos:

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"NO PRINCIPIO era o Amor, e o Amor estava com Deus, e o Amor era Deus.

"Ele estava no princípio com Deus".

"Tudo foi feito por ele; e nada do que foi feito, sem ele, se fez".

O mundo (e mundo quer dizer puro) que Deus criou foi o Celeste com tudo o que nele há. Criou-o da sua Energia-Substância que é o AMOR. Como Energia-Substância que é, o Amor é transformável, mutável, livre. Porque livre e autônomo nas Criaturas, parte dos Espíritos celestes inverteram o impulso amoroso no seu contrário impulso egoístico, disto sobrevindo a queda... até o CAOS primeiro de onde, agora, ressurge o universo segundo, por Evolução. A Energia-Substância de que os celículas eram feitos, degradou-se de amor para outras formas de energia, de ondas cada vez mais curtas e dinamicamente potentes, até que se enrolaram sobre si mesmas formando as partículas primeiras que são os elementos constitutivos fundamentais da matéria.

Cristo declarou ser o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, e por que não também o meio do ciclo? A resposta é óbvia: porque o meio do ciclo é o Caos danoso, medonho, confuso, até que a nova ordem imperasse, e tivesse início o processo inverso do da Queda - a Evolução.

Criacionismo e Evolucionismo são as duas posições antagônicas e até agora irreconciliáveis que dividem a humanidade entre homens de fé e homens de ciência. Mas como a Ciência e a Fé buscam a Verdade, que é única, cada uma por seus caminhos próprios, elas não podem ser incompatíveis entre si. Todavia, se a ciência e a fé se incompatibilizarem, que estará ocorrendo? São Tomás tem meia razão quando afirma que a verdade racional e a verdade da fé não podem contradizer-se; pois, sim senhor, con-tradizem-se, como tese e antítese, e assim ficariam em guerra sempre se não houvese alguém que efetuasse a síntese. É certo que "a realidade é uma. Deus é um. A verdade é uma. A concordância entre a fé e a razão se funda em último extremo sobre o postulado da unidade do ser e da verdade em Deus.” (M. Garcia Morente). Porém, concluir: "visto que entre a fé do teólogo e a razão do filósofo não pode haver discrepância, a filosofa deverá ter por axioma certo que toda suposta demonstração racional da falsidade de um artigo de fé há

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de ser necessariamente falsa e sofística; e ao filósofo tocará demonstrá-lo, abrindo assim campo livre para a vigência indiscutível do dogma.” (Garcia Morente). Concluir deste modo, é pretender subordinar a ciência à fé. Ora, aí está a canoa furada em que não devemos embarcar, sobretudo quando a fé desce do geral, desce dos fundamentos primeiros, dos primeiros princípios, ao particular, e, atre-vida, se mete a pontificar em assuntos de ciência. Tal, o caso da Doutrina Cientifica da Evolução, esta que contradiz a fé, demonstrando que, se este nosso mundo de egoísmo, onde imperam a FORÇA e/ou a ASTUCIA, foi DIRETAMENTE criado por Deus, este Deus não é nem de amor, nem de bondade, nem de sabedoria. As dores e misérias do mundo são uma amarga prova contra o seu Criador, e tem razão, neste caso, Schopenhauer ao afirmar: "Todo o homem que despertou dos primeiros sonhos da mocidade, que tem em consideração a sua própria experiência e a dos outros, que estudou a história do passado e a da sua época, se quaisquer preconceitos demasiado arraigados não lhe perturbam o espírito, acabará por chegar à conclusão de que este mundo dos homens é o reino do acaso e do erro, que o dominam e o governam a seu modo sem piedade alguma, auxiliados pela loucura e pela maldade, que não cessam de brandir o chicote”. “O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores". "Em toda a parte se encontra um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão". "Se um Deus fêz este mundo, eu não gostaria de ser esse Deus: a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração" (...) "Imaginando-se um demônio criador, ter-se-ia portanto o direito de lhe gritar mostrando-lhe a sua obra: "Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada, para fazer surgir uma tal massa de desgraças e de angústias?”. Eis aí a incompatibilidade entre a fé e a ciência; entre a fé que afirma a bondade de Deus, e a ciência que mostra ter vindo este nosso mundo do caos, estando ele, por isto mesmo, inquinado de egoísmo, de maldade e de violência...

A incompatibilidade, então, existente entre ambas, fé e ciência, é porque não se fez ainda a necessária SÍNTESE. A regra é a seguinte: sempre que a um desenvolvimento qualquer, surge uma contradição, uma antítese, um desafio, um repto (Toynbee), é preciso abrir UM CAMPO MENTAL NOVO, mais amplo, mais vasto que abranja ou abrigue as duas contradições, tese e antítese na NOVA UNIDADE, na SÍNTESE. Isto vale para tudo o que existe, sem nenhuma exceção. Impõe-se, portanto, uma nova filosofia.

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Clama Ortega por um novo norte filosófico ao escrever: "O europeu está só, sem mortos viventes perto de si; como Pedro Schlehmil, perdeu sua sombra. É o que acontece sempre que chega o meia-dia. E conclui: "No dia em que volte a imperar na Europa uma autêntica filosofia - única coisa que pode salva-la - compreender-se-á que o homem é, tenha ou não vontade disso, um ser constítutivamerite forçado a procurar uma instância superior". O destaque é nosso, e o fizemos para concluir, agora, que a filosofia esperada é a que expomos. Também Bertrand Russell, insatisfeito com o rumo que tomou o mundo, também propõe uma solução: "O problema de uma ordem social duradoura e satisfatória só pode ser resolvido combinando-se a solidez do Império Romano com o idealismo da Cidade de Deus de Santo Agostinho. Para consegui-lo, será necessária uma nova filosofia. Essa nova filosofia posta por nós em destaque na citação supra, é a deste livro..., dado que a Cidade de Deus agostiniana corresponde à Jerusalém Celeste e a sólida organização do Império Romano tem sua versão moderna no projeto da construção da PONTE científico-racional, ao mesmo tempo que social e ética... pela qual haveremos de chegar àquela Jerusalém. Quer dizer: depois de haver sido queimado o mundo no fogo atômico (Apoc. 8, 7 a 10), surgirão, por obra da nova civilização... cujo projeto é este, um novo céu e uma nova terra (Apoc. 21, 1). Portanto, não se trata mais como foi no passado, de o candidato à santidade e à sabedoria pretender desterrar-se do mundo, por considerá-lo desprezível, senão que lhe cumpre a ele transformar esse mundo do inferno que é no paraíso que há de ser. Este serviço é nosso, e nisto se cifra a construção da PONTE ! Este compromisso com o mundo subentende a conseguinte aliança e amizade com o próprio corpo que não deve mais ser perseguido, hostilizado, como maligno, mas dignificado no sentido franciscano de "corpo irmão", ao invés de "corpo inimigo"!

A desorientação do mundo também desalenta Gusdorf que, por isto mesmo, escreve: "Não há, de maneira alguma, certeza absoluta de que o pensamento de amanhã consiga sair do atual beco sem saída, pois parece cada vez menos provável que um metafísico de gênio possa ser capaz de operar a síntese de um saber de dia para dia mais extenso e mais complexo". Por mais faustiano, complexo e extenso que seja o saber na sua forma analítica que, por isto mesmo, se abre em leque para a sua especia-

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lização cada vez maior... até que a fragmentação se torne no pó, no nada, em sua polarmente oposta expressão sintética, totalizante, abrangente, no cabo unitário do leque, esse mesmo saber é simples. Como "cada consciência especializada obriga ao uso de antolhos”, para compensar isto, nada como a visão condoreira, panorâmica do filósofo. Bergson definia a metafísica como "a experiência integral”.

O beco sem saída deixa de ser agora, porque aqui ele se abre, não havendo outro modo, senão este, de operar-se a SÍNTESE reclamada por Gusdorf, a qual, neste momento histórico, se faz inadiável, urgente!

Dir-se-á que tudo isto é presunção nossa; que ao enunciarmos "o que nos parece verdadeiro", oxalá tivéssemos mais comedimento, menos ousadia!... A tal reproche respondemos com Jacques Monod, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1965, de cuja sentença fizemos nosso lema, e a pusemos como mote neste livro: "A modéstia convém ao sábio, mas não às idéias que o habitam e que ele deve defender". E a quem defende seja lá o que for, não se lhe permite hesitação!; impõe-se-lhe, ao contrário, intrépida firmeza e impávida determinação!

Criacionismo ou Evolucionismo? Ambos. Esta é a matéria de que trata este livro.

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A FALA DE SALDANHA MARINHO – I

É muito comum ouvir-se os irmãos repetirem em Loja o dito de Joaquim Saldanha Marinho que disse: "Admiro duas instituições na humanidade: uma é o CRISTIANISMO, outra, a MAÇONARIA. A primeira é divina; a segunda é a obra mais perfeita que o homem compôs". Esta sentença mereceu figurar, como mote, na sobrecapa da obra "Maçonaria e Cristianismo" de Jorge Buarque Lyra.

Não obstante toda essa consagração, achamos que a frase se contradiz em sua afirmação segunda: porque se Saldanha Marinho acha que a Maçonaria é obra humana, como afirma, a seguir, ser ela "a obra mais perfeita que o homem compôs"? Compôs é passado perfeito do indicativo; e se concede Saldanha que a Maçonaria é obra humana, tem de concordar que tal obra está em se fazendo, porque a humanidade ainda não se acabou em nada, donde vem que sua história prossegue. Contra este argumento, poderia o próprio Saldanha Marinho replicar dizendo que, embora a história da humanidade prossiga, a história da Maçonaria encerrou-se, como sói acontecer com todas as instituições que o homem criou. Que é feito do pitagorismo? Que é do orfismo? Que aconteceu com todas as escolas filosóficas que um dia floresceram? Tal qual, sim senhor! Diria Saldanha, a Maçonaria é passado, e nós somos os últimos remanescentes dessa vetusta Instituição. Portanto, está certo dizer que a Maçonaria é "a obra mais perfeita que o homem compôs".

Acaso estará agonizando a Maçonaria que agora só vive do passado, sem futuro, e cujo presente é puro ramerrão? Uma amostragem do que afirmamos, um como que retrato da Maçonaria, está num levantamento histórico desde seus primórdios, feito pelo irmão Professor João Hipolyto Martins, da Loja "Guia Regeneradora" de Botucatu. Eis o que se acha nas páginas 14, 16 e 19:

COMPROMISSO DE COMPARECIMENTO AOS TRABALHOS

Na sessão de 20 de setembro de 1934, depois de falarem vários irmãos acerca do comparecimento aos Trabalhos da Loja, por maioria foi aprovado que os Irmãos assinassem, solenemente, um compromisso de assiduidade aos Trabalhos, de modo a voltar o entusiasmo maçónico sempre reinante nas Colunas. (pág. 14).

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Em Sessão de 25 de julho de 1935, foi ventilado o assunto "Causas do Enfraquecimento da Ordem". Foram citadas várias, entre elas as facilidades concedidas pelas Lojas na aceitação de candidatos. Foram feitas várias sugestões para sanar esse mal. O mesmo assunto foi ainda discutido nas sessões realizadas, posteriormente, em 1.º, 8 e 22 de agosto de 1935. Nessa última sessão houve também referência à situação político-social, para melhora da qual foi aventada a idéia de se trabalhar para o aumento do alistamento eleitoral, principalmente entre maçons". (pág. 16).

IRMÃOS FALTOSOS

Na Sessão de 19/8/1944, o Venerável Mestre, em virtude do reduzido número de Irmãos presentes, manda o Irmão Secretário comunicar por escrito aos faltosos, lembrando-os de suas obrigações e do juramento prestado. Infelizmente iríamos constatar que esse mesmo descaso prosseguiu, conforme verificamos pela leitura das atas posteriores" (pág. 19).

Este, o relato: Os lrmãos da Guia Regeneradora, já em 1934, sentiam o esvaziamento da Loja que, certamente, não principiou nesse tempo. Para resolver o problema, apelaram para o recurso do "compromisso de assiduidade" assinado solenemente. Só que, como não é esse o caminho, tudo não passou de um fogo de palhas. Dez anos mais tarde, tudo estava na mesma, e é, então, que o Venerável Mestre manda o Irmão Secretário comunicar-se com os irmãos faltosos lembrando-lhes os compromissos e juramentos. De nada valeu esse expediente, visto que o mesmo "descaso prosseguiu, conforme verificamos pela leitura das atas posteriores" (pág. 19).

Perfeitamente conscientes de que a grande Instituição está falindo, os Irmãos da Guia Regeneradora, em Sesão de 25 de julho de 1935, se propuseram discutir o tema: "Causas do Enfraquecimento da Ordem", tema esse que voltaram a estudar nas Sesões realizadas nos dias 1.º, 8 e 22 de agosto do mesmo ano. Posta de lado a causa impertinente ao tema, que é trabalhar para o aumento dos eleitores, sobretudo entre os maçons, vem a de que o mal reside nas "facilidades concedidas pelas Lojas na aceitação de candidatos".

Verdadeiramente, esta é a causa; só que não, como a entederam os lrmãos da Guia Regeneradora. Suponhamos que, nos

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séculos XV e XVI não tivesse a Maçonaria arrebanhado os "ardorosos livres-pensadores", "audaciosos defensores da ciência natural, que tinham para si que a natureza não está somente na matéria, mas também nas leis morais" e que essas leis morais, plantadas na consciência, são as únicas que possibilitam a formação da sociedade humana, e tanto que, quando tais leis cessam, a sociedade se "encaminha para o seu embrutecimento", até que se desfaz na barbárie; acaso, a Maçonaria teria vindo até hoje? Sempre houve no mundo homens de um natural bom, e além disto, "livres, de bons costumes”. Só que para ser maçom esta condição não bastava outrora. Por que? porque tais homens são massa com a qual os líderes plasmam os costumes, escrevem a histó-ria. Theobaldo Varolli Filho afirma que a Maçonaria "é, acima de tudo uma escola destinada à formação de líderes”, para o que recomenda “às Lojas o dever de escolherem obreiros versados em filosofia, encarregados de proferir palestras culturais, principalmente sobre os ensinamentos da antiga Grécia”. Mas, por que hão de querer estudar os componentes das Lojas, em sua maioria formada "de burgueses apatacados, vaidosos e sequiosos de encômios lamentavelmente proferidos nas lojas"? E quando tais burgueses, que são maioria, propõem candidatos, em que roda social os buscam, senão na sua própria, pelo que suas Lojas mais ainda se enchem deles? E que faria aí um estudioso que tivesse em vista a busca incessante da verdade"? E depois que o estudioso se entedia do ramerrão das sessões e, desiludido, ludibriado, se

afasta, os que ficam dão-se os parabéns e se felicitam por serem os únicos possuidores de “espírito maçônico". Ninguém repara que o Aprendiz foi ludibriado, pois na hora da iniciação o Orador leu-lhe o preâmbulo da Constituição que diz ser a Maçonaria uma Instituição “essencialmente filosófica, educativa, filantrópica e progressista. (...) Pugna pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e social da humanidade", entre outros, por meio "da investigação constante da verdade". A promessa do estudo da filosofia unicamente através da qual se investiga a verdade, não se verifica nunca, transcorrendo as sessões em puros rituais vazios, na burocracia das elevações, e em discussão de pequenos problemas filantrópicos.

A Maçonaria carece de projetos: ela começou com o projeto número um: corporação medieval dos pedreiros livres operativos; depois, o projeto de reforçar a corporação permitindo a entrada dos

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"maçons aceitos", não operativos. Estes pedreiros aceitos, sobretudo os Rosa-Cruzes, fizeram a transposição da Maçonaria operativa feita toda de pedreiros-de-verdade, para a Maçonaria humanística, com o terceiro grande projeto de lutar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e social da Humanidade, para o que selecionou os homens mais por seus valores intelectuais do que por suas condutas individuais. É que, como diz Bernard Shaw, "os ideais dos homens estão, primeiro, no papel". Quem quiser, que relacione os nomes ilustres dos que fizeram a Maçonaria no papel, e depois examine suas biografias...

Depois veio o projeto político em que aquelas idéias postas no papel, se tornaram realidade vivida: caiu a Bastilha, e a guilhotina cortou as cabeças aos poderosos; vieram as repúblicas democráticas, e os escravos negros se fizeram livres. E agora? Agora não há mais projetos, e as Lojas se encheram de gente que não pode fazer nada, nem quer nada com o estudo. Na Maçonaria não há nem o projeto de atualizar a Instituição fazendo-a renovada. Ficamos no pretérito; se há um projeto maçônico, este consiste na recordação do seu glorioso passado morto; de fato, é como diz Saldanha Marinho: a Maçonaria "é obra mais perfeita que o homem compôs"...

A primeira coisa que se há de fazer para acudir um doente, é procurar-lhe um médico. Diagnosticado o mal, é fácil a aplicação do remédio. Tal qual ocorre com uma instituição enferma; é preciso conhecer a causa da sua doença, para depois receitar-lhe o medicamento que a possa curar. Uma crítica construtiva, portanto, deve consistir no diagnóstico e no remédio.

Tomando a Loja "Guia Regeneradora" de Botucatu como amostra da endemia que acomete a Ordem Maçônica, vejamos mais alguns trechos do levantamento histórico daquela Oficina, feito pelo Irmão João Hipolyto Martins:

PEDIDO DE QUITE-PLACET - Com a palavra, o Orador, Dr. Mário Soares teceu comentários sobre a atitude de irmãos que ultimamente solicitaram Quite-Placet, apelando para que os irmãos usassem de franqueza, declarando os verdadeiros motivos do pedido; se o motivo é o desacordo com a Diretoria, ou outra circunstância qualquer, tais causas poderiam encontrar outras soluções que não o afastamento. - Sessão ocorrida em 16/5/1959.

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A causa verdadeira oculta pelas alegações falsas, em razão do que se pedia usar de franqueza, é o fastio, o tédio que causam, as sessões monótonas destituídas totalmente de interesse. Para não ter que dar explicações, os irmãos se afastam, não comparecem aos Trabalhos, até que são sumariamente eliminados por faltas. É o que se lê no trabalho do Irmão João Hipolyto Martins, referente à Sessão de 29 de fevereiro de 1904, em que "foram eliminados do Quadro, 29 irmãos por não comparecimento aos Trabalhos”, acrescentando o Irmão João Hipolyto, por sua conta: "Numa demonstração do zelo que a maçonaria tinha, naqueles tempos, no cumprimento do dever". Perdoe-nos o Irmão João Hipolyto a franqueza da opinião: se a Loja "Guia Regeneradora" fosse tão zelosa no cumprimento do dever, as eliminações nunca teriam chegado a 29 irmãos de uma vez. Foi a negligência que deixou o número dos faltosos chegar a tanto. A menos que o Irmão Hipolyto quisesse dizer que a Loja é hoje ainda mais negligente quanto aos faltosos. Seja qual for a intenção do Irmão Hipolyto, ao fazer seu comentário, uma coisa é certa: já em 1904 a "Guia Regeneradora" de Botucatu apresentava problemas quanto a assiduidade aos Trabalhos, tal qual ocorre hoje com quase todas as Lojas. Algumas chegam até a abater Colunas; a respeito disto lemos o seguinte:

LOJA "AMÉRICA II" – Oriente de S. MANUEL - Em 10/5/1957, o Irmão visitante, Cid Guimarães de Souza, depois de saudar os presentes, lançou um apelo aos Irmãos da "Guia Regeneradora" para reabilitar a Loja. "América II, de S. Manuel, que já não realizava Sessões por falta de freqüência de irmãos do Quadro. O Respeitabilíssimo Mestre agradeceu sua visita, e adiantou que tomaria providências para que aquela Loja voltasse a trabalhar.

Ainda com referência a essa Loja, o Venerável da Loja "Nazareth II”, do Oriente de Avaré, em Sessão de 17/5/57, reiterou o apelo para impedir que a nossa co-irmã de S. Manuel viesse a abater Colunas.

Como se vê, Irmãos pedem Quite-Placet, sob pretextos vários, mas nunca apresentando as causas verdadeiras; outros, para evitar alegações falsas, simplesmente se afastam, e são eliminados por faltas; outros assumem os Trabalhos Maçônicos como uma obrigação semelhante a um serviço qualquer pelo qual se há de ganhar o pão. Às vezes, os faltosos são tantos, que não há Sesão, chegando as Lojas a abaterem Colunas. Tudo isto, por

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motivo do tédio, do fastio, da falta de motivação superior... conseqüências do desvio da Sublime Ordem de seus fins precípuos exarados já no Capítulo I da Constituição do Grande Oriente do Brasil, que promete ao Aprendiz a filosofia, e não há filosofia nenhuma; promete a “pesquisa incessante da verdade", e isto se faz letra morta. De maneira que, para salvar a Sublime Instituição, é preciso, nada mais, nada menos do que fazer cumprir aquilo mesmo que se acha expresso nos seus Princípios Gerais exarados no Capítulo I da Constituição.

Pelo estudo, pela filosofia, pelo cumprimento do ideal de pesquisar incessantemente a verdade, a própria Ordem se renova, tornando-se ela naquilo que promete ser, e que até se grava com o sinete do Grande Oriente do Brasil: NOVAE SED ANTIQUAE. O problema não está em a Ordem ser antiga, o problema consiste em ela ter-se continuado só antiga, quando, igualmente, tinha que ser nova... A Maçonaria não pode continuar sendo a obra mais perfeita que o homem COMPÔS, como quer Saldanha Marinho, mas sim, ela tem que ser a obra mais perfeita que o HOMEM ESTÁ COMPONDO!

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O GRANDE PROJETO – I I

Como vimos, o primeiro projeto foi a criação da corporação medieval dos Pedreiros Livres; o segundo, evitar a decadência e extinção da Ordem medieval, pela incorporação dos Maçons Aceitos, o que redundou na transposição do operativismo profissional para a ação filo-político-moral-social da Maçonaria. Este segundo projeto, de ação multíplice, fez a glória incontestável da Sublime Ordem, como uma Instituição aberta, e não, como todas as demais que se foram, e as que, hoje, SE ESTÃO INDO, só porque são instituições fechadas, sem porta para sua renovação. Não fosse que a Maçonaria é uma Instituição aberta, não estaríamos, aqui, perdendo nosso tempo em escrever...

Todavia, apesar de aberta, a doutrina maçônica está com atraso de duzentos anos; sua filosofia é ainda a do século XVIII; falar em reis tiranos, em castelos de nobres, edificados sobre “masmorras", etc., é um anacronismo tão grande, que o iniciando chega a não entender de que se está falando. Alguém teria de dizer isto para principiar a renovação cujo início tem que ser pela filosofia.

Nossa civilização está caindo, e, com ela, a Ordem Maçônica, por falta de um norte filosófico. O grande projeto maçônico, portanto, consiste em, primeiro, a Ordem salvar-se a si própria pela renovação; em segundo lugar, consiste em salvar a própria civilização pela nova filosofia que a Maçonaria poderá desenvolver.

O jornal "O Estado de S. Paulo", de 10 de julho de 1979, trouxe uma entrevista da ministra francesa Françoise Giroud, a Gilles Lapouge, com o título "Ocidente, hoje uma civilização sem projeto”. Passada uma semana, o mesmo jornal - domingo, 17/7/79 - trouxe um editorial comentando a entrevista da ministra com o título: “Sem projeto, não existe Ocidente". Diz a ministra: "O que me choca hoje é que a civilização ocidental não tem mais projeto"; porque "não creio que uma civilização possa ter por único projeto a manutenção de seu nível de vida". O primeiro projeto, segundo Françoise Giroud, foi o religioso que, grosso modo, imperou até o fim da Idade Média; depois veio o projeto econômico, que veio até nossos dias. "Em seguida, começou a se perguntar: «Por que produzir?». Quando Lapouge interroga: «É uma perspectiva

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sombria?»", responde a ministra: “Talvez nasça um projeto. Talvez ele esteja germinando em alguma parte".

Eis aí o serviço que a Maçonaria terá de prestar à Humanidade: terá de dar-lhe um projeto novo, do mesmo modo que lhe deu o projeto econômico, uma vez que todos os grandes pensadores renascentistas foram maçons. O primeiro deles foi Francis Bacon (1561-1626) havido como "primeiro dos modernos e último dos antigos, inventor do método experimental", "fundador da ciência moderna e do empirismo". (Abril Cultural, História das Grandes Idéias do Mundo Ocidental, I, 245 - Os Pensadores). O segundo foi Descartes (1596-1650), o iniciador da filosofia moderna. Estes dois homens, ambos maçons, encabeçam os dois tipos de intelectualismo: o idealista e o empírico; de um e de outro saiu o cientismo, o fisicalismo, o tecnicismo, o industrialismo e tudo veio desaguar no projeto econômico vigente ainda hoje. Este projeto se exauriu, e, cumpre à Maçonaria apontar à Humanidade seu novo caminho. Não há outra opção: ou a nobre Instituição, em se salvando a si mesma, salva a Civilização Ocidental, ou uma e outra darão em nada na barbárie.

Tudo há de começar por esta tomada de consciência de que decorrerá o esforço para solucionar o problema. Em segundo lugar, é preciso saber por que as instituições dentre as quais a própria Civilização, morrem, porque se não se souber a causa de elas adoecerem de morte, não se as poderá curar. Este é o único trabalho em que cumpre à Maçonaria concentrar todos os seus esforços. Resolvido este ponto crucial, tudo o mais será solucionado. Se não for resolvido este ponto crucial, o resto não terá a mínima importância! A primeira coisa que há de fazer quem está morrendo, é salvar-se. Não tem nenhum sentido o moribundo fazer qualquer outra coisa que não seja isto - retornar à vida, à saúde! E a Maçonaria está morrendo. Quais, pois, as "Causas do Enfraquecimento da Ordem"?, perguntaram os Irmãos da "Guia Regeneradora" de Botucatu, em Sessão de 25 de julho de 1935. O mesmo assunto voltou a ser tratado em 1.º, 8 e 22 de agosto do mesmo ano. Faz quarenta e quatro anos que aqueles Irmãos fizeram a pergunta, e até hoje ninguém soube responder..., nem eles!

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NOSSA CIVILIZAÇÃO EM QUEDA – I II

Os Irmãos da "Guia Regeneradora" de Botucatu se propuseram meditar sobre o tema: "Causas do Enfraquecimento da Ordem", e o fizeram em quatro Sesões nos dias 25 de julho de 1935 e 1.º, 8 e 22 de agosto do mesmo ano. No entanto, não puderam resolver o problema, embora estivesse certa a intuição que tiveram ao afirmar: a causa está na facilidade com que as Lojas aceitam seus candidatos. Só que os lrmãos da "Guia Regeneradora" estavam pensando em termo de "homens livres e de bons costumes", e nós podemos provar que só esta condição não basta. O Irmão Theobaldo Varolli Filho afirma que a Maçonaria "é, acima de tudo uma escola destinada à formação de líderes". Mas, esqueceu-se Theobaldo de explicar que a liderança é inata, e que, por isto, a Maçonaria tem que procurar os líderes lá no mundo profano; esqueceu-se de dizer que um homem bonachão, pacífico de gênio, perfeitamente adaptado ao seu mundo, inimigo de inovações, que dorme o sono dos justos... sem nunca se preocupar com nada superior, que não tem espírito de luta, não poderá, nunca, ser um líder em nada! Não explicou que o líder precisa de um projeto, sem o que, a capacidade de liderança fica ociosa, o líder se entedia do marasmo, da apatia do meio, e acaba saindo. Não explicou Theobaldo que a capacidade de liderança coexiste com a criatividade, e que só lidera quem for criativo, e não, nunca, esse homem bonachão, amodorrado, sonolento, que jamais se exalta, e que apenas se deixa arrastar pela vida sem reação. Não explicou que, conseqüentemente, na escolha de candidatos, os critérios de liderança e de criatividade não podem ser postergados como agora é. Não elucidou a questão da inexistência do projeto maior do qual decorrem os projetos menores, particulares que põem os líderes em movimento, e que, portanto, não pode haver escola de líderes onde não há projetos nenhuns, exceto o que consiste em subir de grau..., que não confere nem maior sabedoria, nem maior virtude ou valor...

A falência da Maçonaria é um caso particular de um fenômeno mais geral, que é a queda da civilização. Os Irmãos da "Guia Regeneradora" teriam de descobrir esta causa geral da qual decorrem as causas particulares. E, pois, por que caem as civilizações?

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A resposta mais natural, mais evidente, intuitiva, que entra pelos olhos, é a de que as civilizações caem por ser cíclicas, como ocorre com todos os demais fenômenos da natureza. Os ciclos ou períodos planetários, o ciclo do carbono, das águas, da vida ou duração das coisas, dos seres vivos, etc. Assim, estaríamos condenados à extinção, quando fosse chegado a nossa hora de morrer como coletivo. Ninguém reparou, diz Toynbee, que isto não é a explicação da causa, porém, somente, a constatação de um efei-to..., o de que as civilizações morrem. Por que morrem?

Por que morre um ente biológico superior, como um animal ou uma planta? Porque suas células não podem recarregar-se de energia como ocorre com as células simples, isoladas. Um infusório, por exemplo, ao reproduzir-se, fá-lo por cissiparidade binária, e um dá dois; dois dão quatro; oito, dezesseis, trinta e dois, etc., até esgotar-se a energia do plasma, pelo que sobrevém a senilidade. Aí, então, dois infusórios se encostam, se fundem, trocam substâncias químicas, sobretudo ácidos nucléicos e gens; depois se separam recarregados de energia vital, qual um relógio ao qual se deu corda, no dizer de Fritz Kahn. Como os seres pluricelulares não podem fazer isto, suas células se esgotam, e eles morrem. Nisto se cifra a causa de morrerem os seres pluricelulares. Ora, para que as civilizações sejam como os organismos biológicos, era preciso que a extinção duma sociedade se desse pelo esgotamento da energia do plasma em cada um dos indivíduos que a compõem; quer dizer: sobreviria a senilidade, simultaneamente, a todos os indivíduos que compõem o coletivo. E é isto que se dá? Conseqüentemente, constatar que as civilizações morrem, que são cíclícas, não é explicar a causa.

A causa de morrerem as civilizações, diz Spengler, é porque elas se comportam como os organismos biológicos. Mas, responde Toynbee, uma sociedade em nada se comporta como um organismo biológico. Não há aí nem órgãos específicos, nem há sistemas como o digestivo, o sangüíneo, o linfático, o nervoso, etc. Dizer que uma sociedade se assemelha a um organismo biológico é pura metáfora; e acaso uma metáfora, mera figura de linguagem, pode servir de base a conclusões científicas? Mas, então, por que as civilizações são cíclicas?

Quando Arnold J. Toynbee chegou a estas conclusões, viu claro que muito ainda havia por fazer. Andando ele pela Grécia, a

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pé, a visitar os lugares cheios de história, foi dessedentar-se num riacho que descia dum outeiro. Tinha bebido já boa porção, quando, ao tomar um fôlego, deu com um pastor que o espreitava há já algum tempo. Foi aí que o homem lhe disse que aquela água não prestava. A água poluída produziu em Toynbee uma disenteria que o maltratou por seis anos, desqualificando-o para o serviço militar, e foi só em razão disto que ele não foi morrer na Primeira Grande Guerra, como aconteceu com todos os seus colegas de universidade, sem nenhuma exceção.

A Primeira Conflagração Mundial foi um baque para a Inglaterra que viu perecer toda a sua mocidade masculina. Por este motivo, o governo inglês quis saber quais as causas da guerra, contratando Toynbee para este serviço. Ao tempo em que este grande historiador ia fazendo o estudo para o governo, trabalhava, também, numa obra particular a que deu o modesto nome de "Um Estudo de História". Uma obra se socorria da outra e vice-versa. Ao cabo de trinta anos, com a colaboração de sua primeira e, depois, da segunda esposa, ambos trabalhos ficaram concluídos. "Um Estudo de História" saiu em dez volumes dos quais se fez uma condensação em quatro com o mesmo título. Toynbee, lendo os quatro volumes resumidos pelo condensador, declarou que, se tivesse feito o trabalho, não sairia melhor. Estes quatro volumes foram traduzidos para o português, e editados pela W. M. Jackson, Inc.

A história desenvolve-se pelo processo a que Toynbee chama repto e réplica, análogo ao que, na psicologia, se chama estímulo e resposta. Repto é o mesmo, também, que desafio, vocábulo muito em moda atualmente. As civilizações principiam a cair quando não podem responder a um dado repto ou desafio. Mais de vinte civilizações que se foram, são examinadas por Toynbee em sua obra, todas por não terem sabido responder ao último desafio, ao último repto. Babilônia, Assíria, Egito, Grécia, Roma, caíram por sua impotência frente ao último repto, e não porque, como pensava Spengler, tivesse chegado o tempo de elas morrerem, semelhante ao que ocorre com os organismos biológicos.

O repto de Toynbee é a mesma antítese de Hegel; a história vai-se desenvolvendo normalmente: é a tese; de repente, surge uma negação ao estabelecido, à tese: é a ANTÍTESE, (Hegel) ou REPTO (Toynbee), ou DESAFIO (Moderno). A única solução, ÚNICA

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!, está na RÉPLICA (Toynbee), ou SÍNTESE (Hegel), ou RESPOSTA (Moderno). Agora podemos responder a todas as perguntas: as civilizações mostram-se cíclicas; são cíclícas, porque não souberam ou não puderam responder ao último REPTO, ou DESAFIO. Uma civilização entra em colapso quando surge uma ANTÍTESE... negando a TESE em desenvolvimento e não há quem possa fazer a SÍNTESE entre a tese e a antítese. Que DESAFIO?, que REPTO?, que ANTÍTESE não pôde nossa civilização RESPONDER, REPLICAR ? O da DOUTRINA DA EVOLUÇÃO ! Qual, a RESPOSTA, a esse DESAFIO ? A resposta é a SÍNTESE entre CRIACIONISMO e EVOLUCIONISMO.

A síntese é, sempre, a abertura de um campo mental novo, mais largo, uma generalização que abarque, que englobe na NOVA UNIDADE, a tese e a antítese. Isto se chamou, desde Hegel, movimento dialético. Trata-se do que, em Loja de Aprendiz, se chama fechar o triângulo, serviço feito pelo Orador. Tanto que surge um assunto qualquer em Loja, que é a tese, imediatamente aparece sua contradição, um argumento contrário – a antítese. O Orador faz a conciliação dos opostos – a síntese. Pois cumpre, agora, à própria Maçonaria fechar o grande triângulo cujos lados são Cria-cionismo e Evolucionismo. Este, o grande projeto que a Maçonaria e a civilização terão que realizar..., sem o que não sobreviverão!

No entanto, a Maçonaria com ignorar, com olvidar, com não se referir em nenhum grau à DOUTRINA DA EVOLUÇÃO, simplesmente está REPTADA por essa DOUTRINA que continua, desafiando, não só a Sublime Instituição, como, também, a todas as filosofias e todas as religiões... todas as filosofias, sim, inclusive a de Spencer que não conclui no plano moral... para serviço da Humanidade. Quem tirou as conclusões da "filosofa natural" foi Nietzsche, o que redundou em desserviço para o Homem, porque a nietzscheana doutrina moral da força (ser justo é ser forte; a justiça é o desassombro do forte) só prestou para desencadear o colapso da civilização que estamos vivendo hoje!

O livro "Origem das Espécies" de Darwin veio à luz em novembro de 1859, tendo-se esgotado a edição no mesmo dia. Os exemplares do livro eram passados de mão em mão, provocando os mais acirrados debates entre as duas facções irreconciliáveis até hoje: a dos criacionistas e a dos evolucionistas. Essa vitória estrondosa, espetacular, do livro se deveu a que a idéia estava no

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ar, preparada desde há muito; para ser mais claro, tal idéia despontara-se já na Grécia. Todavia, o tema pegou fogo mesmo, foi nos fins do século XVIII e no século XIX. Tudo o que se previu, então, que ia acontecer, se essa idéia triunfasse, de fato sucedeu. Pouco a pouco aquelas previsões dos criacionistas se foi realizando, até que chegamos ao hoje da nossa civilização em plena queda. O evolucionismo afastou Deus do convívio humano; declarou-se, enfaticamente, que Deus estava morto; que seu trono é uma poltrona vazia. Contudo, como Deus é o fundamento da moral... que disciplina os costumes, sem essa base para a moral, os costumes principiaram a embrutecer-se.

Como a Natureza exterior não oferece base nenhuma para a moral... exceto a moral natural de Nietzsche, que é a da força, ou então, a da astúcia; e como Deus foi declarado morto, em que se há de fundar a moral... que estende seus galhos como bons costumes? E que é feito dos filósofos?, visto que ninguém enxergou isto? Por que razão a Maçonaria deixou de ser filosófica, dado que, nela, não há mais filósofos..., e, se os há, por que se omitiram eles num caso tão grave, como é este, tão importante, visto que ele implica na vida ou na morte da própria Subime Instituição, na vida ou na morte da civilização?

A família tradicional está em colapso, não se tendo ainda evidenciado uma forma moderna que lhe assegure a estabilidade necessária à educação dos filhos. Estes, por sua parte, rebelam-se contra os pais, tachando-os de "antiquados", de "quadrados", de "coroas" etc. Tais adjetivos reservados aos mais velhos, fazem parte de um vocabulário pobríssimo, próprio dessa que se convencionou chamar: "geração sem palavras". O paupérrimo vocabulário de gíria tem sua complementação nos gestos, numa espécie de retorno às origens, quando os pré-homens conversavam por acenos, por mímicas, por gestos, tal como ainda o fazem os chimpanzés. Diz Ortega que "há povos centro-africanos nos quais à noite, quando é plena a escuridão, os indivíduos não podem conversar, porque não se vêem e, por não se verem, fica amputada da fala a gesticulação". A música de tais jovens "prafrente", como eles mesmos se auto-denominam, é um berreiro em meio ao estridor das guitarras elétricas ensurdecedoras, e as letras de tais gritarias, ou são nada, ou são protestos-sem-solução, tendentes a destruir o estabelecido, para que, em seu lugar, reine o mais

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completo caos. Nunca se vê seriedade nos assuntos abordados pelos jovens modernos, como se o amanhã não lhes dissesse respeito.

Os mais velhos, e os que adotaram as idéias da antiga geração, da velha guarda, sentem o choque, mas nada podem fazer com suas fórmulas superadas de Criacionismo. Cansados, esses da velha guarda, dessa luta sem quartel..., em que os moços triunfam e se impõem na televisão e no rádio, dão de ombros a tudo, passando a ganhar dinheiro, a engolfar-se em atividades sócio-econômicas, sócio-políticas, sócio-artísticas, sócio-esportivas, sócio-religiosas, mas, sócio-salvacionistas-da-civilização é que não, como se esta não estivesse ameaçada de colapso. De vez em quando, assistimos pela televisão a certos debates, como, por exemplo, “As Causas da Criminalidade Infantil”; e ali, os especialistas de várias áreas, inclusive a religiosa, falam de tudo como causas, menos do mais importante, da CAUSA verdadeira que é o ressecamento das almas, que é a vacuização dos espíritos ocasionado pela falência das religiões... que não souberam, ne-nhuma soube, fazer a SÍNTESE, respondendo ao DESAFIO da DOUTRINA DA EVOLUÇÃO.

Na Suíça já passou no Congresso, e na França se discute a lei que autoriza a eutanásia a ser aplicada em doentes incuráveis, os quais, "caridosamente", são mortos. Pois, se temos uma "bala piedosa" para um animal ferido de morte ou doente, como não sermos igualmente "magnânimos" para com o homem enfermo incurável ou muito idoso? Por que o sofrimento?, se “morreu, acabou" ? Acaso, o objetivo da vida não consiste no fugir o mais possível da dor, e gozar a qualquer preço, satisfazendo a todos os apetites? Dado que todos, como evolucionistas materialistas, ou só materialistas, acreditam que "morreu, acabou"; não há por que não praticar tais "assassinatos caridosos"! E este é apenas o lado fino da cunha... que lhe permite a penetração em pequena fresta; depois a cunha se engrossa. Já não foi dito que a vida, após os setenta anos, é aborrecimento e enfado? Que nos obsta..., então, de aliviar o sofrimento próprio, ou o alheio?

O outro lado fino da cunha é o aborto legal..., aplicável por médicos materialistas a "certos casos", os quais ir-se-ão alargando de sentido, até o infanticídio praticável contra crianças doentes incuráveis, aleijadas e idiotas. É como o divórcio no Brasil: as

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"precauções legais" também são só o lado fino da cunha. Perdida a sua dimensão vertical de sacralidade, o casamento se tornou um assunto meramente legal. Já já o divórcio, no Brasil, será como o das outras nações "civilizadas". Perdida a sacralidade do matrimônio, moralmente, ele se emparelha com a mancebia. O legislador humano, baseado só, em si mesmo (ninguém o enxergou?), não tem autoridade, e, por isto, não pode infundir respeito sagrado !

Pensava-se nos casais infelizes (que melhor seria chamá-los imaturos) aos quais dever-se-ia dar novas oportunidades, mas que eram minoria; e fez-se lei geral para atender a essa minoria excepcional... O excepcional tornou-se regra? Pois, então, é só dar tempo ao tempo, que o que era a regra (casamento estável) vai tornar-se exceção. Também, na Inglaterra, morria-se de dó dos pederastas e das mulheres lésbicas, coitados!, pois não podiam ser felizes... Permitiu-se, então, que tais pessoas do mesmo sexo se casem legalmente. E muita gente que reprimia (por que reprimir?) suas tendências homossexuais, passaram até a estimulá-las..., pois nada há a coibir num mundo em que as palavras "virtude", "santidade", "comedimento", "luta-contra-a-besta", perderam o sentido face ao "morreu, acabou” do materialismo... filho direto, autêntico e legítimo da DOUTRINA DA EVOLUÇÃO. Daí, os clubes de libertinagem em que os maridos trocam de mulheres, e estas, de maridos; daí, os casamentos em grupos, em que tais trocas re-cíprocas já fazem parte de disposições estatutárias; daí, os festivais de pornografia, a exploração infantil do sexo, etc., etc. E em caso de dúvida sobre como agir, sai-se às ruas a consultar as massas, perguntando aos transeuntes o que acham disto ou daquilo. Antigamente, quem sabia era Moisés, era Sócrates, era Cristo; agora qualquer indivíduo opina sobre assuntos de alta monta, e quando lhe pergunta o interlocutor a razão de sua opinião, a resposta é: porque sim ! Para saber tudo, cada um se baseia em si mesmo, numa volta a Protágoras... para quem "o homem é a medida de todas as coisas". As massas avançam para os postos de comando, e aquilo que determinar o IBOPE, isso se torna lei!...

No meio deste pandemônio nascem alguns filhos..., ou os filhos de casais sadios crescem vendo e participando da bagunçada. Sem nenhuma educação moral... que só é ministrada pelo exemplo, sem nenhuma inspiração superior, tais filhos com ou sem lares,

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observadores das orgias, das bacanais, das pândegas, acaso irão ser honestos e bons? E ficam os ingênuos doutorescos a perguntar, com caras de bobos: por que será que cada dia aumenta mais o número de casos de criminalidade infantil e adolescentes? Por que cada dia mais aumentam as escolas de malandragem... que formam doutores-em-astúcia aos magotes, para que não venha a faltar, em escala mundial, furtos, estupros, assaltos, seqüestros e assassinatos? Não tenhamos dúvida: o número de bandidos de dentro e de fora da lei crescerá na medida em que a família se desintegra e os costumes se corrompem. Por causa da enorme concorrência, ou seja, por causa da crescente oferta desta mão-de-obra anti-social, as exigências dos sequestradores ficarão menores, passando eles a "trabalhar" por pouco dinheiro; aumentarão, cada vez mais, os mandados de prisão não cumpridos, por falta de lugares nas prisões já superlotadas.

O jornal "O Estado de S. Paulo", em sua edição de 14 de abril de 1977, declarou que o aumento de criminalidade está preocupando o Secretário da Segurança Antonio Erasmo Dias. Na Grande São Paulo há três assassínios por dia e quarenta assaltos dos quais sete ficam sem solução. Na Semana Santa a média diária subiu para sessenta assaltos. "Até 31 de março - diz o Secretário - tinhamos 41.708 mandados de prisão por cumprir, sendo que 30 mil se referem a assassinos, estupradores, assaltantes e outros criminosos já condenados pela justiça. Por que há tantos criminosos à solta? Eu não sei responder" - diz o Secretário.

O mesmo jornal "O Estado" de 9 de fevereiro de 1977, traz outra notícia; agora quem fala é o Secretário da Justiça Manoel Pedro Pimentel que, manifestando-se no II Seminário Paulista de Administração Penitenciária, diz: "dentro de dois ou três anos, o sistema penitenciário paulista será, fatalmente, levado a um colapso"; porque "CRESCE VERTIGINOSAMENTE A CRIMINALIDADE em São Paulo. Fala-se em cerca de 700 delitos por dia, na Grande São Paulo, a um custo zero para o delinqüente. Isso representa, na melhor das hipóteses, a expedição de mil mandados de prisão por mês".

Este é o quadro clínico da sociedade em todo o mundo dito "civilizado", com perspectiva de piorar até a morte. O que poderia salvar o mundo da falência? As RELIGIÕES SUPERIORES poderiam. Contudo, elas, também, em sendo reptadas pela

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DOUTRINA DA EVOLUÇÃO, não souberam replicar. As reformas ocorridas na Igreja, atualmente, são só superficiais, e não, profundas... a ponto de mexer nas estruturas filosóficas e teológicas. E por que as reformas deixaram intactos os alicerces?

Nas vinte civilizações estudadas por Toynbee, ele pôde desentranhar uma lei que se enuncia deste modo: "Aqueles que replicam com sucesso a um repto se encontram em posição pouco propícia para replicar com sucesso ao repto seguinte". Tira-se disto que, tendo a Igreja replicado com felicidade ao repto do barbarismo greco-romano, e isto, por meio do desenvolvimento do projeto religioso, começou a cair em face do desafio seguinte: o projeto econômico. Este projeto, que é renascentista, só se tornou possível com o advento do Racionalismo e com a Reforma... sobretudo a de Calvino que pôs a posse de riquezas e de renome como sinais de salvação, pelo que tornar-se rico ou prestigioso é a melhor maneira de agradar a Deus. A Igreja de Roma... mordendo o freio, teve de acei-tar as regras do jogo Capitalista que é anti-medieval. Já estava ela cambaleante, portanto, quando foi posta em xeque-mate pela DOUTRINA DA EVOLUÇÃO. Como reagiu a Igreja a este desnorteante e poderoso DESAFIO? Impotente frente a ele, ela entrou em colapso..., em razão do que (quem o diria?) bispos e padres se fizeram materialistas, comunistas e ateus, abandonando o mandamento de Cristo que diz: "Dai a César o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus" (Mat. 22, 21). Eles passaram a dar a César o que é de César, e também a César o que é de Deus. De salva-dores de almas que deviam ser, fizeram-se todos reformadores sociais, ou parapsicólogos, materialistas disfarçados, que só não declaram isto de uma vez para não perderem o governo que exercem sobre o rebanho de crendeiros... não de todo disperso ainda, por causa de ainda agir sobre ele o poderoso impulso inicial.

Para o padre Oscar G. Quevedo, S. J. nem os santos, nem os demônios podem manifestar-se, e o que se supõe sejam comunicações de santos, de demônios ou de mortos quaisquer, não passa de efeito arquiprodigioso do inconsciente humano. A este respeito, escreve: "O caso de possessão mais notável é o endemoninhado de Gerasa (Mc V, 1-17). Torna-se difícil dar ao caso uma explicação demoniológica, ao passo que, numa explicação parapsicológica, o fato se torna bem claro"'. Mais: "Os demônios, puramente espíritos, sem corpo ou matéria de nenhuma classe, ne-

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cessitam de albergue? Passam frio no inverno? Molham-se quando chove?

E assim o padre define espírito: pura essência ou forma vazia de substância, "sem corpo ou matéria de nenhuma classe". Disse, por outras palavras, que os espíritos são conceitos abstratos, formas puras, objetos de razão, puras idealidades subjetivas, fora do espaço e do tempo, existentes só na memória dos que ficaram vivos... enquanto estes existirem... Inusitada maneira de dizer que "morreu, acabou!". Se os espíritos não possuirem uma substância que lhes dê corpo num outro plano de existência, então, são puras idéias abstratas, ou imagens conservadas na memória dos vivos; são puros entes mnemônicos ou imaginários, porque, para serem reais, objetivos, para existirem fora de nós, alhures, para estarem no tempo, que isto é existir, precisam ser constituídos de uma energia-substância (espaço-tempo), precisam possuir corpo espectral, fluídico, o que implica estarem em outros planos ou níveis de existência, isto é, no espaço-tempo. Todavia, para o padre, o espírito não tem "corpo ou matéria de nenhuma classe"!

Fora tudo isto, a que se reduz a autoridade de Cristo que toma os demônios por entidades reais malfazejas? Se Cristo tivera tomado umas aulas de parapsicologia com o conspícuo padre Oscar G. Quevedo, S. J., não sairia com o estapafúrdio que se lê em Mateus 12, 43 a 45; ei-lo:

“E, quando o espírito imundo tem saído do homem, anda por lugares áridos, buscando repouso, e não o encontra. Então diz: Voltarei para a minha casa donde saí. E, voltando, acha-a desocupada, varrida e adornada. Então vai, e leva consigo outros sete espíritos piores do que ele, e, entrando, habitam ali: e são os últimos atos desse homem piores que os primeiros”.

Pois bem: aquilo que Cristo sustenta serem espíritos malignos, imundos, perversos, o padre explica que são manifestações do inconsciente. Que inconsciente? Eis o que escreve o Dr. Osmard Andrade Faria a respeito de Freud:

"Dono de uma inteligência genial e de uma indescritível capacidade fantasista, Freud enveredou pelo terreno da mais pura ficção quando dividiu o cérebro em escaninhos estanques (ou semi-estanques), o consciente, o pré-consciente, o sub-consciente, o inconsciente. Emaranhou-se depois em "ids", "egos", "super-egos",

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"repressões", "rejeições", "censuras", etc., tudo isso temperado com uma dose de sexo...

"E mais: quando se quer saber dos seguidores da doutrina do professor de Viena em que departamento do cérebro podemos alojar o "consciente", o "sub-consciente" e os outros "conscientes", somos informados de que tais "conscientes" não têm nenhuma localização material no cérebro. São concepções puramente espaciais"!

Os vários "conscientes" não tem base material; são "espaciais" (!)... menos que etéreos...; quer dizer: possuem as três dimensões que formam o espaço, só que este espaço é vazio, feito de nada! São puros vácuos espaciais recortados sobre nenhuma substância!... O inconsciente é algo tão abstrato, inexistente, irrepresentável, subjetivo e irreal, quanto a idéia de triangularidade, de asinidade! Alguém, porventura, entendeu este psitacismo que vem a ser o "inconsciente" do Pe. Quevedo? Pois foi isto que substituiu os "santos", os “demônios" e os "espíritos" os quais ingenuamente, Cristo supôs existir...

Trocando, Quevedo, a autoridade de Cristo pela de Antoine Porot, doutor em psiquiatria, descreve um caso de contorcismo psicopata, depois do que escreve: "(Compare-se com o "endemoninhado" em Lc XIII, 10-16)". Comparemos então: e que vemos? Eis o testemunho de Cristo no caso: "E não convinha soltar desta prisão, no dia de sábado, esta filha de Abraão, a qual há dezoito anos Satanás tinha presa?"

Pouco mais adiante, Quevedo, falando da afonia ou mutismo histérico, acrescenta: "(Compare-se com endemoninhado de Mt XII, 22 ss.)". Comparemos: e Cristo, defendendo-se da acusação que lhe imputavam de expulsar demônios por Beelzebú, príncipe dos demônios, diz: "E, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo; como subsistirá pois o seu reino?" Cristo declara tratar-se de Satanás ou Beelzebú, príncipe dos demônios, e o padre Quevedo, desautorizando Cristo para crer em Antoine Porot, afirma, enfático, que tudo não passava de "afonia ou mutismo histérico". Cristo diagnosticava um caso que tinha sob os olhos, e errou; o gênio do padre, com seu potentíssimo poder de penetração no tempo, vai lá no passado, e corrige Cristo!

Como era de esperar-se, também os santos não se comunicam, nem recebem preces, nem missas, nem há purgatório, visto que a

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possibilidade ou capacidade de sofrer é propriedade do corpo, não, da alma. "É o vivo - diz o padre - que pede a Deus por intercessão dos santos e pelos méritos dos santos, que lhe conceda o que pede. Colocamos por intercessores nossos advogados, nossos irmãos maiores, que nos precederam na fé. As orações aos santos não são propriamente uma comunicação com o morto, mas com Deus. E quando um santo nos concede um favor, não é o santo que interfere neste mundo (porque não pode). É Deus, por intercessão ou pelos méritos do santo. A comunicação do ali com o aqui, somente Deus pode fazê-lo”.

O santo, qualquer que seja a sua hierarquia celeste, ao qual o crente faz sua prece, não pode intervir, interceder, interferir, advogar por absoluta impossibilidade de receber o pedido do fiel a fim de transmiti-lo a Deus. E Deus que intercepta o pedido e o despacha pelos méritos do santo, mas não por sua intervenção, porque, como já ficou dito, o santo não pode interceder nem advogar causa nenhuma de ninguém. O santo nem pode receber o pedido do crente, nem pode comunicar-se com Deus, nem Deus com ele, visto encontrar-se no estado de "dormindo no Senhor", aguardando o Juízo, conforme o entendem os protestantes, ou seja, como diz o padre, o morto se acha na condição de "frustrado, inútil, sem agir)". Então, o que vieram fazer vocábulos intercessores e advogados no texto em estudo?

Antigamente, em seu excesso de rigor e de intolerância fanática, a Igreja de Roma, todo poderosa então, fazia queimar, vivas, em suas fogueiras medievais, até crianças inocentes (oh! dor!) as quais, confundidas e torturadas pelos "juízes" do tribunal do Santo Ofício, eram obrigadas a confessar as heresias que esses abutres queriam que elas confessassem! Agora um heresiarca desse porte, que é o Pe. Quevedo, hipócrita e ateu, nem mesmo precisa abandonar a batina?! Como há de salvar-se a Igreja, se chegou a tal estado de lassidão agônica?

Esta é só uma amostra do que são os padres hoje: de guias espirituais que eram, fizeram-se, ou “reformadores sociais" (?), ou anarquisadores da religião em tal grau, que o próprio Cristo e seu Evangelho são "corrigidos". Como, logo, não se esvaziarem os templos? Como se há de guiar um pai de família, more ele numa mansão ou num barraco, para educar seus filhos na religião, se seus guias espirituais apresentam doutrina controvertida, "um Evangelho

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diferente" (Gal. 1, 6) daquele que Cristo pregou? Seria o padre, hoje, o Mefistófeles vestido de batina? A falência da religião, a hipocrisia e materialismo dos sacerdotes produziram a deserção dos jovens, e sua conseqüente rebelião ao estabelecido. Como tais jovens são completamente vazios, nada têm para pôr nos lugares das de-molições. Eis que, harto, Inge teve razão ao escrever: "As antigas civili-zações foram destruídas por bárbaros de importação; nós criamos os nossos próprios bárbaros". (Toynbee).

Qual é a causa fundamental da queda de nossa civilização, da qual decorreu a agonia das religiões, o crescente colapso moral e a progressiva dissolução dos costumes? A DOUTRINA DA EVOLUÇÃO é a causa. Todas as filosofias e todas as religiões, são criacionistas, e, por isto, foram postas em xeque pela DOUTRINA DA EVOLUÇÃO.

A idéia de Deus não nasce num vácuo intelectual. O homem começou por ver o mundo ao seu redor, como ocorre com todo animal, com esta diferença: o homem não só reagia às circunstâncias, senão que também agia, conscientemente, no seu contorno. Ele fazia coisas como seu machado de pedra, seu arco, sua flecha, acendia o fogo e o mantinha alimentado em sua caverna. Havia, pois, ao seu redor os objetos artificiais que ele fabricava, e os objetos naturais que independiam dele. Os objetos artificiais obedeciam a um projeto, e se destinavam a um fim. Confusamente, os mais inteligentes podiam observar a existência de três circunstâncias: o agente, o projeto e o ato executado e/ou o objeto feito. Porém, os animais, de modo mais confuso ainda, também eram agentes que projetavam e executavam atos: lutar contra os inimigos, defender-se do ataque deles, caçar suas presas, bater-se pela fêmea, alimentar e defender a prole, são atos que implicam projetos que nascem nos agentes ou sujeitos. A garra, o chifre, o dente, a farpa, o espinho, o veneno dos animais, encontram réplicas quase exatas nas plantas, apenas que os vegetais não são ágeis, velozes, como os animais. Estes, embora possuam estas qualidades, não projetam nem criam objetos exteriores que são como utensílios e armas não ligados aos corpos. Todos os utensílios e armas dos animais fazem parte de sua anatomia; no homem, essas coisas são criações exteriores suas. Já fica estabelecida aí uma hierarquia de valores: o homem, superior aos animais, e estes, superiores às plantas. A existência de projetos e hierarquia - eis duas coisas que o primitivo pôde observar. E as pedras, a montanha, os rios, hão de estar mais abaixo ainda na hierarquia; contudo, deve existir uma alma

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agente ou vital também nas coisas inanimadas. Aqui está a primeira extrapolação praticada pelo primitivo, para o qual, por isto, tudo tinha alma, donde o animismo. A segunda extrapolação nasceu deste raciocínio: assim como os utensílios e armas anatômicas dos animais, e os objetos criados pelo homem obedecem a projetos, as coisas, o mundo, o universo hão de ter nascido de projetos, e existem para algum fim.

Estabelecida a hierarquia, vem a pergunta espontânea: haverá algo superior ao homem? Haverá algum Agente superior que projetou e executou o seu projeto, criando o homem, os animais, as plantas e os minerais? Para que servem os pés membranosos do pato?, para remar; e as asas?, para voar; e o chifre?, para lutar contra os adversários; etc. O olho existiu antes da câmara fotográfica, e a perna do gafanhoto é qual a pata traseira do cavalo. Se existe uma finalidade nas coisas, tem que haver projetos para elas. E não pode haver projeto sem um Planejador ou Projetista. Logo, o mesmo Planejador que projetou e executou as partes dos corpos dos seres vivos, para que eles pudessem sobreviver e perpetuar-se, projetou, também, e executou, não só o próprio homem, como os rios, os lagos, os mares, as terras, as montanhas, o céu, as estrelas, o Sol e a Lua. No interior de tudo há vida e alma em graus diversos, e, por elas, o homem se irmana com o universo próximo e distante. O grande Fautor de tudo é a Alma do universo - Deus!

De que partiu o homem para toda esta expansão mental? Partiu de si mesmo; da sua capacidade de reconhecer-se como planejador, como fautor de projeto que redundavam em atos ou coisas. O homem projetou-se no mundo, enchendo esse mundo da alma que sentia em si viver; mas isto, reparemos bem, só depois de constatar que as coisas, lá fora, obedeciam, também, a projetos quais os que fazia. Não há, pois, projeção pura e simples, mas também o oposto dela - a reflexão sobre o mundo, a incorporação do dado externo. 0 animismo, por conseguinte, é projetivo num duplo sentido: no de o homem supor projeto nas coisas, e no de projetar-se nelas, no mundo, no universo.

O movimento inverso, antitético, ao do animismo projetivo, é o do objetivismo experimentalista. Estes dois movimentos alteram-se na cultura desde o primitivo até o homem mais moderno.

O supor existir alma nas coisas ou animismo, foi a primeira manifestação do antropocentrismo. Como, na hierarquia dos valores, o

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homem não podia achar nada superior a si, o deus não podia ser senão o si mesmo projetado fora; como o homem era oriundo de um projeto, o Projetista seu, finalmente, teria dito: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gên. 1, 26). O duplo movimento de para fora (constatação), e para dentro (reflexão) existiu desde sempre. Antes da projeção de si no mundo, o primitivo constatou a existência de coisas que correspondiam a um fim; e isto implicava projeto. E se este projeto não era humano, só podia ser de Alguém sobrehumano. As coisas que o homem fazia e faz são artificiais; as coisas naturais, dentre as quais os seres vivos, se não foram feitas pelo homem, quem as fez? 0 Planejador ou Projetista-Mor foi havido como um Homem-Grande; depois, como Causa Incausada; como Ser; como Lei-das-Coisas. Deus, antes de ser uma projeção do homem, foi uma Ne-cessidade...; a de ser o Planejador que projetou o plano que o homem constatou existir nos entes vivos da natureza. A descoberta de Deus não é um produto só de imaginação; ela nasceu também de sua observação objetiva, satisfazendo já o primeiro requisito da ciência - o postulado da objetividade. Só que os cientistas têm disto mesmo uma visão diametralmente oposta quando negam que a natureza seja projetiva.

O fundamento do método científico é uma atitude psicológica que se expressa no postulado da objetividade pelo qual se recusa, sistematicamente, a admitir que a Natureza possa estar submetida a algum projeto, o que implicaria numa pré-ideação ou telefinalismo. Esse postulado evitaria ainda o empecilho para a ciência, que é o de o homem centrar-se em tudo (antropocentrismo), numa projeção de si nas coisas (animismo), no universo. O postulado conduziria a um conhecimento "verdadeiro" pelo fato de o homem ser posto fora do processo de investigação da verdade. Foi muito útil para o conhecimento esta nova perspectiva psicológica, porque arrancou a ciência do domínio da metafísica que padecia do vício crônico do antropocentrismo, da idéia a priori de finalidade, da aceitação antecipada de que para tudo na Natureza, no universo, havia projeto. Quando Aristóteles afirmou que dois corpos da mesma forma e da mesma matéria, mas de massas diferentes, abandonados em queda livre no espaço, o maior batia no chão primeiro que o mais leve, não foi fazer a experiência, como a fez Galileu, para constatar isso; em vez de Aristóteles basear-se na experiência fundamentou-se na intuição. A intuição nos faz crer que a massa maior sofre maior aceleração, por ser solicitada com maior força pela gravidade. Galileu,

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aproveitando-se da inclinação da torre de Pisa, demonstrou que os dois corpos caem com igual velocidade, pelo que se ouve um só baque no chão. Concluir da experiência objetiva, e não, a partir da intuição somente, eis no que se cifra o princípio ou o postulado da objetividade. Se houver um projeto nas coisas, a experiência é que há de demonstrar isso, e nunca, a pura intuição...

Outro caminho simultaneamente percorrido pela razão do primitivo, foi o do princípio de causalidade. Tão antigo é este princípio, que ele já desponta no nível do fisiológico, abaixo dos instintos, e são os reflexos condicionados. O organismo, abaixo da inteligência, já aprende associar estímulos - som da campainha com alimento. Para o organismo, o som é a causa, e o alimento, o efeito. Se a cada toque de um apito um homem receber forte jacto de luz nos olhos, depois de várias repetições, basta o silvo para as pupilas se fecharem, independente de qualquer esforço da vontade em obstar o desencadeamento do reflexo. 0 som do apito é tomado como causa do jacto de luz, e o organismo aprende a reagir à causa... por antecipação daquilo que ele cuida seja o efeito - o jacto de luz. Todo o efeito pressupõe uma causa. Em sua ação sobre o contorno, o homem primitivo se dava conta de ser a causa de certos efeitos que sabia desencadear. Os montes, os rios, as lagoas, as árvores, os animais e o próprio homem eram efeitos de uma causa; eles não se planejaram nem se produziram a si próprios. Houve, então, um Projetista-Mor, um Causador, uma Causa que produziu o universo que é um efeito. Logo, o Causador de tudo, já para o primitivo, é o mesmo Deus-Relojoeiro de Voltaire... e do poeta que, por isto, canta: "Os Céus proclamam a glória de Deus, e o Firmamento anuncia as obras de suas mãos". (Sal. 19, 1). Em místico enlevo, então, o homem fala da harmonia das esferas, da ordem e concerto do cosmo, da beleza da paisagem, da música das aves, do colorido e perfume das flores. O mundo é belo, é bom..., e somente um Deus bondoso o teria criado...

Fugindo de todo este ANIMISMO, o homem de ciência se foi postar no lado contrário, criando, para isto, o método científico... a partir do postulado da objetividade pelo qual se afirma esta premissa: a natureza é objetiva, e não projetista; quer dizer: a natureza não possui quaisquer projetos nem fins, e tem de ser estudada em si mesma, objetivamente, sem que o homem se projete nela de nenhum modo.

Todavia, como este postulado foi produzido pelo homem; como, para aplicá-lo, é preciso partir de uma hipótese inicial que guia o

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projeto científico que estabelece aquilo que se vai procurar saber. Pois claro: como procurar alguma coisa, sem, antecipadamente, se saber aquilo que se quer? Como, uma vez achado o que se procura, isto implica em conclusões inevitáveis para o homem; de que modo se poderia afastar o homem desta jogada toda humana, desde a hipótese até a conclusão, afora ainda que o próprio postulado da objetividade é, também, humano? O homem para produzir algo, cria um projeto; reparando a natureza, verifica que ela também realiza projetos. Ora, o projeto humano, é distinto do projeto da natureza; como, logo, concluir que o projeto da natureza seja projeção humana, só porque também o homem é projetista?

Mas, apesar desta implicação humana, já na hipótese inicial; já no postulado que formula (para todo sempre improvado); já nos resultados fanais obtidos... de aplicação humana; apesar de tudo isto, o maluco do cientista, por sua especialidade, afilosófico, pretende realizar uma outra como quadratura do círculo qual seja: tirar o homem da jogada; fazer do postulado da objetivdade um absoluto; postular sem o homem que postulou (!?).

Imbuído desta idéia de objetividade absoluta (!), sem mesmo uma hipótese inicial, vai o aprendiz de biologia com uma pipeta, e tira um pouco de água de uma calha sob o beiral do telhado; põe algumas gotas sobre uma lamínula que leva ao microscópio. Que são aquilo?... que parecem miniaturas, aos milhares, de insetos? Ah!... - lembra-se - são os infusórios; quer dizer: seres unicelulares protozoários, animais de infusão..., donde lhes vem o nome. Dentre eles, ali está o paramécio, grandalhão, comparado a muitos outros.

De um frasco ao lado, o cientista retira, com a ponta de um estilete, ínfima porção de água, e a põe na mesma lamínula. O frasco continha uma cultura de Didinium nazutum, uma espécie de infusório esferóide com uma ponta ou tromba. Aquilo que se supõe seja nariz ou tromba, é a goela que o bicho põe para fora. O didinium é inimigo natural do paramécio. Tão logo foram postos juntos, começa a guerra..., semelhante a uma batalha naval (conforme a descreve Fritz Kahn), em que o paramécio, muito maior, assemelha-se a um navio de guerra atacado por barcaças torpedeiras. Pelas trombas, os didiniuns projetam dardos, fios curtos de plasma narcotizante, como se as trombas foram canhões. O paramécio arrepia umas como escamas, deixando ver uns furos laterais enfileirados, como as bocas de fogo dos vasos de guerra antigos. Por esses furos são expelidos também

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dardos de plasma narcotizante. A batalha prossegue até o esgotamento dos dardos. Aí principia a luta corpo-a-corpo. Os didiniuns agarram o paramécio com as trombas, obrigam-no a nadar para trás, de modo a se arrepiarem as escamas, fazendo aparecer os furos laterais. Outros didiniuns metem as trombas nesses furos, e injetam dentro do paramécio suco digestivo. Morto o paramécio, é só chupá-lo.

E crível que, nessa muito menos que gota de água, tudo isso tenha acontecido?! Atônito, levanta o cientista os olhos do microscópio, põe-nos na paisagem distante, e fica a meditar. Céleres, em sua imaginação, correm os quadros já vistos antes. Vê uma leoa perseguindo uma corça, tal qual faz um gato espreitando um passarinho; cose-se com o chão aqui, levanta-se ali... atrás da moita, e, de repente, salta-lhe em cima. Lá vem a leoa arrastando a corça por sobre o capinzal e pequenos arbustos. Sai-lhe ao encontro o forte leão jubado que, apoderando-se da presa, a devora. Depois é que a leoa e seus filhotes vêm saciar a fome nos restos. Muda-se a cena, e eis o cordeiro sendo pasto do lobo sanhudo, feroz, e o pombo, do gavião voraz.

Deus-da-força?!... exclama o cientista, em voz alta, ao dar-se de si, despertando do seu sonho... O coração palpita-lhe no peito...; a emoção recresce...; parece estar prestes a descobrir novidades...; inflama-se-lhe a imaginação..., tudo corre velozmente... Vê o bicho-pau imitando um galho seco...; o louva-deus, além de verde como as folhas, até parece estar rezando, de mãos postas; eis, no entanto, que se apodera de um incauto que lhe passa perto, e o devora... Ali está um besouro que se acerca da lâmpada elétrica, bate na parede, na porta, no vaso de flores, e cai sobre a mesa... fingindo-se de morto. O camaleão, a lula, a mudarem de cor...; camuflagem, mimetismo, o fingirem-se mortos dos coleópteros todos, e da raposa !... Acaso Deus é o Deus-da-astúcia? o Deus-do-engano?, do ludíbrio, da mentira, da falsidade? A vida é egoísta e amoral; desconhece a piedade, e dá a palma da vitória para o mais forte e para o mais astuto... E é Deus o Autor da vida? Eis, aí está, a causa das dores e misérias do mundo! Razão teve, Schopenhauer, de chamar a Deus de "Demônio Criador" em seu livro "Dores do Mundo" ! Harto entendeu Buda que todo o mal do mundo decorre do desejo de ser!... Ser é mal, e não-ser, bem!...

Ainda que pretendendo fazer do postulado da objetividade um absoluto, o aprendiz de biologia, sem mesmo uma hipótese inicial, mas

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a esmo, foi ver o que se continha na água estagnada da calha sob o beiral do telhado. E concluiu desta vista, para que o homem utilize (eis o ponto de chegada), que, se há um Deus, este há de ser o da força e o da astúcia... Um Deus que dá o prêmio da vitória e da vida para o forte e para o astuto...Um Deus que reconhece a força e a astúcia como justas, como justiça, e se ufana de ter por filhos os fortes e os astutos!...

Este é o aspecto que a DOUTRINA DA EVOLUÇÃO sublinhou desde Darwin: a luta pela vida, com a vitória incondicional do mais forte, do mais apto e do mais astuto. Força, aptidão e astúcia são o tripé sobre que se apóia a natureza na sua mais alta forma de expressão que é a vida. A visão do mundo evolutivo, como se observa, não conduz à idéia de um Deus de bondade. Tirando as conclusões que Spencer deveria ter inferido do evolucionismo, Nietzsche assenta que ser justo e bom é ser forte; que a justiça é o desassombro do forte; a piedade é fraqueza. De tudo isto inferem os filósofos contemporâneos: Deus morreu!; o trono de Deus é uma pol-trona vazia!... E como sem Deus não há sustentáculo para a moral, nossa civilização está caindo.

De vez em quando se fazem simpósios para discutir as causas das violências nas grandes cidades, da parte dos bandidos e da polícia. Pergunta-se, então, pela causa da desagregação da família, da criminalidade infantil e adolescente. Todos são concordes em que é por causa da deterioração dos costumes. Tudo pára aqui, porém, porque tais simpósios são formados por técnicos, somente, de diferentes áreas, e nenhum especialista tem visão de conjunto, que é própria do filósofo; e não se convida nenhum pensador, ou porque o não há, ou porque se o desconsidera. E ainda que haja algum "filósofo", esse é Doctus cum libro..., Ph.D. de pergaminho na mão e anel no dedo, formado (isto é., modelado, plasmado, determinado) por alguma escola oficial, ou seja, mero professor de filosofia... que não vai além de recitador, daquilo que há nos compêndios. Diz-se que “o poeta nasce e o orador se faz". Parodiando este dito, o fi lósofo de verdade nasce, e o professor de filosofia... que recebe um diploma de Ph.D., esse também se faz. "O filósofo (diz Gusdorf) é o homem da totalidade, da composição global onde todas as significações são retomadas e arbitradas em função da pessoa". Mais: "Tal como o rei Midas, que ao simples con-tacto transformava em ouro os objetos mais vulgares, o metafísico

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eleva ao absoluto tudo aquilo em que toca". Ninguém, pois, nos venha refutar com a afirmação de que em tais reuniões há filósofos. Feita essa ressalva, podemos prosseguir:

O resultado dessas reuniões de especialistas é que ninguém sabe responder à angustiante pergunta: por que se estão deteriorando os costumes? É decepcionante que, dos especialistas das diferentes áreas... dentre os quais até teólogos, não haja ninguém que atine com a resposta e diga: tudo isso acontece por falta de religião que, alicerçada em Deus, sustente a moral e os bons costumes. Tudo acontece porque as religiões, sem nenhuma exceção, entraram em colapso, e agonizam, hoje, por ter sofrido o golpe da DOUTRINA DA EVOLUÇÃO. Ninguém atina que, ao REPTO ou DESAFIO dessa DOUTRINA, é imprescindível se dê uma RESPOSTA; que, face à ANTÍTESE que essa DOUTRINA é, somente há uma saída, urna só: fazer a SÍNTESE... entre CRIACIONISMO e EVOLUCIONISMO.

Dado que nenhuma civilização jamais se formou sem uma base religiosa... com fundamento em Deus; uma vez que não há moral onde não há essa instância superior que a determine, a regule e à qual se possa apelar; assentado que toda vez que um dado repto não respondido, sempre provocou o esvaziamento da religião, o colapso da moral, a deterioração dos costumes, o embrutecimento do homem, em razão do que a civilização correspondente caiu, indo, algumas vezes, parar na barbárie; frente a estes considerandos, deixamos, aqui, um desafio a todos os técnicos de todos os sim-pósios: mostre-nos, alguém, como estabelecer um código de moral que não esteja sustentado em Deus !

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O ILUMINISMO – IV

Nos graus superiores, chamados filosóficos, a Maçonaria também se mostra como uma coisa acabada..., onde tudo é repetido, mecanicamente, como se tivera só um valor ritualístico. No grau 19 principia o que se costuma chamar filosofismo. E o "Lello Universal" nos diz que filosofismo é "falsa filosofia", ou "abuso da filosofia". Nós, porém, gostaríamos de dar a essa palavra conotação diferente, a exemplo do que ocorre com os outros ismos; assim, em vez de "abuso da filosofia" ou "exagero da filosofia" diríamos que filosofismo é a preocupação precípua com a filosofia, tal qual, por exemplo, o psicologismo.

Psicologismo é qualquer filosofia que tenha por fundamento os dados da consciência, isto é, a reflexão do homem sobre si mesmo, como se fez, a partir do cogito de Descartes. Psicologismo, pois, é toda a filosofia moderna, visto que parte das intuições a priori. Psicologismo, conseguintemente, é o mesmo que Idealismo subjetivo, cuja contraditória está no Realismo greco-medieval que, no instante de seu nascimento, em Mileto (VI século a.C.), pôs as coisas (res) por alicerce de tudo.

Num novo enfoque, o Psicologismo é o Racionalismo do século XVII, nascido com Descartes, que teve sua antítese, sua adversativa, sua contraditória no Racionalismo do século XVIII, de sentido diametralmente oposto. Em vez de partir dos a priori, como fizeram os filósofos do século XVII, no século XVIII, partiu-se da experiência sensível. O método empírico ou experimental já tinha sido preconizado pelo maçom Francis Bacon (1561-1626) do qual há uma referência nominal (Irmão Bacon) no grau de "Cavaleiro Rosa Cruz". Renascentista como era, inimigo da escolástica e dos filósofos gregos, Bacon foi havido por uns como "o primeiro dos modernos e último dos antigos", como "inventor do método experimental", como "fundador da ciência moderna e do empirismo". Sua filosofia nasceu do seu entusiasmo pela técnica que tinha dado ao mundo a pólvora, a imprensa, a bússola e o papel, inventos que mudariam o aspecto das coisas em todo o mundo. Outros, todavia, vêem em Bacon apenas o arauto, o pregoeiro das ciências modernas, e não, seu criador; dentre estes há até os que afirmam não ter Bacon compreendido nada de ciência, além de ter sido crédulo e

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destituído de espírito crítico. Ele, afirmam, não descobriu nada nos domínios dos fenômenos naturais, e não pôs a matemática como indispensável à ciência em sua metodologia científica.

Este Racionalismo empírico baconiano foi encontrar sua antítese no outro Racionalismo, o subjetivo e matemático de Descartes (1596-1650) que nasceu quando Bacon tinha trinta e cinco anos. Todavia, no século XVIII, houve uma volta aos ideais de Bacon, visto que a filosofia deste século se opõe ao Psicologismo do século anterior. Como já vimos, os filósofos racionalistas psicologistas do século XVII acreditavam na possibilidade de se resolverem os problemas todos pelo uso de uma razão analítica que operava, dedutivamente, a partir das idéias inatas inerentes ao próprio intelecto humano - as intuições a priori. Já dissemos que nisto se cifrava o Psicologismo, ou o Idealismo subjetivo. Os racionalistas do século XVIII, em contraposição, assentavam que a razão se desenvolve a partir da experiência sensível, e se expande e cresce pari passu com esta. Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) haviam já concebido a idéia de lei natural em toda a sua extensão de objetividade, quando Newton (1642-1727) publicou sua obra "Princípios Matemáticos da Fi-losofia Natural". Este livro iria engrossar a corrente empirista, que passava por John Locke (1632-1704), corrente nascida em Francis Bacon, indo criar o Racionalismo empírico do século XVIII que é o defendido no grau 19.

Como se observa, aqui já estava formulado o postulado da objetividade pelo qual se pretendia afastar todo o animismo herdado dos primórdios da civilização. A natureza tinha que ser objetiva, e não projetiva - tal o pedia o postulado. Esta nova tomada de posição determinou a arrancada que teve início no século XVIII, o Iluminismo ou Século das Luzes, em que se juntaram as duas vertentes vindas dos séculos anteriores, ou seja, os dados empíricos procedentes dos fenômenos naturais, e os princípios matemáticos da razão. A razão não é mais concebida como o repositório de verdades eternas, aí inscritas pelo Criador, quando da feitura do homem, e sim, faculdade que se desenvolve com e pela experiência; razão operativa que elabora os dados provindos dos sentidos e das experiências efetuadas.

Como era de esperar-se, a razão fonte-de-verdades, razão dedutiva a partir das intuições a priori, cedeu seu lugar à razão-atividade, razão operativa, objetiva, e, com isto, aqueles sistemas

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fechados do Idealismo subjetivo, mudaram-se em construções livres, móveis e abertas com fundamento no concreto e no vivo. Daí a "busca incessante da verdade" que é um dos meios para a melhoria moral, intelectual e social da Humanidade, como se lê no texto da Constituição recitada pelo Orador. ao iniciando. E em nenhum outro grau a Maçonaria se dá como sendo detentora da Verdade, donde vem que o movimento da razão é aberto em espiral ascendente, ascensional, e não, fechado em círculo ou sistema.

Este caminho foi palmilhado pelos filósofos iluministas, e alguns deles enciclopedistas, porém, todos maçons: Holbach (1723-1789), Helvetius (1715-1771), Condillac (1715-1780), Diderot (1713-1784), D'Alembert (1717-1783), Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778), Montesquieu (1689-1755). Todos estes pensadores formavam um como "indivíduo filosofante único", no dizer do historiador Wilhelm Windelband, pois não havia idéia que brotasse na cabeça de um que logo não deitasse raízes nas dos demais. O materialista La Mettrie (1709-1751) pertencia ao grupo, e Degérando (1772-1842) também, ideólogos do Iluminismo que entronizaram a Razão no lugar outrora reservado a Deus. Por proposta de Chaumette (1763-1794), síndico da comuna de Paris, foi estabelecido, em 1793, o culto da Razão, um ano depois substituído pelo culto do Ente Supremo, conforme o impôs Robespierre.

Tudo o que até então estivera só no papel ("Os ideais dos homens estão primeiro no papel" - Bemard Shaw), fez-se realidade e fato histórico após a Revolução Francesa (1789), quando Danton e Robespierre, ambos maçons, aboliram a religião cristã, o velho calendário, e instauraram a Idade da Razão..., e, com esta, o Terror. A França transformou-se, sob o comando de Robespierre, em matadouro de homens; a suspeita andou à solta e cada um desconfiava do seu mais chegado companheiro. O pesadelo de todos só acabou, quando alguns membros da Convenção, certos de que seriam decapitados pelo terrível chefe, porque este já o fizera com a maioria dos outros convencionais, ousaram insurgir-se; prenderam, então, a Robespierre que tenta o suicídio com um tiro na cabeça; falha; a bala, apenas, rebentou-lhe o queixo. Medicado às pressas, foi arrastado para a guilhotina que, de um golpe, pôs fim ao Regime do Terror.

A Áustria e a Prússia haviam decidido salvar o rei e a rainha da França com os quais mantinham estreitos laços de família e

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amizade, mas seus exércitos encontravam a mais encarniçada resistência por parte dos soldados franceses, apesar de estes se acharem esfarrapados e famintos. O pânico, a opressão, a fome e o sofrimento desses anos de supremo horror, embruteceram a plebe, tornando homens e mulheres violentos e brutos como feras. A França achava-se esfrangalhada, mas uma grande idéia nova, nas-cida na Maçonaria - a da Liberdade, Igualdade e Fraternidade - alentava a luta em todos os setores. A bandeira com essas ínclitas divisas estava pronta, mas faltava um líder...

Vem Napoleão Bonaparte (1769-1821)... que fez tremular o estandarte dessa nova ordem, e, com ou sob esse novo signo, derrota a Áustria, a Prússia, a Itália, a Inglaterra e a Rússia..., sobretudo, porque, em todos esses países havia a opressão dos poderosos contra os fracos; e os soldados, provindos do povo tripudiado, nutriam solene antipatia a toda nobreza de sangue. Deste modo, por causa do ideal de liberdade, a força dos franceses era ajudada pela mesma força que, do lado contrário, fazia a fraqueza do inimigo. Até Beethoven dedica a Napoleão sua sinfonia n.º 3, a "Heróica". Perdeu, porém, o grande Corso, tudo o que era e tinha, quando, pondo a coroa na cabeça, traiu os ideais revolucionários que o levantaram tão alto, e que, por isto mesmo, o deixaram cair tão baixo... Beethoven rasga a dedicatória da "Heróica", a estrela de Napoleão cessa de brilhar, e ele é feito prisioneiro dos ingleses na ilha de Santa Helena, onde morre...

Sirva isto para desengano de todos aqueles que cuidam que valem por si mesmos, e não, pelo ideal que encarnam! Não era Bonaparte, frisemos isto, o que hipnotizava homens para os fazer soldados – nem era o que convocava exércitos que tão ardidos se mostravam nas batalhas: era o ideal da nova ordem que se havia de plantar no mundo - o ideal da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Napoleão pode ter sido um grande soldado..., até mesmo um gênio militar..., mas não era um sábio, pois não entendeu nada do momento histórico... de que era protagonista; não entendeu ele que não passava de mera conseqüência de movimentos que levariam o mundo a uma nova ordem, e não, de retorno aos velhos tempos do "Ancíen Régime". Caiu, portanto, pelas mesmas razões pelas quais sempre se cai: caiu por sua ignorância!

Tanto sangue derramado, tanto esforço, tanto suor, tanta lágrima para nada; os franceses não puderam lograr o que quer que

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fosse do seu talento, heroísmo, arrojo e valor, porque um ignorante genial, vaidoso, arrogante, insensível, ingrato, ímprobo, vingativo, injusto e falso, que foi Bonaparte, os meteu de novo no "Ancien Régime" monárquico-imperial do qual, com tanto custo, tinham saído, e, para sair, tiveram que matar nada menos que um rei, uma rainha, a nobreza toda e os próprios filhos da Revolução... Depois de Napoleão, Luiz XVIII; irmão de Luiz XVI, foi posto no trono da França, e o povo francês teve de suportar todo o peso da Contra-Revolução. Morto Luiz XVIII, sucedeu-lhe no trono seu irmão Carlos X que, segundo Wellingnon, instaurou o governo "dos padres, pelos padres e para os padres"... Durou dez longuíssimos anos (que o tempo é sempre dilatado para o que sofre) o reinado de Carlos X, substituído, depois, por Luiz Filipe que, apesar de bom rei, foi deposto para dar lugar à República..., finalmente, proclamada em 25 de fevereiro de 1848.

Fica, portanto, inexoravelmente demonstrado que Napoleão era um individualista, vazio de ideal, que punha no vértice da sua pirâmide de valores, não a sabedoria, mas o poder; daí sua ambição e oportunismo que o levaram, à maneira dos surfistas, a pôr-se na crista da onda revolucionária... que o levou até o trono; acontecido isto, o hipócrita e falsário tirou a máscara de defensor da liberdade, deixando ver sua monstruosa cara de tirano, de primeiro déspota contra-revolucionário. Fale, agora, H. Van Loon, a respeito desse execrável traidor do supremo ideal maçônico:

"Durante o sítio de Toulon, em que grangeou fama como chefe duma bateria, estudara assiduamente Macchiavelli. Influenciado talvez pelos conselhos do estadista florentino, jamais cumpriu a própria palavra, quando tinha vantagem em lhe faltar. O termo "gratidão" não figurava no seu vocabulário pessoal nem ele a esperava de outrem. Era absolutamente insensível aos sofrimentos alheios. Em 1798, no Egito, executava prisioneiros de guerra a quem prometera poupar a vida e abandonava tran-quilamente na Síria os seus feridos à ação do clorofórmio, quando lhe parecia impossível transportá-los até aos navios. Contrariamente a todas as leis, decretou a sentença de morte e o fuzilamento do duque d’Enghien, sob o único fundamento de que os "Bourbons precisavam duma lição". E, assim como determinava que os oficiais alemães, aprisionados quando combatiam pela independência do seu país, fossem passados pelas armas ao pé do

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muro mais próximo, condenou à morte André Hofer, o herói tirolês, que se lhe entregava, após a mais intrépida resistência". Mais:

"Era homem de pequena estatura e, nos primeiros anos da sua vida, assaz doentio. Nunca impressionou a quem quer que fosse pelo seu aspecto e, até o fim dos seus dias, se revelou desajeitado, toda vez que se viu obrigado a figurar numa solenidade social. Não gozara de nenhum privilégio de educação, de origem ou de riqueza e conhecera, na mocidade, uma indigência extrema que muitas vezes o privava de se alimentar, constrangendo-o a ganhar os poucos soldos das suas despesas acessórias da maneira mais extravagante.

"Também não prometia ser um prodígio literário. Concorrendo a um prêmio instituído pela Academia de Lião, obteve o penúltimo lugar, sendo classificado décimo quinto entre dezesseis candidatos. Superou, porém, todas essas dificuldades, graças a uma fé absoluta e inquebrantável no seu destino, num futuro glorioso".

Que, pois, havia de especial nesse homem que não primava pela estatura, pelo porte, pelo aspecto?, nem pela sabedoria, nem pela erudição?; sem nenhum privilégio de origem, de educação e de riqueza?; que se mostrava até desajeitado, falto de elegância, nos salões? Seria que é, como diz Van Loon, que ele venceu por causa de "uma fé absoluta e inquebrantável no seu destino, num futuro glorioso"? Mas, de que vale tal pujante fé, se ela não se acompanhar das circunstâncias que a viabilizem? Tivesse nascido Bonaparte cinqüenta anos antes, iria engrossar o número dos malucos, exatamente graças à sua mania de “fé absoluta e inquebrantável" num impossível futuro glorioso "!

É uma grande tolice pensar que o valor vale em qualquer tempo: Beethoven, Miguel Ângelo, Milton, Goethe e o próprio Napoleão não valeriam nada hoje, frente a esta nossa civilização sem projeto, sem nenhuma causa grande pela qual se deva lutar e a qual se deva defender. As portas estão fechadas para todos os grandes talentos que, em vão, gritam nos desertos para o vazio! O que vale não vale!; a nulidade toma vulto!; o que não era assume essência!; as massas aplaudem... e decidem pelo "palmógrafo" do IBOPE o que é e o que não é valor!...

De maneira que a causa imaginada por Van Loon, não pode

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ser a que proporcionou a grandeza de Napoleão. Digamos que a causa esteja no ser ele um gênio militar. Outra vez a circunstância: no tempo do Rei Sol, Bonaparte, quando muito, iria a capitão ou major, ou até mesmo, a apagado general, porque, sem guerras, os grandes soldados não aparecem.

Qual é, então, a causa de o famoso Corso tripudiar sobre toda a Europa, a ponto de, como diz Van Loon, as mães inglesas impelirem seus filhos para a cama, "sob a ameaça de que Bonaparte, que devorava crianças ao almoço, os comeria também, se não fossem obedientes"? A causa é esta, e somente esta, e não há outra: Napoleão se fez a si mesmo porta-voz do Ideal revolucionário cuja bandeira era a da Liberdade, Igualdade e Fraternidade! Esse IDEAL, e só ele, e nada mais que ele, extaseou o mundo sofredor, aterrorizou os que sempre esfaimaram os povos, que são os potentados de todos os tempos, propiciou os meios para que o calhorda, aventureiro e oportunista Bonaparte subisse ao trono, e, por tamanha traição deste grande Patife, o mesmo IDEAL o derrubou para todo o sempre... do poder e do coração de todo o maçom que se preza..., porque esse IDEAL é a Sublime Ordem..., e, sem ele, ela cessa de ser... e é nada. Eis, pois, que, por isto, Napoleão é o supremo Judas da Maçonaria!

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O PROGRESSISMO – V

Antes de encetarmos o estudo da filosofia do grau 19 (para o que estivemos relatando os fatos históricos que nos permitissem situá-lo no passado), cumpre-nos, ainda, estudar o que vem a ser Progressismo. O Capítulo I da Constituição define a Maçonaria como sendo uma "Instituição essencialmente filosófica, educativa, filantrópica e progressista". Pois então, o que é ser progressista? Na acepção vulgar do termo, progressista é todo aquele e/ou tudo aquilo que é favorável ao progresso; partidário do progresso. Suposto que seja esta a acepção, como se explica que a Maçonaria seja arcaísta e apenas viva do seu passado glorioso, sem projeto nenhum para o futuro? É que seu arcaísmo decorre de ela ser progressista; progressista noutra acepção.

O Progressismo é galho da filosofia moderna que supõe haja lei para tudo, para todo o acontecimento, e que a história é regida por lei. Tudo o que acontece, acontece segundo uma lei. Assim, a história se escreve por si mesma, pelo que há um determinismo histórico, ou seja, uma como que mão de Deus guiando a história. Portanto, a história se desenvolve por meio dos homens, ou apesar dos homens. Ser progressista é acreditar que tudo vai como tem de ir, e sucede como tem de acontecer, inexoravelmente. Ora, se a Maçonaria se dá como sendo progressista, não tem que planejar nada; basta abandonar-se ao sabor dos acontecimentos, e estes, de modo implacável, traçarão o seu destino. Isso de fazer projetos é coisa recente; data de quando se descobriu que a história não tem lei, e é como uma empresa qualquer, em que tudo precisa ser planejado, e que, sem projeto, a história continuará a ser escrita pelo ensaio-e-erro animal, por tentativas e falências. É por isso que a história é uma série absurda de acontecimentos em que se intercalam clarividências com estupidezas. E sempre aparecem os estupidarrões para destruir a obra dos perspicazes; se predominam estes, a história avança; se, aqueles, ela retrocede para o embrute-cimento. O ter acreditado que tudo irá da melhor forma possível, foi uma estupidez... que impediu quaisquer projetos para o futuro. Logo, é como dissemos: o arcaísmo maçônico... que implica na ausência absoluta de projetos, decorre de a Sublime Ordem ser, como ela própria o declara, progressista...

Galileu, Klepler, Newton abriram o caminho para a ciência

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físicomatemática, e os iluministas do século XVIII, como já o vimos, concluíram pelo que se chama Cientismo, isto é, doutrina que professa o poder absoluto da ciência sobre todas as coisas. O Cientismo, logo, é mesmo que Racionalismo empírico (séc. XVIII) diametralmente oposto ao Racionalismo metafísico, ou Idealismo, ou Psicologismo do século XVII, nascido a partir do cogito de Descartes. Foi a crença no Cientismo que levou Augusto Comte, também maçom, a escrever em 1824: "Mostrarei que existem leis tão determinadas para o desenvolvimento da espécie humana como para a queda de uma pedra. Esta mesma crença levou a dupla Vol-taire-D'Alembert a escreverem contra a metafísica, no preâmbulo da Enciclopédia, dizendo: "Não duvido que este título se converta bem depressa em ignomínia para os nossos espíritos ilustrados, tal qual o nome de sofista, que entanto significava sábio, depois de haver sido aviltado na Grécia por aqueles que o ostentavam, foi rejeitado pelos verdadeiros filósofos”.

Passados mais de cento e cinqüenta anos desses arroubos de crendice acientífica, de credibilidade indébita, chegou a hora da cobrança, de protestar contra a dívida não paga. De Augusto Comte estamos a esperar o que ele prometeu... tão solenemente, e não cumpriu, nem ele, nem os seus sequazes positivistas, e o que se sabe é que "o positivismo contemporâneo parece haver tomado consciência de que o cientismo fazia da ciência uma espécie de absoluto, e que, por conseguinte, recaía no pecado da metafísica, contra o qual fazia profissão de protestar. Importa sumamente evitar toda e qualquer extrapolação, e esquivar-nos à tentação de afirmar mais do que sabemos”. (Gusdorf).

Os gregos, a começar por Parmênides, fizeram da Razão um absoluto, e Aristóteles e os escolásticos não ficaram atrás: assentaram que Deus se ocupa só de pensar pensamentos. Pensar sobre coisas seria degradação; tinha que ser pensamento puro, pura abstração imaculada de coisidade. E quando Tomás de Aquíno se põe a meditar sobre como seria a bem-aventurança dos eleitos na glória do céu, não se lhe depara outra forma de gozo que não a já pensada por Aristóteles: a glória dos bem-aventurados consiste na contemplação metafísica, isto é, no puro pensar abstrato..., tal qual Deus o faz.

Vem a Renascença, e Descartes faz do pensamento outro absoluto, pois que do pensamento, como de uma premissa, como de um postulado... que é a intuição a priori, faz tudo decorrer. Pouco

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antes, Bacon, embora tivesse posto Deus para fundamento da moral, admite já um cientismo insipiente, visto que sem matemática, e sem a necessidade de uma hipótese inicial. Para os filósofos franceses do século XVIII, o Deus das religiões tinha que ser, como foi, substituído pela Razão... ficando esta, de novo um absoluto. Tais filósofos iluministas cunharam um vocábulo novo, o sociologismo... segundo o qual, os fatos morais e religiosos são fenômenos sociais. Quer dizer: não foi a moral, fundada na fé em Deus, que possibilitou a formação da sociedade, mas foram os homens que, sem mais aquela, e sem saber por que, em se reunindo em sociedade, criaram, depois, Deus, a religião, as leis morais e cívicas, que tudo são fenômenos sociais. Como se vê, a Sociologia ficou sendo, agora, outro absoluto, daí sociologismo, tudo o mais decorrendo dela, até as demais ciências, pois é óbvio que, sem a organização dos homens em sociedade, seria impossível o pensamento abstrato... de que nasceram as ciências todas. Ora bem: se a sociedade pôde formar-se por si mesma segundo leis como as da química, da física e da astronomia, só que ainda por descobrir-se, o sensato não seria descobrir primeiro as tais leis sociológicas, para, depois, concluir, a partir delas? Pois nada disto se fez ! A existência de tais leis (que hoje se sabe não existir), no século XVIII, serviu de pressuposto, de postulado no qual se creu de fé... E dera fé o Cientismo (?) tirou suas conclusões que são estas:

Se a sociedade pôde formar-se sem Deus, sem religião e sem as leis morais, por que criar tudo isto depois? "Por que temer a Deus?", perguntam La Mettrie e o maçom Barão de Holbach, visto que Deus, e a religião, e as leis morais são criações humanas? E acaso tudo isto não foi criado pelos poderosos para subjugar os fracos? A conseqüência disto é que "a crença em Deus", disse-o Diderot, "se associa com a submissão à autocracia; as duas conjuntamente, se levantam ou caem"; e "os homens nunca serão livres enquanto o último rei não for enforcado nas tripas do último padre".

"A terra só obterá o que lhe pertence quando for destruído o Céu". Eis, pois, que "o primeiro padre surgiu quando o primeiro velhaco encontrou o primeiro tolo”. (C. W. Ceram, Deuses Túmulos e Sábios). Ora, os homens sempre foram tolos. Em uma tabuinha de argila descoberta pelos arqueólogos nas ruínas de Babilônia, acha-se esta sentença lapidar: "Olha em volta e vê que todos os homens são estúpidos”. "Houve, porém, os que, no meio de tantos cegos, conseguiram salvar um olho! E percebendo que nada melhor existe

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para conduzir manadas que ajuntar-lhas antolhos, fizeram-se ministros e pastores". (Osmar A. Faria, Hipnose e Letargia). E Nietzsche agora: "Se houvesse Deus, como suportaria eu não ser Deus?" Essa fala Níetzscheana cresceu, avolumou-se, tornou-se gritaria, escarcéu! "Deus morreu!"; "O trono de Deus é uma poltrona vazia!”. "Exatamente como Mefistóteles de Goethe” (diz Gusdorf), "o homem do racionalismo e do existencialismo é, acima de tudo, o espírito "que sempre nega". (Gusdorf).

Estas são as últimas conseqüências do Racionalismo iluminista, do Cientismo, do Sociologismo, tudo assentado sobre o postulado da objetividade (que não pode ser provado), assentado sobre a crença (fé) de que a formação da sociedade humana se dá em conseqüência de leis ainda por achar-se, mas leis tão determinadas como as da física, da química e da astronomia. Se havia leis regendo a formação e a manutenção da sociedade, esta não precisava ser planejada; logo, tudo iria da melhor forma possível, desde que o homem se abstivesse de atrapalhar as coisas com as suas asnarias que são os projetos, a religião, a moral metafísica, Deus...

O Racionalismo iluminista ou empírico, fez, portanto, da Ciência, um absoluto, pondo-a no lugar de Deus. Este estar tudo regido pela necessidade que é o mesmo que determinismo ou lei, foi desde o século XVIII, chamado de Progressismo. Só que o postulado que afirma: “tudo o que existe ou acontece está regido pela necessidade, pela lei", contém uma extrapolação, e, em sua abrangência indevida, está o erro. Ocorre que, a par da necessidade está o acaso, o fortuito, o casual, o imprevisto, o inopinado, o acidental..., conforme o enxergou a mente penetrante de Demócrito; diz ele: "Tudo o que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade". Disto se tira: tudo o que não puder ser previsto... por causa de aí estar ausente a lei, isso acontece por acaso, ou tem que ser planejado pelo homem... se estiver na sua esfera. No planejamento estará incluso tudo o que for humano, tudo o que se convencionou chamar "ciências humanas” - sociologia, economia, história, política, direito, etc. As leis destas "ciências” são regras humanas, e não leis da natureza...

Ortega: "O mesmo que o liberalismo progressista é o socialismo de Marx, supõe que o desejado por eles como futuro ótimo se realizará, inexoravelmente, com a necessidade parelha à astronomia. Protegidos ante sua própria consciência por essa idéia,

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soltaram o leme da história, deixaram de estar alerta, perderam a agilidade e a eficácia. Assim, a vida se lhes escapou dentre as mãos, fez-se por completo insubmissa, e hoje anda solta, sem rumo conhecido”. Mais: "A idéia progressista consiste em afirmar não somente que a humanidade, - um ente abstrato, irresponsável, inexistente que então se inventou, - progride, e que é certo, mas também progride necessariamente"... "Caminhando assim, segura, para a sua plenitude, a civilização em que embarcamos seria como a nau dos feácios de que fala Homero, a qual, sem piloto, navegava direito ao porto. Esta segurança é o que estamos pagando agora".

Este foi o resultado da abrangência indébita, fazendo o postulado do Cientismo afirmar mais do que ele podia. Como toda ignorância reserva a sua surpresa; como "somos traídos pelo que há de falso em nós mesmos" (Meredith, citado por Toynbee); "a juventude de agora, tão gloriosa, corre o risco de arribar a uma madureza inepta. Hoje goza o ócio florescente que lhe criaram gerações sem juventude"... "O homem de hoje, exposto a toda sorte de ameaças, sem nada que o proteja, procura na filosofia não já apenas exercício intelectual, mas razões de ser muito imediatas”..."Não poderá estranhar que hoje o mundo pareça vazio de projetos, antecipações e idéias. Ninguém se preocupou de preveni-los”. (Ortega). O que se vê hoje é o "deserto de homens e de idéias", no dizer de Osvaldo Aranha, ou então, Ortega: "O homem massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes”.

Tal, o mundo que nos legou o Século das Luzes (?)... com o seu Iluminismo, com o seu Cientismo, com o seu Progressismo!...

Este Progressismo deu como verdade que as leis físico-matemáticas que imperam na astronomia, na física e na química, igualmente, e com a mesma precisão governam o biológico, o psíquico e a história. Nem o Racionalismo nem o Progressismo puderam enxergar que a história se faz por ensaio-e-erro animal, muito diferente do que pensavam sobre ela Lessing, Kant e Voltaire. Como escreve Gusdorf, "a moderna filosofia da história supõe que o pensador toma nota da história, na qual reconhece, em Lessing, por exemplo, ou em Kant, uma revelação progressiva da Providência. A história otimista da humanidade, tal como Voltaire a

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elabora, encontra deste modo sua validação racional: a cronologia mede a crescente promoção da espécie humana à plena realização de todas as promessas que ela recebeu no berço". Tal é como se pensava no século XVIII. Já no XX, entretanto, sabemos que o modo de agir da história é como a narração feita por um idiota, como já dizia uma personagem de Shakespeare. Sobretudo nos momentos de crise, o que impera é a ação direta animal, ou seja, a ação antes do pensamento, ou a ação sem pensamento. Nas horas de perigo, já dizia Sêneca, "toma-se por caminhos arriscados". Por isto é que o desenvolvimento histórico se resolve no ensaio-e-erro animal. Escolher antes de saber, não é escolher, e sim, tomar por um caminho, a esmo. Esta é a razão por que o homem tem urgência de saber; do contrário ele fará como o curioso que se põe a fazer uma ponte, sem os conhecimentos necessários, só porque precisa transpor um abismo com sua família e pertences. Melhor do que cair no abismo com sua carroça, seria planejar o que intenta fazer. Deste modo, a história só sairá dos trilhos do ensaio-e-erro, quando for planejada por quem, com sabedoria, possa fazê-lo. O homem precisa estar alerta para não errar, porque a história corre por conta da sua exclusiva responsabilidade. Se a história, dado que se faz por tentativas e falências, se mostra cheia de erros, como pensar que a sábia mão de Deus ou o que o valha, a guia?

"A história (escreve Ortega) nos conta inumeráveis retrocessos, decadências e degenerações. Mas não foi dito que não sejam possíveis retrocessos muito mais radicais do que todos os conhecidos, inclusive o mais radical de todos: a total volatização do homem como homem e seu taciturno reingresso na escala animal, na plena e definitiva alteração. A sorte da cultura, o destino do homem, depende de que no futuro de nosso ser mantenhamos sempre vivaz esta dramática consciência e, como um contraponto murmurante em nossas entranhas, sintamos bem que para nós só é segura a insegurança".

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JERUSALÉM CELESTE – VI

A primeira coisa que nos chama a atenção no Rito do grau 19, é a exigência da colocação das Constituições de 1762 e 1786 sobre o Altar. Ambas Constituições foram condensadas em um só volume com o título: "Grandes Constituições Escocesas". Abrindo o livreto na pág. 41 (4ª. Ed. - 1974), lemos o seguinte: "Resoluções do Congresso de Lausanne em 1875. - Declarações de Princípios: § 2.º - A Maçonaria não impõe limite algum à investigação da verdade, e é para garantir a todos esta liberdade que ela exige de todos a tolerância".

Amparado por este § 2.º das Declarações de Princípios, e armado das noções que dois mil e quinhentos anos de pensamento nos proporcionaram, desde a Grécia até hoje, podemos, agora, discutir a filosofia do grau 19.

O painel é a cidade quadrada de doze portas, descrita, por miúdo no Apocalipse de S. João no capítulo 21, versículos 9 a 27. Só que lá no Apoc., tal cidade não é quadrada; senão cúbica: "E mediu a cidade com a cana até doze mil estádios; e o seu comprimento, largura e altura eram iguais" (Apoc. 21, 16). O muro que rodeava a cidade tinha cento e quarenta e quatro côvados de altura; e como diz o texto que a cana de ouro com que o anjo media a cidade era “conforme a medida de homem”, então, temos: o côvado mede 66 centímetros, e o estádio, 185,25 metros (Lello Universal). Portanto, 12.100 estádios equivale a 2.223 quilômetros. Suposto que esse número é o do perímetro de quaisquer das seis faces do cubo, mesmo assim, cada aresta sua terá 555 quilômetros, desprezando-se a fração. E o muro? Pois é só multiplicar os 66 centímetros de um côvado por 144; o produto é 95 metros, e essa é a altura da muralha que cerca a cidade. Se cada aresta tem 555 Km, a área será de 308.025 Km2. Comparada esta área com as das vinte e seis unidades federais do Brasil, só são maiores do que ela as de sete Estados: Amazonas, Pará, Maranhão, Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso. Pondo-se essa Jerusalém celeste sobre a terrestre, ela cobrirá toda a Jordânia, parte da Arábia Saudita, todo a Líbano, parte da Síria, avançará pelo Mediterrâneo cobrindo Chipre, o Delta do Nilo, indo ainda sobrepor-se à toda península do Sinai. Jamais se imaginou cidade tamanha.

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A muralha de 95 medos de altura é um simples rodapé a emoldurar a base desse enormíssimo cubo cuja aresta mede 555 quilômetros de extensão. Tal muro possui doze portas, três para cada lado, que coincidem com as doze portas da cidade, e cada porta talhada em material de pérola ou margarita. A muralha é feita de doze pedras preciosas, de modo que o primeiro alicerce é de jaspe; o segundo, safira; o terceiro, calcedônia; o quarto, esmeralda; o quinto, sardônio; o sexto, sárdio; o sétimo, crisólito; o oitavo, berilo; o nono, topázio; o décimo, crisópraso; o undécimo, jacinto; o duodécimo, ametista.

Toda a cidade era como cristal ou vidro puro, amarelo qual ouro translúcido, e fulgurava com uma luz que jamais se apaga, em dia eterno. Essa luz se irradia do Cordeiro de Deus, de cujo trono corre o rio de água da vida que passa pela cidade toda pavimentada de ouro puro, e, em passando, irriga as árvores da vida de doze frutos anuais, um para cada mês, árvores cujas folhas são para curar as nações.

Logo, há nações, todas governadas pelo poder mundial, teocrático, cuja sede é a Jerusalém celeste. A Terra, então, já não será esta, mas outra, assim como outro será o Céu. (Apoc. 21, 1).

A Jerusalém celeste é o tabernáculo de Deus de forma cúbica, qual era o tabernáculo da tenda errante, e depois o do templo de Salomão. (I Reis 6, 20). Por causa de a cidade toda ser um tabernáculo, não foi visto ali templo. Jamais as portas ali se fecham porque nunca é noite, nem penetra ali ladrão, nem fornicador, nem mentiroso, nem idólatra, nem fanático de qualquer espécie, cujo braço possa estar armado pela ignorância e pelo despotismo. Sem velhice, nem dores, nem doenças nem mortes, os bem-aventurados gozarão de Deus a luz eterna.

"Então o que estava assentado sobre o trono disse: Eis aí faço eu novas todas as coisas". (Apoc. 21, 5). "Eu sou o Alfa e Ômega, o princípio e o fim". (Apoc. 21, 6 e 22, 13).

Ora bem: de posse destes dados, podemos levantar a filosofia que se esconde debaixo destas figuras. O cordeiro, pela sua mansuetude, brandura de gênio e índole pacífica, pela sua docilidade, posto no trono com Deus, evidencia um mundo que é a contraditória e oposição frontal deste nosso em que vivemos. Este Cordeiro de Deus é Jesus Cristo... personificação terrestre do amor vivo. Que é o

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amor? É a força que une, que integra; é a vontade de convivência... que tolera até o adversário. "Civilização (diz Ortega) é, antes de tudo, vontade de convivência. É-se incivil e bárbaro na medida em que não se conte com os demais. A barbárie é tendência à dissociação. E assim todas as épocas bárbaras tem sido tempo do espalhamento humano, populações de mínimos grupos separados e hostis".

O amor é a força que une, que integra, desde as partículas subatômicas até o Universo, tomado este como unidade totalizante de tudo o quanto existe. Esta força integradora que faz os opostos se buscarem, recebe nomes diferentes em cada nível de atuação, de desempenho, sendo eletromagnetismo, entre as partículas no interior dos átomos, afinidade, entre os elementos na química, coesão, entre as moléculas na física, gravitação, entre os corpos siderais, simpatia, afeto, entre os vertebrados superiores e amor no nível humano. A mente de Platão pôde enxergar esta performance do amor em tudo, pelo que declarou: "o universo está cheio de Eros e vai movido por Eros". E o grande poeta da Beócia, Hesíodo (IX ou XIII a.C.) já dissera que "Eros é o princípio de integração".

Ora, Tomas Hobbes (1588-1679) afirmava que o “homem é lobo para o homem”, opinião que, antes dele, já comentara seu mestre Francis Bacon. Por outras palavras dissera isto mesmo Trasímaco, na "República" de Platão, e eram deste mesmo parecer Maquiavel e Nietzsche. E como poderia formar-se uma sociedade só de lobos?, lobos humanos... que se entredevoram, tal qual os lobos naturais entre os quais há licofagia, desmentindo o provérbio que diz: “lobo não come lobo "?

Que duração terá o intervalo antropológico, ou a distância temporal, que vai do homo-lupus de Hobbes ao homo-agnus, ou o "homo hominis frater" de Cristo? Pois essa distância, nem mais nem menos, é a de toda a história da humanização do primata inteligente, não Homo sapiens ainda, como o batizou Lineu, mas, apenas, Homo insciens, Homo insipiens, que quer dizer homem ignorante, como o definiu Platão. Por conseguinte, civi l ização é o mesmo que humanização, que desanimalização, que santificação, que domínio da besta que, em parte, o homem ainda é. Tal, o objetivo da civilização, e não há outro. Contudo, diz Toynbee, "nenhuma civilização conhecida atingiu o objetivo da Civilização; nenhuma con-

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seguiu criar uma comunidade de santos sobre a Terra”. Aquele Cordeiro ou lâmpada perene cuja luz faz fulgurar toda a Jerusalém celeste, a qual, por isto mesmo, toda, inteira, é tabernáculo, é o fim do homem e objetivo da civilização..., em razão do que se orientam para ele todos os esforços dos milênios sem conta. Por conseguinte, o valor de uma religião ou de uma fi losofia se mede pelo quanto haja podido realizar na prática esse desiderato. Salvar-se é viabilizar, concretizar, essa aspiração. Cristo não é substituto; e por fazê-lo tal faliram as religiões em sua missão precípua que é a de civilizar o homem; Cristo é modelo e exemplo naquilo que cumpre a cada um realizar em si: desvirar-se de dragão, desinverter-se do diabo que é, desfazer-se de animal. Toda a história da humanidade se resume na história da civilização, ou seja, na história desse incessante desejo de caminhar para a felicidade... só alcançável quando o homem se acercar dessa luz..., da luz do amor... Fale Gusdorf:

"Nenhum filósofo descobre radicalmente a verdade, pela simples razão de que a verdade já se encontra entre os homens, quando estes se lembraram de formar entre si uma sociedade humana. (...) A graça da comunicação, atestada pela palavra, é o começo e o fim da filosofia. A palavra de verdade a ninguém pertence em regime de propriedade exclusiva, porque constitui o patrimônio comum da humanidade inteira. O filósofo é um dos que se impõem a tarefa de manter a honra da linguagem, mas só lhe é dado desempenhar-se de seu ministério no seio da comunidade. Pelo que, seja qual for a concepção que forme de sua obra, ele ma-nifesta um senso de verdade, confere à verdade uma linguagem não contra os outros, mas com eles e por eles, não de maneira definitiva, mas trilhando as vias da cultura na história do mundo". Então, que é a verdade? A verdade é o amor. Foi isto que disse Cristo a Pilatos; disse que viera dar testemunho da verdade. E em todos os atos de sua vida, deu testemunho do amor, porque o amor é a Verdade. E ensinou mais isto: que sendo a Verdade Deus, ela não pode ser definida..., que definir é traçar fines ou limites; e o Absoluto não possui limites. Logo, da Verdade, só se pode dar testemunho, não, porém, definí-la. Mas, o estupidarrão do Pilatos, acostumado a ouvir a seus filosofastros, cuidava que a posse da verdade só podia ser obtida pela Razão. Acaso o grande estagirita não dissera que Deus é Razão..., e, por isto, ele só se ocupa de pensar pensamentos? Pensando assim, desabusado e displicente,

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pergunta Pilatos a Cristo: o que é a Verdade? Ora, Cristo que já recomendara a seus Discípulos não "lançar pérolas a porcos”, guardou as suas, evitando de as jogar ao porco Pilatos. Cristo silenciou mas sua resposta já havia dado em todos os atos de sua vida - a Verdade é o Amor...

Exceto Platão, todos os demais filósofos já haviam concordado com Parmênides em que pensar é idêntico a ser; que ser e pensar são uma e a mesma coisa. Só Platão destoou desta assertiva, permanecendo fiel a seu mestre Sócrates para quem Deus é o Sumo Bem. Sumo Bem e Razão absoluta, eis duas posições iniciais irredutíveis entre si, como tese e antítese: a primeira diz respeito ao sentimento moral, de natureza substancial; a segunda é de natureza mental, intelectual, ideal. Repete-se, pois, em nível mais alto, as duas saídas iniciais da filosofia: Heráclito e os miletanos como pensadores da substância, e Parmênides, como o primeiro filósofo da razão. Platão optou pela primazia ao Sumo Bem, em vez de fazer primaz a Razão absoluta. Daí que, no mundo celeste, no Topos Uranos, ele pôs no pináculo dos arquétipos eternos, a Forma das formas, a Forma do Bem. Nesse Topos Uranos, descrito quatrocentos anos antes de Cristo, qual outra Jerusalém celeste, fulgura, entronizada a Forma das formas, a Forma do Bem.

Que, pois, é a Verdade? A Verdade é o Sumo Bem...; e não há nenhum Bem maior que o Amor; logo, o Sumo Bem é o Amor... que tudo integra, e une, como Eros que é. Esta é a razão por que o Universo está cheio de Eros, e vai movido por Eros, diz Platão, sendo este Eros, conforme o mestre Hesíodo, o princípio de integração.

Todavia, a concordância entre Platão e Cristo não fica só nisso. O Topos Uranos ou lugar celeste platônico assemelha-se à Jerusalém celeste, porque, também lá, não existe aflição, nem sofrimento, nem velhice, nem morte; igualmente, o mundo celeste platônico é resplendoroso, sem noite, onde as almas vivem felizes na mais completa bem-aventurança, a contemplar as formas imperecíveis, os arquétipos eternos, pelos quais se modelaram, se plasmaram, as formas grosseiras existentes em nosso mundo. Tudo o que há em nosso mundo são cópias grosseiras e imperfeitas do que fulgura no pleniluminoso Topos Uranos. Aquilo de bom, de belo e de verdadeiro existente neste nosso mundo de sombras, é já participação do que há no lugar celeste. Pela sabedoria, os homens vão, cada vez mais, aumentando esta participação, até que a Terra

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se torna, também, na Ilha Afortunada... para onde vão as almas redimidas da roda das reencarnações. Mas, para chegar lá, é preciso trabalhar aqui, donde ser necessário ao sábio retornar à caverna de sombras, a fim de ajudar os que se acham perdidos na ilusão, no erro...

É incrível que dois homens separados no tempo e no espaço, tivessem chegado ao mesmo resultado por caminhos tão diversos que são a Fé e a Razão. Jungindo a Jerusalém celeste ao Topos Uranos, poderíamos dizer que a Forma das formas, a Forma do Bem, está simbolizada no Cordeiro de Deus de cujo trono mana a água viva que tira a sede para sempre, que sacia a ânsia de saber (João 4, 14), e ainda essa água viva irriga as árvores da vida que ladeiam as margens do rio do amor. O caminho para se ir à Jerusalém celeste, segundo Cristo, é o amor, sendo este a supina das virtudes. Para a alma errante retornar ao Topos Uranos onde foi criada e de onde saiu, terá de purgar-se de todas as imperfeições pela conquista da sabedoria.

E a sabedoria é o mesmo que amor? Sim, é. Porque o sábio, porque sabe, não erra; e se não erra; se faz e age sempre certo, é virtuoso, é santo. Mas a suma das virtudes é o amor. Por isto, cumpre ao sábio que a sua seja uma sabedoria operante, ativa, que o leve à caverna a fim de ajudar a seus irmãos desvencilhar-se da ignorância, da ilusão. Sua sabedoria, contudo, o sábio a conseguiu através da razão que pensa, medita, discute, analisa, sopesa, conclui. Já o santo, ao invés disto, segue direto sua intuição emotiva supra-racional. Em lugar de dar voltas ao mundo pensando, faz suas andanças agindo, ajudando, amando. O primeiro chega ao Amor pela razão; o segundo, partindo da intuição emotiva a priori, faz do amor a grande premissa da qual tudo deduz. Por este motivo pôde o Cordeiro representativo do Amor vivente, com justiça e de fato dizer: "Eu sou o Alfa e Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro". (Apoc. 22, 13). O Alfa é o postulado inicial, a premissa maior por excelência, o começo, a intuição emo-tiva, o Amor donde parte o santo para deduzir tudo. O Ômega é o fim a que chegou a mente do sábio que induziu a partir da experiência vivida no e com o mundo..., pois que a filosofia se define como sendo uma visão geral do mundo, da qual se infere uma forma de conduta. Pois a forma de conduta é a moral, e esta é o fim para o sábio, e é o começo para o santo. Donde vem que ser

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sábio é ser santo, e ser santo é ser sábio, sendo a ação sobre o mundo, o começo e o fim da sabedoria. O sábio ama porque sabe; o santo sabe porque ama.

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O ALFA E O ÔMEGA – VII

Quem segue um texto, obriga-se, por dever de honestidade, ao que se acha expresso no texto; a sã consciência e a honestidade não permitem torcê-lo, para outros fins, forçando-o a dizer o que não disse. Frente a este axioma moral, perguntamos: a quem se atribui a sentença: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro"? (Apoc. 21, 6 e 22, 13). Resposta única: atribui-se ao Cordeiro referido muitas vezes no mesmo texto. Quem transmitiu a mensagem a São João Evangelista, servindo-se de um anjo? Jesus Cristo que diz expressamente: "Eu, Jesus, enviei o meu anjo, para vos testificar estas coisas nas igrejas: eu sou a raiz e a gera-ção de Davi, a resplandecente estrela da manhã". (Apoc. 22, 16). Então, quem é o Cordeiro?, senão Jesus Cristo? E quem poderá, com argumentos bem fundados, refutar a afirmação de que Jesus Cristo personifica o Amor vivo, atuante, operativo? Ninguém. Conseqüentemente, a Jerusalém celeste é o Templo do Amor... que é o mesmo que Templo da Verdade, porque a Verdade é o Amor, como já o demonstramos no capítulo anterior. E quando, no Livrinho, se pergunta: "Que simboliza a Jerusalém Celeste ou Tem-plo da Verdade?", por que façanha de inteligência se poderia responder: "Simboliza o Templo da Razão"? Acaso, a Razão é o Amor? Por quais argumentos, por que artifício de inteligência, se poderia demonstrar que a Razão e Amor são uma e a mesma coisa?

A razão não é a sabedoria, mas, porque a razão é caminho, porque é método, pode conduzir à sabedoria..., esta sim, que se confunde com o amor, com o Amor-Ômega... ou ponto de chegada. Todavia, o Amor-Alfa, o amor ponto de partida, esse é, já, em si mesmo, sabedoria. O Amor é sábio porque não erra ao produzir os seus efeitos. Ele é o Alfa, ou o começo, ou princípio donde tudo parte, no passo que a sabedoria do sábio é o Ômega, o fim derradeiro ao qual se chega. O Alfa e o Ômega se coincidem tal qual as vinte e quatro horas e zero horas do dia, tal qual o começo e o fim de quaisquer ciclos, sem nenhuma exceção. Tudo começa no Alfa, e tudo acaba no Ômega... E se o Cordeiro, símbolo de Cristo... representante do Amor vivo, se dá como sendo o Alfa e o Ômega juntamente, esse é o princípio e o fim ligados para formar o Círculo máximo que abarca toda a Criação..., donde vem que nada pode estar fora dele.

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Quando o Livrinho nos afirma que a Jerusalém Celeste é o Templo da Razão; e irrecusável, como é, que aquele Templo é o da Verdade ou o do Amor; fica implícita esta conseqüência: a Razão é o Amor; a Razão é a Verdade. Ora, a Razão é método, é meio de se chegar à Verdade, não podendo, nunca, ser um fim em si mesma, como o é a Verdade, como o é o Amor. Afora isto, a razão só sabe e pode trabalhar com os entes de razão, ou objetos ideais, ou essenciais, sendo-lhe interdito tudo o que não sejam tais entes de razão, pelo que tais entes ou essências se opõem, polarmente, aos entes da natureza, aos objetos reais (reais - de res=coisa). Estes entes naturais só existem porque possuem substância, sendo esta aquilo de que as coisas são feitas.

Pois o amor não é um ente de razão, e sim, substancialidade; e tanto que, daquela Substância-Amor, princípio e fim de tudo, pôde sair o Universo. Quem diz começo e fim; quem diz ciclo, diz tempo..., porque o tempo é a medida do movimento ou da transformação... que tem começo e tem fim; e todo movimento é cíclico, até o linear, dado que a reta é parte de uma grande curva. Conseqüentemente, se o Amor era no começo e será no fim... do grande Círculo da Criação, o Amor é temporal, móvel, transformável, e isto são atributos inerentes à substância, pelo que o Amor é substancial, real, e não, puro ente de razão, abstrato, vazio, oco, inexistente. Começo e fim, como já o demonstramos, implica movimento, implica tempo que é a medida do movimento. E não há movimento sem móvel..., e não há móvel que não ocupe lugar no espaço... no qual se move e se transforma. Para que haja móvel para que haja algo movente, é imprescindível espaço. Eis, pois, que do tempo-movimento deduzimos o espaço.

Também se pode aqui aplicar o princípio ou lei de correlação de Cuvier. Este cientista descobriu que, quando um ente biológico possui um caráter, de carnívoro, por exemplo, os demais caracteres são correlatos. Assim, de uma simples coroa de dente, ou pedaço de maxilar fósseis, pode-se reconstruir o animal inteiro. Este mesmo princípio de correlação se pode enunciar com referência aos objetos reais e/ou aos entes de razão. Se houver um só caráter que especifique um ente, os outros caracteres serão correlatos. Assim, tempo, movimento, transformação etc., são caracteres dos objetos reais? Sim, são. Então todos os demais caracteres estarão presentes.

Ora, o amor possui os caracteres dos objetos reais, sendo, por

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isto, substancial; logo, se opõe, como antítese, aos entes de razão ou essenciais. Face a isto, não se pode afirmar que o Amor é o mesmo que Razão..., nem que o Templo do Amor é idêntico a Templo da Razão.

O princípio de correlação permite distender, inteiro, o novelo; puxando-o por qualquer ponto, ele sai todo. Do fato de o Amor ser temporal, deduzimos que é móvel, mutável, transformável; para que algo se mova é imprescindível espaço; se há movimento no espaço, há móvel, e todo móvel é algo substancial. Ou, de outro modo: o espaço é o lugar ocupado pelas coisas, ou o existente entre os corpos. Quem diz coisa ou corpo, diz matéria... que é tudo aquilo que enche a forma da coisa e a faz corporal, espacial, existencial. Mas a matéria não só vibra internamente, senão que também se move no espaço e se transforma. O tempo mede, também, a duração das transformações. Tudo o que se transforma possui um antecedente e um conseqüente; o antecedente se chama causa, e o conseqüente, efeito. Tudo o que existe (existir, de ex-sistere - ser posto fora, no tempo) tem o seu contrário... com o qual se integra para formar uma unidade maior, de nível superior; pela recíproca, tudo o que existe possui uma contradição interna, que resulta de dois contrários que se integraram. Portanto, tudo o que existe é polarizado, ou obedece o princípio de polaridade. A transformação, a diferenciação, a polaridade, conduzem ao enunciado da lógica natural que diz: "nada é idêntico a si mesmo, tudo se contradiz". Disto se tira que tudo o que existe é individual ou particular; que todo indivíduo, por ser formado de partes menores, é um coletivo, e o mesmo indivíduo integra-se com outros indivíduos num coletivo maior. Esta possibilidade de dupla perspectiva, pela qual cada ente natural se mostra como indivíduo e como coletivo, em dois tempos sucessivos, em dois lanços de olhos, torna a ele relativo. Esta relatividade mostra o ente natural, a coisa, em miríades de posturas, de perspectivas, e sempre que imaginamos algo, este vem associado com tudo aquilo que o torna único na sua espécie. Por isto, nada é igual a si mesmo em dois tempos sucessivos. E tudo isto podemos imaginar e representar na fotografia, no desenho, na pintura. A representabilidade, por conseguinte, é outra propriedade dos objetos reais. Como nada é igual a si mesmo em dois tempos sucessivos, tudo o que existe é passível e sofre a ação do tempo, do meio, das circunstaâcias, pelo que são circunstanciais. Possuindo qualidades específicas que tornam as coisas únicas em si mesmas, elas são qualitativas; e estando no espaço, no tempo e possuindo substância

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são dimensionáveis. Enfim, as coisas são fenomênicas... porque transformáveis. E poderíamos ampliar esta lista de relações, mas, paremos por aqui. Eis a listagem de relações, e já com sua contraditória, no que concerne aos objetos ideais, aos entes de razão:

ENTES DA NATUREZA

(Substanciais)

ENTES DA RAZÃO

(Ideais)

01 - Temporais 01 - Intemporais02 - Móveis 02 - Fixos03 - Mutáveis 03 - Imutáveis04 - Transformáveis 04 - Intransformáveis05 - Livres 05 - Determinísticos, sem liberdade06 - Espaciais 06 - Inespaciais07 - Causais 07 - Incausais08 - Polarizados 08 - Sem polaridade09 - Individuais 09 - Universais10 - Particulares 10 - Gerais11 - Relativos 11 - Absolutos12 - Perspectiveis 12 - Sem perspectivas13 - Representáveis 13 - Irrepresentáveis14 - Passíveis 14 - Impassíveis15 - Circunstanciais 15 - Incircunstanciáveis16 - Qualitativos 16 - Inqualificáveis17 - Dimensionáveis 17 - Indimensionáveis18 - Fenomênicos 18 - Noumênicos

Os entes de razão são abstrações ou generalizações partidas das imagens que o mundo nos oferta. Nós observamos os entes naturais, todos individuais, e eles se refletem em nossa mente como imagens. Destas imagens nós generalizamos os conceitos ou essências. A imagem do cavalo baio, por exemplo, individua-se em nossa mente, cercado de miríades de circunstâncias tais como: o pasto, as árvores, o porte dele, a idade, o aspecto, etc. Desse cavalo e dos demais cavalos vem-nos o conceito abstrato de cavalo. O conceito é único (cavalaridade), imutável, irrepresentável, absoluto, imóvel, sempre idêntico só a si mesmo, etc. Pensar o cavalo é tê-lo

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como conceito abstrato; imaginar um cavalo, é individuá-lo, a partir, ou da experiência, ou do conceito que já temos. Se dissermos a alguém: triângulo; imediatamente ele pensa o triângulo como conceito abstrato ou triangularidade; se, no entanto dissermos: triângulo isósceles, já, agora, o nosso alguém imaginará o triângulo isósceles com a característica individualizante de ter dois lados iguais. Todavia, pensemos o triângulo em geral. Quem o desenharia numa lousa? Quando é que teve início no tempo esse triângulo? Em que tempo ele não era, e depois, passou a ser? Pois o triângulo é desde sempre; ele é intemporal. E o que causa o triângulo? Pois nada o causa; ele não possui um antecedente do qual ele decorreu, por transformação, e do qual é, agora, conseqüente. O triângulo em geral, sendo uma idéia, ocupa lugar no espaço? Não. Ele é inespacial. Existe triângulo e anti-triângulo, círculo e anti-círculo? Não. Os objetos ideais não têm polaridade. E por aí vai, e não queremos cansar o leitor com aquilo que ele poderá deduzir por si mesmo.

Peguemos uma propriedade somente dos objetos reais: a de serem eles livres. Para poderem mover-se, transformar-se, tomarem poIaridade, serem passíveis de sofrer a ação do tempo, das contingências, etc., hão que ser livres. A oposição da liberdade é o determinismo, ou seja o não ter liberdade. E os filósofos puseram o Ser como Essência pura. Portanto, o Ser, Deus, é deterministico, sem liberdade, como se fora um Robô. É crível que Deus esteja jungido, ajoujado, posto nos trilhos fatalísticos do seu determinismo, sem liberdade? E como pode ser o Criador, se não possui vontade, nem desejo, nem querer, dado que Vontade é Substância, e esta não é achada em Deus? E se a Substância existe, e é estranha a Deus, de quê, por que, e quando ela surgiu?

Deus não pode ser Essência pura, puro Princípio abstrato, puro Ente de razão, Idealidade pura... só achado em nossa inteligência, SEM existência, porque existir é estar no tempo; SEM objetividade, porque ser objetivo é estar no espaço; SEM causalidade, porque ser causal, ainda que Causa Primeira, é estar no princípio e fim duma cadeia de transformações que, saindo de Deus volta para ele, donde serem coincidentes o Alfa e o Ômega!... o princípio e o fim... A divina Energia-Substância sob a forma do Amor, é o começo e o fim de tudo, do Universo inteiro, de toda a Criação.

Então, podemos traçar com um compasso esse Círculo máximo, pondo no início-fim, no Alfa-Ômega, a palavra AMOR. Em

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posição diametralmente oposta, havemos de pôr a palavra Egoísmo ou Anti-Eros, porque este negam o Amor e Eros; e sendo Eros o princípio de integração, Anti-Eros é a desintegração que, na sua plenitude, se chama CAOS. Atentemos primeiro, para a banda direita, observando o que nos diz a Doutrina da Evolução e a Ciência; que nos dizem elas? Pois nos dizem, nada mais nada menos que nosso universo teve sua origem no Caos. Diz-nos a ciência que matéria se transforma em energia e vice-versa, pelo que uma e outra não são mais do que dois modos de ser da substância... donde a proposta de Einstein para que se considerem todas as matérias e todas as energias do Universo sob a rubrica de ENERGIA-SUBSTÂNCIA. Diz-nos que a ENERGIA-SUBSTÂNCIA do Universo é constante, indestrutível, pelo que, "na Natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma" (Lavoiser).

As primeiras coisas que se formaram no seio do Caos primeiro, foram as partículas subatômicas... resultantes de energias..., de ondas ultra-curtíssimas que se enrolavam sobre si mesmas ao serem freiadas pelo choque de umas contra outras no centro daquilo que, depois, se chamou UNIVERSO. Primeiro, as partículas subatômicas se formaram das energias centralizantes que procediam da periferia do Universo, seguindo o caminho da INVOLUÇÃO rumo ao CAOS. Ao tempo em que se iam formando tais partículas, elas já iam ensaiando criar os núcleos atômicos, a prin-cipiar pelos núcleos do hidrogênio. O vasto e arquipoderoso

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Cíclotron que era o Colosso Primitivo de Alpher, Bethe e Gamow, usando do seu inimaginável calor, pressão e massividade, forjou os átomos todos, prensando núcleos uns contra os outros, até os transurânicos, hoje, corpos artificiais. Quando a pressão das ondas de energia abrandou seu ímpeto, os transurânicos principiaram a explodir, fazendo o Colosso em pedaços que se abriram em espirais para todos os lados. Caída a temperatura e a pressão, os núcleos, outrora nus, puderam adquirir suas camadas eletrônicas, e os átomos se formaram. Já principiou a formação das moléculas pela combinação dos átomos. De quantos compostos são possíveis, formou-se a água, o gás carbônico, e o nitrogênio. Os quatro corpos da química orgânica cuja sigla é CHON (carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio), estavam prontos para, sob o efeito das chuvas torrenciais, de formidolosos trovões e do coriscar de tremendos raios, formarem as pedras fundamentais das proteínas sobre as quais se construiu a VIDA.

Nasce a vida, desabrocham-se os sentidos a partir da irritabilidade. Os sentidos se organizam em imagens. Cresce o sistema nervoso; avoluma-se a protuberância cerebral; a central nervosa se enriquece e aprende a responder às informações e aos estímulos, com tropismos, reflexos e instintos. O cérebro amplia seus poderes pela formação da zona cortical; bruxuleia a inteligência, e, logo, se faz já clarão de aurora, já meio-dia radioso, no primata superior - o homem. Paralelamente, os sentidos vão dar noutro departamento cerebral - o da sensibilidade, que é o que governa as sensações, as emoções, os sentimentos sobre os quais se sublima o Amor. Eis o fim da EVOLUÇÃO. E Aquele que pôde encarnar o Amor-vivo, a Verdade última, pôde, para sempre, exclamar: Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro na ordem das coisas, e o derradeiro nessa mesma ordem.

Ponham-nos tudo isto na forma de sentenças, pois as sentenças são resumos de doutrinas vastas..., e filósofo é aquele que pôde transpor o pensar por conceitos para o pensar por sentenças..., único modo de não se ficar perdido na congérie dos fatos particulares, isolados. Eia, pois, filósofos: pensemos por sentenças!

I - Matéria e energia são, mutuamente, reversíveis ou redutíveis.

II - Todas as energias são transformáveis umas nas outras.

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Estas duas verdades científicas e experimentalmente comprovadas, deram azo a que Einstein propusesse a generalização, que não é mais do que pura tautologia, que diz:

III - Todas as MATÉRIAS e todas as ENERGIAS do Universo podem reduzir-se a um denominador comum com o nome de ENERGIA-SUBSTÂNCIA.

IV - "Na Natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma” (Lavoisier), pelo que a ENERGIA-SUBSTÂNCIA do Universo é constante.

V - Há uma degradação dinâmica ao se transformarem as energias de ondas curtas, dinamicamente ricas, para ondas longas, dinamicamente pobres. Como, porém, pelo exposto no enunciado IV, a energia-substância do universo é constante, o que se perde em dinamismo energético ganha-se em qualidade evolutiva... não dimensonável pelos atuais instrumentos da física. Isto possibilita a passagem para o enunciado seguinte.

VI - Vida é energia-substância, visto não se reduzir a ente de razão, a essência; ela provém (e não há mais de onde provir), do mundo dinâmico que lhe fica abaixo, constituído de energia dinamicamente degradada, já fora do alcance do atual dimensionamento físico matemático.

VII - Antes não havia vida neste nosso universo egresso do Caos. Depois, surgiu a vida: do quê? Não pode ser senão de algo anterior modificado, e esse algo é o mundo inferior à vida, feito de energias dinamicamente degradadas.

VIII - Os sentimentos, as impulsões afetivas, os desejos, as emoções, a vontade são forças que nascem da vida, pelo que, como esta, são energia-substância também.

IX - A mais alta manifestação do sentimento é o AMOR; conseqüentemente, o AMOR é a mais alta expressão da Energia-Substância.

X - Como não há posto a subir acima do AMOR; como não existe o super-amor ou o trans-amor, ele se torna sem referência nem relação a algo acima de si, e isto o torna absoluto. Sendo o AMOR absoluto, então, o AMOR É DEUS, ou, como intuiu São João: "Deus é Amor". (1 Jo 4, 7).

Uma vez que a porção do Amor que é Deus, existente no

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santo, surgiu de baixo, por evolução, procedente da vida que, por sua vez, brotou das energias dinamicamente degradadas; e como não pode, o que é Deus, ser criado, nem evoluir desse nível divino para cima; e para chegar a esse último estágio de evolução, o amor teve de partir de algo que, no seu começo mais remoto, era Deus, vem esta conclusão necessária: aquele AMOR que aparece no fim do processo evolutivo, além do qual não há mais subir, é o mesmo do princípio, de quando, em PRIMEIRA INSTÂNCIA, os filhos do mundo celeste foram criados. Porque, se não tivesse acontecido a INVOLUÇÃO... que antecedeu o CAOS do qual surgiu esta nossa FASE EVOLUTIVA, teríamos este formidando estapafúrdio: o AMOR que é DEUS surgiu do CAOS por evolução (!?). Como isto é absolutamente impossível, o contrário é que é a verdade: o AMOR que é DEUS, além de preceder a INVOLUÇÃO, quando da criação dos espíritos celestes, ainda esteve presente sempre, desde o CAOS, como princípio que é de integração; e nada se formaria se esse princípio não atuasse, como, de fato, não atuou durante todo o tempo da INVOLUÇÃO em que tudo caiu e se desfez no medonho CAOS.

Como o amor em nosso mundo evolutivo surgiu de baixo, da energia-substância inferior; e sendo o Amor, Deus, segue-se que o amor é o último estágio do retorno, ou volta ao que era no princípio, ao que era antes de a inversão e a queda acontecerem... A Energia-Substância (AMOR) divina individuada nos espíritos celestes, nestes, porque LIVRE, ficou autônoma até para tornar-se no seu oposto, no egoísmo desintegrador. Em se dissociando o AMOR-ALFA, surgiu dessa desintegração, aquele arquidilúvio de energias inferiores as quais possuíam propriedades inversas das de hoje: ao invés de, como agora é, as energias abrirem-se em ondas para a periferia, fechavam-se desta periferia para o centro, como ocorre com os raios laser que são concentrativos, e não, dispersivos. De tais raios se compunham as energias que se enrolaram em partículas subatômicas... do que resultou o Colosso Primitivo que, perto de expandir-se por rotação e explosão, media dez mil anos luz de diâmetro. Toda a matéria do universo, então, se achava nessa fulgurante e massiva esfera... De tais energias centralizantes, pois, surgiu o CAOS, pai deste nosso universo evolutivo. Esta é a razão de ser possível, agora, o movimento inverso do movimento da queda, em que o amor retorna à sua prístina figura, ao estado primitivo, por evolução. Dando-se à seta a significação de "vai para",

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podemos construir a fórmula do universo, e é esta, em que C é Caos:

A→C→Ω

A = Ω

Deus, pois, é o AMOR, ENERGIA-SUBSTÂNCIA esta que se fez LUZ - "Deus é Luz". (I Jo 1, 5). Daí que, no Gênese, está: Haja luz, e não, haja a matéria. Há mil e quinhentos anos antes de Cristo, Moisés deixou implícito que a energia se transforma em matéria. Faz setecentos e trinta anos que Tomás de Aquino, "e com ele o sentir mais comum dos teólogos, resolve que a luz que Deus criou o primeiro dia, foi a mesma luz de que formou o sol ao dia quarto (...)". O destaque é nosso para sublinhar que o Sol nasceu da sua luz, e não, como hoje, que a luz (e a partir dela, todas as energias nossas) nasce do Sol... Agora São João:

"No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tudo o que foi feito, foi feito por ele, e nada do que foi feito sem ele se fez". (Jo 1, 1). Portanto:

O Verbo era Deus. (Jo 1, 1).

Deus é Luz. (I Jo 1, 5).

Deus é Amor. (I Jo 4, 8).

O Amor é Alfa e Omega. (Apoc. 22, 13).

O Amor é aquela SUBSTÂNCIA primordial que os pensadores de Mileto e pré-parmenídicos procuravam.

O Amor, por conseguinte, é a "MATÉRIA" de Deus que Aristóteles não podia conceber, em razão do que sentenciou que Deus é essência pura, pura idéia vazia, pura forma oca, pura vacuidade substancial ou abstração pura, sem matéria alguma. E quando Kant deduziu que o espaço é infinito, ficou assustado face à conclusão necessária de que a matéria infinita que enche e dá entidade ao espaço infinito, se confunde com Deus. Se Aristóteles e Kant tivessem alcançado que essa matéria infinita se chama AMOR, certamente, a teriam acolhido com júbilo, para maior coerência de seus respectivos sistemas.

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1 - O Universo primeiro, primário, fundamental que Deus criou, o mundo celeste, fê-lo da sua ENERGIA-SUBSTÂNCIA que é o AMOR.

2 - A Jerusalém Celeste e o Topos Uranos são duas visões de uma mesma coisa, ocorridas em dois pontos diferentes do tempo e do espaço. E ambos videntes, um filósofo e um místico, Platão e João, concordaram em que tudo começa e acaba no lugar celeste.

3 - A máxima moral super-evangélica vigente nesse mundo celestial é: "Ama ao próximo mais do que a ti mesmo".

4 - Houve o esfriamento do Amor em parte do coletivo formado pelos espíritos celestes. Depois o impulso amoroso, porque livre, porque mutável, porque polarizável, inverteu-se no seu contrário. E o contrário do AMOR que integra, e o EGOISMO desintegrador.

5 - Aconteceu, então, o inevitável: a desintegração dessa parte dos espíritos celestes, sua dissociação através dos níveis do espaço até o CAOS primeiro, no centro daquilo que, depois, se chamou universo.

6 - A ENERGIA-SUBSTÃNCIA, outrora AMOR e agora EGOISMO, ao decompor-se, tal qual a luz branca através do prisma, produziu um diluvio de energias do tipo "raios laser", de ondas concentrativas, cada vez mais curtas, penetrantes e dinamicamente potentes, até que, ao serem frenadas pelo choque de umas com outras, enrolaram-se sobre si mesmas em vórtices que são as partículas de matéria no seio do Colosso Primitivo.

7 - A EVOLUÇÃO, por isto, é a volta ao perdido Amor. Por esta causa, CIVILIZAÇÃO é o mesmo que DESANIMALIZAÇÃO, que DESINVERSÃO DE DRAGÃO, que SANTIFICAÇÃO, que SABEDORIA, que DOMÍNIO DA BESTA que o homem, em parte, ainda é; enfim, é RELIGIÃO, em seu duplo sentido, como se segue:

Comecemos pelo vocábulo inteligência que vem do latim interlegere que se decompõe em inter (entre) e legere (ler). Inteligência significa ler, achar, apanhar entre as coisas o nexo; o nexo liga as coisas, antes desconexas, desvinculadas, caóticas, incompreensíveis, dando-lhes um sentido de inteligibilidade, de entendimento. Portanto, temos aí duas raízes vocabulares, uma primitiva leg. Como o ato de ler consiste em ligar coisas pelos nexos,

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ou ligar palavras (símbolos representativos das coisas) formando um sentido, da raiz primitiva leg saiu a derivada lig que dá ligare (ligar) ou religare (religar). Deste modo, religião de religio (re-ligio), nasce da raiz lig, variação de leg que dá legere (ler). Por este caminho andou o grande tribuno, escritor e orador romano Cícero, para quem religião vem de re e legere, e significa tornar a ler, meditar e refletir sobre os livros sacros, pelos quais a religião se transmite. Nossa interpretação, porém, é diferente: Religião é nova leitura do dado natural para descobrir-lhe o nexo mais profundo, qual o estamos fazendo nestes escritos. No entanto, diferente do filósofo, quando o fautor da religião descobre esse "vínculo profundo que uniu partes sem conto, e fez do todo um mundo" (Goethe), ele o torna a velar, que isto significa revelar, apresentando sua descoberta sob o véu da alegoria, das figuras e das máximas. Como este vínculo profundo das coisas, em nova retomada ou releitura do dado, é Deus, religião vem a ser a disciplina que trata de Deus. Deus é o vínculo profundo das coisas, obtido por meio de uma releitura do dado natural. A primeira leitura (inter-legere) deu apenas o nexo que é a inteligibilidade das coisas, ou o conceito delas nas palavras que as representam. A segunda leitura tomou os próprios nexos já descobertos, e os ligou num sentido ainda mais amplo e profundo; as palavras-conceitos são substituídas por sentenças-sínteses, e estas são conectadas por uma inteligibilidade mais profunda ainda, e ao VÍNCULO por excelência que tudo conecta na Unidade total, esse foi chamado DEUS. Tal é como entendia Francis Bacon para escrever: "Um pouco de filosofia inclina o espírito ao ateísmo, porém maior profundeza o reconduz à religião; porque quem olha destacadamente as causas segundas, pode algumas vezes não passar delas, deixando de ir além; mas quem lhes contempla o encadeamento, remonta até à Providência e à Divindade".

Posteriormente, Lactâncio, cognominado o "Cícero cristão", por causa da pureza do seu estilo, faz a palavra religião derivar-se de religare (religar), dado que religa a criatura com o Criador. Ora, quem diz religar supõe algo que estava ligado antes, desligou-se depois, e se religa agora. Estar ligado é Alfa; desligar-se é involuir ou cair no CAOS; tornar a ligar é evoluir, é tornar-se Omega, é voltar ao que dantes era. Logo, como enunciamos, EVOLUÇÃO é idêntico a RELIGIÃO.

Na sentença número 7 ficou estabelecido, também, que

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CIVILIZAÇÃO é o mesmo que SANTIFICAÇÃO. Todavia, diz Toynbee: "Nenhuma civilização conhecida chegou a atingir o OBJETIVO DA CIVILIZAÇÃO. Nunca houve uma COMUNIDADE DE SANTOS sobre a Terra". Este OBJETIVO da CIVILIZAÇÃO que é tornar os homens SANTOS, não pôde ainda ser atingido, coletivamente; mas alguns homens isolados o atingiram. Para onde foram eles? As civilizações comparam-se a destiladores: o produto destilado - SANTO, SÁBIO - vão-se deste mundo para outros planos ou níveis mais felizes do universo; a restilada fica aqui; os demagogos sobem ao poder; a minoria criadora anterior se troca por uma minoria dominante apenas, em todos os níveis, inclusive, no da religião. Cessada a música celestial que fazia dançar as multidões, estas param, recaem na animalidade, e é o fim. Eis, pois, que não há salvação fora do amor. Spengler tem e não tem razão: tem-na quando afirma a evidência de que as civilizações são cíclicas; não a tem quando afirma que o fatalismo cíclico não pode ser quebrado. O Reino de Deus, de Cristo ou do Amor, quando for estabelecido entre os homens, tal "Reino não terá fim". (Luc. 1, 33). Pela recíproca, por que haveriam de subsistir as civilizações que se foram, se todas se compunham de homens dragontinos? E a nossa civilização cairá? Sem dúvida que sim, se este caminho que apontamos, que é o de Cristo, não for palmilhado.

Criacionismo ou Evolucionismo? Ambos... visto que são tese e antítese, ambas necessárias para a construção da síntese. A Primeira Criação fê-la Deus, diretamente, da sua ENERGIA-SUBSTÂNCIA que é o AMOR. A Segunda Criação ficou por conta do Criado, das Criaturas todas, de todos os Entes... que terão de executá-la por tentativas e falências, pelo ensaio-e-erro, realizando-a por meio da loteria, do acaso, fazendo jogadas a esmo, até que dê o número sorteado estabelecido desde sempre nas leis do universo que pré-estão a tudo. Eis que esta Segunda Criação é conseguida através da Evolução desde o CAOS.

Esta SÍNTESE é fecundíssima, pois tudo integra na Unidade total, nada lhe ficando fora. Aqui está o Evangelho posto em linguagem científico-filosófica, e, por isto, racional, exata. Eis como se pode chegar ao Evangelho pelo caminho da razão... construindo esta "ponte que há de nos conduzir do antro das trevas ao foco da luz". Cumpre-se aqui, mais uma vez, a promessa que diz, da parte

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de Cristo: "Eis que faço novas todas as coisas" (Apoc. 21, 5), e da parte da Maçonaria: "NOVAE SED ANTIQUAE.

Os filósofos primitivos de Mileto buscavam uma substância que fosse primordial na ordem das coisas: ar, água, terra, fogo, os quatro elementos juntos. Heráclito propõe que tudo é movimento e transformação. Contra esta tese da substância-movimento, Parmênides coloca a antítese do Ser-fixo-essência-pura. Que é da SÍNTESE que devia seguir-se a essa tese e antítese do Realismo greco-medieval? Ficou por fazer-se...

Essa antítese parmenídica que fixou o SER na imobilidade da Essência pura sem matéria alguma, chamou-se Realismo... visto que tudo o que não fosse essência foi considerado como não-ser, irrealidade, sombra, ilusão. Se, contudo, tomarmos este Realismo, este segundo movimento do pensar antigo (Mileto-Grécia), como nova tese, sua Antítese será o Idealismo da pós Renascença... que teve início no cogito de Descartes. O Realismo-tético partia das coisas (res) para o sujeito (eu pensante). O idealismo-antitético parte do sujeito que pensa (eu) para as coisas (res). Este Idealismo que também se chama Psicologismo ou Filosofia Moderna, teve seu pináculo em Kant, descendo, depois, pelas vertentes absolutistas de Schelling, Fichte e Hegel. Que é desta nova SÍNTESE?... que integraria o Realismo greco-medieval ao Idealismo, à Filosofia Moderna? Outra vez ficou por fazer-se...

Vieram os filósofos ditos contemporâneos, e, em vez de efetuarem a síntese esperada, perderam-se em criticar os filósofos absolutistas e sistemáticos, sobretudo, Hegel. Além de não sistematizarem nada, além de não darem unidade à filosofia... que isto é torná-la sistema, ainda levaram o mundo à desesperança, à angústia, ao caos, ao nada... O que faltou a todos? Faltou darem SUBSTÂNCIA ao SER-DEUS.

A realidade da substância não pôde entrar na cogitação de nenhum filósofo, nem antigo nem moderno, porque todos supuseram ser este nosso mundo, o primário que Deus criou. Como este nosso mundo se mostra ainda em grande parte invertido, perverso e mau; ainda em grande parte maléfico, referto de sofrimentos, de tragédias, de angústias, de caducidades, de mortes, tal mundo não podia ter nenhuma relação com o SER, exceto a de negação do que É. Contudo, este nosso mundo é real, e

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não, de sombras ilusórias; apenas que está invertido no negativo qual ocorre entre a fôrma e o formado, entre o negativo fotográfico e o retrato em positivo. Então, é só copiar o negativo do mundo, e ter-se-á o positivo dele em felicidade e bem. Meta-se massa nessa fôrma, que o que era reentrância se fará saliência, e vice-versa.

Dando-se SUBSTÂNCIA a Deus, partir-se-ia, não das substâncias físicas: ar, água, terra, fogo, movimento, como o fizeram os filósofos miletanos e o efésio Heráclito; não das substâncias supra físicas: vida, desejos, Eu absoluto, vontade, como os filósofos pós kantianos: Bergson, Schelling, Fichte, Schopenhauer e Nietzsche propuseram; mas do AMOR como o fizeram Platão, Plotino, Agostinho, se bem que imaturamente, visto como todos eram desprezadores do corpo, do mundo, da matéria, sem atinarem que, sem um corpo substancial, a alma-essência-pura torna-se pura idéia abstrata vazia de conteúdo, simples lembrança na memória dos que ficaram. O Deus-Substância é objeto das religiões (fés), no passo que o Deus-Essência-Pura sem matéria alguma é objeto das filosofias (razão); pois, dando-se a Deus a Substância-Amor, razão e fé se irmanam, findando a guerra que as mantém separadas como adversárias..., sendo esta a última, a maior e a mais fecunda SÍNTESE de todas. Sob o signo desta SÍNTESE desenvolver-se-á a NOVA CIVILIZAÇÃO, a do terceiro milênio.

Isto, atentemos bem!, não é pregar nenhuma religião nova, visto acharmos que todas as religiões superiores, isto é, monoteistas, servem ao propósito de civil izar, de santificar o homem, desde que este homem, se atenha ao que for essencial na sua religião, ou seja, ao que nela for basilar. Trata-se, para o mundo Ocidental, de UMA ABERTURA NOVA PARA O EVANGELHO, em que São João - o Apóstolo do amor - é colocado em evidência, e proposto para tema basilar das meditações e das pregações, sobretudo quando diz: "Se algum disser, pois: Eu amo a Deus, e aborrecer a seu irmão; é um mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê? E nós temos de Deus este mandamento: que, o que ama a Deus, ame também a seu irmão". (I João 4, 20-21).

Pois bem: o amor é energia-substância que nasce num sujeito e se dirige para o seu objeto (que tem que ser substancial, físico, objetivo, abraçável) o outro, o irmão, através do qual, e só através do qual, é possível amar a Deus. Deus não pode ser amado

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diretamente, e sim, indiretamente, por meio de suas criaturas... das quais a mais excelsa é o homem. Se Deus, diretamente, for o objeto do amor, quem o busca a ele, estende os braços para o Infinito, para o Eterno, para o Imponderável e Inacessível sem o achar, porque, como já dizia Pascal, "a simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha". Não podemos, portanto, abrir os braços para abraçar isso que, por sua grandeza e majestade nos acabrunha, nos esmaga; "as qualidades excessivas são nossas inimigas, não as sentimos, sofrêmo-las". (Pascal). No entanto, esse Deus distancíssimo, longínquo, inacesso para quem o desejaria cingir, diretamente, num amoroso abraço, está perto, no irmão com o qual pode partilhar todas as horas de um convívio fraterno. Tal o sentia São Francisco de Assis para chamar ao lobo de irmão lobo, à serpente de irmã cobra e ao próprio corpo de irmão corpo. Ortega: "O amor, ainda que nada tenha de operação intelectual, se parece com o raciocínio em que não nasce a seco e, por assim dizer, a nihilo, porquanto tem sua fonte psíquica nas qualidades do objeto amado. A presença destas engendra e nutre o amor, ou em outras palavras, ninguém ama sem porquê ou porque sim; etc.". É que o amor, com ser substancial, possui ponderabilidade, além de ser causal, em razão do que disse Agostinho: "Meu amor é meu peso: por ele vou a toda parte que vou". Se as qualidades do objeto amado são as que engendram o amor no amante; se o objeto amado, por suas qualidades, é o peso que move o amante e o faz ir a toda parte que vá; então, Deus terá de possuir qualidades pelas quais possa ser amado. Dar-lhe qualidades, qualificá-lo, é finitizá-lo, é limitá-lo, é antropomorfizá-lo, é torná-lo como criatura com nome de Deus. Esta é a razão de se haver dito de Cristo um Deus; na impossibilidade de amar a Deus que transpõe, e é acima de todas as qualidades, todas elas antropomórficas, passou-se a amar ao Cristo-Criatura, como se ele fosse o Deus-Criador.

Por esta mesma razão, não se pode ser diretamente contra Deus, nem há modo de ofendê-lo, a não ser através de suas criaturas. O legendário arcanjo Lusbel ao fazer-se contra Deus, não o fez diretamente, porque não pôde; para consegui-lo, não Ihe sobrou outro recurso além de opor-se à ORDEM em que se achava alojado desde a sua formação; e foi só contra essa ORDEM, e contra seu próximo que estava e queria permanecer nela, que moveu sua ação destrutiva. Seu ataque foi dirigido ao que estava perto e imediato, e não ao mediato e remoto. Nisto se cifrou a sua danada

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rebeldia e oposição a Deus. Como conseqüência natural, inexorável, automática e imediata, "o seu lugar não se achou mais nos céus" (Apoc. 12, 8); sua desintegração no atro abismo, no centro daquilo que, depois, se chamou universo, foi o resultado espontâneo de haver trocado o amor pelo egoísmo e a ORDEM pelo que, depois, se evidenciou ser o CAOS... de onde se originou nosso universo.

Os mandamentos que impõem: amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo, deixam implícitas duas condições, uma referente a Deus, e outra relativa ao próximo. A primeira condição supõe um Deus antropomórfico, ainda que só representado por imagem mental, que tanto pode ser um semi-corpóreo e cruento Jeová hebreu, ou um imaginário e boníssimo Pai cristão. Todavia, tanto que a humanidade parcialmente saiu da sua infância para a idade da razão, e a idéia de Deus evoluiu para o abstrato, imponderável e inacessível. Deus não pôde mais ser diretamente o objeto do amor de nenhum ente finito. Ainda que o ente seja um querubim, um serafim, Deus transcenderá para além de todos os seus limites de criatura.

A segunda condição deixa claro que o homem, o próximo, não é coisa, mas, pessoa. Demos que as criaturas todas, que enchem o mundo, sejam coisas; o homem, porém, é pessoa. Esta distinção entre coisa e pessoa se infere dos dois mandamentos de Cristo quando ele sentencia: "Amarás a Deus sobre todas as coisas"; como o próximo não é coisa, ficou fora deste primeiro mandamento, obrigando-se Cristo a fazer um segundo. Se o homem fora coisa, Cristo havia de dizer: amarás a Deus sobre todas as coisas dentre as quais o próximo. Por esta razão, o mandamento que podia ser um só, ficou dois, e disse no segundo: "Amarás ao próximo como a ti mesmo". Não mandou amar a Deus mais que ao próximo, nem ao próximo mais do que a si mesmo, nem a si mesmo menos que a Deus. Como se dissera: amarás a Deus sobre todas as coisas; não, porém, mais do que a teu próximo, nem mais do que a ti; e ao próximo, amarás como a ti mesmo. Donde se tira: amarás a Deus e ao próximo como a ti mesmo. Logo, o amor de cada um por si mesmo foi tomado por padrão e medida do amor que se há de ter, em porção igual, ao próximo e a Deus. Como se não bastasse que o amor ao próximo tem que ser igual ao amor devido a Deus, ainda há mais isto, pela razão exposta atrás: o amor a Deus só é possível através do próximo, do irmão que, unicamente, pode ser visto e abraçado.

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Deus é mais importante do que o próximo pela reverência que sua inacessa majestade nos obriga, quer queiramos, quer não; porém o próximo é mais importante quanto ao desempenho e atuação do amor; e tanto é isto verdade que, se nos empenharmos mesmo em amar a Deus, ele se transveste em Criatura que tanto pode ser Cristo, como Jeová tribal saturado de caracteres humanos.

Eis tornada clara, como a luz do dia, a razão por que se impõe uma ABERTURA NOVA PARA O EVANGELHO: os que dizem, pois, amar a Deus são mentirosos e o provam: porque, em nome desse mesmo Deus do qual se mostram tão zelosos, praticam não só o desamor do próximo, como ainda toda a sorte de selvageria, de barbaridade, já em atos particulares, já em genocídios vários dentre os quais as "guerras santas" (!?), tudo perfeitamente comprovado pela história.

Não é difícil, todavia, detectar a causa da mentira e hipocrisia reinantes entre os religiosos de todos os matizes: é que é mais cômodo depararmo-nos em idéia, in abstracto, com uma situação, do que a enfrentando em objetividade, in concreto. É mais fácil sermos filantropos no universo do discurso do que na prática. Por isto disse Henry Fonda: "É mais fácil amar a Humanidade do que amar ao próximo". Porque, como não se pode abraçar a Humanidade, apertando-a ternamente, contra o peito, tal amor à Humanidade é da natureza do amor intellectualis de Spinosa, o qual, embora soe lindamente aos ouvidos, em realidade não existe. Amor intellectualis é do tipo do amor de Dom Quixote pela dama airosa Dulcineia del Taboso, criatura fantástica nascida na mente do tresloucado Cavaleiro da Mancha, muito menos real do que a estátua de Galatéia por quem se apaixonara seu autor Pigmalião. Essa é a razão por que Rousseau se indispunha com todo mundo, e entregou seus próprios filhos à caridade pública, não obstante, nos seus escritos, nos iludir, fazendo-se passar por "amigo do gênero humano". A esposa de Tolstoi, notava, com tristeza, que seu marido, falava sem cessar do amor de Deus e do próximo e só escrevia sobre essas questões. Mas passava a vida sem entrar em contacto com o próximo, sem lhe testemunhar a menor simpatia. O mesmo ocorria com Bernard Shaw e Schopenhauer que eram magnânimos, sem pares, em seus escritos, porém, avarentos, mesquinhos, em suas vidas. Não fugindo à regra, é mais fácil aos ministros e pastores pregarem sobre o amor de Deus e de Cristo para

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conosco, e da nossa obrigação de retribuirmos, do que ensinar com palavras e com atos a respeito do amor do próximo, isto é, do vizinho. Ir à igreja, rezar longamente, cantar hosanas, trinar hinos, recitar inflamados sermões laudatórios em honra de Deus, de Cristo, é imensamente mais fácil e agradável do que dar a mão amiga ao vizinho enfermo ou necessitado. E que o amor dedicado a Deus, a Cristo, já que os não temos perto, é do tipo do amor intellectualis; e aquela emoção que os fiéis sentem, não é amor, mas entusiasmo.

Entusiasmo vem do grego, e significava, originariamente, ser penetrado ou possuído pelo deus Baco. O sujeito embriagava-se com vinho, e aquele estado de euforia, arrebatamento e êxtase era tido como sendo a posse do crente pelo deus. Este culto báquico foi substituído, mais tarde, pelo culto órfico (de Orfeu), e o entusiasmo nascia da sugestão... produzida pela repetição continuada de litanias hipnóticas. Continua sendo deste tipo o entusiasmo dos crentes modernos, ao se exaltarem pela constante repetição dos lugares comuns dos textos sacros.

Ora, tudo isto nada tem a ver com o amor que Cristo ensinou como necessário à salvação, isto é, à libertação dos níveis inferiores de animalidade. Por isto, vamo-nos à igreja, em busca do Cristo-distante, esquecendo-nos do Cristo-próximo, visto que ele ficou em nossa própria casa, em nossa vizinhança, na pessoa do velho decrépito e trabalhoso, e/ou da criança-problema que pede amparo, amor. De nada valeu, portanto, ter dito Cristo: "Todas as vezes que fizestes estas coisas a um destes pequeninos, a mim é que o fizestes". (Mat 25, 40).

Cesse, pois, toda essa generalizada mentira e hipocrisia de todos os crentes e de todos os sacerdotes, quaisquer que sejam os credos, com exceções individuais tão raras, que nem vale a pena anotar.

Aí está o essencial das religiões, o só que salva: o amor indistinto, objetivo, prático, vivencial, para com todos! Se a queda se urdiu por esfriar-se, e por inverter-se o amor no seu contrário, como poderá ser possível a salvação, a não ser pelo amor? Esta é a razão por que não há salvação fora do amor ao próximo!... e de que é só através do próximo que se pode amar a Deus !

E nenhuma instituição propicia os meios para o cultivo do amor fraterno como a Maçonaria, por meio de suas Lojas, devido a

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doutrina expressa no Pavimento Mosaico, doutrina decorrente de um dos seus três pilares... que é o da Fraternídade. Ninguém aí exigirá nada de ninguém, exceto a sinceridade e a crença num Ente Supremo, última instância de apelação, sobre que se fundamente tudo, e que, entre os maçons se convencionou chamar Grande Arquiteto do Universo. A Sublime Ordem é uma montagem completa, de âmbito internacional, a serviço da civilização que é o mesmo que santificação, que sabedoria. Porque, segundo Demócrito, "a medicina cura as doenças do corpo e a sabedoria livra a alma das paixões". Disto se tira que ser sábio é ser santo. Poder lograr todo esse benefício seria, no tempo de Platão, um sonho maravilhoso, a mais pura e arrematada utopia!... Contudo essa utopia se fez realidade...; nós maçons a vivemos... Lutemos, portanto, por todos os meios para que a Sublime Instituição não se deteriore. Demos-lhe tudo, para que ela, em se salvando do marasmo, salve a CIVILIZAÇÃO... ou, quando não possa isto acontecer, seja ela a crisálida de que ressurgirá, como Fênix, a Nova Civilização do terceiro milênio! "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro"!. (Apoc. 22, 13). - "Eis que faço novas todas as coisas"! (Apoc. 21, 5). - NOVAE SED ANTIQUAE!

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O ACASO E A NECESSIDADE – VIII

A obra de Demócrito de Abdera - Trácia - embora tão vasta quanto a de Aristóteles, perdeu-se toda, e dela só nos chegaram uns poucos fragmentos e as citações de outros escritores. No entanto, ela surgiu para atender dupla finalidade: a primeira foi construir uma síntese em que se harmonizassem as contradições já estabelecidas no seu tempo - o SER fixo de Parmênides e o NÃO-SER móvel e transformável de Heráclito. A este fim, afirmava Demócrito que tudo o que existe no universo é constituído de átomos e de vácuos ou vazios. Os átomos são os plenos, ou cheios, ou SER; os vazios são o NÃO-SER. Por uma necessidade intrínseca, os átomos tendem a "cair" (tal qual "cai" a Lua ao redor da Terra, e esta, em derredor do Sol, que isto é estar em órbita); assim também caem os átomos para onde haja maior aglomeração deles, e esta aglomeração é já ocasionada pelo movimento. Ao caírem, os átomos entrechocam-se, gerando vórtices que se tornam visíveis como massas de matéria. Se não houvesse espaços vazios, e tudo fosse cheio, compacto, maciço, não haveria o movimento. O movimento só é possível porque coexistem, intervalados, os cheios com os vazios. Portanto, para que haja o movimento, é tão necessário o cheio como o vazio; e sendo o cheio o SER, e o vazio o NÃO-SER, para que o movimento exista, é indispensável tanto o SER como o NÃO-SER. Assim raciocinava Demócrito ao fazer a sua síntese entre o SER e o NÃO-SER.

A segunda finalidade que motivou Demócrito a edificar o seu sistema do mundo, foi contrapor-se a Protágoras que dizia ser o "homem a medida de todas as coisas". Em afirmando isto, Protágoras antecipava o Psicologismo que só amadureceu mais tarde a partir do cogito de Descartes. Contrapondo-se a este "Psicologismo" protagoriano, Demócrito antecipou o postulado da objetividade ao assentar que a Natureza deve ser encarada com objetividade sem o pressuposto de que haja nela projetos, motivos, finalidades, ou de que o homem possa projetar-se nela dando-lhe um cariz antropometrista. Daí a ausência de projetismos, de propósitos, de finalidades no seu sistema, por isto mesmo fortemente verberado por todos os filósofos contemporâneos seus e pelos pósteros medievos.

Afastando quaisquer antroponomismos pelos quais o homem

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possa ser tomado como lei ou medida das coisas (antroponomia), Demócrito afirmava que os átomos, em caindo, se chocavam entre si, do que resultavam turbilhões, e estes, pela absorção de mais átomos, cresciam, avolumavam-se, tornando-se visíveis, não obstante serem os átomos invisíveis. A necessidade é a natureza íntima ou lei que obriga os átomos a se moverem no espaço vazio. Mas os choques e entrechoques dão-se ao acaso. Um turbilhão, um movimento vorticoso não tem forma definida, podendo ser de muitos modos; daí a afirmação de Leucipo-Demócrito: "Tudo o que existe no universo nasce da necessidade e do acaso".

Eis, pois, que Demócrito, contemporâneo de Sócrates, qual este, entrou na luta contra os sofistas, estabelecendo a doutrina da objetividade em oposição ao antropometrismo, sobretudo, de Protágoras. Não é à-toa que Francis Bacon admira Demócrito, e o põe acima de todos os filósofos: é que Demócrito, com sua doutrina de objetividade se fez precursor do Cientismo. "Propósitos", ou "causas finais", tão amiúde referidos por Sócrates, por Platão, por Aristóteles, não entram na cogitação dos atomistas. Em vez de finalismos, de projetos que são o mesmo que programações, o que há é o ACASO, o acontecimento inopinado, fortuito, imprevisível, ou então, a lei determinística, inexorável, a NECESSIDADE cega.

Por ventura o acaso possui leis? Sim, possui; porque, se não houvesse leis, o acontecimento ou fenômeno não ocorreria por absoluta impossibilidade. Tudo o que for impossível não acontece nem por acaso. Um grande bloco de pedra rolado da encosta, obstruindo um caminho, não sairá daí, por si mesmo, jamais; nem um camelo pode voar por obra do acaso. Então, acaso não é idêntico a impossível, nem a absurdo. O acaso, portanto, não é o resultado da ausência de leis que determinam os fenômenos, mas, apenas, que ao acontecimento além de faltar intenção, propósito, projeto, finalidade, ainda ele ocorre em conseqüência de muitas causas conjugadas; e como em várias experiências tais causas não atuam do mesmo modo, o acontecimento só pode repetir-se como probabilidade. Quantas causas concomitantes atuam numa partida de futebol? Quem, logo, poderia prever os treze pontos da Loteria Esportiva? Chocalhemos uma caneca de couro com cinco dados, e a batamos, de boca, na mesa: deu o número 30, ou, então, o 5; se fosse impossível dar o 30 ou o 5, eles jamais aconteceriam; deram porque é possível, mas deram por acaso.

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O acaso consiste em acontecimentos resultantes de concausas variáveis, isto é, da atuação de um conglomerado de fatores mutáveis, de um conjunto de leis cujo arranjo operativo ou disposição, provavelmente, não se repete. O exame das concausas, o estudo dos fatores (quando possível), a observação do complexo de leis atuantes, podem antecipar ao especialista o que ele chama de tendência. Por isto, os futurólogos, os previsionistas, os profetas, quando quiserem predizer o futuro, hão de dizer: "a persistir esta tendência..."

Todas as ciências sociais, como a história, como a política, como a economia, etc., não obedecem a previsões como as da física, da química, da astronomia, porque o conglomerado das leis ou as concausas só podem fornecer tendências. Daí que a profissão de profeta é um equívoco. Por este motivo, ninguém pode saber, com certeza, se a bolsa de valores irá subir ou descer; nem se a vitória caberá a este ou àquele time numa partida de futebol; nem se determinado político vai poder cumprir sua promessa, como, por exemplo, a de fazer baixar a taxa de inflação. Tudo isto será imprevisível, ainda mesmo que haja sido planejado, e dar-se-á segundo probabilidades, por acaso, visto que este não representa o impossível.

Já a necessidade é quando tem que acontecer inexoravelmente; necessidade é o mesmo que determinismo, que fatalismo, que implacabilidade. Uma reação química prevista por suas leis; um fenômeno astronômico, cujo ciclo está determinado pelo cálculo e pela repetição; o funcionamento exato de um universo mecânico qual o é qualquer máquina; tudo segue a necessidade ou o determinismo imposto pela lei; e se alguma coisa falhar no fun-cionamento da máquina, saber-se-á, exatamente, onde procurar o defeito. Todavia, quando muitas concausas agem ao acaso, o resultado será imprevisível, ou somente antevisto como tendência. Um simples grão de areia pode obstaculizar a roda do tempo, e desviar o curso da história? - Sim, pode (responde Pascal): - "O grão de areia de Cromwell” !

Postos nestes termos o que significam necessidade e acaso, podemos estudar agora o grande fenômeno, complexo e geral, que se chama EVOLUÇÃO. O método seguido será o da crítica às afirmações do conspícuo e preclaro anti-evolucionista Gustavo Corção.

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EVOLUCIONISMO – IX

O ilustre escritor Gustavo Corção publicou um artigo no jornal "O Estado de S. Paulo", edição de 19 de janeiro de 1978, com o título: “A irreversibilidade da desordem”. Pretende o autor, com esse artigo, como ele próprio o diz, "vacinar os moços contra a mais estúpida das idéias: a do evolucionismo-cósmico, como também a do evolucionismo paleontológico e a do evolucionismo moral e religioso". Para conseguir esse feito, ele assenta que "a idéia que está na base de todos esses evolucionismos contraria um princípio metafísico que podemos enunciar assim: "Nada passa da potência ao ato sem a intervenção de algo já em ato”. Esse princípio metafísico foi formulado por Aristóteles para quem as espécies vivas são fixas; e com fundamento nelas, ele se apresenta como adversário irredutível do evolucionismo... que já se esboçara nas doutrinas de Empédocles e Anaxágoras.

O problema do anti-evolucionismo aristotélico se deveu ao desenvolvimento da doutrina do próprio Aristóteles que teve por ponto de partida o argumento dos eleatas contra o movimento. Parmênides à frente de todos os eleatas, via contradição entre a idéia de SER e a idéia de MOVIMENTO. Essa contradição foi resolvida por Aristóteles com abrir um campo mental novo, com fazer uma generalização que abarcasse na síntese as duas posições contrárias tese e antítese, isto é, SER e MOVIMENTO. Ser, assentava o grande estagirita, não é somente aquilo que existe atualmente, senão também aquilo que ainda não se atualizou, permanecendo, por isto, no estado de virtualidade, de potencialidade. O ser não é somente aquilo que é, atualmente, mas também sua virtualidade ainda por desabrochar-se. O vir-a-ser heraclítico, o que ainda está para ser, o que só existe como potência, é ser. O ser não é somente o ato, se não, também, a potência.

É fácil de entender que o ovo contém, em potência, em latência, o pinto, e este, o galo ou galinha. Mas isto não é a mesma coisa para a arte. A estátua está latente (lá tendo ou lá estando) na cabeça do escultor, e não no mármore em si. Deste modo, passa a haver duas espécies de latências: a latência no agente e a latência no objeto. Em ambos os casos, todavia, a potência ou latência só pode explicitar-se, manifestar-se ou atualizar-se, graças a interferência de algo já

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tornado ato. O mármore transforma-se em estátua graças à interferência do escultor que transfere para o objeto-estátua sua latência-sujeito. No caso da relação ovo-galo, temos que essa virtua-lidade do galo, no ovo, é um legado dos pais que já possuem em ato aquilo mesmo em que o ovo irá tornar-se. Sem a ação deste agente atualizado seria impossível a perpetuação de novas potencialidades, e, depois, o desabrochar delas. Por isto Aristóteles não admite que uma potencialidade venha a atualizar-se por si mesma, sem a intervenção de algo já atualizado, do inferior, por si só, não pode surgir o superior, ou seja: o inferior não pode tornar-se superior sem a ajuda do que já é superior. A potência não possui autonomia para tornar-se por si mesma, ato.

Toda esta doutrina aristotélica-tomista foi condensada por Gustavo Corção na sentença lapidar: - Nada passa da potência ao ato sem a intervenção de algo já em ato”. A partir desta doutrina finalista... na qual não cabe o acaso, o notável escritor passa a ridicularizar os evolucionistas, dizendo que suas falas são um papagaiar contínuo, "psitacismo", como ele diz; as tagarelices dos evolucionistas não passam de meros "entes acústicos", porque falados, porque soados, ou "entes gízeos", uma vez que se podem escrever num quadro negro com o giz. Para Corção, seu argumento aristotélico-tomista, seu "princípio metafísico”; soa como uma verdadeira aporia (caminho sem saída), igual às aporias de Zenão de Eléa contra Pitágoras, no referente às mônadas. Também Zenão em nome duma razão estática, fixa e imutável, ferreteava a seus contemporâneos e antecessores que acreditavam no movimento e na transformação. Por meio da razão, segundo os recursos matemáticos da época, Aquiles estaria, como estátua, imóvel, "correndo", sem alcançar a tartaruga; a flexa disparada estava imóvel, porque sempre, no seu lugar; portanto, o movimento não existe. Proposto o problema a Diógenes, este começou a andar, ostensivamente, e Zenão poderia ter classificado esse andar, como o fez Corção, de "ens mobile", tal qual os "entes acústicos" e os "entes gízeos". Todas as provas que atulham os museus palentológicos, museus antropológicos; todas as provas embriológicas, dos órgãos residuais, sorológicas, anatômicas e geográficas, tudo psitacismo, tudo coleção de "entes acústicos", de "entes gízeos", tudo alucinação e andar mágico, fantasmagórico de Diógenes, de correr-parado de Aquiles atrás da tartaruga inalcançável... Por que? Ora, porque tudo isso é contrário à razão que, por sua natureza, busca o estático, como pensavam os

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eleatas, e porque, igualmente, tudo isso do evolucionismo contrapõe-se a um princípio metafísico: nada passa por si mesmo, de modo autônomo, sem a interferência de algo superior já em ato, da potência que é, ao ato que ainda será.

Só que, para provar sua suposição, Corção foi tão infeliz, que provou exatamente o contrário. No começo do artigo, ele já tinha advertido que o cálculo que ia empregar, "longe de ser um brinquedo de números, é um argumento com que vacinar os moços contra a mais estúpida das idéias: a do evolucionismo”...

"Suponhamos (diz Corção) o seguinte jogo lotérico: certo número N de bolas, composto de números iguais de N cores, arrumadas em N frascos, um para cada cor. Essas N bolas são todas despejadas e embrulhadas no mesmo recipiente; e agora começa o jogo que consiste em descobrir qual é, numericamente, a probabilidade de reverter à ordem inicial, sendo uma por uma tiradas «at random»". Paremos, aqui, por enquanto.

De acordo com o princípio metafísico atrás enunciado, a reversão à ordem primitiva é absolutamente impossível: porque a ordem primitiva era ato; com a mistura caótica das bolas, aquilo que antes era ato, se tornou pura potencialidade. Agora, para a desordem tornar-se ordem, e a potência, ato, é indispensável a intervenção de um agente que arrume as bolas de novo, isto é, que atualize aquela potencialidade. Como esse agente é o acaso, e tanto que as bolas são tiradas uma por uma a esmo, a ordem primitiva jamais se forma, ainda que o arranjo consista em apenas 6 bolas e 3 cores - P1: 90. Quando um fenômeno é impossível de ocorrer, como, por exemplo, um elefante voar por si mesmo, não tem sentido falar em probabilidade. Quando, portanto, se pergunta: "qual é, nume-ricamente, a probabilidade de reverter à ordem inicial"? a resposta será: jamais, nunca, será possível essa reversão, porque a ordem é ato, e o acaso e o a esmo não se pode dizer que sejam atos. Ora, de acordo com o princípio metafísico enunciado, só um ato pode ordenar outro ato; a esta ordenação só será possível no nível de igualdade: galinha-ovo-galinha; ou no nível de superior a inferior: escultor-estátua. Mas é impossível que o ovo e a estátua se façam a si mesmos... por acaso, ou melhor, que o acaso faça o ovo e a escultura. Logo, não há nenhuma probabilidade, nenhuma, de o a esmo e o acaso produzirem a ordem inicial, como se um e outro fossem atos, e ainda, atos de nível igual ou superior. Esta é a

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inexorável conseqüência da premissa: "Nada passa da potência ao ato sem a intervenção de algo já em ato".

No entanto (eis que o impossível acontece!), Corção acha que o acaso pode ordenar as bolas, e ainda anota a fórmula do cálculo dessa probabilidade. Começa ele pelo caso mais simples de duas bolas e duas cores, e termina com o caso mais complicado de 100 bolas e 10 cores. Neste último caso, o número da probabilidade é de 1 para 1 seguido de 91 zeros: P1: 1091. Para o caso de 1.000 e 10 cores, diz ele, "temos aproximadamente no denominador o fantástico número: 1 seguido de novecentos e tantos zeros".

A incrível possibilidade de dar tal número leva o articulista Corção a dizer que isso é um argumento decisivo contra a doutrina da evolução. Como se vê, o anti-evolucionista se colocou no lugar da natureza, com sua prodigiosa série de 1.000 bolas e 10 cores. Não reparou, porém, que a natureza joga sua loteria, em qualquer nível, com um número inimaginável de conjuntos de bolas. Não uma série, digamos, de 12 bolas e 4 cores, o que daria P1: 369.600, para usar os resultados do próprio Corção, mas, 369.600 conjuntos de 12 bolas e 4 cores. Resultado? Na primeira ou se-gunda vez que a natureza jogar sua loteria, o número já sai sorteado. Quer dizer: a potência se torna ato ao primeiro ou ao segundo impacto da obra do acaso, segundo a lei da probabilidade exposta pelo anti-evolucionista. Por que? Porque o tal cálculo já, de pronto, se mostra exceção do princípio metafísico referido. E como pode a exceção que nega aquilo mesmo que se pretende provar, servir de argumento decisivo, a ponto de vacinar os moços contra a mais estúpida das idéias: a do evolucionismo..."?

O primeiro ato da natureza foi construir a matéria... a partir das energias cósmicas que se concentraram, vindas da periferia do universo. Nessa descida, a energia-substância (AMOR) se desfazia de SÍNTESE SUPREMA que é, nas suas componentes, nas ondas cada vez mais curtas e dinamicamente potentes. Tais ondas já tornadas ultra-curtas, em sendo frenadas no centro do universo... pela interferência de umas com outras, e pelo impacto contra o meio, enrolavam-se sobre si mesmas tornando-se em partículas subatômicas. "Se deitarmos uma vista de olhos (escreve Boschke) aos mésões conhecidos até agora, veremos que é possível coordená-los, tal como Mendelejev organizou, no seu tempo, os elementos químicos.

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Obtemos um "Sistema Periódico de Partículas Elementares", umas carregadas positivamente, outras sem carga, e um terceiro grupo com carga negativa". Nesse "Sistema Periódico de Partículas Elementares", tal como no dos "Elementos Simples" de Mendelejev, há lugares vazios que deverão ser preenchidos por partículas ainda por descobrir-se. Estas partículas são as primeiras bolas do jogo lotérico que durou bilhões de anos.

As ondas dinâmicas são potências que se encaminham a formar as partículas que são os atos; numa segunda fase, estas partículas são potências em relação à segunda ordem procurada, a dos prótons ou núcleos de matéria. Formam-se, primeiro, os núcleos simples que são os do hidrogênio... os quais, depois, são prensados pela força concentrativa e calor do Colosso Primitivo, formando os núcleos mais pesados, indo este processo até os corpos transurânicos, hoje só possíveis nos laboratórios físico-nucleares. Ainda agora, como se sabe, o Sol obtém o seu calor prensando núcleos de hidrogênio pesado dois a dois para formar um de hélio. Nesta síntese há uma sobra de massa que se transforma em energia.

Como se vê, o número de bolas coloridas empregadas no jogo em cada fase, é relativamente pequeno. O número de conjuntos de tais bolas, todos jogando ao mesmo tempo é inimaginável. O tempo gasto em fazer o jogo de cada fase: bilhões de anos. Objetivo a colimar: a ordem, o cosmo, o universo. "Elétron, átomo, molécula, molécula gigante, micela - esta é a ordem das categorias na constituição da matéria”. (Fritz Kahn).

Constituída a matéria, o jogo sobe para nível superior, onde as bolas coloridas representam os átomos já formados. A vida trabalha com os principais elementos simples que podemos memorizar facilmente por meio da sigla CHON, que simboliza os corpos: carbono, hidrogênio, oxigênio, azoto ou nitrogênio. Dispondo estes elementos em proporções e arranjos diferentes, a vida pôde criar essa fantástica variedade de formas que a natureza ostenta. Mas a natureza não está objetivando nada além de combinar e recombinar: ela coloca boa porção desses quatro elementos, como se foram dados, em quintilhões de canecas que são chocalhadas e batidas sem nenhuma ordem nem seqüência. E o que cada caneca der, deu: ou sai uma com-binação lógica... que pode ser aproveitada, ou o produto não serve, e o material retorna às canecas para novos jogos. Aquilo que foi formado, no entanto, vai para as canecas dos níveis superiores, para novas

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combinações.

Stanley Miller fez um jogo de dados semelhantes ao que expusemos. Partindo ele da hipótese de que a atmosfera terrestre da época pré-algonquiana era constituída de vapor de água, metano e amoníaco, construiu um alambique em que meteu esses ingredientes: posta a água em ebulição, a parte gasosa sofreu o efeito de descargas elétricas, fingindo as tempestades medonhas de relâmpagos e de trovões terríveis nos céus negros dos primórdios. Miller não precisou de milhões de anos, como ocorreu in natura, mas apenas de algumas horas. Examinando as substâncias restantes no aparelho, obteve, 10 compostos orgânicos dentre os quais 6 aminoácidos: "glicina, alamina, sarcosina, alamina-beta, ácido aminobutírico-alfa, metil-alamina N; ami-noácidos, isto é, as pedras fundamentais de albumina (...). Acrescentaram-se-lhes doses perfeitamente comprováveis de ácidos orgânicos, conhecidos igualmente como produtos de assimilação. Ácidos simples como o ácido fórmico - isto é, nada de especial; mas também ácido aspártico, ácido acético, ácido sucínico, ácido láctico, ácido imino-aceto-propiónico. Parece incrível. A própria uréia figurava entre os produtos da reação. (Boschke). O passo seguinte foi substituir o amoníaco por azoto e hidrogênio puros, e o resultado foi o mesmo. Depois, substituíram-se as faíscas elétricas, em outras experiências, pela luz carregada de energia, pelos raios ultravioletas e pelos raios beta provenientes da radioatividade, e os resultados igual-mente se repetiram.

A química orgânica que trabalha com os corpos que dão a sigla CHON mais enxofre, ferro e fósforo, é tão complexa em seus agrupamentos moleculares de aminoácidos, albuminas, açúcares, benzóis, vitaminas, etc., que o melhor é pensar nas moléculas dela, não como cadeias de átomos, mas como "padrões de tapeçaria". "No cálculo de todas as possibilidades chegou-se a 101000 um número que deixa muito longe a cifra dos elétrons no espaço universal, 1080. E inútil dizer que essas combinações nunca se concretizarão, mas dão uma idéia das possibilidades ilimitadas da vida, de produzir sempre novas substâncias, cores, formas, de originar sempre novas e fantásticas criaturas no nosso planeta ou em outros mundos". (Fritz Kahn).

Não é, portanto, como pensava Aristóteles que dizia ser impossível ao inferior produzir o superior: pois não há outro jeito, e este é o caminho trilhado pela natureza. O átomo é superior aos

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seus elementos constitutivos elétrons e prótons; e é com estes que se constrói aquele. As moléculas são hierarquicamente superiores aos átomos; não obstante, sem a combinação destes inferiores, aquelas não se formariam. Portanto, se a natureza nos demonstra por fatos que as construções se fazem do pequeno e inferior para o grande e superior, como dar por certa a fala de Aristóteles que sustenta ser impossível ao inferior produzir o superior? ou o menos, o mais? A mestra natureza nos ensina que a teoria da potência e ato de Aristóteles, expressa na sentença de Gustavo Corção tem que ser remodelada, e ficaria assim: nada passa da potência ao ato sem a utilização de algo inferior já tornado ato, podendo ou não tal passagem fazer-se graças a interferência de algo superior. Os elétrons e os prótons eram potencialidade em relação às energias cósmicas de que se atualizaram; como se pode notar, estas energias eram atos... e estes atos foram utilizados para construir os atos sucessores, consecutivos ou conseqüentes: as partículas nucleares e os elétrons. Tornados atualidades, tais corpúsculos foram utilizados para a construção dos átomos, e estes, utilizados na feitura das moléculas. Sem as moléculas atualizadas, não se poderiam formar as células, os tecidos, os seres pluricelulares. Em cada nível, a natureza joga com os elementos desse nível para criar o nível imediatamente superior.

Saltando destes níveis inferiores para o político-social, verificamos que a história se escreve pelo método do ensaio-e-erro, onde os homens-sócios são as bolas do jogo, e a sociedade perfeita, a ordem social, o cosmo neste nível jamais se formou. As sociedades humanas formam-se e se desfazem em obediência aos arbítrios individuais de seus condutores (profetas, filósofos, estadistas, chefes militares, legisladores, demagogos, tiranos, etc), havendo, na ascensão o binômio a que Toynbee chama de minoria criadora e massa, e, na decadência, a minoria criadora é substituída por uma minoria dominante feita de rotineiros, de medíocres e de invejosos. O social é a unidade superior a ser construída com os homens-sócios que são as unidades inferiores; como estas unidades inferiores do social, que são os "sócios", não estão de todo formadas, fica tendo razão Toynbee que escreve: "A civilização, tal como a conhecemos, é um movimento mas não é uma condição, é uma viagem mas não é um porto. Nenhuma civilização conhecida chegou a atingir o objetivo da civilização. Nunca houve uma comunidade de santos sobre a Terra".

A sociedade perfeita de santos e de sábios ainda está por nascer

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na Terra, e, neste nível superior, os homens-sócios são os vários conjuntos de bolas coloridas do jogo de Corção. Estamos fartos de saber como tem que ser a sociedade cósmica, perfeita, fundada no amor e na sabedoria; de nada vale, porém, essa sabença, porque, não estando as bolas-homens-sócios de todo formadas, não permitem dar o número ansiosamente esperado e formar o cosmo também no nível social, e que terá o nome de "Reino de Deus" o qual, uma vez estabelecido por santos e por sábios, "não terá fim". (Luc. 1, 33). Não confundamos tal sociedade ainda como virtualidade, como potência, com as várias igrejas de homens-de-nada, cujos santos são uns egoístas que se isolam do convívio humano, e são pintados e esculturados de semblante e olhares tristes, efeminados, voltados para o alto, como a querer fugir da Terra, como já o fizeram da luta lado a lado com os seus irmãos, quando é aqui, por nós e com o nosso esforço que se há de instaurar o Reino do Amor.

Não é do modo simplista de Corção que põe no jogo, de pronto, nada menos que 1.000 bolas e 10 cores ao dizer: "Acreditar que a matéria possa, por si mesma, se atribuir uma determinada forma já é algo que contraria aquele princípio metafísico. E quem acreditar que no planeta Terra as moléculas dos corpos inorgânicos por um acaso, isto é, por uma improbabilidade prodigiosamente sorteada, se encontraram e produziram um ser vivo, etc.". Quem de "moléculas de corpos inorgânicos" pular todos os níveis intermediários indo parar em um ser vivo", realmente põe no jogo 1.000 bolas e 10 cores! Só que na matemática da natureza não existe tal jogo.

* * *

Não satisfeito com os seus desabafos contra os evolucionistas... culpados, de fato, pelo materialismo reinante no mundo, pela agonia das religiões e pela decadência da nossa civilização, Gustavo Corção, ao invés de abrir um campo mental novo e fazer a SÍNTESE que abarque e harmonize no seu âmbito, na sua unidade, a tese e a antítese conflitantes que são criacionismo e evolucionismo, em vez disto, volta a fazer finca-pé na tese criacionista. Harto entendemos seu nobilíssimo intento de pretender segurar a derrocada da nossa civilização; reconhecemos que a antítese evolucionista, enquanto não se fizer a SÍNTESE, continuará sendo um desastre. Sem tal SÍNTESE, o criacionsmo e o evolucionismo continuarão sendo inimigos mortais, como acontece, sem exceção, com quaisquer unidades contraditórias, enquanto ainda não

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harmonizadas, não integradas, na unidade maior. Enquanto não for feita a SÍINTESE entre criacionismo e evolucionismo, um será contra o outro por inimizade e exclusão mútuas, em vez de um contra o outro por complementaridade que visa construir um TODO MAIOR. Há, portanto, dois modos de ser contra: um é o da inimizade e do ódio e o outro, o da integração, de eros, do amor.

Não satisfeito com o quanto havia escrito no jornal anterior, volta no jornal seguinte, o de sábado, dia 21 de janeiro de 1978, com outro artigo intitulado: "O Móvel e o Imóvel". Declara, de começo, que o evolucionismo, como o mais antigo dos erros, é ainda hoje aquele que mais pesa no acervo de burrices humanas"; e acrescenta: "as inteligências retardadas pensam sempre que o fenômeno, o movimento e a transformação são valores metafisicamente superiores ao imutável". Volta, portanto, à baila, a antiguíssima briga entre espiritualistas e materialistas, entre essencialistas, como Parmênídes, Zenão de Eléa e os eleatas, e os substancialistas como os primeiros filósofos miletanos, e, por fim, Heráclito de Éfeso para quem tudo é movimento e transformação. Qual é o mais importante? é a essência, por sua natureza fixa, imutável, intemporal, incausal, etc., ou a substância, em tudo, polarmente oposta? Eis outra grande SÍNTESE por fazer-se, que acertará tudo o que há de contraditório.

Dado que nada pode ser, sem uma essência que, no particular, no individual, se chama forma; e assente que nada pode existir (estar no espaço-tempo) sem uma substância, donde vem que uma essência pura é uma pura idéia abstrata, subjetiva, e que uma substância pura, sem essência alguma, é o mais rematado caos; que conseqüente disto, até um serafim, até Deus, se não tiverem substância não existem, que vem a significar essa prevalência da essência sobre a substância, da alma sobre o corpo, do espírito sobre a matéria, do fixo, imutável e imóvel sobre o que é túrgido de dinamismo e transformação? Dado que qualquer unidade, sem nenhuma exceção, é dual, visto como tem dentro de si o dois que são duas outras unidades opostas e complementares integradas; assentado que, embora opostas e complementares, essas duas unidades são iguais em valor, iguais em importância porque se acham no mesmo nível hierárquico, não tem sentido afirmar que uma prevalece sobre a outra. Parmênides fixou o Ser, Deus, na imobilidade, fazendo dele um puro Ente de razão, uma abstração pura que só pode ser achado na nossa intel igência, e não fora dela. Para Deus existir objetivamente, estar

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no tempo, no espaço-tempo, necessita de SUBSTÃNCIA. Ora, a única substância que os antigos pensadores conheciam, era esta nossa matéria considerada vil. Então, Deus, para Aristóteles, era "essência pura sem matéria alguma, ou «ato puro» em nada potência", pura abstração, portanto, que É, mas não EXISTE. A idéia de ato implica na de potência da qual ele decorre. Um ato puro que não decorreu de potência nenhuma, é uma pura abstração, pura idealidade vazia de conteúdo substancial.

Correram-se os tempos, e a ciência demonstrou de modo irrecusável que matéria e energia são termos reversíveis entre si. Daí a expressão energia-substância criada por Einstein. Ora, a vida, os sentimentos sobre os quais se sublima o amor, são energias-substâncias também. A vida é energia-substância nascida, por transformação, de outras energias que lhe estão abaixo, visto que do nada não sai nada, e se algo existe, este algo saiu de outro algo por transformação. Dentre os sentimentos todos que nascem da vida, o mais sublime é o amor. O amor, por conseguinte, é a mais alta forma de energia-substância. Como não há posto a subir acima do amor, ele é o fim da cadeia de transformações, ou ato puro embora, no amor, haja movimento vibratório, não há transformação para cima, no sentido de um transamor. Eis que a idéia de ato puro está implicada na idéia de substância e não na de essência, esta, por sua natureza imutável, intransitiva, fora da relação potência-ato. Não havendo posto a subir acima do amor, ele fica absoluto, fica sendo Deus. Por isso é que na intuição de S. João Evangelista, "Deus é amor". (I João 4, 8 e 16).

Apertemos o cerco, agora: o que seria mais assombroso para Corção: seria Deus como imutabilidade buscado por sua luminosa mas gelada inteligência? ou seria Deus como amor vibrante, túrgido de vida, procurado pelo seu aquecido e exaltado sentimento, pelo seu coração em êxtase? E aceito que em Deus há Essência e há Substância juntamente; que, de Deus abaixo, todo o ser real, real de verdade, real por inteiro, é também feito de essência e de substância, sem nenhuma exceção, cessa de ter sentido essa concepção espiritualista de prevalência de alma sobre o corpo, ou a da prevalência da matéria sobre o espírito, como querem os materialistas.

No segundo artigo, no de sábado, pondo de lado seu princípio metafísico, Corção entra a falar do caótico “movimento browniano”; diz: "O puro e desordenado movimento, como o «movimento browniano» que se observa no microscópio, nos revela

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indiretamente a desordenada agitação molecular do líquido aparentemente tão tranquilo no seu aspecto macroscópico. Mas também revela, mediante alguns raciocínios encadeados, que aquela pura e desordenada agitação ou aquela pura «at randomness» é justamente o que assegura a estabilidade de uma panela com água colocada num fogareiro". Aplicando o princípio metafísico, podemos raciocinar assim: as moléculas de água são atos, uma vez que são cósmicas em si mesmas, com forma, leis e princípios próprios. Todavia, a reunião das moléculas formando o líquido da panela, é caótico no seu aspecto microscópico, que isto significa o desordenado movimento browniano. Mas afirma o articulista que "aquela pura e desordenada agitação ou aquela pura “at randomness” é justamente o que assegura a estabilidade de uma panela com água colocada num fogareiro”. Disse, portanto: o movimento desordenado ou caos assegura a estabilidade.O caos é potência, e a estabilidade, ato; segue-se que a potência assegura, propicia, possibilita o ato. Disto se tira: o “movimento browniano”, que é pura potência, determina o ato, que é a estabilidade da panela, sem a intervenção de nada já em ato, e an-tes, pelo contrário pela intervenção da pura potência que é o tal “movi-mento browniano”. Portanto, do caos particular resulta a ordem geral; do entrechoque desordenado das partículas de um líquido ou gás, resulta a pressão exercida nas paredes dos recipientes, agora sim, possível até de ser medida e calculada pela matemática.

Por que a pressão de um gás aumenta com o calor? Porque aumenta a velocidade e a força dos choques entre as partículas. Se o gás for resfriado, o que acontece? Os movimentos diminuem, a velocidade e os choques se arrefecem, tornam-se mais amortecidos, até que o gás se torna líquido, e este se congela. A zero grau centígrado a água se solidifica, cessando, para ela, o “movimento browniano”... visto como tal movimento não se verifica nos sólidos. E o gelo é ato, ou é potência? Digamos que o gelo é potência visto que se encaminha ao ato seguinte: o estado líquido; mas o ato seguinte não é ato, e sim, potência, ou seja, aquele em que se verifica o mo-vimento desordenado, confuso, caótico... Ora, o caos não é ato!

Assentemos, então, que o gelo é ato, porque estável, porque formado por estruturas geométricas, por arranjos maravilhosos que são os multiformes, harmônicos e lindos cristais de neve. Esses embevecedores atos da natureza visíveis no microscópio, essas jóias delicadas de rara beleza, se desandam de atos, se derrocam, se

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desfazem em líquido monótono, onde as moléculas, de novo, passam a entrechocar-se desordenadamente, em puro “movimento browniano”? Sim. Então, o princípio metafísico mostra-se ao avesso; provemos a conseqüência: a água líquida é potência que se encaminha ao ato cristais de neve, não pela interferência de algo já em ato que é o calor, mas pela ausência deste. Os geométricos cristais de neve são atos; pois, pela intervenção de algo também ato, que é o calor (raios infravermelhos), se desfazem de cristais geométricos, harmônicos e belos, em água trivial sem beleza nem poesia, e suas moléculas, antes organizadas, se desordenam no caos do “movimento browniano”. Pela recíproca, o caos molecular se organiza, precisamente quando o ato-calor se ausenta. Se a água-potência se torna ato (cristais de neve) porque o algo já em ato se ausenta, como enunciar como infalível, e de aplicação generalizada, aquele princípio metafísico? Não nos vá alguém dizer que o frio é o ato que interveio no processo da transformação! O frio é ausência de calor, como o silêncio é ausência de som, como as trevas são ausência da luz, como, segundo Santo Agostinho, o mal é ausência do bem. Ora, uma ausência, sendo um vazio-de ser, um nada, não pode ser algo, e menos ainda, algo já em ato...

Gustavo Corção achou jeito, "mediante alguns raciocínios encadeados", de acomodar o caos do “movimento browniano” observável, míscroscopicamente, na água, com a estabilidade da panela, deixando explícito seu pensamento de que a ordem (panela) é assegurada pela desordem (moléculas em confusa agitação). Justificar esta posição em face de seu princípio metafísico é impossível porque, sem o querer, Corção anunciou um princípio evolucionista que diz: da desordem nasce a ordem, do simples, o complexo, do homogêneo, o heterogêneo. A natureza quer variar, e por isso, nunca se repete. Não é uma técnica que trabalha com método, mas, como o afirma Fritz Kahn, uma artista inflamada do gênio criador Vejamos isto nalguns exemplos:

Os atualmente onze corpos químicos transurãnicos, que vão do número atômico 93 a 103, e não só estes elementos artificiais, como também os demais corpos químicos radioativos naturais, têm, cada um, um tempo seu de desintegração. O trício é um isótopo radioativo do hidrogênio que se reduz à metade, em 12 anos e meio. Mas tomemos o conhecido carbono radioativo 14, tão útil à arqueologia para a determinação das idades. O Carbono 14 se reduz à metade aos

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5.600 anos; estará reduzido a um quarto aos 11.200 anos; a um dezesseis avos aos 22.400 anos. "Num grama de carbono dum organismo vivo, desintegram-se num minuto cerca de 15 átomos de carbono 14". A isto, perguntamos: por que estes átomos se desintegram agora, outros, daqui a um minuto, e assim sucessivamente, até que toda a radioatividade se tenha esgotado, como é o caso do carvão de pedra e do petróleo? Por que este átomo se desintegrou neste instante, e este outro, seu parceiro, levará 22.400 anos ou mais para o fazer? Resposta: porque ambos átomos são diferentes em sua estrutura interna. E nesta intimidade dos átomos tudo o mais segue esta regra de irregularidade. "Na microfísica reina por conseguinte a lei da estatística, dá probabilidade. Cessa ali o determinismo.

Tal como o desordenado “movimento browniano” produz a estabilidade da panela, segundo o afirma Corção, toda aquela estabilidade, harmonia e beleza cósmicas relatados por ele em seu segundo artigo de "O Estado de S. Paulo" ao referir-se à ordem reinante no universo em grande, repousa na irregularidade e atomismo das partículas. O universo é uma grande panela cheia de átomos os quais se formam de partículas cujo comportamento é imprevisível para a microfísica; e ainda, nela, onde houver matéria líquida ou gasosa, ali estará presente o desordenado “movimento browniano”; onde houver átomos, a natureza estará jogando com a irregularidade e com a estatística das probabilidades. A conclusão a que chegou Corção "mediante alguns raciocínios encadeados", está correta: "aquela pura e desordenada agitação (...) é justamente o que assegura a estabilidade" da panela, seja a que está colocada no fogareiro, seja a panela do universo. Da desordem nasce a ordem e do caos o cosmo; a desordem está cercada pela regularidade, pela lei. Por que, logo, se encrespar contra os evolucionistas quando estes afirmam que o universo teve sua origem no caos, e que este se organizou de baixo para cima, pelo método do acaso, empregando a estatística dos grandes números em que ocorrem as probabilidades, tal qual a loteria das bolas de Corção?

Se subirmos deste baixo nível ao alto e complexo da vida, e fizermos o mesmo jogo das bolas coloridas, verificaremos que os genes se misturam sem nenhuma ordem pré-estabelecida, do que resulta não só variações contínuas nas espécies, senão também mutações que se dão ao acaso. A teoria moderna da Evolução

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Biológica admite que o fenômeno evolutivo acontece segundo cinco processos integrados: 1) Mutação gênica; 2) Variações na estrutura e número de cromossomos; 3) Recombinação genética; 4) Seleção natural; 5) Isolamento reprodutivo. Os três primeiros são indispen-sáveis às variações ou mudanças, e se dão ao acaso. A seleção natural e o isolamento reprodutivo orientam populações de organismos por caminhos aos quais hão de percorrer; o lema é: adaptação ou morte! Fora estes cinco, há ainda a considerar dois outros fatores; a imigração e a hibridação. Os três primeiros fatores, como se dão ao acaso ou por acaso, lembram o movimento browniano da água da panela de Corção; como a panela põe limites à desordem, é equivalente a seleção natural e ao isolamento reprodutivo. Vejamos um caso apenas de variabilidade genética que é o “crossing over”.

Na ocasião da meiose (divisão-redução das células sexuais), em certo momento, os 48 cromossomos humanos formam dois pares de 24 que se defrontam. Depois esses dois pares se aproximam, se encostam e se enroIam mutuamente como uma corda. No ato seguinte, a corda se fende longitudinalmente, e cada metade da corda se afasta em definitivo. Esta operação provoca o baralhamento dos genes, do que resulta não haver dois óvulos nem dois espermatozóides iguais quanto ao conteúdo genético. Que é da ordem aqui? que é do método, senão o da loteria e o do acaso? Contudo, “mediante alguns raciocínios encadeados", concluímos que desta desordem nasce a ordem, porque a ordem, a harmonia, o cosmo não se faz pela união de iguais, mas pela integração de diferentes, podendo as diferenças irem até a oposição; e por este método do calidoscópio, a natureza consegue sempre o diferente, e nunca, o igual. Por que? porque só os diferentes se atraem, se unem, se integram, se amam. Então, o método da natureza conforme a tese evolucíonista, é o do acaso, o do ensaio-e-erro, no criar; mas, depois, a seleção natural age como peneira, como filtro; e a seleção é sempre orientada a determinado fim. E o fato de o fim em geral ter culminado num ser que se fez capaz de saber tudo isto, e, sobretudo, de sentir, de querer e de amar, leva-nos à intuição de urna fase inversa de queda e desfazimento de uma ordem diretamente criada por Deus.

Do caos (eis de novo o tema a repetir-se) saiu a ordem, da desordem, o universo, e, dentro deste, os seres ascenderam até o homem que, por fim, se fez capaz de pensar, de sentir, de amar. O filtro seletivo funciona como a ordem da panela que limita e contém a

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confusão molecular, ou como a harmonia cósmica do universo em grande, invocada por Corção. Ora bem: se o próprio Corção teve de concluir, "mediante alguns raciocínios encadeados", que a ordem e estabilidade da panela resulta do desordenado “movimento browniaano” da água no seu interior; se, como o demonstra a microfísica, no interior do átomo impera a “lei da estatística" e o "cálculo das probabilidades"; se cessa aí, o determinismo da lei, em razão do que "alguns cientistas já definiram esse resultado como uma porta «para a liberdade»"; se, como sabemos, a lei é o limite para a liberdade e para o arbítrio; a que fica reduzido o tal de princípio metafísico enunciado por Gustavo Corção e que diz: "Nada passa da potência ao ato, sem a intervenção de algo já em ato"?

Segundo a doutrina da evolução, a potência pode atualizar-se sem a interferência de algo superior já tornado ato. Mas é indispensável que os elementos inferiores utilizados na constituição do superior, sejam atos. O método seguido para construir o superior utilizando-se do inferior, é o do acaso; por esta razão, a coisa superior só se forma do inferior, só se atualiza, só se faz ato, quando a loteria acerta o seu número, e isto significa: preencher as condições da lei. Não nos fuja da memória que a lei, como essência que é, como forma do fenômeno, é intemporal, inespacial, incausal, etc. Logo, não há dizer que a lei surge das coisas que se arranjam por si mesmas por acaso, senão que, pelo método do acaso as coisas tentam encaixar-se, e só o conseguem quando acertam com o estabelecido pela lei. Podemos, portanto, como já o fizemos atrás, empregar a própria linguagem de Aristóteles e definir: evolução é a atualização progressiva, e por partes, daquilo que se acha potencializada no não-ser.

O não-ser, portanto, não é um nada, ou vazio absoluto; o não-ser é um cheio de potencialidade, e apenas vazio de atualidade. Até Platão, já no fim dos seus dias, acabou por compreender isto. Já na velhice, "Platão retoma o problema e, na fase final de sua obra (particularmente no diálogo Sofista), considera o ser e não-ser como dois dos gêneros supremos dentro da hierarquia das idéias. E o importante é que Platão renova a noção de não-ser, entendendo-o não como um nada ou como o vazio: o não-ser seria o outro, a alteridade que sempre complementa o mesmo, a identidade”.

Nesta fase evolutiva, contrária à anterior, involutiva na qual os celículas caíram e se desfizeram por terem deixado de amar, por terem invertido o amor no egoísmo, queda que se fez de plano em plano até

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o medonho caos, nesta fase evolutiva do universo, o homem é a culminância de tudo aquilo que se foi atualizando na hierarquia, primeiro cósmica, depois biológica. Com o menor se constitui o maior; com o pequeno se edifica o grande; com o inferior se constrói o superior. A evolução trabalha erigindo de baixo para cima, e não, vice-versa. Na fase evolutiva que ora vivemos, não é o superior que, agindo sobre o inferior, o leva de potência a ato: é o próprio inferior, mas já atualizado, que entra no jogo do nível imediatamente superior, como as bolas lotéricas de Corção, e o jogo prossegue até enquanto não atingir o objetivo estabelecido pela lei intemporal que, por ser intemporal pré-está, como antecipação, a quaisquer coisas ou fenômenos; quer dizer que há uma ordem estabelecida desde sempre a alcançar; essa ordem co-é com Deus intemporalmente. Todavia, o método seguido por esta natureza segunda que sobe de baixo, é o do acaso, do ensaio-e-erro, do jogo lotérico das bolsas, do cálculo da probabilidade.

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O PONTIFICADO DA RAZÃO – X

Que significa a palavra pontífice? Fale Vieira: "Porque Anco Márcio fez a Ponte Sublícia, da ponte e de a fazer lhe formou Roma a dignidade de pontífice, cujo nome, antes ainda de a mesma Roma ser cristã, se uniu ao Sumo Pontificado. Tanto honra este gênero de fábricas a seus autores”. A ponte liga duas regiões, ou permite passar de um lado para outro e vice-versa, por sobre um rio ou um abismo. O Topos Uranos de Platão e a Jerusalém Celeste de Cristo se assemelham entre si, e ambos se mostram contrários, antagônicos, irreconciliáveis com este nosso mundo de mal, invertido ao negativo, suposto que aqueles Mundos Celestes de Platão, de Cristo são o direito e positivo.

O primeiro trabalho do pontífice consiste em fazer, ele mesmo, a sua ponte pela qual ele transita livremente do "antro das trevas ao foco da luz", isto é, "do antro das trevas" deste mundo nosso de caos e de mal, para "o foco da luz" representado pela Jerusalém Celeste semelhante ao Topos Uranos de Platão. Todavia, feita a ponte, construída a doutrina filosófica, ela pode servir a outros que repensem as verdades evidenciadas, com que a ponte vem a ser, já não eles, mas deles. Deste modo Cristo, Platão, Sócrates, Moisés, foram Grandes Pontífices porque construíram suas pontes que passaram a ser eles mesmos, e pelas quais outros pu-deram passar. Outra coisa não disse Cristo quando afirmou ser o caminho, a verdade e a vida, e que ninguém iria ao Pai, a não ser por meio dele. Só que este “dele" (pronome "ele" contraído com a preposição “de”) não é sua pessoa, mas, sua doutrina de amor vivo com a qual ele se confunde. Daí que, passar por essa ponte crística não é só crer em Cristo, mas, crer a Cristo, isto é, crer ao que Cristo ensinou; e ele ensinou como se faz para passar das trevas deste mundo para a luz do seu reino de amor. Cristo, como pessoa, não é o que salva; o que salva é o Cristo-Ponte, o Cristo-Doutrina. Donde vem: onde houver um santo inflamado pelo amor, espalhando o bem, tenha a religião que tiver, está passando pela Ponte-Cristo-Amor... e se faz também a si mesmo ponte para outros passarem. Passar pela Ponte que é Cristo, crendo ao que ele disse, é seguir os seus ditames, corrigir-se de mau, desinverter-se de dragão, de demônio, de diabo, de animal que todos somos, pelo menos em parte.

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Platão também construiu sua ponte, e passou a ser ponte, porque, como diz Vieira, "da ponte e de a fazer", formou Roma ainda pagã, a dignidade de pontífice. Platão fez sua ponte, pensando, meditando, estudando; feita esta ponte, Platão se tornou nela própria... para os que quiserem passar por Platão..., seguindo um caminho de racionalídade que é a filosofia. A ponte é sempre a doutrina... a qual se confunde com o homem, porque o homem é a sua obra, seja no bem, seja no mal. Platão empregou a razão, e Cristo usou a supra-razão, ou intuição, que mostra tudo claro de um lanço de olhos.

Grandes Pontífices, pois, são aqueles que fazem pontes, e, depois de as fazerem (porque o homem é o que faz), se tornam eles próprios pontes... para os que as queiram passar. Que ponte é essa? Pois é a que leva do "antro das trevas ao foco da luz"; a que liga este nosso mundo de trevas, de dores, de angústias, de danos, de caducidade, de mortes, à Jerusalém Celeste ou Templo da Verdade. A Verdade é o SER por excelência, objeto da filosofia..., nunca atingível, donde se dizer que a Maçonaria se ocupa, pre-cipuamente, com “a investigação constante da Verdade" (Constituição). Conseqüentemente, da Verdade, só se pode dar testemunho, isto é, falar a respeito dela, sem nunca, jamais, poder dizer o que ela é. Da Verdade, como do SER que é Deus, só se pode acercar por progressivas aproximações... como, aliás, nô-lo atesta a História. Ao filósofo, pois, cumpre dar a palavra para que ele execute esse serviço de aproximação, tão logo haja sido superada a concepção anterior. Nisto consiste o trabalho de fazer pontes, e nisto se cifra o ser pontífice!

Quem está no trono da Jerusalém Celeste? O Cordeiro de Deus que é Cristo; logo, ele é a Verdade, e o declara: "Eu sou o caminho a verdade e a vida". (João 14, 6). Pela mesma razão ele é "Alfa e Ômega, o princípio e o fim". (Apoc. 21, 6 e 22, 13). E a Pilatos, disse que veio dar testemunho da Verdade (João 18, 3), porque, da Verdade, não se pode dar definições, mas, apenas, dar testemunho.

Esta doutrina maravilhosa encontra sua primeira contradição, quando, a seguir, o mesmo (o Sacrificador) que afirmou antes ser o Templo da Verdade idêntico a Jerusalém Celeste, respondeu a uma pergunta mal formulada que é esta: "Que simboliza a Jerusalém Celeste ou Templo da Verdade?" Esta pergunta está mal formulada,

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porque ser não é idêntico a símbolo. A Jerusalém Celeste não é símbolo representativo de Algo ausente; ela é o próprio Algo presente, in concreto, em objetividade. O símbolo é aquilo que fica no lugar do ausente, e o representa. Quando dizemos: gato, ma-mífero, árvore, pedra etc., estamos usando, em nossa conversação, palavras-símbolos para substituírem os entes reais ausentes. Substituir o universo real pelo universo do discurso foi a maior maravilha criada pelo homem, a única que o elevou de animal à categoria de Homo sapiens. Os símbolos são conceitos abstratos ou generalizações que fazemos de certa classe de entes reais. A frase: a coruja é uma ave notívaga, afirma um fato verificável com quaisquer corujas, com as corujas em geral, todas simbolizadas num conceito único, num termo abstrato - coruja. Mas, se perguntarmos: o que simboliza a coruja? Neste caso, os entes reais, fácticos, existentes, que se chamam corujas, passaram, elas próprias, a simbolizar outras coisas, por exemplo, a filosofia, o mau agouro, a morte, conforme as crendices populares. A coruja de Minerva simboliza a filosofa, por causa do olhar deslumbrado que têm as corujas. O filósofo vive deslumbrado com tudo; nada lhe é prosaico, por causa de ele ligar tudo com a totalidade; tudo lhe é surpresa, ou ele se maravilha e se surpreende com tudo. Tem, pois, como a coruja o olhar deslumbrado.

Dado que o símbolo é aquilo que se põe no lugar do ausente real, objetivo, fáctico, existencial, vale perguntar: o Templo da Verdade ou Jerusalém Celeste são símbolos ou são entes reais? Diz o texto maçônico que analisamos que são símbolos, visto que uma e outra "simboliza o Templo da Razão". Então, o Templo da Verdade ou Jerusalém Celeste não são entes reais, e sim entes simbólicos que substituem o ente-de-fato que é o Templo da Razão. Real, objetivo, fáctico é "o Templo da Razão cuja luz simbólica entrevimos no grau de Aprendiz, etc.". Temos, agora, isto de surpreendente: o Templo da Razão é real, só que sua luz é simbólica. Se a luz é simbólica, que é do ente real que essa luz representa? Dí-lo o texto: essa luz simboliza ou representa o "progresso absoluto nas artes, nas ciências e em tudo que servir ao uso da vida, etc.". Que quer dizer: "progresso absoluto"?, que pusemos em destaque? Até agora sabíamos que o progresso é relativo porque jungido às coordenadas de tempo histórico e espaço geosocial. Agora o progresso ficou absoluto; ora, o absoluto é o fim que não tem mais para onde ir. Trata-se de um

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progresso que parou no seu limite de perfeição. Um progresso que não anda, que não progride, é um progresso que não é progresso, porque não se pode disjuntar a idéia de progresso da de movimento, da de transformação. Ora, só progride o que pode mudar-se, transformar-se, e só se muda e se transforma o que for re-lativo. Logo, o progresso é relativo por sua própria natureza ôntica ou de realidade objetiva. Que quer dizer, então, "progresso absoluto"?

Todavia, o Templo da Verdade ou Jerusalém Celeste que, para o Apóstolo de Patmos era a antevisão de uma Nova Idade, a da descida ao nosso mundo do Reino de Deus... que fará desta nossa velha terra uma Nova Terra, porque dominada e redimida pelo Amor; em lugar desta realidade, ainda utópica, antevista por São João; em vez disto, os Maçons Iluministas trocaram o sentido do Evangelho forçando-o a expressar realidade diferente; que realidade? Pois a que estamos vivendo hoje, ou seja, a vitória incondicional do Racionalismo... com todo o seu Cientismo, e seu Fisicalismo, o seu Tecnicismo, o seu Industrialismo, este que já passou a fase de automação e se encaminha para a robotização - O céu das comodidades materiais... sonhado pelos Maçons IIuministas do século XVIII já se instalou na Terra, fazendo do nosso, o século da “felicidade" (!?)...

E que ninguém nos increpe por estas e outras verdades contundentes que ainda virão! Para se poder corrigir um erro, é preciso mostrá-lo. E o fazermos, amparado pelo parágrafo 2.º da Declaração de Princípios das Grandes Constituições Escocesas, obrigatoriamente postos no Altar do grau 19, que diz: "§ 2.º - Não impõe limite algum à investigação da verdade, e é para garantir a todos esta liberdade que ela exige de todos a tolerância"

No entanto, já o vimos, a Jerusalém Celeste ou Templo da Verdade é idêntico a Templo do Amor, não só porque a Verdade é o Amor, como porque no trono daquele santuário está posto o Cordeiro de Deus, Jesus que é a representação zoolátrico-antropológica do Amor vivo, atuante, expresso por todos os atos da vida de Cristo que, por isto, se coloca frente aos homens como modelo e exemplo a ser seguido. Entrar na Jerusalém Celeste é salvar-se... deste nosso mundo de trevas, o que só é possível pelo desenvolvimento do amor, donde se segue que fora do amor não há salvação. Agora vêm os Maçons Iluministas do século XVIII e dizem que

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aquele é o Templo da Razão; acaso a Razão é o Amor?, a Razão é a Verdade? O Amor e a Verdade são um fim em si mesmos, e quem chegou a eles atingiu o termo final da jornada, não tendo mais para onde subir, visto não haver nem transamor nem superverdade. Do Amor e da Verdade se pode dizer que são supremos; acaso, da Razão, se pode dizer o mesmo? Não se pode! E por que?

Porque a Razão é meio, é ponte, e não, fim; disseram-no os próprios Maçons Iluministas, pelo que se fizeram incoerentes; ei-lo: "A razão habilita a conhecer os elementos constitutivos da verdade”. Sendo a Razão UM MEIO... para se conhecer os elementos que constituem a Verdade, e não, um fim em si mesma, como é que um simples meio, instrumento, método (método racional) pode fazer-se absoluta, tornar-se uma deusa (a deusa Razão dos franceses do século XVIII), e ter um trono? Já se sabe, então, sob que inspiração intelectual, e quais os Maçons que redigiram o Livrinho dos Grandes Pontífices. Não é isto que está escrito, quando os Maçons IIuministas declaram que é "a Razão única filha do Eterno, imortal como a Verdade que lhe serve de trono"? Agora, a Razão é a deusa, filha do Eterno, e a Verdade passou à simples categoria de trono da deusa...

Correram-se os tempos, e a salvação científica mostrou-se tão falaz, propiciando meios tão poderosos para os assassínios em massa e para as retaliações maciças fundamentalmente tecnológicas, que nos causa surpresa o texto escrito há duzentos anos, ainda hoje lido por ler, sem nenhuma meditação... Há duzentos anos se pensou que o Racionalismo Iluminista fosse o sistema "único que está em harmonia com a sabedoria do Eterno e as aspirações da alma". No tempo da redação deste texto, a Dou-trina da Evolução estava ainda sendo gestada nos espíritos de vanguarda, e o livro "Origem das Espécies" de Darwin só veio à luz em novembro de 1859, sessenta e três anos após a formação do grau 19. Até então dominara o Críacionismo, e é por isto que se escreveu que a “Razão é um dom divino", quando, na verdade, ela é dura conquista humana, dado que a Razão tem sua história biológica, e, depois, história humana. "Eu penso (diz Ortega) que é urgente inverter a fórmula de Hegel e dizer que, bem longe de ser a história "racional", acontece que a própria razão, a autêntica, é histórica". Provado que a razão não é dom divino, mas conquista individual duramente merecida, não há por que afirmar que esse

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mero INSTRUMENTO que nos "habilita a conhecer os elementos constitutivos da Verdade", é "única filha do Eterno, imortal como a Verdade que lhe serve de trono”. Já, agora, como se vê, a Razão é que é a sabedoria, degradando-se a Verdade a condição de simples trono da deusa, perfeitamente de acordo com o ideal do Iluminismo. Diz que ela "não tem princípio, nem fim", quando seu princípio se remonta ao tempo em que o cérebro se avolumou a partir dos primatas, invadindo-lhes a área frontal a partir do pré-homem Australântropo (Australopiteco), já incipiente Homo faber e possível rudimentar Homo loquens, e se avantajou, soberanamente, no Homo sapiens de há uns três milhões de anos a esta parte. Diz que a razão não tem fim, quando ela, como vimos, tem sua luz crepuscular e começa na escala animal, este que já "raciocina" tardonhamente pelo ensaio-e-erro, tornando-se ela, depois, veloz e abstrata no homem médio e acaba, termina, finaliza na intuição do gênio, onde ela se faz aos relâmpagos de luz, para ser luz contínua na mente sábia de um querubim.

O Alfa e o Ômega diz respeito ao Amor entronizado no santuário da Jerusalém Celeste sob a forma do Cordeiro de Deus que é Cristo; todavia, numa apropriação indébita, declararam os Maçons IIuministas que a Razão é o Alfa e o Ômega, a qual, de simples serva da Verdade, se fez senhora absoluta; pior ainda: a Razão se fez deusa, e a Verdade, apenas, seu trono. E os Maçons IIuministas, no século XVIII, como não enxergavam o porvir, mas imaginando-o como pleniluminoso e feliz, lançam um desafio: "Se quereis uma prova, volvei, do alto desta montanha, uma vista retrospectiva para o quadro desastroso do passado". Passaram-se duzentos anos daquele presente cujo futuro é o nosso hoje; e por ventura aquele dito não é atual, podendo ser repetido, ipsis litteris, agora?, neste nosso tormentoso momento histórico?

Pois, volvamos, então, ao passado o olhar, não indo além do Século das Luzes (séc. XVIII), e que é que vemos? Iludido pelo Cientismo, pelo Fisicalismo, pelo Progressismo, pelo Tecnicismo... que prometiam ao homem um céu na Terra, o homem criou, ao contrário um inferno. Como a ciência não pode alcançar os fins últimos; como nem mesmo pode explicar seus fundamentos, seus postulados, improvados e improváveis, então, até mesmo tais fundamentos científicos, como os das matemáticas, TÊM DE SER ACEITOS DE FÉ. Mas estes crendeiros da ciência, "beatos da Razão"

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(Ortega), riram-se da fé, da religião, base da moral. E daí? Daí o homem continuou tão satânico e demolidor como o fora no passado mais remoto... para onde, do alto da montanha, se manda lançar o olhar! Donde vem que se pode escrever hoje, parodiando os iluministas de outrora: "o homem se julga inspirado" na Ciência, na Razão que se fez absoluta no lugar de Deus, "quando a paixão apenas o cega”, tal qual o cegava antes, no passado. Não podendo achar Deus; porque Deus se acha do lado oposto do da fragmentação que a Ciência produz, e tanto que ela cada vez "sabe mais e mais do menos e menos" (Will Durant), não achando desse lado mais do que o acaso e o vazio, o Homo rationalis sentenciou, inchado de vaidade: "Deus morreu"; "o trono de Deus é uma poltrona vazia!".

No passado anterior ao Iluminismo, o homem metafísico, "enganado” por "sua” consciência, como por juízos precipitados de "sua" inteligência, “disse”, ao descobrir o segredo da palavra perdida - "Iustitia nunc reget imperia" e, em vez de paz, existe a guerra, e a “iniqüidade ocupa o curul da Justiça". Pois bem: veio o século XVIII, e com ele a Idade da Razão, da Ciência positiva, do Positivismo, do Cientismo, e o "Homo technicus", pode hoje dizer: "A justiça, agora, rege e impera"? Digam-no as duas Guerras Mundiais!; diga-o a Alemanha em que Hitler matou seis milhões de judeus, afora, ainda os homossexuais, neuróticos graves e idiotas da própria Alemanha!; diga-o o Dr. Joseph Mengele que passou para a história com a alcunha de “anjo da morte”, por causa das suas mais que dantescas e atrozes "experiências científicas" praticadas, sobretudo, em crianças judias!; digam-no os seis milhões de russos mortos de fome, quando Lenin lhes confiscou toda a produção agrícola!; diga-o, mais recentemente, o grande gorila Idi Amin Dada que, pessoalmente, saciava o seu sadismo em vítimas indefesas. Seu carrasco sem entranhas usava, a seu talante, ora o martelo, ora o facão, nos prisioneiros; e por este modo e por outros mais, trezentas mil pessoas foram trucidadas em Uganda! E Bokassa? Este enchia sua geladeira de cadáveres dos que mandava executar, para os ir devorando aos poucos. Este monstro mandou assassinar trinta meninos escolares sob o pretexto de que se recusaram "trajar os uniformes" estabelecidos! Diga-o a polícia tailandesa que descobriu, há pouco, um grupo de contrabandistas que seqüestrava bebês, arrancava-lhes as entranhas, e os recheava com drogas a serem contrabandeadas através da fronteira com a Malásia.

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O mundo iluminista de que somos autênticos herdeiros, principiou a banhar-se em sangue, já na Revolução Francesa, porque a semente que já se plantava então, não era a da Justiça, mas a do Terror... não só contra a nobreza, senão, também, contra os próprios revolucionários, pelo que se cunhou a frase célebre: "A Revolução devora os seus próprios filhos!".

O ideal de Liberdade... que tinha de nascer da Igualdade, tal como esta decorre da Fraternidade... face a paternidade comum de Deus para com todos os homens, em vez disto, nasceu de si mesma, por geração espontânea; como a Liberdade não brotava de nada, e assim, sem se subordinar a nada, encabeçava o ternário maçônico, por este motivo, deu azo ao surgimento da doutrina econômica chamada laissez faire (deixa fazer) que é a da Liberdade Econômica. Que se seguiu disto? Pois seguiu-se que o Industrialismo na Inglaterra, Alemanha e outros países industrializados obrigavam crianças de dez anos para cima a trabalharem dezesseis horas por dia num regime de salário-de-fome e sem direito a nada. E a isto a Maçonaria assistiu impassível, se não é que até houve maçons industrialistas opressores. Quem reagiu à tamanha barbaridade foi Karl Marx com o seu Socialismo, obrigando os países Capitalistas a cercearem a gana dos detentores do poder econômico, impondo-lhes o que se chamou, desde então, Intervencionismo Estatal. Cada vez mais, daí em diante, foi cessando a liberdade em economia política, para que, harto, todos sabiam que só são livres o sábio e o santo!, nunca, porém, a besta fera que o homem ainda é.

Eis que o Direito, em verdade, foi conculcado em todo mundo apesar de a Razão ter erguido "seu Estandarte pelo braço poderoso dos Grandes Pontífices", o que vale perguntar: como é que esse Estandarte foi erguido? A história, de duzentos anos a esta parte, parece cumprir o Apocalipse, e agora se sabe que uma das pragas medonhas que o anjo tinha na taça, e a derramou sobre o mundo, foi a pretensa salvação pela ciência, salvação pelo tecnicismo, pela Razão com base só no empirismo, ao invés de fundada em Deus.

Harto, teve razão Shakespeare para dizer, por um seu personagem, que "a história é uma anedota contada por um idiota". O sangue derramado no pretérito "em nome de Deus, da Caridade e da Humanidade, da filosofia e dos princípios abstratos do Dever e do Direito” é nada em face do que se derramou depois, por causa

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da Razão empírica... no instante mesmo de ela se instalar entre os homens, prometendo-lhes fazer do seu inferno terrestre um paraíso...

A Razão empírica, como o demonstramos, fracassou no seu intento de propiciar a salvação pelo Cientismo. Não obstante, é pela Razão que o homem está conseguindo safar-se da noite escura da barbárie, caminhando para a luz. Dir-se-á que não!; que é pela Fé, pela Religião que a besta humana vem sendo domesticada. A isto, respondemos: a Fé é um substitutivo da Razão para os que ainda não sabem pensar. Quem foram Moisés, Zoroastro, Lao-Tsé, Buda, Confúcio?, senão uns pensadores que armaram seus sistemas, suas doutrinas, pensando, meditando, lucubrando, estudando o Grande Livro de textos, comum para todos, que se chama NATUREZA, MUNDO, UNIVERSO? Esse arquiprodigioso, arquimagistral e enigmático Livro de texto é o mesmo, tanto para os filósofos como para os fautores de religiões. E ainda mesmo quando se quer contestar, negar isso que está aí à mão, que é a NATUREZA, criando um sistema em oposição a ela, ainda assim, ela terá de ser não só o ponto de partida e de chegada, como ainda a referência. Por isto, "o feiticeiro é o primeiro filósofo, e a religião é o berço da metafísica". (...) E "na realidade, metafísica e religião ocupam o mesmo espaço mental. E essa vinculação não acaba jamais, em razão do que "o filósofo tradicional, companheiro de viagem do teólogo, vê em Deus o objeto supremo de uma reflexão, que, toda quanta, se organiza em relação a ele. (Gusdorf).

A diferença entre a religião e a filosofia consiste em que o fautor de religião monta sua filosofia em máximas e as impõe pela fé, por causa do atraso das massas às quais prega. Já o filósofo supõe que fala aos que já sabem pensar, e, por isto, mostra o seu sistema em toda a sua estrutura, desde o primado inicial até as últimas conseqüências. Portanto, como ninguém tira nada do vácuo, tudo é filosofia...; filosofia ensinada a racionais é Razão; filosofia ensinada, por sentenças, a homens tardos de en-tendimento, é religião, é Fé.

Portanto, desde quando surgiu o primeiro xamã, começou-se a construir a Ponte "que há de nos conduzir do antro das trevas ao foco da luz". Primeiro a Ponte era só a da Fé; agora há também a Ponte da Razão. A Ponte racional para os que puderem pensar, e, ainda, Ponte da Fé para os que precisarem ser conduzidos por sugestão,

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esta que consiste na aceitação de uma idéia independente de demonstração, mas, pura e simplesmente, com base no princípio de autoridade. Assim, o racional, o filósofo pede razões e pergunta: por que? Já o crente místico, em lugar de razões, pede autoridade e pergunta: quem disse?

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A CRENÇA NO DESCONHECIDO – XI

"A fé no desconhecido é patrimônio da ignorância"? E pode haver fé no conhecido? O que pode ser conhecido se chama ciência. Todavia, o homem é obrigado a lidar com coisas que não se reduzem a princípios de razão, hajam vista a moral e a história. Haja vista o sonho de Augusto Comte que escreveu: "Mostrarei que existem leis tão determinadas para o desenvolvimento da espécie humana como para a queda de uma pedra". Não há tais leis nem na biologia, quanto mais nas chamadas ciências sociais que enfocam o humano. Apesar de maçom, Augusto Comte (1798-1857) desconsiderou o lado Liberdade do ternário maçônico (Liberdade, Igualdade, Fraternidade) proposto por Luiz Cláudio de Saint Martin (1743-1803), lema corrente nas Oficinas, antes que a Revolução Francesa o tomasse da Maçonaria. Não viu Augusto Comte que onde há lei científica, em lugar da liberdade, há o determinismo. Ora, se a espécie humana tem o seu desenvolvimento prefixado por leis, nada há a fazer, nem é preciso planejar nada, visto como tudo será como tem de ser por uma lei ou determinismo inexorável. Eis aí o ideal que se chamou Progressismo.

O homem olha a Natureza e a enxerga movente; então, procura a forma, ou essência, ou idealidade que fixe essa realidade fluente no enunciado duma lei que até pode ser expressa em fórmula matemática. O determinismo da lei, pois, é uma negação da liberdade.

Mas, como o homem é livre, por isso não há determinismo "para o desenvolvimento da espécie humana", a não ser as leis civis que o próprio homem criou, e pode, por isto, revogá-las quando lhe aprouve. Portanto, uma coisa são as leis da natureza, e, outra, as leis criadas no campo humano para reger a sociedade. E há mais isto: tais leis, como as leis morais, hão de ter um fundamento fora do homem; e tal fundamento não pode ser demonstrado, e funciona tal qual um postulado matemático... o qual, também, não se demonstra... e é, por isto, aceito de fé. Contra a fé se costuma opor a razão, do mesmo modo que a religião se opõe à ciência. No entanto, a razão como a ciência ficam na dependência de um ponto de partida inicial, de um fundamento, que não pode ser provado. A mais excelsa das ciências é a matemática; e, pois, dado que a

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matemática se apóia em postulados e axiomas improváveis, tais postulados e tais axiomas têm de ser aceitos de fé. Demonstrá-los é impossível, porque demonstrar é reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida. E a que coisa conhecida se pode reduzir o postulado? Se isto fosse possível, não se chamaria postulado, que postulado vem de postulare que quer dizer pedir; pede-se que se con-ceda, SEM PROVAS, que isto é assim e assim! Quer dizer: aceito de fé. A ciência para caminhar tem de considerar suas posições basilares: então, se pergunta: o que é a matéria?, o espaço?, o tempo?, a causalidade? Além de ela própria fazer metafísica ao assentar estas posições iniciais, não as pode nem definir, nem provar. Santo Agostinho já dizia: "se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me perguntar o que é o tempo, eu não sei o que é o tempo". Tal como o tempo, assim é o espaço. Euclides supôs o espaço plano e infinito para todos os lados; sobre tais planos podiam-se traçar paralelas as quais, em sendo cortadas por uma secante dariam ângulos opostos pelo vértice iguais; ângulos internos e alternos iguais; ângulos externos e alternos iguais, e sobre isto se erigiu toda a geometria. Tudo, portanto, ficou na dependência de o espaço ser plano e infinito. Vieram Lobatschevsky, Bolyai, Riemann, Gauss, que supuseram espaços de formas diferentes, tais como o esférico, o elíptico, o parabólico, o hiperbólico, sobre os quais fizeram outros postulados e construíram outras geometrias não-euclidianas. Por causa disto, o matemático e maçom D'Alembert falou em "escândalo da geometria". Então, dentre tantas geometrias, qual é a verdadeira? É a que corresponder à forma do espaço. E qual é a forma verdadeira do espaço? Contudo, é preciso crer sem provas... que o espaço tem esta ou aquela forma, para, a partir daí, construir o postulado cuja aceitação é uma crença no desconhecido!, um puro ato de fé!...

Para fugir às dificuldades em que nos metem os postulados, os matemáticos inventaram as definições construtivas "que criam, livremente seu objeto numa espécie de vácuo intelectual. Então o matemático proclama: "chamo triângulo a figura determinada de tal e tal maneira...", - e, de ora em diante, o triângulo existe como ente de razão, cujas propriedades derivam necessariamente de sua fórmula construtiva”. (Gusdorf). Chamo triângulo à figura tal?, e por que a chamo? Chamo porque sim!, chamo porque lhe dei o ser, sendo eu o seu fundamento! Que é, então, da objetividade da matemática, se ela

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fica sendo uma ciência projetiva do próprio homem que a cria toda, quanta, por meio do seu Psicologismo? E assim que, como se lê em Gusdorf, "cada matemático apela para uma metafísica, escreve Bouligand; esta varia consoante as pessoas, e, no conjunto, oscila entre o pólo da simplicidade unida à generalidade máxima (...) e o pólo da construtibilidade, que jamais deixará de fascinar os práticos dos problemas." E prossegue:

"Por seu turno, o ilustre físico L. de Broglie realça as mesmas implicações inevitáveis entre a ciência e a filosofia: A ciência, escreve ele, em seu desenvolvimento é necessariamente levada a introduzir em suas teorias conceitos dotados de valor metafísico, tais como os conceitos de tempo, de espaço, de objetividade, de causalidade, de individualidade, etc. Empenha-se a ciência em dar de tais conceitos definições precisas, que se enquadrem nos métodos por ela empregados, e em evitar toda e qualquer discussão filosófica a respeito dos mesmos; talvez, procedendo assim ela faz muitas vezes metafísica sem o confessar, o que decerto não é a maneira menos perigosa de fazer metafísica".

Como se vê, no plano científico, não matemático tem-se que apelar para o não provado, e, portanto, desconhecido, o qual se tem de aceitar de fé.

Vejamos Skinner com sua teoria do reforço. Seu ponto de partida são os reflexos condicionados de Pavlov, aos quais ele acrescentou o conceito de condicionamento operante. Não se trata mais, como em Pavlov, de reação a um estímulo, como, por exemplo, o toque de uma campainha desencadeia a salivação no cão. Agora, um rato ou uma galinha ficam condicionados aos resultados de suas ações, e não mais, a determinados estímulos. O rato aprende a mover uma alavanca que abre a portinhola do alimento. A galinha aprende a dar um beliscão numa pequena trouxa de pano presa a um fio que abre a porta da ração. Este condicionamento operante é que põe, também, os homens em ação. As operações prazerosas, gratificantes, são reforçadas, no passo que as que causam desprazer, desgostos, sofrimentos, são postas de lado. Cada homem tem lá suas múltiplas e complicadas “alavancas”, e todas as suas ações são condicionamentos operantes... com reforços, por meio da repetição, naquilo que dá prazer.

E já vai Skinner à prática, extrapolando, perigosamente, suas

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experiências com ratos e galinhas para os níveis humanos moral e social, e isto foi "subir o sapateiro acima das sandálias". Defendeu ele um ensino programado e aplicado aos educandos por meio de máquinas de ensinar por ele desenvolvidas. "Para Skinner, de acordo com os princípios da teoria do reforço, é possível programar, o ensino de qualquer disciplina, tanto quanto o de qualquer comportamento, como o pensamento crítico ou a criatividade, desde que se possa definir previamente o repertório final desejado”. O destaque na citação é nosso, e o fizemos para acentuar a impossibilidade dessa definição prévia do repertório desejado. Porque fica na dependência de QUEM vai DESEJAR tal repertório, e baseado em QUE?, para depois DEFINIR as metas e, finalmente, PROGRAMAR o que há de ser e como há de ser. QUEM vai DESEJAR o QUÊ, fundado em QUÊ, e com que FINALIDADE? QUEM vai DESEJAR? Será, acaso, algum Hitler?, algum Lênin?, ou algum Sócrates ou Platão? Quem vai responder estas questões, senão a filosofia? E sendo Skinner mero pes-quisador científico, como poderia responder a estas perguntas sobre as quais se devem debruçar os filósofos? Mas tentou-o, Skinner, e vejamos no que deu:

Para realizar o seu desiderato, pelo menos em projeto literário, Skinner escreveu um romance, o Walden II, em que retrata uma cidade ideal. Ali o homem tem uma vida fundamentada no comportamentismo, no puro condicionamento operante, onde as tradições foram substituídas por planejamentos amplos e globais. Quem planejou? Skinner. Em que se baseou ele para planejar? Em si mesmo! O que ele tinha por verdadeiro, por bem, isso era bem, era verdadeiro. O que ele tinha por mau e errado, isso ficou sendo errado e mau. Robotizados os homens, ou assemelhados a formigas, termitas e abelhas, tudo passou a ser puro condicionamento segundo programação antecipada, até para a "criatividade" orientada e de antolhos, até para o destemor da morte, até para a crença de que "morreu, acabou"!, até para o alijamento da idéia de Deus do convívio humano. O único absoluto desse sistema é o próprio Skinner, ou quem as vezes lhe faça.

Segundo Skinner, QUEM pode DESEJAR e impor o DESEJADO se faz a medida, o metro, para todas as coisas, conforme o ideal de Protágoras para quem "o homem é a medida de todas as coisas". Cada estadista, cada governo discricionário

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tentou empregar o método de Skinner para criar vários tipos de formigueiros humanos: Hitler queria que o seu fosse formado só de formigas loiras, arianas; para Karl Marx, as formigas haviam de ser todas operárias; para o ideal do Cientismo, as formigas haviam de ser laboratoristas. Só uma espécie de formigas seria impossível no mundo comportamentista: as formigas filósofas. Por que? Porque os filósofos só se deixam condicionar pelo que eles próprios criaram, ou pelo que adotaram de outrem com plena liberdade de escolha!

O comportamentismo de Skinner é uma variação da tese de Lamarck para quem, tal como todos os seres vivos, o homem também é um produto do meio. Crentes de que isto era verdadeiro, os bolchevistas quiseram plasmar seus homens pela educação comportamentista... como convém ao Socialismo. Como Lamarck estava errado face à prova genética... pela qual a Natureza se mostra livre e imprevisível!... para variar e criar sempre o novo, por isto, nenhum comportamentismo opressivo, asfixiante, discricionário, despersonalizador, conseguiu instalar-se na Terra.

O método de Skinner foi idealmente concretizado no romance de Aldous Huxley, levado para a tela do cinema com o título, no livro e no filme, de "Admirável Mundo Novo". Apesar de nesse mundo os homens e mulheres serem produzidos em provetas, para depois ser encubados em sacos plásticos postos em estufas; não obstante tais homens e mulheres serem deformados somaticamente antes do nascimento, para depois de nascidos, irem sofrer o efeito condicionante das prolongadíssimas sugestões (hipnopédia), apropriadas a cada classe de homens, desde os alfa-mais (A+) até os idiotizados ipsilones... que eram verdadeiros animais de carga, empregados nos serviços rudes, grosseiros, inferiores; a despeito de tudo isto, havia dissidentes que, como os intelectuais russos, se descondicionavam pelo uso do pensamento autônomo auto-criativo, sobretudo entre os alfa-mais, e que, por esta razão, eram recondicionados, se possível, ou, se não, banidos para lugares inóspitos. Tal qual na Russia, os intelectuais iam para os hospitais psiquiátricos a fim de sofrerem lavagens cerebrais, pois quem discordasse da "verdade" imposta, só podia achar-se mentalmente desequilibrado(!?).

Contudo, a Fordlândia (assim se chamava a cidade) possuía uma metafísica que era o Tecnicismo elevado à condição de absoluto, ponto de partida e referência para tudo, como é o Ser ou

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Deus. Ford (Henry Ford) foi escolhido como sendo o implantador da tecnologia no mundo, e, por isto, seu nome era pronunciado com sacra reverência. Por toda parte havia fotografias e esculturas do automóvel Ford T, e todos os da cidade se cumprimentavam desenhando um "T" no ar, com o indicador. O governo tecnocrático, absolutista era sempre representado por um alfa-mais, com o título nobilíssimo de Sua Fordência. Os livros, todos do passado, eram conservados, mas só tinha acesso a eles Sua Fordência, sendo interditado aos demais, por causa do efeito descondicionante que eles produzem, com força de condicionar, depois, os homens, noutras formas de pensar e de conduta indesejáveis.

Como se vê, a partir das experiências científicas com ratos e outros animais, chegou, Skinner, à doutrina do condicionamento operante o qual se generalizou na filosofia comportamentista; e tendo o comportamentismo, idealmente, sido aplicado à sociedade humana, tirou ao homem toda a liberdade de escolha, visto fazer dele um animal robotizado. E tudo isto tinha por base um homem, Skinner, que ficava como deus!; pois tudo o que este homem achasse certo, era certo; o que achasse errado, errado. E para achar isto ou aquilo, em que se baseava Skinner? Pois baseava-se só em si mesmo, e tudo o que achasse, tirava do seu ACHADOURO que era a sua mina encantada qual a de Protágoras que, também, se considerava “a medida de todas as coisas”.

Eis as últimas conseqüências da crença no Cientismo... o qual, apesar de o pretender negar, também crê no desconhecido... que é os primeiros princípios, postulados e axiomas! Depois do quanto ficou exposto, que sentido tem a sentença dos Maçons Iluministas "A crença no desconhecido é patrimônio da ignorância” ?

Onde estiver a última instância de apelação, sem nenhuma possibilidade de recorrência a nada acima dela, essa fica absoluta; ou seja: sendo única, não tem com que se relacionar, tornando-se ela o referendário de tudo; ou ainda: por não ser relacionável, por não ser referente, por não ser relativa, fica absoluta!

Se Skinner, portanto, dissesse que se assentava em algo para achar isto ou aquilo, esse algo em que se firmasse seria o seu absoluto. Pelo que, quer queiram, quer não queiram os espíritos científicos, não poderão, nem eles nem ninguém, edificar nada, sem

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uma base; pois bem: o último fundamento do que quer que seja, não poder ser provado, demonstrado, e tem de ser aceito de fé. Não há, portanto, pensamentos grandes, amplos, largos, abrangentes, sem uma INSTÂNCIA METAFÍSICA (tenha esta o nome que se quiser dar) que os fundamente, pelo que fica tendo razão Aristóteles quando escreveu: "Dizeis que é preciso filosofar? (...) Então, é preciso filosofar de fato. Dizeis que não é preciso filosofar? Então, ainda é preciso filosofar (para o demonstrar). De qualquer modo é necessário filosofar".

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A RAZÃO NÃO É A VERDADE – XII

Declarado que "a Razão habilita a conhecer os elementos constitutivos da Verdade", segue-se que ela não é a Verdade... que se assenta no santuário chamado Jerusalém Celeste. A Razão é instrumento ou meio para se alcançar a Verdade, e não um fim em si mesma. Se é instrumento e meio, a Razão é ponte. Esta assertiva está corrente com a pergunta e a resposta que dizem: "Por que nos chamamos Grandes Pontífices? "Porque nos preparamos no Templo da Verdade ou na Jerusalém Celeste, CONSTRUINDO UMA PONTE que há de nos conduzir do antro das trevas ao foco da luz etc.". Pontífices porque constroem pontes. Logo, a ponte é meio, e não, fim. O fim ou objetivo é a Jerusalém Celeste ou Templo da Verdade. Este Templo da Verdade ou Jerusalém Celeste não simbolizam mas são, que simbolizar significa substituir por procuração, e o substituto do ser ou ente não é o próprio ente ou ser. Lá, no pasto, está o boi que é o ente real, de fato, de verdade; a imagem mental que formamos após ter visto muitos bois, se generaliza num conceito único abstrato nomeado BOI que, daqui por diante, passa a representar por procuração o boi in concreto, o boi real. Representar ou simbolizar, portanto, não é ser em realidade, em objetividade. O Templo da Verdade ou Jerusalém Celeste É O ENTE REAL não se podendo perguntar, como foi feito: "Que simboliza a Jerusalém Celeste ou Templo da Verdade?" E isto ficou mais absurdo ainda em face da resposta: "Simboliza o Templo da Razão, etc.". Porque, como pode a Razão estar simbolizada no Templo, se a mesma Razão já está simbolizada na ponte que leva a esse Templo? Como pode simbolizar, se a Razão é ponte, ou meio, ou instrumento... para atravessar o abismo que separa a Jerusalém Celes-te pleniluminosa, de esplendor enceguecente, do antro das trevas?

Sendo a razão meio ou ponte pela qual se passa do "antro das trevas ao foco da luz", construir a ponte é construir a razão. Conseguintemente, se a razão pode ser construída, essa construção principiou lá na “Pedra Bruta” que representa, entre outras coisas, a infância da humanidade; sendo assim, a razão não é uma dádiva gratuita da Natureza ou de Deus, mas conquista individual duramente merecida. E a Doutrina da Evolução nos faz recuar mais ainda, demonstrando-nos que a razão tem sua história biológica, antes de ter sua história social. Por que? Ora, porque o cérebro, a máquina viva

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do pensamento, da razão, evoluiu de baixo, e quando no mar primário da vida, ainda não havia cérebro, ipso facto, não havia razão. Isto mesmo é o que diz Ortega quando escreve: "Longe de ter sido presen-teado o pensamento do homem, a verdade é que, - uma verdade que agora não possa arrazoar suficientemente, mas somente enunciar, - a verdade é que o pensamento se vem fazendo, fabricando pouco a pouco graças a uma disciplina, a um cultivo ou cultura a um esforço milenário, de muitos milênios, sem que se tenha ainda conseguido, - nem muito menos, terminar essa elaboração". Mais: "A explicação teológica é, neste como em todos os demais casos, o contrário de uma explicação; porque dizer que Deus fez o homem em princípio "animal racional", isto é, lhe deu de presente, sem mais nada, a chamada "racionalidade", e que esta implica a linguagem e, portanto, lhe deu de presente a linguagem, equivale a declarar que nem a "racionalidade" nem a linguagem necessitam de explicação. A verdade é que o homem não foi inicialmente racional, nem sequer o é ainda. Trata-se de uma espécie surgida, - afirma-se hoje, - faz um milhão de anos, espécie que na sua evolução, - isto é, na sua história, - tomou um caminho que poderá levar em futuros milênios a uma efetiva racionalidade. Temos de contentar-nos por enquanto com instru-mentos intelectuais bastante grosseiros e que possuem somente em dose minguada algo assim como "razão”.

A isto comenta José Ferrater Mora, no prefácio do livro Origem e Epílogo da Filosofia, de Ortega: "Em lugar de considerar a razão como uma breve ilha flutuando sobre o mar da vitalidade primária; os filósofos a confundiram com o próprio mar". E prossegue Mora: "Em palavras, deve reconhecer-se que a razão é somente uma forma e função da vida. Uma vez estabelecido isto, emergirá um novo tipo de razão: a razão vital". E explica Mora: "E isto de tal modo que a expressão razão vital pode ser considerada como equivalente à expressão vi-da como razão... Deste modo se supõe que a vida - pela qual se entende a vida humana - não é uma entidade dotada de razão, mas antes uma entidade que usa necessariamente da razão inclusive quando parece comportar-se írrazoavelmente - ou irracionalmente". Coerente com isto, diz o próprio Ortega: "Eu penso que é urgente inverter a fórmula de Hegel e dizer que, bem longe de ser a história racional, acontece que a própria razão, a autêntica, é histórica".

Não sendo a razão mais do que um instrumento criado pela vida para entender o mundo; do mesmo modo que criou os órgãos

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dos sentidos; do mesmo modo que forçou o cavalo a correr nas pontas dos dedos médios; do mesmo modo que criou a asa, a pata, a antena, o ferrão, o veneno; do mesmo modo criou um aparelho - o cérebro - e especializou o homem em pensar, em lucubrar, em filosofar, em conhecer... Portanto, quem desenvolveu primeiro que os outros em si a razão, esse tal se pôs na frente dos demais como guia no qual, sempre se creu de fé. O primeiro filósofo foi o primeiro feiticeiro, o xamã, que deu o resultado de suas lucubrações sobre o mundo, como coisas vindas da parte de Deus... Aliás, nem ele poderia saber, então, que suas intuições relampagueantes eram elaborações mentais suas afloradas no campo da consciência, vindas de áreas cerebrais mais profundas em que se operam as sínteses dos conhecimentos ali armazenados. Ainda não sabia o xamã o que, depois, entendeu Einstein que es-creveu: "Eu penso 99 vezes e nada me acontece. Paro de pensar, mergulho-me em profundo silêncio, e eis que a verdade me é revelada". Este é o caminho dos primitivos filósofos fautores de religiões...

Que é, pois, a fé? É a aceitação duma idéia sem provas, simplesmente, baseada no princípio da autoridade; é a aceitação na base do "magister dixit"; é a sugestão... fundamento do hiponotismo... Quem já assistiu a uma sessão de hipnotismo de palco, teve na ponta do seu nariz o modo como nasceram as religiões; nos fenômenos hipnóticos está o processo de sua gênese. Por conseguinte, sempre houve este outro meio - o da fé - para transpor o abismo que separa este nosso mundo de sombras ou antro das trevas, do foco da luz.

Todavia, com o advento da razão, o Homo rationalis pôs em dúvida os dados da fé, fazendo desta, objeto de discussão. Isto explica o diálogo: "Não é possível entrar na Jerusalém Celeste sem passar pela montanha”. A isto se responde: "A ponte está caída". Ora bem: que ponte é essa que está caída? Pois não é outra senão a da fé. Como o homem, ao fazer-se racional, cuidou fosse a Razão todo-poderosa, absoluta, havida até como uma deusa, nem reparou esse Homo philosophicus do séc. XVIII, que a própria razão precisa de um fundamento que não pode ser provado. Por causa desta inadvertência, o homem da razão sentenciou, com toda a petulância do Cientismo: "A Fé no desconhecido é patrimônio da ignorância".

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Uma vez que a ponte da Fé (que servira muito bem todos os povos até os gregos do VI século a. C.) "está caída, ao serem questionadas as religiões e posta a fé em discussão, só resta ao Homo rationalis atravessar o abismo por meio desta outra ponte – a Ponte da Razão. Conseqüentemente, no Ritual, havia-se de dizer: Retrocedei, então, e fazei os candidatos sentarem-se para que se preparem, a fim de atravessar o abismo pela RAZAO. Porém, em vez de RAZÃO, escreveu-se SABEDORIA, como se sabedoria e razão fossem uma e a mesma coisa. A Sabedoria, como acertamento ou aproximação da Verdade, outra vez, é um fim em si mesma no passo que a razão não vai além de simples meio. A Sabedoria se confunde com o Amor que é a Verdade, e está no santuário do Cordeiro ou Jerusalém Celeste. Esse Cordeiro, imagem do Cristo-Amor, é, na fala de Platão, a Forma das formas, a Forma do Bem que se acha no pináculo do seu Topos Uranos. A Sabedoria é o Sumo Bem ou Deus de Sócrates.

Seguem-se, agora, doze enunciados escritos pelos Maçons Iluministas, faz duzentos anos, e que são repetidos ainda hoje, sem que alguém se tenha dado ao trabalho de pensar sobre eles. Então, os candidatos vão aprender como se faz para atravessar o abismo pela ponte da Razão a qual, indevidamente, se deu o nome de Sabedoria. Esta suposta "Sabedoria" se reparte por doze enunciados que iremos ver pela ordem.

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ENUNCIADO PRIMEIRO

"Não há princípio de virtude, de honra, nem de moral, que não seja inerente à Consciência, e que todo homem de juízo perfeito e mediana educação, não a possui no mesmo grau que o mais instruído".

Todos os pensadores são concordes em que a palavra consciência tem dupla acepção: uma é a consciência-percepção que se relaciona com os cinco sentidos, afora ainda a informação (conhecimento). Quem está na posse dos sentidos, diz-se que está consciente; quem está "fora de si", diz-se que está inconsciente. Quanto à informação, podemos dizer: "Eu, jamais, tive consciência desse fato"; ou: "não tive ciência do ocorrido"; ou: "não tenho conhecimento do que se deu naquele dia".

Fora esta acepção, temos a outra em que a consciência significa foro íntimo de julgamento moral. Segundo o Dicionário de Filosofia de NicoIa Abbagnano - Ed. Mestre Jou, "trata-se portanto, de uma noção em que o aspecto moral - a possibilidade de auto-julgar-se - vincula-se estreitamente ao aspecto teórico, a possibilidade de conhecer-se de modo direto e infalível". No tribunal da consciência, quando agimos mal, o remorso nos atormenta, acusa, morde, rala; ou então, temos o aplauso da consciência pelo bem praticado, pelo heroísmo com que nos portamos face a uma acusação injusta vinda de fora. A Consciência, turbada ou tranquila, constitui o que chamamos nosso mundo interior.

De posse destas noções, voltemos a ler o texto dos Maçons Iluministas. Há, nesse enunciado, duas afirmações que se completam. A primeira afirma ser inerente à consciência, isto é, fazendo parte integrante de sua estrutura, os princípios de virtude, de honra e de moral. A segunda declara que a instrução aumenta e faz crescer o grau de consciência. Textualmente: "todo homem de juízo perfeito e mediana educação, não a possui no mesmo grau que o mais instruído". Se o medíocre não possui a consciência "no mesmo grau que o mais instruído", fica subentendido que o mais instruído possui maior grau de consciência, e o homem de mediana educação e juízo perfeito, menor grau.

Dado que a consciência moral possui gradações, sendo mais

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graduado o instruído, e de menor graduação, o homem comum, recuando mais no tempo, na história, havemos de nos deparar com homens primitivos nos quais a consciência moral ainda não se formou. Portanto, aquela inerência à consciência dos princípios de virtude, de honra e de moral, não é inata, mas adquirida. De que modo adquirida? Pois não há outro modo a não ser pela educação.

Todavia, a educação não existe por si mesma; ela se embasa numa filosofia. Tudo, logo, vai depender da filosofia que serve de base à educação. Mas o texto diz que o mais instruído possui consciência em maior grau que o homem de mediana educação. Quer dizer que a palavra instrução foi tomada como sinônimo de educação, e nisto consiste um erro, porque educação não é idêntico a instrução. A educação, feita no lar, na sociedade, na escola, plasma o caráter, forma a consciência civico-moral. A ins-trução, como não vai além de informações, embora torne o homem mais apto, não o torna melhor. São Francisco de Assis não tinha instrução superior, universitária, e era um santo; nossa sociedade possui doutores, aos montes, de todas as especialidades, perfeitamente medíocres quanto à consciência moral. Refutar este dado da experiência que todos possuímos, no nosso dia-a-dia, é, de todo, impossível...

Dado que há exemplo (e quantos!) de pessoas boas de um natural bom, sem nenhuma instrução superior, e há universitários e doutores moralmente maus, o texto não expressa a verdade. Afora isto, há-se de convir que a EDUCAÇÃO, sempre está na dependência de uma base filosófica, não se podendo considerá-la como uma coisa que está aí, pronta, feita, desde sempre, como se fora uma dádiva da natureza. Como o enunciado não especificou sobre qual filosofia os "princípios de virtude, de honra, de moral" se embasam, tal enunciado ficou suspenso no ar. Portanto, virtude, honra, moral são relativos à filosofia de que nascem, fora da qual são palavras sem sentido. Vejamos isto nalguns exemplos históricos:

Quando os filósofos de Mileto procuravam uma substância ou matéria primordial que fosse o fundamento de tudo, de que tudo se derivasse por transformação, esta procura chegou até Heráclíto de Éfeso que concluiu que essa substância primária é o fogo em que tudo começa e se acaba, mas esse tudo, assim como a chama inicial, está em perpétuo movimento e transformação. Nada está parado, donde se segue que a realidade do mundo consiste num vir-a-ser ou tornar-

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se ou devir constante.

Por causa de a história desenvolver-se por um processo a que Toynbee dá o nome de repto e réplica, que é o mesmo que desafio e reposta ou tese e antítese, ao repto ou tese de Heráclito do mundo perpetuamente movente, Parmênides de Eléa replicou, respondeu, com a antítese do mundo da fixação em que nada se transforma, nem se move, e tudo está parado.

Parmênides, para chegar à conclusão do seu imobilismo, raciocinou por este modo: Há uma contradição lógica na doutrina de Heráclito; porque ele diz que o que é não é; porque tudo o que é, no mesmo tempo que é, está-se encaminhando a ser outra coisa na qual não pára, mas se transforma em outra, em outra, indefinidamente. Ora, aquilo que não é não pode ser chamado ser, e sim, não-ser, donde se segue que o ser é... e o não-ser não é.

Deste ser que é, que, invariavelmente, sempre é, Parmênides deduziu as propriedades: Se o ser sempre e invariavelmente é, então ele é, então ele é fixo. Sendo fixo, é imóvel e imutável. Se fixo, imóvel, imutável, sempre foi e será o que é agora; logo, é intemporal (eterno). Se tivesse uma causa, ter-se-ia provindo dessa causa por transformação; como o ser não se transforma, por isto é incausal. Aquilo que é incausal, intemporal, imutável, imóvel, fixo, é, por isto mesmo, imaterial porque tudo o que é material, ou substancial, é móvel, mutável, temporal, causal, espacial. Portanto, sendo o ser imaterial, pela mesma razão é inespacial, dado que só a matéria ocupa lugar no espaço.

Como é que Parmênides fez para descobrir estas verdades? Deduziu-as dum postulado que aceitamos de pronto, sem necessidade de demonstração, e que diz: o ser é, e o não-ser não é. Para deduzir tudo não fez mais do que pensar. O pensamento participa da fixação quando afirma a iniludível sentença: o ser é, e o não-ser não é. Ora, como todas as propriedades do ser saíram, brotaram, dessa sentença, Parmênides gravou no granito eterno com letras de ouro a frase: "Ser é idêntico a pensar". Ser e pensar são uma e mesma coisa. Daqui saiu a doutrina dos dois mundos: o mundo do Ser, alcançável pelo pensamento, e o mundo do não-ser, Ínintel igível, porque o pensamento só sabe trabalhar com conceitos, essências, formas, fixos e imutáveis. Na dialética do Mundo do Ser ou no mundo das essências, tudo é idêntico a si

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mesmo, nada se contradiz. Na dialética do Mundo do Não-ser a sentença fica assim: na Natureza, nada é idêntico a si mesmo, tudo se contradiz.

Ora bem: à tese heracliteana seguiu-se a antítese parmenídica; que é da síntese que, necessariamente, havia de seguir-se? Pois ficou por fazer-se, e o Ser permaneceu, até hoje, fixo na imobilidade. Por outro lado, nosso mundo à mão, continuou sendo o mundo do não-ser, mundo de sombras, de trevas, de aflições, de caducidades, de dores, de mortes. A excelência ficou para o lado do pensamento, no passo que a vileza passou a ser própria de todas as coisas deste mundo. Este dualismo metafísico encontrou reforço na doutrina cristã, também dualista, que, por sua vez, despreza o mundo onde impera Satanás. Cristo disse: "O meu reino não é deste mundo"; e São João: "O mundo inteiro está no maligno". (I Jo 5, 19). Daí o desprezo do corpo e da carne pelo cristão; e da parte dos filósofos, o desprezo por todas as atividades manuais, materiais, visto que toda a excelência consiste na contemplação intelectual. Deus, disse Aristóteles, se ocupa de “pensar pensamentos", - não, pensar sobre coisas, que estas são vis, mas pensar sobre o pensar. E quando São Tomás procurou saber em que consiste a felicidade dos eleitos no céu, não lhe sobrou outra resposta senão a que já tinha achado Aristóteles: os eleitos na glória ocupam-se de pensar, ocupam-se da contemplação.

Eis sobre que filosofia fundou Aristóteles a sua ética que modelou as consciências por mais de dez séculos... que foi toda, a Idade Média. Aristóteles sim, poderia ter dito:

"Não há princípio de virtude, de honra, nem de moral, que não seja inerente à Consciência, e que todo homem de juízo perfeito e mediana educação, não possui essa Consciência no mesmo grau que o mais instruído".

POR QUE?

PORQUE o mais instruído é mais virtuoso que o ignorante, dado que este é vil e se ocupa de vilezas que são os trabalhos manuais, artesanato e artes quaisquer. Fale Aristóteles por si mesmo:

"É preciso, portanto, ensinar aos jovens apenas os conhecimentos úteis que lhes não venham a impor um gênero de vida sórdido e mecânico. Ora, deve considerar-se como mecânica toda a arte, toda a ciência que torna incapaz dos exercícios e dos atos da

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virtude os corpos dos homens livres ou a sua alma ou a sua inteligência. Eis porque chamamos mecânicas todas as artes que alteram as disposições naturais do corpo e todos os trabalhos que são mercenários; porque não deixam aos pensamentos nem liberdade nem elevação".

E noutro lugar:

"Não é, portanto, bom que o homem de bem, nem o homem de Estado, nem o bom cidadão aprendam estas espécies de trabalhos (os trabalhos das artes mecânicas) que só convêm aos que estão destinados a obedecer; a menos que se sirvam apenas algumas vezes para sua própria utilidade. Doutra maneira, uns deixam de ser senhores e outros perdem a condição de escravos".

Noutro passo:

“... Visto que estamos examinando qual é a constituição política mais perfeita e que esta constituição é a que contribui melhor para a felicidade da cidade; e, por outro lado, pois que se disse anteriormente que a felicidade não poderia existir sem a virtude, é visível que num Estado perfeitamente governado e composto de cidadãos que são homens justos no sentido absoluto da palavra, e não relativamente a um sistema dado, os cidadãos não devem exercer nem as artes mecânicas nem as profissões mercantis; porque este gênero de vida tem qualquer coisa de vil e é contrário à virtude”.

"Também não devem, para serem verdadeiramente cidadãos, dedicar-se à agricultura, porque têm necessidade de ócios, para fazerem nascer a virtude na alma e para preencher os deveres civis".

Como a excelência consistia só no pensar, o horror ao manual e ao mecânico invadiu toda a vida grega e, com a helenização do mundo, espalhou-se por todas as nações. É assim que lemos em Plutarco o que se segue:

"... Muitas vezes, ao apreciar uma obra, desprezamos o obreiro, como nas composições de perfumes e nas tinturas de púrpura: porque nos deleitamos com umas e com outras e, contudo, temos os perfumistas e os tintureiros como pessoas vis e mecânicas. Respondeu muito bem Antístenes a um que lhe dizia que Isménias era um excelente tocador de flauta: "também acho, mas apesar disso, homem que não vale nada, porque, se assim não fosse, não seria um tão excelente tocador de flauta". Vem a propósito dizer que Filipe, rei

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da Macedônia, disse uma vez a seu filho Alexandre, o Grande, que tinha cantado muito bem num festim, e como homem que entendia muito de música: "não tens vergonha de cantar tão bem? Porque basta que um rei empregue por vezes os seus ócios a ouvir cantar os cantores e já faz muita honra às Musas em querer algumas vezes ouvir os obreiros de tal arte quando eles se despicam a quem cantará melhor”...

"Mas quem exerce de fato alguma arte baixa e vil, produz em testemunho contra si próprio o trabalho que empregou em coisas inúteis, para provar que foi preguiçoso em aprender as honestas e úteis. E não houve jamais jovem de bom coração e gentil natureza que, ao olhar a imagem de Júpiter, que está na cidade de Pisa, desejasse ser Fídias, nem Policleto ao ver a de Juno que está em Argos, nem que desejasse ser Anacreonte, ou Filémon, ou Arquilóquio por ter alguma vez sentido prazer em ler as suas obras..." (Plutarco). No entanto, Fídias foi o maior escultor da Grécia.

Aristóteles considera a ética como fazendo parte da política, e tal como esta, sua ética é aristocrática, não de uma aristocracia de sangue, mas de espírito no sentido de ciência e filosofia. Todo trabalho manual era vil, fazendo parte desta vileza tudo o que fosse artesanal, agrícola e artístico. Fale Bertrand Russell:

"O melhor indivíduo, segundo Aristóteles o concebe, é um indivíduo muito diferente do santo cristão. Deve ter amor próprio e não subestimar seus próprios méritos. Deve desprezar todo aquele que mereça ser desprezado. A descrição do homem altivo ou magnânimo é muito interessante, por mostrar a diferença entre as éticas pagã e cristã, bem como o sentido em que Nietzsche estava justificado ao considerar o Cristianismo como uma moral de escravos". Mais:

"O poder e a riqueza são desejáveis por causa da honra; e para aqueles a quem mesmo as honrarias são uma pequena coisa, as outras coisas também o devem ser. Daí o achar-se que os homens magnânimos são desdenhosos... O homem magnânimo não corre em busca de perigos insignificantes, mas enfrentará grandes perigos e quando estiver em perigo, não poupará muito a vida, sabendo que há ocasiões em que não vale a pena conservá-la”...

"... Deve também ser franco em seu ódio e em seu amor,

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pois, ocultar os próprios sentimentos, isto é, preocupar-se menos com a verdade do que com a opinião alheia, é próprio de covardes... Fala livremente porque é desdenhoso, e costuma dizer a verdade, exceto quando fala com ironia às criaturas vulgares... Também não é dado à admiração, pois, para ele, nada é grande... Não é loquaz pois não falará nem de si mesmo nem dos outros, já que não se preocupa de ser elogiado, nem que os outros sejam censurados... Preferirá antes coisas belas e inúteis a coisas proveitosas e úteis... Além disso, um caminhar lento, uma voz grave e uma dicção uniforme, são próprios do homem magnânimo..." Mais:

"Há em Aristóteles uma ausência quase completa do que se poderia chamar benevolência ou filantropia. Os sofrimentos da humanidade, até o ponto em que tem deles conhecimento, não o comovem; considera-os, intelectualmente, como um mal, mas não há sinal de que lhe causem infelicidade, exceto quando acontece de os sofredores serem seus amigos"...

"Desde o nascimento, certos indivíduos são destinados à sujeição; outros, a mandar; o homem que não é por natureza dono de si mesmo mas que pertence a outro homem é por natureza escravo. Os escravos não deviam ser gregos, mas de uma raça inferior, dotada de menos espírito”...

"Finalmente, diz-nos que, se os planos de Platão fossem bons, alguém já teria pensado neles antes".

Ora bem: substituindo-se alguém, neste dito de Aristóteles, por x, y, z, etc.; e recuando-se no tempo, dá nisto: se os planos de Platão fossem bons, x já teria pensado neles antes; se os planos de x fossem bons, y já teria pensado neles antes; se os planos de y fossem bons, z já teria pensado neles antes. Onde é, então, que fica o primeiro homem que elaborou os planos bons? E por causa de coisas como estas, que Lutero disse que Aristóteles não passava de um asno.

Por conseguinte, quando alguém nos disser que "não há princípio de virtude, de honra, nem de moral, que não seja inerente à Consciência, etc.", temos de perguntar: e essa Consciência se formou sob o signo de qual filosofia? Porque tudo o que se acha na Consciência não está aí porque sim, por dote de Deus ou da Natureza, mas veio parar aí pela educação, donde vem que tudo nela é adquirido.

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Caída a Grécia sob o poder, primeiro da Macedônia, depois, de Roma, esta continuou a obra helenística principiada por Alexandre, o Grande. Quando Roma caiu sob o poder dos bárbaros a Igreja de Cristo se mostrou como a crisálida da nossa Civilização Ocidental. Porém, o Ser de Parmênides continuou fixado na imobilidade, ocupado em "pensar pensamentos" (Aristóteles), pelo que a contemplação, o pensar, continuou sendo a atividade por excelência. O Intelectualismo continuou dominando toda a Europa, quer sob a forma de subjetivismo, de psicologismo, quer sob a forma de empirismo.

Quando se descobriu a América, e, depois, o Brasil, nossa herança cultural veio pejada do Intelectualismo europeu. Nem a orografia, nem a hidrografia, nem o clima, nem a constituição do relevo geográfico puderam alterar os antecedentes culturais cuja nascente borbulhou, um dia, em Parmênides faz dois mil e quinhentos anos, fonte que se foi engrossando a cada pensador, nascente que determinava a excelência do trabalho mental sobre o mecânico ou manual.

Ser é idêntico a pensar, disse-o Parmênides, seguido por Platão, por Aristóteles, por São Tomás, por Santo Agostinho, por todos os demais, plantando-se nas consciências, por todos os dez séculos da Idade Média. E quando, na Renascença, Descartes fundou tudo no seu cogito, ainda o pensamento foi o Ser de que tudo se deriva, e o mundo exterior, material, continuou sendo pura ilusão dos sentidos, impenetrável para a racionalidade, para a Razão... que só sabe trabalhar com o fixo. O desprezo do corpo, plenamente endossado, validado, pelo cristianismo, continuou a formar as consciências que, por isto mesmo, não podiam enxergar senão vileza nos trabalhos manuais, mecânicos, artesanais, agrícolas e artísticos...

Por causa disto, no Brasil colonial, todos os que dispusessem de posses materiais, de bens, de riquezas, mandavam seus filhos homens (mulheres não) estudar em Coimbra donde regressavam doutores, e seus diplomas que ainda hoje valem muito, naquele tempo, soavam como se fossem títulos de nobreza..., nobreza intelectual, é claro, bem ao gosto dos filósofos gregos para os quais o pensar era tudo. Toca no ponto, Vianna Moog, ao escrever: "Ainda aqui (no Brasil), como no caso dos preconceitos raciais, talvez convenha remontar um pouco além dos primórdios imediatos da

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civilização luso-brasileira e não esquecer que os antecedentes longínquos do mazombo provinham da civilização greco-romana, na qual o artesanato, bem como tudo aquilo que mais tarde viria possibilitar o desenvolvimento industrial do mundo moderno, era confiado aos escravos. Um patrício tinha mais em que se ocupar do que dedicar-se ao ofício subalterno de artesão: para ele havia a vida pública, a administração dos bens, a guerra, a elaboração das regras do direito indispensáveis à preservação e proteção de sua propriedade e dos seus privilégios(...) no fundo, o desejo de todos era seguir à risca o juramento a que o Reino os obrigava: Juro que não farei nenhum trabalho manual enquanto conseguir um escravo que trabalhe para mim, com a graça de Deus e do Rei de Portugal". No Brasil colonial ninguém queria nada com o trabalho servil, e por isso ninguém dispensava o braço escravo.

Postas na balança, num prato, a excelência do pensar, proveniente da Grécia, ou então, no que dá na mesma, a cultura intelectual, e, no outro, a autoridade do Papa com todo o seu temível poder de excomunhão, para que lado penderia a balança? Pois, eis para que lado pendeu, conforme ainda o diz Vianna Moog: "O Papa Urbano VIII decretou, em 1639, a mais severa sanção da Igreja contra quem quer que escravisasse um índio, convertido ou não. Quando a Bula da Excomunhão foi lida no Rio de Janeiro, o povo derrubou as grades do Colégio dos Jesuítas e teria assassinado os missionários paraguaios se não fosse a intervenção do Governador; em Santos, derrubaram o Vigário Geral quando lia a Bula e pisaram-no juntamente com o documento; em São Paulo os jesuítas foram expulsos da cidades” . Como se vê, nem a autoridade inquestionável do Papa valeu, quando ficou em jogo a possibilidade de não se poder escravizar índios às cujas mãos era entregue o trabalho pesado, aviltante. Continua Vianna Moog:

"O feio não era o não saber e o não aprender a extrair ouro das profundezas da terra ou organizar o comércio do açúcar em bases permanentes; o feio, o indesculpável, era ignorar a última novidade européia, as mínimas passagens de Virgílio, as sutilezas dos gramáticos, as menores regras da retórica. Ignorar os clássicos portugueses, então - que horror! - era caso de morte civil, tamanha a vergonha em que isto podia importar. "Recitar em latim, conferir hemistíquios, conhecer prendas de salão, era com eles. Agora, resolver problemas de ordem prática, com a ajuda das ciências, já não se

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entendia com mazombos". Por causa disto, "em lugar de mecânicos, engenheiros, químicos, agrônomos, artesãos, operários qualificados e especialistas, milhares de bacharéis de anel no dedo a provar à primeira vista que não trabalham com as mãos; milhares de beletristas mofando nas repartições públicas; milhares de candidatos à sinecura e ao invejado título de malandro".

Eis a herança racionalista:

I - Ser e pensar são uma e a mesma coisa (Parmênides).

II - Deus se ocupa só de pensar sobre o pensar (Aristóteles).

III - Os eleitos, na glória, vivem na pura contemplação (São Tomás).

IV - "Penso, logo, existo" (Descartes); donde se segue que o existir decorre do pensar, e quem não pensa não existe.

V - A escravidão é necessária para que seja possível o ócio... que possibilita o pensar.

VI - O mundo é o não-ser, e o corpo próprio também o é.

VII - À imitação de Deus, tudo o que não for pensar, é aviltamento, vício, mal.

Tudo isto, aliado ao desprezo do mundo e do corpo próprio no que teve um aliado - o cristianismo. Daqui a aversão pelo trabalho manual. E prosseguindo na rapsódia que vimos fazendo do texto de Víanna Moog, vem mais isto:

"Outras conseqüências destas restrições patrícias e bandeirantes contra o trabalho orgânico: no plano econômico, os salários de mera subsistência, como se o assalariado fosse apenas o substituto do escravo; no plano moral, a intumescência dos melindres ante as tarefas ligadas aos vexames da antiga escravidão, as vaidades levadas a extremos doentios, o pedantismo, a suficiência, o culto nacional de Malasarte, o herói que sem esforço e sem trabalho, somente pela habilidade, a intriga, o cálculo, a astúcia, resolve todas as situações.

"Quereis agora o tipo capaz de personificar a legião de malandros que o Império legou à República? Temos um estupendo, como nunca houve e provavelmente nunca mais haverá outro igual. E o agregado José Dias, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis". "A Espanha tem D. Quixote e Sancho Pança; a Inglaterra tem

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toda uma galeria shakesperiana de símbolos patuscos; a França tem Tartarin de Tarrascon e Cyrano de Bergerac; Portugal tem o Conselheiro Acácio; os Estados Unidos têm Babbitt e o Pato Donald; mas nós temos o José Dias. Ele é o maior. Como símbolo de uma cultura não se pode pedir mais".

Em seu paralelismo entre as duas culturas, a brasileira e a americana, Vianna Moog mostra o povo norte-americano caricaturado no cão Pluto crédulo, ingênuo e bondoso, e no pato Donald sempre às voltas com suas frustrações, símbolos estes que o gênio de Walt Disney consagrou por meio de seus desenhos animados. Os norte-americanos, plasmados segundo os moldes filosóficos de Rousseau, Locke e Bacon, não se havêm com a contemplação para serem práticos e objetivos. "Como Donald - e com ele milhões de americanos - tem horror à reflexão, continua apanhando e sofrendo, à maneira de milhões de outros que se irritam, auto-acusam, vão para o comunismo levados pela frustração, porque não podem ultrapor as proezas do pai e das gerações anteriores nem discernir as causas de suas derrotas e malogros...

E continua Vianna Moog:

“E por que não contempla e não reflete?

Pelos mesmos motivos por que mazombos e mestiços desadoram o trabalho orgânico e a ação: porque não foram ensinados a respeitar a contemplação e a dignificar a reflexão. Ao invés disso, foram ensinados a amar o movimento, o trabalho, a ação, a considerar o repouso como vício, e a ver no ócio o mais terrível de todos os pecados. Se Donald pudesse descançar e refletir e contemplar - coisas em que o seu bom amigo e admirador José Carioca lhe podia ser muito útil - teria percebido que nos Estados Unidos já não há possibilidade de surgirem fortunas da noite para o dia, que, a fronteira acabou, que a livre empresa e o mito das infinitas possibilidades do indivíduo no mundo da concorrência deixou de ser operacional; que, conquistada a fronteira, atingido o Pacífico, não há mais lugar para a plenitude do liberalismo econômico, nem para a livre empresa, nos termos de antes das duas últimas guerras; que um e outro só são possíveis no Brasil, onde há fronteiras e espaços por conquistar; que o Estado, quer queiram quer não queiram os republicanos, vai ter de intervir cada vez mais no mundo econômico".

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Como se vê, nós, brasileiros, somos o Zé Carioca, amigos da contemplação, avessos ao trabalho braçal; nós nos deleitamos com ser doutores de anel no dedo, mãos finas de quem nunca as põe em ferramentas pesadas, e antes, só mexe com papéis. Por que? Porque, faz vinte e cinco séculos, vem sendo estratificado em nossas consciências (que nisto se cifra a cultura ou mentalidade) que "Ser é idêntico a pensar" (Parmênides), que "Deus se ocupa só de pensar pensamentos" (Aristóteles), que "os eleitos, na glória, vivem de contemplação" (São Tomás), que só existe quem pensa, "penso, portanto, existo" (Descartes). De maneira que, face ao exposto, qualquer pessoa poderá responder a seguinte pergunta:

Qual a relação existente entre o papagaio Zé Carioca e a doutrina de Parmênides?

E como esta questão, quaisquer outras poderão ser solucionadas. Mentes filosóficas são aquelas abrangentes, totalizantes, que podem enxergar Parmênides através do Zé Carioca; o Universo, num grão-de-areia! Ora bem: o enunciado que diz: "não há princípio de virtude, de honra, nem de moral que não seja inerente à Consciência, e que todo homem de juízo perfeito e mediana educação, não a possui no mesmo grau que o mais instruído", este enunciado, como já dissemos, ficou suspenso no ar, porque, em se tratando de fenômeno humano, ele é histórico e geográfico, sendo, portanto, imprescindível situá-lo no tempo e no espaço, isto é, numa época e num lugar. Por que? Porque dado o tempo e o lugar, a his-tória nos dirá que cultura imperou aí como decorrência duma filosofia em função da qual ganhavam sentido a virtude, a honra e a moral. Estas, por conseguinte, não têm vida própria, não existem por si mesmas, nem porque sim, mas, brotam, nascem da filosofia imperante na cultura que medrou nessa época e nesse lugar. Porém, como os fenômenos históricos não se repetem, como ocorre com os da Natureza, mas se sucedem variando, tudo o que se ineriu à nossa consciência, sob a forma de cultura adquirida, levou, nada menos que vinte e cinco séculos, para formar-se, e esta estruturação, agora, nos domina nos mínimos pormenores dos quais ninguém se dá conta; exemplo: quem sabe o porquê da aversão que muitos têm a levar embrulhos nas mãos, e todos, por carregar, em vias públicas, o que quer que seja ao ombro? Pois, se esta inerência levou tanto tempo para se estratificar nas consciências, o que são os sete ou oito anos de instrução

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universitária senão débil e imperceptível película de verniz superficial? Não serão, é claro, umas poucas informações técnicas, específicas que irão fazer o doutor de anel no dedo e canudo debaixo do braço, melhor, na virtude, na honra e na moral, do que o operário pacífico, ordeiro, e, sobretudo, temente a Deus.

Vianna Moog nos auxiliou na construção desta enorme ponte que tem vinte e cinco séculos de comprimento, que liga Parmênides ao Zé Carioca, ou então, que mostra a derivação quase direta entre a mentalidade de Filipe, rei da Macedônia, que repreendeu seu filho Alexandre, o Grande, por cantar tão bem, e a do homem de hoje que se recusa a carregar, em lugar público, de um lugar para o outro, um volume qualquer sobre um dos ombros. Porém, ainda que nosso débito para com Víanna Moog seja grande, cumpre-nos desfazer uma crítica que este notável escritor pátrio fez a Ortega y Gasset. Este filósofo espanhol escreveu mui-tos livros, dentre os quais "A Rebelião das Massas”. Esta obra, fê-la o pensador para demonstrar que os grandes filósofos do passado se acham tão diluídos, combinados e recombinados nas sociedades modernas, sobretudo, no sentido de contestações ao que eles disseram, sejam elas claras, sejam implícitas, que os tempos exigem nova retomada de posição inicial. Porque a passagem de uma posição para a sua antítese, certamente não poderá ser feita na base do "porque sim”, ou na do "eu acho", como hoje se vê. Qualquer estruturação cultural ou consciencial, como a que resultou no caricato Zé Carioca, pode ser rastreada ao longo da história, rio acima, até suas vertentes longínquas. Modernamente, todavia, há muitos movimentos só de massas rebeldes sem ancestralidade filosófica. Em que se baseia o Movimento Feminista? o dos Hippies?, a Arte Moderna?, o da insurgência dos jovens contra todas as instituições?

Eis por que sustenta Ortega y Gasset, em "Rebelião das Massas", que é preciso alguém mandar no mundo. Trata-se duma nova arrancada do poder espiritual, o que só pode ser com uma nova filosofia que fizesse a síntese mantida até hoje em aberto, entre a tese de Heráclito e a antítese de Parmênides; entre o mundo do ser e o mundo do existir que é o nosso mundo à mão havido, desde Parmênides, como o mundo do não-ser; entre a alma e o corpo, dado que este sempre foi considerado pelos pensadores gregos, como fazendo parte do não-ser, e por aliado de Satanás pelo cristianismo.

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Tudo isto nos suscitaram o alerta de Ortega na obra referida. E que diz dele Vianna Moog? Ei-lo:

“E não deixa de ser sintomático que, há poucos anos, um dos mais luminosos espíritos espanhóis, Ortega y Gasset, apavorado com o ritmo do nosso tempo, escrevesse La Rebelión de las Massas, que outra coisa não é, afinal de contas, senão um brado angustiado pelo retorno à hierarquia, à aristocratização, à disciplina já impossível do mundo patriarcal".

Se esse livro de Ortega é "um brado angustiado pelo retorno à hierarquia, à autoridade, à disciplina", como classificar este outro, agora, do próprio Vianna Moog? Brada ele:

"São doentes os malandros de hoje, mais doentes da alma que do corpo. Miguel Pereira lançou um dia o seu famoso brado: "O Brasil é um vasto hospital". Será tanto hospital de neuróticos, imaturos e desajustados quanto de doentes do corpo. 0 de que eles precisam mais que tudo é de orientação emocional, de guias que os ajudem a sair das neuroses que a nossa formação lhes impôs, e não de cortejadores de multidões ou do sibaritas enamorados do prestígio das posições. O problema deles não é apenas o de casas em lugar de mocambos. O de que eles precisam é de arsênico, sulfa, penicilina e verdades em doses maciças.

"Sobretudo de verdades. Não a verdade crítica dos maldizentes e demolidores, mas a verdade orgânica dos construtores, que, indicando o mal, indicam também o específico da cura, têm uma mensagem a dar, algo que dizer e a coragem de dizê-lo. Numa palavra, o de que eles precisam, o de que todos precisamos, há quatrocentos anos, é de genuínos líderes, tomada aqui a palavra LIDER NA ACEPÇÃO MOSAICA DE CHEFE ESPIRITUAL E MORAL, INSPIRADOR E CONDUTOR DO POVO PELAS VIRTUDES DA PERSUASÃO E DO EXEMPLO". Todos os versais e destaques são nossos.

Pois, isto mesmo pretendia Ortega, quando afirmava ser preciso que haja alguém que mande no mundo, o que não significa restaurar o poder patriarcal discricionário, e, por vezes, cruel, nem prestigiar os despóticos governos de força. E como Vianna Moog diz que a liderança, chefia e mando têm que ser feitos na base da PERSUASÃO e do EXEMPLO, segue-se que o que ele também pede

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é uma nova filosofia.

Pois, de fato, o mundo precisa da nova filosofia, qual a que oferecemos, que faça a SÍNTESE entre Criacionismo e Evolucionismo, entre Espiritual e Material, entre Heráclito e Parmênides, entre Alma e Corpo, entre Ser e Existir; sobretudo, que demonstre que Deus não é Essência pura sem Matéria alguma, como pensara Aristóteles, porque, se fosse assim, Deus seria pura idéia abstrata, pura idealidade subjetiva SEM EXISTÊNCIA OBJETIVA, SEM REALIDADE FORA DE NOSSA INTELIGÊNCIA. Há que se demonstrar por raciocínio com base na ciência, na física, que a Energia-Substância que dá corpo a Deus, e da qual tudo nasceu, se chama AMOR.

Isto responde à pergunta de Vianna Moog posta à pág. 242 do seu livro “Bandeirantes e Pioneiros”, quando ele interroga: "como será daqui para o futuro?"... "Quais serão os sinais dos tempos?" Porque se não for este o caminho palmilhado pela Civilização Ocidental, só lhe resta o outro, o que já vem trilhando, que a levará, sem remédio, à barbárie.

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ENUNCIADO SEGUNDO

"Nenhum desses princípios, nem mesmo todos juntos,bastam para governar a Associação, porque o bem que se faz aos homens, pelo sentimento moral, é passageiro e só produz efeitos transitórios, enquanto a sociedade humana é uma vasta oficina de trabalho e produção, na qual o interesse material é mais poderoso que o moral".

Este Enunciado Segundo, assim como o anterior, também ficou suspenso no ar, porque nele não se declarou o lugar, nem o tempo nem a filosofia que embasou a cultura reinante na época em que ele foi redigido. Como no século XVIII se pensava que a sociedade humana está regida por Leis da Natureza que atuam nela como as leis da física sobre a matéria, donde o Progressismo já estudado atrás, por esta razão se fizeram enunciados no plano social, como se eles tiveram a mesma validade dos princípios da física, da química e da astronomia. Esta é a causa por que os doze enunciados fulguram como estrelas na faixa do grau, seis para cada lado das letras gregas alfa e ômega. São as doze constelações do zodíaco intelectual pelas quais passa e repassa o pensamento. Tamanha era a FÉ (?!) que se depositava então nesses doze enunciados lapidares havidos como verdades conquistadas para todo o sempre, que se garantiu, sem sombra de dúvida, que eles nos levariam "ao apogeu da Civilização". Mas, eis o engano:

Quando Kepler enunciou que "os raios vetores varrem áreas iguais em tempos iguais"; ou então, Lavoisier, "que o peso dos reagentes é igual ao peso dos produtos da reação"; ou então, Newton, "que a toda ação exercida sobre um corpo corresponde a uma reação da parte deste igual e contrária". Em relação a tais princípios, não tem sentido perguntar: onde, quando e por que?.. visto que o onde é qualquer lugar do universo; o quando é desde e para todo o sempre; e o por quê, é porque sé trata de Leis da Natureza. Todavia, os fenômenos humanos têm o onde que é o lugar da Terra; têm o quando que é o tempo histórico, a época; têm o por quê que é a ideologia norteadora e formadora da cultura.

Deste modo, se pusermos o Enunciado Segundo, tal como o

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Primeiro, dentro das coordenadas tempo, espaço e ideologia, que é onde deveriam estar todos os doze, ele fica inteligível. Em que tempo? Meados do Século XIX. Em que lugar? Europa, sobretudo, França, Inglaterra e Alemanha. Qual a ideologia? O Cientismo, o Iluminismo, o Racionalismo Empirista (não o Metafísico ou Psicologista) que fez da Razão uma deusa. Ponhamos, então, o Enunciado Segundo dentro do seu contexto histórico-social próprio, a fim de que ele reassuma vida, movimento, e o que foi, torne a ser.

Numa sorridente manhã primaveril do ano de 1850, encontraram-se dois amigos numa tumultuada rua de Londres. Um era alto, moreno claro, de cabelos e olhos negros, olhos ardentes, penetrantes; trata-se do Prof. Timágenes Kodros, catedrático de botânica da Universidade de Edimburgo. O outro, de estatura média, cheio de corpo mas não gordo, louro, tez rosada, olhos azuis, pequenos, cobiçosos ainda que benévolos. Este último era John Castlei, industriai, principal acionista e presidente das Indús-trias Cástlei de Tecidos S/A., e Membro do Parlamento Inglês. Ambos aparentavam a mesma idade... uns quarenta e poucos anos.

Após os cumprimentos habituais, e trocadas algumas impressões sobre as notícias mais recentes, perguntou o Prof. Timágenes: – Você, para onde vai?

– Vou até a fábrica da Vila Alta, a fim de dar uma olhada nuns papéis; e você?

– Eu, meu caro John, cheguei a Londres, ontem, para tratar de um assunto pertinente à minha cadeira de botânica. Mas estou matando o tempo até que se abra a Repartição.

– Algum problema sério em que eu possa ajudar como político?

– Oh! Não! Trata-se de coisa de rotina; não é nada importante. Obrigado!

– Ah! Entendo. Então venha comigo; não vou demorar muito na fábrica. Ali está! Peguemos minha carruagem.

– Está bem, tornou o Prof. Kodros; não tenho mesmo o que fazer... pelo menos muito cedo...

E ambos dirigiram-se para o coche, e, uma vez acomodados, o Sr. John Cástlei ordenou ao cocheiro:

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– Para a fábrica da Vila Alta!

O coche, rápido, desfilou pela avenida, dobrando, depois, uma esquina aqui, quebrando outra mais além, e, por largo tempo, os dois ocupantes do veículo mantiveram-se em silêncio, entretidos em observar o borburinho da cidade grande. Interrompendo o silêncio, interrogou o Prof. Timágenes:

– O que você acha da Doutrina da Evolução?

– Já tenho lido sobre o assunto nos jornais. Segundo me parece, o maior estudioso da matéria, entre nós, é Charles Darwin, eminente biologista que, não faz muito, andou viajando lá pela América do Sul. Até já tomou conotação darwiniana a expressão "luta pela vida" que Darwin tomou do pastor Thomas Robert Malthus, dado que o mesmo fenômeno ocorrido entre as populações humanas, acontece também entre as espécies animais. Isto mesmo já dissera Adam Smith na obra que consideramos a Bíblia da Economia; afirma Smith que "a força motriz da evolução humana é a livre concorrência dos esforços". Essa mesma livre concorrência existe também, lá fora, no mundo da vida. O princípio é um e o mesmo, esteja ele agindo entre populações humanas, entre as espécies animais e vegetais, entre os homens na guerra econômica. Livre concorrência ou luta pela vida, eis as palavras-chaves que nos levam à compreensão da verdade. Amparado por estes antecedentes ideológicos e em suas próprias experiências, Darwin, vai para seis anos, escreveu para Hooker, Diretor do Jardim Botânico de Kew, dizendo estar "quase convencido de que as espécies não são imutáveis". Eu só sei que essa "luta pela vida", de Malthus primeiro, e agora, de Darwin, que é o mesmo que a "livre concorrência" de Adam Smith, se aplica ao Industrialismo, o filho primogénito da Ciência e da Razão.

– E, mas... não podemos descurar do aspecto-moral, replicou o Prof. Timágenes. A sociedade humana não se governa só por forças de natureza material. É imprescindível o componente moral. É impossível abafar os reclamos da Consciência.

– Ora, meu caro Kodros!, você me fala de Consciência, como se o sentimento moral fosse o mais importante, e, por isto, devesse guiar as nossas ações? No entanto, na luta pela vida, na livre concorrência, não há lugar para o sentimento. Além disso, o bem que se faz aos homens, pelo sentimento moral, é passageiro

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e só produz efeitos transitórios.

A estas palavras do Sr. John Cástlei, o coche parava ao portão principal da fábrica. Ambos desceram, e se dirigiram para o interior do edifício, em meio ao pó e a ruídos ensurdecedores. Enquanto o Sr. Cástlei se dirigia para o escritório, o Prof. Timágenes atrasou-se para observar o trabalho. E viu, em realidade viva, no que redundou a teoria de Turgot, da liberdade econômica - o “Iaissez faire”. E lembrava-se de uma denúncia que lera, no dia anterior, numa coluna de jornal. Pela denúncia, "a única coisa que punha limite às horas de trabalho, era a fadiga física que ia até o ponto de as mulheres desfalecerem de cansaço. E pior ainda: crianças de cinco anos para cima recrutadas nos orfanatos e nas casas paupérrimas, eram trazidas para as fiações, sob o pretexto de as preservar dos perigos das ruas e da vadiagem, ensinando-as a trabalhar. Com este espírito, fez-se uma lei pela qual os filhos dos pobres podiam ser forçados ao trabalho nas fábricas, e, em caso de relutância e má vontade, podiam ser acorrentados às máquinas de produção. A paga pelos serviços prestados consistia numa ração magra de alimento de má qualidade, o indispensável apenas para garantir a sobrevivência, e um local sórdido, espécie de pocilga, em que passavam a noite. Se ocorresse de as crianças dormirem no serviço, o contra-mestre as castigava, sobretudo, surrando-lhes as mãos com um vergalho. Não é preciso dizer que, sob o rigor de tal regime, no mais completo desamparo, sem nenhuma proteção da parte de quem quer que fosse, as crianças sucumbiam aos milhares".

E ali estava o quadro vivo, na ponta do seu nariz, anotava o Prof. Kodros: crianças que os orfanatos desepejavam nas indústrias, somadas aos filhos dos pobres artesãos, agora sem trabalho. Caras macilentas, olhos tristes, encovados, cercados de olheiras, tezes amarelecidas e secas, as crianças olhavam para o Professor, e esses olhares apunhalavam-no, ao tempo em que meditava sobre o tamanhouço abismo em que caíra o ideal cristão de fraternidade, tantas vezes exaltado em sua Oficina, de que era simples Aprendiz maçom.

Não passara três quartos de hora, e já o Sr. John Cástlei tornava do escritório em que vira o que era preciso ver. Passando, todo sorridente e feliz, por onde estava o Professor, foi-lhe, logo, dizendo:

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– Que é isso, homem! Anime-se! O que aconteceu? Por que esse ar macambúzio?

O Prof. Timágenes esboçou leve riso, e acompanhou o Sr. Cástlei que se dirigiu à carruagem. Estando nela, o cocheiro fê-la andar. Retomando a palavra, prosseguiu o Sr. John Cástlei:

– Como eu dizia, antes de chegarmos à fábrica, o bem que se faz aos homens, pelo sentimento moral, é passageiro e só produz efeitos transitórios; aquela gente toda que você viu lá, recebe enorme benefício, porque, imagine toda ela perambulando à toa pelas ruas, sem emprego? E as crianças nas ruas sujeitas a toda sorte de perigos decorrentes da vadiagem? Em vez de andarem pelas ruas mendigando o pão, têm-no neste trabalho que é honesto! De que vale, movido pela compaixão, dar um prato de co-mida para um artesão, agora sem trabalho, porque a máquina o substituiu?

– É, mas você o emprega nas suas indústrias?

– É certo que não, porque esses artesãos são velhos, tendo-se-lhes esgotado a energia, ficando eles sem capacidade produtiva. Mas quando eles têm filhos, eu e outros como eu empregamos-lhes os filhos, crianças, rapazes e moças.

E após uma pausa, prosseguiu o Sr. Cástlei, com o olhar perdido no vazio, remexendo-se todo a cada balanço do coche:

– Aqueles teares que você viu com seus ruídos próprios numa cadência quase musical; aqueles rapazes, crianças e moças... transitando de um lugar para outro com peças de tecido; os gritos dos capatazes, dos contra-mestres, que fiscalizam e fazem andarem os setores; aquele borborinho, aquela agitação, gritos e vozes variados, tudo nos dá a exata idéia de que a sociedade humana é uma vasta oficina de trabalho e produção, na qual o interesse material é mais poderoso que o moral! O meu interesse particular faz desencadear-se todos esses outros interesses menores, até os interessículos das crianças que só querem viver. Como você vê, a vida, a sociedade, as máquinas, o mundo, tudo se move pelo Interessismo!, e se você perguntar para qualquer desses operários, por que trabalha, obterá esta resposta: para viver! E como ninguém vive sem comer, para comer, trabalha!

Interrompendo os devaneios e filosofices do Sr. John,

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interpelou o Prof. Timágenes:

– E a Consciência, na qual são inerentes os princípios de virtude, de honra e de moral?

– O que há com ela?

– Há que, segundo anda pregando Karl Marx, homens como você são exploradores, pagam salários-de-fome, não dão férias, nem assistência de nenhuma espécie, obrigam a um trabalho, sem descanso, por dezesseis horas, são indiferentes ao sofrimento alheio, não se apiedam dessas pobres meninas e mulheres ainda mesmo quando elas desmaiam por cima desses teares, correias e rodas de cujos acidentes morrem. Se adoecem e, por isso, faltam mais de três dias, são despedidas; resultado: muitas trabalham enfermas, uma das causas dos delíquios. Aposentadoria não há, nem férias, nem licenças. E enquanto isso, os detentores do poder econômico, como você, mais e mais engordam, e os miseráveis mais e mais se definham até a morte.

O Sr. John Cástlei que não esperava por essa arremetida francamente marxista, pôs-se a refletir, e, sem perder a calma, argumentou:

– Comecemos pelo princípio de suas alegações: é verdade que os princípios de virtude, de honra e de moral são inerentes à Consciência; que eles entraram aí pelos canais da educação desde o berço; e que essa educação tem por base uma ideologia. E que, portanto, variando a concepção da vida, a filosofia, muda a educação, e, como conseqüência, altera-se o que se entende por virtude, por honra e por moral. Logo, a Consciência forma-se, deforma-se, anula-se, nega-se, que nisto consiste o que São Paulo chamava de "consciências cauterizadas". Dado que a Consciência, formada pelo ternário virtude, honra e moral, é uma variável dentro das três coordenadas: espaço geográfico, tempo histórico e filosofia, o que lhe posso afiançar, de começo, é que os nossos tempos são outros, e outra a ideologia reinante.

E após meditar algum tempo, concatenando idéias, prosseguiu o Sr. Cástlei:

– Já se foi o tempo da asnidade medieval, quando se pregava que as riquezas são pecaminosas, dado que comprometem a salvação; que a usura que é o inocente juro pago pelo uso do

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dinheiro, é um pecado tão sujo e feio como o da fornicação; que, em lugar do turpe lucrum, todos deveriam ocupar-se de buscar o céu; etc. Que se seguiu disto? Seguiu-se que a Idade Média, foi o período da mais completa e densa escuridão! E estaríamos perdidos nela até hoje, se o Senhor Bom Deus não dissesse: basta! Graças a Deus que veio a Renascença, e, com ela as Reformas religiosas. E eu, embora não seja lá muito bom calvinista, sigo o grande Mestre Calvino que foi um portento tão grande como Moisés. Calvíno marcou a era do Capitalismo, do Industrialismo dando-lhes a justificação moral de que eles precisavam. Eis como ele raciocina com sua prodigiosa inteligência:

"Deus é onisciente, pelo que conhece o que foi, é e será, tudo num tempo. Por conseguinte, em sua presciência infinita, sabe quais os homens que se hão de salvar, e quais os que se hão de perder, doutrina esta que acha pleno apoio no Apóstolo São Paulo. Logo, os homens já se acham classificados em eleitos ou predestinados à salvação, e precitos ou condenados à perdição. Ora, como era de esperar-se, Deus se agrada dos seus eleitos, e os cumula de bençãos, já nesta vida, pelo que tais justos pela graça crescem e prosperam em riqueza, bem-estar e felicidade, no mesmo passo que deixa os precitos; para todo o sempre sem a graça, que é o mesmo que em desgraça, ou seja, entregues à própria sorte. Uma das manei-ras, conseguintemente, de ver quais os salvos e quais os perdidos, é olhar para suas vidas. Sendo, pois, a riqueza, o prestígio, o renome sinais de salvação, pela recíproca, a pobreza, desprestígio e anonimato são seguros sinais de perdição. Portanto, toda aquela gente que você viu lá na fábrica, que trabalha para mim e para outros como eu, é gente condenada por Deus como réprobos ou precitos.

E depois de pigarrear para limpar a garganta, prosseguiu o Sr. John:

– Ora bem: se o próprio Deus desprezou essa gente, você quer que eu me apiede dela, me mova de compaixão para com ela? Já faço muito, mas muito mesmo!, em dar-lhe o pão de cada dia, proporcionando-lhe um lugar nas minhas fábricas. E esse benefício que lhe presto é muito mais estável do que quaisquer outros que possa receber da caridade pública, com base no sentimento moral. Esta é a razão por que eu disse e repito que o bem que se faz aos homens, pelo sentimento moral, é passageiro e só produz efeitos transitórios;

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como o demonstrei, só é permanente, perdurável, estável, o bem que se faz com base no interesse material. O meu interesse é o de enriquecer-me buscando nisto mesmo, na riqueza, o sinal da salvação, enquanto o interesse dos desgraçados, dos miseráveis, é o de quererem sobreviver; corrijo: de apenas quererem viver, e isto serve só para patentear, na sua pobreza, o seu inquestionável sinal de perdição!

O Sr. John Cástlei parou um pouco, para tomar um fôlego. A carruagem continuava rodando, porque o cocheiro já sabia, por ordens anteriores, que não devia pará-la, enquanto seu patrão, no seu interior, estivesse conversando com alguém. Aproveitando a pausa, o Prof. Timágenes quis entrar no assunto, mas foi detido por um sinal, dado com a mão, pelo outro que logo prosseguiu:

– E se pusermos o mestre Calvino de parte, vem-nos Tomas Hobbes, discípulo de Francis Bacon, dizer-nos que "o homem é lobo para o homem"; donde se tira que, ou é comer, ou é ser comido. Você pensa que aquela gente da fábrica não me comeria se pudesse? Se deixamos Hobbes em paz, vêm-nos Malthus, Smith e Darwin com suas doutrinas da luta pela vida e da livre concorrência! E tudo isto com o endosso da Razão que desconhece o sentimento; como se não bastasse, com o apoio da ciência, através da Doutrina da Evolução. Darwin está aí a demonstrar que Deus, como já tinha inferido Calvino, dá a palma da vitória, invariavelmente, para o mais forte ou para o astuto. Lá na Natureza está a discriminação entre eleitos e perdidos, sendo os fortes e os astutos, os eleitos para a vida, e os mansos, débeis e fracos, os criados para a morte. No mundo da vida, seja o natural, seja o da economia, não há lugar para os fracos, a menos que estes se disponham a servir os fortes. E quem, senão Deus, criou a Natureza?

O Sr. Cástlei fez uma pausa, dando a entender, porém, que ia continuar. Depois prosseguiu:

– Quer dizer, meu caro Prof. Kodros, que há duas morais... no que concorda Aristóteles: uma, dos vencedores, dos fortes, dos astutos, dos senhores, dos eleitos de Deus, e outra, dos escravos, dos pobres, dos vencidos, dos condenados, dos fracos. Para que servem os vegetais? Para servir de pasto aos herbívoros! Para que servem os animais vegetarianos? Para servir de alimento aos

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carnívoros! Para que servem os homens? Para senhorar a Natureza inteira! Para que servem os fracos? Servem para servir aos fortes, ou ser devorados por estes! Para que servem os pobres... que todos são precitos ou condenados? Servem para servir aos ricos... que são os predestinados pela graça, herdeiros, já neste mundo, da glória e bem-aventurança eterna! Isto quer Deus, e seu querer em Lei se constitui!...

– E agora me vem você falar de Consciência – rematou o Sr. John Cástlei, alterando a voz –, como se ela fosse um dom da Natureza, e não, produzida pela educação que se embasa numa ideologia? O caso é de perguntar, como fazia Sócrates: to ti? (que é isso?).

O Prof. Kodros vendo que o tempo era exíguo para a resposta a tantas questões, e também porque o coche passava por uma praça onde tinha assuntos inadiáveis por resolver, disse para o Sr. Cástlei:

– Paro aqui! Mas você não ficará sem chumbo... e do grosso... prometo! Dar-lhe-ei merecida resposta! O tempo, porém, urge, e preciso cuidar doutra coisa.

Os dois amigos se despediram, com afabilidade, e o Sr. John Cástlei mandou o cocheiro seguir para sua luxuosa mansão.

Um excerto, agora, da obra "Na Prática a Teoria é Outra", de Joelmir Beting:

"Para se ter uma idéia das condições reinantes no capitalismo que Karl Marx conheceu em vida, transcrevo trecho do depoimento do capataz de uma tecelagem inglesa a uma comissão nomeada pelo Parlamento, então remoído por tamanha iniqüidade.

– A que horas, pela manhã, as moças entram na fábrica?

– Por volta das 3 horas da madrugada, na primavera, no verão e no outono, e por volta das 5 horas no inverno.

– E a que horas elas deixam o trabalho?

– Mais ou menos 10 horas da noite ou 7 horas no inverno.

– Que intervalos para repouso ou refeições elas desfrutam?

– Bem, uns 10 minutos para o café da manhã, meia hora para o almoço e mais meia hora para a merenda da tarde.

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– Elas faltam muito ao trabalho?

– Não, porque na terceira falta do mês elas são demitidas.

– Elas não ficam doentes?

– Sim, ficam.

– E mesmo assim são despedidas?

– Há muita gente querendo trabalho. Ademais, a fábrica não é hospital.

– Ocorrem muitos acidentes no trabalho?

– Oh! Sim, é uma praga. As moças são fracas, vivem desmaiando em cima dos teares.

– Há casos fatais?

– No começo, umas cinco mortes por mês. Mas nos últimos dois anos, a média baixou para duas ou três.

– A família é indenizada no caso de morte ou invalidez permanente?

– Oh! Sim. A fábrica paga o salário integral no mês em que seu deu o acidente.

– E depois?

– Bem, só ganha quem trabalha. Quem não trabalha...

– Quem trabalha ganha quanto?

– O suficiente.

– Mas, quanto?

– O suficiente, repito”.

Os princípios referidos no Enunciado Segundo são aqueles anotados no Primeiro, ou seja, os de virtude, de honra e de moral que, como lá se explicou, são inerentes à Consciência. Todavia, dividamos o texto deste Enunciado Segundo em três partes, dado que são três as afirmações contidas nele. Ao desenvolvê-las, no entanto, façamo-lo do fim para o começo, para ficar em seqüência lógica, ou seja, em linha de decorrência.

a) "Nenhum desses princípios, nem mesmo todos juntos, bastam para governar a Associação”,

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b) "porque o bem que se faz aos homens, pelo sentimento moral, é passageiro e só produz efeitos transitórios”,

c) "enquanto a sociedade humana é uma vasta oficina de trabalho e produção, na qual o interesse material é mais poderoso que o moral".

Se o interesse material é mais poderoso que o sentimento moral, o que, em outras palavras, vale dizer: os motivos econômicos governam a sociedade, então é o mesmo que escreveu Karl Marx da história: "A história se desenvolve por motivos econômicos. Se, por causa disto, "o bem que se faz aos homens, pelo sentimento moral, é passageiro e só produz efeitos transitórios" donde se tira que o bem não deve ser praticado com base no sentimento moral, e sim, fundado no interesse material, porque de efeito permanente, então, podemos concluir que o imperioso é o interesse material, em razão do que nenhum daqueles "princípios, nem mesmo todos juntos (virtude, honra, moral) bastam para governar a Associação".

Se só a Consciência, da qual não se podem separar os princípios de virtude, de honra e de moral, porque inextricavelmente inseridos a ela, não basta para governar a Associação humana, porque o bem que se faz aos homens tendo por fundamento a Consciência moral, além de passageiro em si mesmo, ainda é transitório nos efeitos, o que é, então, preciso para governar a Associação?

Resposta: é preciso que seja prevalente o interesse material sobre o sentimento moral, visto ter ficado implícito no texto que só o bem realizado com base no interesse material, é firme e valioso em si mesmo, e de efeitos duradouros.

Tal, também, é como entendia o moço rico da parábola, pelo que preferiu as riquezas que já possuía na Terra, ao futuro e ilusório tesouro que lhe prometia Cristo no céu. (Mat. 19, 21). Razão teve o padre Vieira para finalizar o exórdio de um sermão exclamando: "Não peço atenção para este discurso, porque sendo dos bens temporais é matéria a que todos sempre estão mui atentos”.

Moisés não sabia que "o interesse material é mais poderoso que o moral", e esta sua ignorância o levou a loucura de, primeiro, abandonar as riquezas, sendo príncipe; segundo, de enfrentar o

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poder material do faraó, com o quê? Nada mais do que com o seu poder espiritual! ... E venceu ao faraó com todos os seus magos, mágicos e feiticeiros; e contra os interesses materiais do monarca do Egito, arrancou-lhe das unhas, com poder moral incontrastável, toda aquela riqueza que eram os escravos israelitas de que o rei se valia para fazer tijolos, arrancar blocos nas pedreiras e construir palácios, templos e obeliscos. Por causa de Moisés ignorar (ó estultícia! ó asnidade!) que "o interesse material é mais poderoso que o moral", de príncipe egípcio, que era, desceu-se a pastor de ovelhas da casa de Jetro, e de rico, limpo e perfumado antes, fez-se pobre e encoscorado de esterco agora, e assim pobre, e não, rico, recebeu a ordem divina de libertar o povo de Israel das garras sanhudas do faraó!... E levou o povo da fartura e das paneladas do Egito às agruras e misérias do deserto por quarenta anos. Vendo que não podia conquistar a terra de Canaã com aquele bando numeroso de escravos, criados na servidão, aviltados pelo poder material do fértil vale do Nilo que propiciava desregra-mentos e comezainas, esperou quarenta anos, vagando pelas fraldas dos montes vizinhos ao golfo de Suez e ao golfo de Acaba, até que se formasse a geração dos livres e indomáveis que receberam a têmpera do aço impenetrável que só pode dar, não a riqueza, o conforto, a frouxidão, mas a penúria, o desamparo e as asperezas de um deserto.

Se o "interesse material é mais poderoso que o moral, dado que, mediocridade não conta, a não ser como massa, como número, como rebanho, onde estão os grandes valores da humanidade que se sacrificaram, movidos pelo "interesse material"? Acaso, são os conquistadores sanguinários de armas nas mãos? Por ventura, todas as civilizações que se foram, não desapareceram exatamente quando os valores morais se apoucaram e tenderam para nada, no mesmo passo que as riquezas, o conforto e a devassidão cresceram? As palavras gregas “kóros”, “ubris”, “átê” são anotadas por Toynbee para marcar o fim ativo duma civilização. "Objetivamente, kóros significa: "excesso no comer e no beber ou saciedade"; ubris significa: "conduta ultrajante"; e átê: "desastre".

O povo de Israel chegou à idade de ouro nos dias de Jeroboão II, quando, então, renega Jeová. Contudo, já isto estava escrito pelo profeta: "Jeshurum engorda e escoiceia. Jeshurum

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escoiceia porque engordou". (Deut. 32, 15). Jeshurum é Israel, e já, por causa disto, se achava a meio caminho de ser, de novo, reduzido a escravo, agora, dos assírios, e aconteceu no século 721 a.C. Mas, de todos os povos antigos, que é feito dos egípcios?, que é dos babilônios?, dos assírios?, dos etruscos?, dos helenos?, dos fenícios?, dos arameus ou sírios?, dos hititas?, dos medos?, dos persas?, dos partos?, dos romanos? E por que dentre tantos povos antigos sobreviveram somente os judeus, ainda que sem pátria? A resposta é porque esse povo entre tantos, foi o único que representa a fabulosa escolha de Salomão:

Apareceu Deus em sonho a Salomão, e perguntou-lhe:

– Que queres que te dê?

– Dá-me, Senhor, um coração reto e justo, para eu poder julgar este teu grande povo.

Então lhe disse Deus:

– Visto que me não pediste longos anos de vida, nem riquezas, nem que te pusesse nas mãos teus inimigos, mas, em lugar destes interesses materiais me pediste o sentimento moral expresso pelo desejo ardente de ter um coração reto e justo, dar-te-ei isso mesmo que me pedes, e serás o mais sábio dos homens, de quantos vieram antes, e de quantos virão depois de ti. (I Reis, 3, 5 a 13). A respeito disto, fale Toynbee:

"A fábula Escolha de Salomão é uma parábola da história do Povo Eleito. Pelo poder da sua compreensão espiritual, os israelitas ultrapassaram as façanhas militares dos filisteus e as proezas marítimas dos fenícios. Não buscaram aquilo que buscaram os gentios, mas buscaram em primeiro lugar o Reino de Deus: e todas aquelas coisas lhes foram concedidas adicionalmente".

Esta verdade incontestável registrada pela história, marca o valor do moral sobre o material, e, por isto, e por quanto hemos dito, coloca a Doutrina do Aprendiz Maçom em nível de superioridade em relação à dos Grandes Pontífices. Porque ao Aprendiz é ensinado: "É sempre pelo ideal e só pelo ideal que nós nos dedicamos. Os homens sacrificam-se por visões, mas o que hoje o vulgo desdenha como visões são as certezas do amanhã".

E, por desventura, um Grande Pontífice pode ser relacionado

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como vulgar, trivial, ordinário? Mas, como não ser isto, se ele não pode sacrificar-se por "visões", dado que tem por certo que "o interesse material é mais poderoso que o moral"? Pois, então, que aprenda o Grande Pontífice o que soletra o Aprendiz, quando lhe perguntam: o que é o vício?

"É o hábito desgraçado que nos arrasta para o mal; e é para impormos um freio salutar a esta impetuosa propensão, para nos elevarmos acima dos VIS INTERESSES que atormentam o VULGO PROFANO e acalmar o ardor das paixões, que nos reunimos neste templo".

Que “vis interesses" são esses que pusemos em destaque, senão os "interesses materiais"? E se tais interesses materiais atormentam o "vulgo profano", acaso estariam incluídos neste "vulgo" os Grandes Pontífices, visto que defendem a tese da prevalência dos interesses materiais sobre o sentimento moral? E prossegue o Aprendiz:

"Aqui trabalhamos para acostumar o nosso espírito a curvar-se às grandes afeições e a não conceber senão idéias sólidas de bondade e de virtude, porque é só regulando os nossos costumes pelos PRINCÍPIOS ETERNOS DA MORAL, que poderemos dar à nossa alma esse equilíbrio de força e de sensibilidade que constitui a SABEDORIA, ou antes a CIÊNCIA DA VIDA". Estabeleçamos o diálogo entre Grande Pontífice e Aprendiz:

– Quê? Os princípios da Moral são absolutos, eternos?, e não, relativos?, dependentes duma cultura desenvolvida numa época, num lugar e alicerçada numa ideologia?

– Sim, responde o Aprendiz, tais princípios são eternos... desde que se trate de Moral, daquela Moral que merece ser escrita com maiúscula, porque esta é a que impera no mundo angelical, ou seja na Jerusalém Celeste. Como se vê, esta MORAL com maiúscula, nada tem a ver com as várias morais deste mundo, todas decorrentes de mores que quer dizer costumes. É por isto que o texto distinguiu moral de costumes dizendo: "é só regulando os nossos COSTUMES pelos PRINCÍPIOS ETERNOS DA MORAL ..."

– Em que, neste caso, se resume essa Moral de Serafins, de Arcanjos e de Anjos?, que deve regular os nossos costumes (mores), em vez de nossos costumes darem ser à moral? Então, é regulando nossos costumes (mores) pelos princípios eternos dessa Moral

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celeste, que podemos dar à nossa alma esse equilíbrio de forças e de sensibilidade que constitui a Sabedoria que é o mesmo que Ciência da Vida?

– Essa Moral celeste consiste no Amor; daí que a Jerusalém Celeste é o santuário do Cordeiro que expressa o Amor. O alfa e o Omega referidos no Apocalipse são o Amor... onde tudo teve começo e onde tudo terá fim, por ser ele o ponto de chegada na volta ao lugar celeste. Por isso que religião, de religar, diz respeito a este ato de tornar a ligar o que se desligou em priscas eras, quando se esfriou e se inverteu o Amor no seu contrário, no egoísmo desintegrador... E agora, só o Amor religa, donde ser forçoso reconquistá-lo de perdido, readquiri-lo, tirando-o do seu absoluto e profundo esquecimento.

– Quer dizer, então, que a Sabedoria ou Ciência da Vida se resume no Amor?

– Sim. E enquanto os homens não entenderem esta primeira e última lição do eterno Aprendiz, o mundo continuará sendo o INFERNO que é, onde, como diz Milton, "Morre a vida, e vive a morte!"

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ENUNCIADO TERCEIRO

“As religiões, filhas do grau de civilização que cada povo alcança, não podem servir para regê-lo, pois todas se

apoiam no Absoluto, e, invadindo o terrestre intelectual, o dominam, paralizam a Razão e sepultam o universo no obscurantismo".

José Ortega y Gasset escreveu um livro com o título: "Origem e Epílogo da Filosofia". A origem ele põe em Heráclito, que é o filósofo da Substância-Movimento, e o epílogo, em Parmênides, que é o filósofo da Essência-Fixa. Trata-se de dois pensamentos opostos, tese e antítese, e ao longo do eixo que liga estes dois pólos, a filosofa oscila até nossos dias..., sem que, até hoje, ninguém haja feito a síntese.

O epílogo é a conclusão, a recapitulação, o remate, o fecho, o resumo, a síntese, e Parmênides, com ser a antítese que se opõe à tese heracliteana, não concluiu, não rematou, não sintetizou nada. A tese heracliteana do transformismo e movimento perpétuos encontrou sua antítese no Ser-Essência-Pura (uno, fixo, eterno, inespacial, incausal, imaterial, abstrato, ideal, subjetivo, etc.), o qual, por um portentoso passe de mágica filosófica, foi projetado fora do homem e passou a ter Realidade objetiva, apesar de sem substância; passou a ter corpo e um mundo próprio, sem espaço físico; passou a existir, embora, sem tempo e fora do tempo; passou a ter realidade, apesar de realidade significar coisidade (res = coisa), e o Ser não ir além de pura idéia abstrata. Portanto, se Heráclito foi a tese e Parmênides a antítese, falta a SÍNTESE, e esta, sim, é que será o Epílogo...

Parmênides partiu do postulado que afirma: o Ser é, e o não-ser não é; e, fazendo isto, fixou o Ser na imobilidade até nossos dias. Como todas as qualidades do Ser (uno, incausal, eterno, imutável, imaterial, etc.) ele foi tirando do PENSAMENTO, graças a um encadeamento lógico, por isto, concluiu: Ser e pensar são uma e a mesma coisa. Daí que o Ser consiste no pensar; só é, o que pensa, e o que não pensa, não é. Daí que "Deus se ocupa só de pensar pensamentos". (Aristóteles). Daí que o ser do homem, também, a

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exemplo de Deus, consiste no pensar ; a única realidade que existe é o pensamento; o homem é tal, porque pensa. Portanto, o pensamento é o homem, ou, pela ordem inversa, o homem é o pensamento. Conseqüentemente, o pensamento é a medida de todas as coisas; e, como o pensamento é o homem, "O homem é a medida de todas as coisas". (Protágoras). Dado que o homem é a MEDIDA de tudo, primeiro de tudo ele tem de conhecer-se a si mesmo como medida que é: portanto, o princípio da sabedoria consiste no conhecimento próprio. Disto decorre a famosa sentença de Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo!" Se queres conhecer todas as coisas, hás de conheceres a ti primeiro! Para conheceres tudo terás de partir da primeira realidade que existe - O TEU PENSAMENTO. Portanto, "PENSO, LOGO EXISTO". (Descartes).

Se tudo parte do pensamento que somos, nada nos vem de fora, como conhecimento; "de fora só nos vêm impressões, e nada, além de impressões". (Hume). Se de fora só nos vêm impressões, tudo o que não são impressões não provêm de fora, mas de nós mesmos; ora, as essências, os conceitos, não são impressões; logo, não vêm de fora, e sim, de nós. Conseqüentemente, as essências que há nas coisas, nós as pusemos nelas; "nós é que pomos às coisas as suas essências". (Kant). Portanto, o conhecimento, a ciência está no homem, e não no mundo; a ciência que vemos no mundo, o homem a pôs lá, tirando-a de si; o homem não só projetou nas coisas ou pôs às coisas as suas essências, os seus conceitos, senão que projetou no mundo as leis, os princípios, a própria ciência. Portanto, a ciência é projetiva, e não, objetiva... tanto para o Realismo greco-medieval, como para o Idealismo subjetivo renascentista. E isto (que a ciência é projetiva, e não, objetiva) não é um postulado; é uma conclusão, porque, como vimos, o homem é o ponto de partida para tudo...

Assim, por exemplo, quando Galileu extraiu as leis do movimento, não foram as coisas, em situação, que lhe enviaram tais leis, mas ele sim que, de olhos fechados, as intuiu. Como ele mesmo disse, por meio da concepção da mente (mente concipio), imaginou um espaço e um móvel nele; e por meio dessa visão subjetiva foi, por pura intuição direta, tirando as leis do movimento. Se é concepção da mente (mente concipio), não é oferta do mundo; o mundo não ofereceu nem deu nada, a não ser a ocasião, a situação. Os fenômenos não nos enviam as suas leis, mas nós é

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que as apreendemos deles, e essa apreensão é a nossa inteligência dos fenômenos. Daí que inteligência vem de inter (entre) e legere (ler ou apanhar), e significa ler ou apanhar o nexo, o sentido, o princípio, a lei. Quem lê ou apanha entre as coisas o nexo, é o homem, e não que este nexo se projete das coisas... e entre no homem; o ativo, o que age, é o homem, não as coisas em situação nas quais a inteligência enxergou o nexo. O ato de co-nhecer tem sua gênese no sujeito do conhecimento, e não, nas coisas conhecidas; "nós é que pomos às coisas as suas essências", diz Kant, e não que as coisas nô-las enviem. Por que? Porque as coisas só nos podem enviar impressões; ora, as impressões não são essências. Dado que nós pomos às coisas as suas essências, e aos fenômenos, as suas leis, a ciência é projetiva; nós a criamos e a projetamos fora, no mundo. Por este motivo, os juízos científicos, como o afirma Kant, são "sintéticos a priori'; são sintéticos, porque, no pensamento, a uns se acrescentam outros; e são a priori, porque não vieram da experiência, e sim, da mente concipio, dado que da experiência sensível só nos podem vir impressões, situações, imagens, e, jamais, nunca, juízos nenhuns. A capacidade de ajuizar é própria da inteligência, e não, das coisas...

Por este argumento, a ciência é projetiva, dado que "o homem é a medida de todas as coisas" (Protágoras) donde ser preciso, donde ser necessário que esse homem-medida se conheça a si mesmo: - "conhece-te a ti mesmo" (Sócrates). Aceito isto, vem a pergunta: qualquer homem é a “medida de todas as coisas"? Segundo Sócrates, se o homem não se conhecer a si mesmo, não pode ser a medida, o metro com que medir todas as coisas. Segundo o próprio Protágoras, nem todos os homens podem chegar, pelo pensamento próprio, à Verdade Última, tornada objetiva, Deus; e a falta desta crença, no dizer de Bertrand Russel, "transforma a maioria das pessoas praticamente, em árbitros daquilo em que se deve acreditar. Partindo daí, Protágoras foi levado a defender a lei, a convenção e a moralidade tradicional". Embora agnóstico, duvidando, portanto, da existência objetiva dos deuses, Protágoras defendeu a necessidade da crença neles, pelo que eles deviam ser adorados.

Aquilo que Protágoras temia, acontece, hoje, em nosso tempo. Perdida a crença na Verdade Última que se acha escondida por detrás dos fenômenos do universo; entrando em colapso as

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religiões ortodoxas tradicionais... por causa do repto da Doutrina da Evolução, cada homem se fez arbitro, pondo-se cada um por medida de todas as coisas. Por isto, se perguntarmos para o labrego feirante ou para o inculto e grosseiro operário que se ocupa de perfurar o asfalto, qual é a raiz cúbica de 27, ou o que são seções cônicas, embora isto seja muito fácil, um e outro, provavelmente, dirá que não sabe. Agora, se perguntarmos como fazer para acabar com a violência, ou sobre se deve haver o controle da natalidade... e como efetuá-lo, como tais problemas são muito complexos e difíceis, e o bronco nem que não sabe não sabe, então, por isto, ele dará o seu solene palpite! Resultado: o homem-massa, enfatuado ou não da cultura informação, rústico operário ou doutor de anel no dedo, vive dando palpite sobre tudo aquilo de que não entende. Para saber as coisas fora de sua especialidade, todos se consultam a si mesmos, visto que qualquer um como temia Protágoras, se põe como “medida de todas as coisas". Cada um se consulta a si mesmo e acha, e, desde que acha, o que achar, isso é o certo!

Em fevereiro de 1977, foi enviado um manifesto ao Exmo. Sr. Ministro Armando Falcão - Ministro da Justiça - assinado por escritores, jornalistas, professores, cineastas, músicos, artistas brasileiros, protestando contra as restrições à LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Só que não definiram a palavra LIBERDADE, nem mostraram em que ela se FUNDAMENTA.

Todavia, o que realmente todos querem não é que haja LIBERDADE, mas LIBERDADES que é o mesmo que PERMISSIVIDADE, LICENÇA. "É proibido proibir!", gritam todos. Pouco há, a atriz Regina Duarte disse, pela televisão: "Não há de ser a censura que me vá dizer o que eu devo ou não devo ver!" Se não é a censura, será, então, quem? - Eu mesma!, exclamaria ela, pois tendo-me eu feito a mim mesma a medida de todas as coisas, doravante, o que eu achar que é, será!... "Não será a censura que nos vá dizer", gritarão todos, "o que devamos mostrar de nossos corpos, da sujeira e podridão social, da ignobilidade da vida. Nelson Rodrigues, respondendo à crítica que lhe fazia uma repórter de televisão, sobre ser seu filme "Os Sete Gatinhos" extremamente violento, declarou: "Não sou eu o culpado, minha filha! A culpada é a Vida!... A Vida é que é violenta!... Eu só mostrei a Vida!...

Esta também pode ser a justificação de todo o marginal,

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estuprador, assassino, terrorista, corrupto, imoral, etc., pois se a Vida é o padrão de moral, "ser justo é ser forte; a justiça é o desassombro do forte" (Nietzsche); ou a justiça é a sutileza do astuto. Em Esparta não era crime roubar; mas o ladrão era punido quando pilhado roubando, não por ser ladrão, mas por ser tolo. Como "este mundo é um covil de ladrões; porque se bem o considerarmos, não há nele coisa viva, que não viva de rapinas: os animais, aves, e peixes comendo-se uns aos outros, se sustentam: e se alguns há, que não se mantenham de outros viventes, tomam seu pasto dos frutos alheios, que não cultivaram; com que vem a ser tudo uma pura ladroeira; tanto, que até nas árvores há ladrões; e os Elementos se comem, e gastam entre si, diminuindo-se por partes, para acrescentar cada qual as suas”. (Antonio de Souza de Macedo – A arte de furtar). Como a Vida é uma ladroeira, e não há nela ser vivo que não viva de rapinas, todo o ladrão poderia desculpar-se, como o fez Nelson Rodrigues dizendo: "Não sou eu o culpado; a culpada é a Vida! Não sou eu o que rouba, mas a Vida que vive em mim! Ela é que é a Ladra-Mãe, ou Mor, ou por excelência! A justiça que se avenha com a Vida!, que a julgue... e a meta na cadeia!, não a mim que, pobre agente dela, faço o que ela mo impõe! ".

A revista "Glose" n.° 5, de maio de 1980, prega abertamente a sodomia como mais uma opção para o sexo... que deixou de ser um MEIO criado pela Natureza para atender a seus objetivos de variar e de perpetuar as espécies superiores, para se tornar num FIM em si mesmo. A Natureza pressiona com as exigências sexuais, para alcançar sua meta - a descendência. Mas o homem, perversor de tudo, inventou a laranja sem sementes! Para que sementes? Para que filhos?

"Fátima Porto, modelo de fotografia e atriz de cinema, não esconde sua severa opinião sobre o sexo feito no Brasil. Para ela, a mentalidade do brasileiro, em relação a sexo, é «muito idiota». Acha que as pessoas não chegam a saber o que é prazer, porque costumam deturpar o sentido das relações: – o que se vê é uma total falta de compreensão do sexo". A mentalidade do brasileiro ainda é a de que, fazer sexo, é atender as finalidades da Natureza... que é a de perpetuar a espécie. Mas isto é uma "deturpação"! Isto é "total falta de compreensão do sexo". A finalidade do sexo não é essa! Isto é o mesmo que afirmar que o homem deve

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comer para viver. Muito pelo contrário, o homem deve viver para comer... como muito bem o fazia a elite da Roma decadente: depois que o "nobre" romano se empanturrava nos seus banquetes lautos, ia esvaziar o estômago no vomitório, onde o esperava um escravo com uma pena de pavão... com a qual o glutão irritava a garganta e vomitava. Descarregado o estômago, voltava a comer... Tal qual o sexo: é uma idiotice pensar, como o impõe a Natureza, que o sexo deve servir aos objetivos da espécie. A espécie que se dane! Comer para viver é de pobre... quando pode comer! Viver para comer é de rico!... O idiota do pobre, porque sofre... e só por isto se apega com Deus e tem religião, ele que faça sexo para ter filhos! O afortunado não: este sim, sabe o que é sexo sem "deturpações"!; o que é "compreensão do sexo"!...

Ora, todo meio é limitado: uma estrada pode ser simples picada no mato, ou de terra, ou asfaltada, podendo chegar esta a ter seis pistas. Contudo, será sempre limitada pelos extremos e na largura. No entanto, se, em lugar de estrada, fosse feito um campo imenso de macadame, os corredores iriam aí transitar com suas máquinas, só pela emoção da velocidade, e nunca, com fim de chegar a lugar algum. Tal qual o sexo tornado fim em si mesmo. E como todo objetivo tende a ser transferido para cada vez mais longe, seus limites tendem a ampliar-se até que se haja esgotado todas as suas possibilidades. Face a isto, podemos estar seguros de que, da cópula anal que "Glose" mostra de modo cru, iremos chegar a todas as outras torpezas e aberrações possíveis que se podem ler na "História da Prostituição". Foi contra esta prostituição, sobretudo a sagrada, que se insurgiu Moisés para considerar o sexo coisa impura ou imunda. Aberrações quais as da prostituição sagrada podem ser vistas no livro sagrado hindú "Kama Sutra" de Vatzyayana.

Todos os recursos modernos da tecnologia, inexistentes no passado, serão empregados para exacerbar e fazer o sexo ir até o inimaginável paroxismo da loucura, onde ele se confundirá com a dor, e com o gosto de fazer sofrer. Enquanto isto, a família ir-se-á acabando, na proporção em que a libertinagem cresce e se generaliza. A perdição universal levará até os casais sadios a não quererem filhos... para os não ver degradados a posição infranimalesca, como acontece sempre quando uma civilização, como a nossa, está indo para o caos.

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No Egito decadente, ninguém queria ter filhos para os não ver usados pelo faraó, como subanimais, na construção das pirâmides. Em Roma, a facilidade dos escravos, as riquezas estorquidas às colônias e a falta de princípios morais, conduziram à degradação total. "Já Horácio havia cantado (diz Ortega): "Nossos pais, piores que nossos avós, nos engendraram ainda mais depravados, e nós daremos uma progênie todavia mais incapaz"...

Continua ainda Ortega: "Dois séculos mais tarde não havia em todo o Império, bastante itálicos medianamente valorosos com os quais preencher as praças de centuriões, e foi necessário alugar para este ofício, dálmatas, e depois, bárbaros do Danúbio e do Reno. Enquanto isso, as mulheres tornaram-se estéreis e a Itália se despovoou".

Nossa civilização, igualmente, e cada vez mais, está sendo uma civilização de riqueza, de conforto e de bem estar; e nós não estamos sabendo empregar os ócios que desfrutamos no serviço de Deus, isto é, no de nos elevarmos acima dos animais; em vez disto, estamos empregando o nosso tempo e disponibilidades no serviço de Satanás, ou seja, no sentido de nos rebaixarmos a níveis inferiores aos dos instintos que regem os animais. Pesa, por isto, sobre nós a sentença antiga mas nova do Deuteronômio: “Jesurum escoiceia porque engordou. Jesurum era o povo de Israel. Jesurum engordou e por isto escoiceia”! (Deut. 32, 15). Nós, também, tal qual Israel, damos coices, porque engordamos... A tecnologia encheu-nos de conforto, de comodidades, de riquezas, e, deste modo engordado, engrossado, alargado, não só nos esquecemos de Deus, senão ainda nos pusemos no lugar dele... ao fazer-mo-nos, cada um, isoladamente, a premissa para todos os argumentos. Para, desgraça nossa, a história tende a confirmar-se sempre: a religião coexiste com o sofrimento, e não, com a abastança, com a opulência, com a fartura de bens. O esquecimento do Ser, e, pior ainda, o esquecimento de que se o esqueceu, tornou os homens acometidos de furiosa loucura. Cada um, por seu mau fado, se fez a si mesmo "a medida de todas as coisas", como temia o próprio Protágoras.

Quem, pois, nega a norma, faz-se a si mesmo a norma, pelo que cada um, indistintamente, credenciado ou não, passa a ser "a medida de todas as coisas". Como cada um se faz a si mesmo norma, a norma fica sendo ninguém apelar para nada fora de si; e

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agora? Pois agora, simplesmente, a sociedade, a civilização se encaminha para o seu encerramento. Sem normas, pois, não há cultura, nem civilização, nem ciência, nem tecnologia. Fale Ortega: "O labrego chinês acreditava, até há pouco, que o bem-estar de sua vida dependia das virtudes privadas que possuísse o seu Imperador. Portanto, sua vida era constantemente regulada por esta instância suprema de que dependia. Mas o homem que analisamos habitua-se a não apelar de si mesmo a nenhuma instância fora dele. Está satisfeito tal como é.

A isto, pergunta Ortega: "Não representa um progresso enorme que as massas tenham «idéias», quer dizer, que sejam cultas? De maneira alguma. As «idéias» deste homem médio não são autenticamente idéias, nem sua posse é cultura. A idéia é um xeque-mate à verdade. Quem queira ter idéias necessita antes dispor-se a querer a verdade e aceitar as regras do jogo que ela imponha. Não vale falar de idéias ou opiniões onde não se admite uma instância que a regule, uma série de normas às quais na dis-cussão cabe apelar. Estas normas são os princípios da cultura. Não me importa quais são. O que digo é que não há cultura onde não há normas. (...) Não há cultura onde não há acatamento de certas últimas posições intelectuais a que referir-se na disputa”. Este é o motivo, prossegue Ortega, por que "causa inquietude ouvir falar sobre os temas mais elementais do dia, por pessoas relativamente mais cultas. Parecem toscos labregos que com dedos grossos e desajeitados querem colher uma agulha que está sobre uma mesa. Manejam-se, por exemplo, os temas políticos e sociais com o instrumental de conceitos rombudos que serviram há duzentos anos, para enfrentar situações de fato duzentas vezes menos sutis”.

"As massas avançam!", já exclamava Hegel; e, de fato, o homem-massa se acha pontificado por toda parte, pelo que o mundo se tornou, no dizer de Osvaldo Aranha, num "deserto de homens e de idéias". Porque "ter uma idéia é crer que se possuem as razões dela, e é, portanto, crer que existe uma razão, um orbe de verdades inteligíveis.(...) Mas o homem-massa sentir-se-ia perdido se aceitasse a discussão, e instintivamente repudia a obrigação de acatar essa instância suprema que se acha fora dele"... Por isto, "o homem médio encontra-se com «idéias» dentro de si, mas carece da função de idear". (Ortega y Gasset). E isto é

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válido, também, para o doutor de anel no dedo e canudo debaixo do braço. "Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é "um homem de ciência" e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio-ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportara em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio". Este sábio-ignorante "chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber". Por esta causa, "o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unipessoal de cada homem de ciência, mas porque a técnica mesma - raiz da civilização - o converte automaticamente em homem-massa; quero dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno”. As citações entre aspas são de ortega y Gasset). Este "sábio-ignorante", este "primitivo", este "bárbaro moderno", se impõe às massas como mestre de dar palpites e de opinar sobre as graves questões das quais não entende. Quanto às outras especialidades científicas, ele é modesto, e afirma que as não conhece; estas ele sabe que não sabe; quanto às graves e profundas questões, estas, como ele não sabe que ignora, por isto, opina.

Exemplo deste sábio-ignorante é o matemático de sempre, disfarçado de filósofo, Bertrand Russell que define a filosofia como “Terra de Ninguém", onde, como ele o faz, qualquer um pode realizar incursões. Tomando ele por norma a ciência, fica criticando os pensadores porque suas filosofias não são científicas, como se pudesse haver filosofia científica, isto é, como se o experimentalismo científico, ou os homens de ciência pudessem ditar normas à filosofia. Esta inversão deixa-o solto no espaço, pelo que ele confunde filosofia com devaneio, com borboletear, com arte de não fazer nada. Outro sujeito havido como filósofo é Jean Paul Sartre do qual se disse que, tendo sido invariavelmente incoerente, só nisto se mostrou coerente... E não faltou (e por que havia de faltar?!), quem

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afirmasse ser Sartre da estatura de Descartes. E tem razão: como nosso mundo ficou chato, isto é, achatou-se, tudo ficou planimétrico, não se podendo mais distinguir a terceira dimensão da estatura, da hierarquia. Por causa de a filosofia ter-se tornado "Terra de Ninguém", não há quem a defenda das incursões depredatórias dos "bárbaros modernos", dos "sábios-ignorantes", dos “primitivos" que são os cientistas fantasiados de filósofos; por causa deste abuso, até o poviléu se atreve a achar isto, e achar aquilo, a partir do quê? Pois, a partir, cada um, de si mesmo, dado que cada um se fez a medida de todas as coisas..., como justamente temia não menos que o próprio Protágoras.

Ora, à vista do quanto hemos dito, quem o havia de esperar? o Enunciado Terceiro ensina isso mesmo, ou seja, prega, como sendo um dos doze pilares da sabedoria, nada menos que esse achatamento do mundo; declara que o mundo se dispensa de hierarquias... visto que não são necessárias, e até são perniciosas, instâncias superiores, normas supremas, religiões, filosofias, para embasarem as civilizações: estas normas por si mesmas, por geração espontânea, por obra da Natureza, e por esta mesma Natureza são guiadas em seus indefectíveis progressos, daí o Progressismo. E chega ao formidando estapafúrdio de afirmar que as religiões são criadas depois de já haver civilização, e que a Instância suprema, o Absoluto, Deus, serve só para invadir o terreno intelectual, paralisando a Razão... que nasceu de si mesma... e é eterna (deusa?)..., donde a última conseqüência dessa malfadada intromissão do Absoluto: o sepultamento do universo no obscurantismo.

Assim, ao invés de o ENUNCIADO dizer que o grau de civilização que cada povo alcança, depende do seu ponto de partida inicial, do seu grau de religião, da sua concepção de Deus..., que é o Absoluto... sobre o qual tudo se assenta; ao invés disto, inverte as posições, e diz que as religiões são filhas do grau de civilização que cada povo alcança. Quer dizer: primeiro aparece a civilização, porque sim, por obra da Natureza. Depois que a civilização já existe, perfeitamente funcionando em determinado grau..., que até pode ser bem alto, aí é que se inventam as religiões com base no Absoluto. A civilização que podia muito bem continuar existindo sem as religiões, por sua má sorte, as cria; e estas, “invadindo o terreno intelectual, o dominam, paralisam a Razão e sepultam o universo

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no obscurantismo". A civilização já existia completa, com seus códigos éticos e legais, com sua moral, com seus usos e costumes bons, tudo funcionando corretamente. Aí sobrevém o desastre: a religião fundamentada na idéia de Deus, que é o Absoluto, aparece para perturbar o que ia indo tão bem, e o que era luminoso antes, com a Razão, se torna trevas do obscurantismo, agora, no seu tríplice aspecto de fanatismo, superstição e violência. Enquanto não havia Deus, que é o Absoluto, a civilização estava vitoriosamente galgando seus graus; depois, azaradamente, surge, aparece, a religião, o Absoluto, Deus..., para perturbar tudo, para sepultar tudo nas trevas do obscurantismo. Com a religião, vieram o fanatismo, a superstição e a violência!

Pois, muito bem: isso é inverter a ordem, porque, simplesmente, sem religião não há civilização. Os fautores de religiões diferem dos filósofos somente na maneira de apresentarem suas verdades. Ao nascer determinada civilização, como, nesse ponto, o povo é sumamente ignorante, o filósofo- feiticeiro, filósofo-xamã, filósofo-sacerdote-chefe, tal qual Moisés, tem que apresentar sua filosofia sob a forma de máximas peremptórias, e impô-las pela fé..., fé que é o mesmo que sugestão, e esta se define como: a aceitação duma idéia independente de prova, de demonstração, só com base no princípio da autoridade. Através da religião principia a formação dos costumes, dos usos, todos disciplinados pela supostamente indubitável fala de Deus, fala que aparece escrita, mais tarde, nos Códigos, primeiro Éticos, e, depois, Legais. Sem tais Códigos Éticos-Legais não há civilização; e sem uma Religião-Filosofia não há tais Códigos. Digam-no os antropólogos, os arqueólogos e os historiadores se já depararam, algum dia, com alguma civilização antiga que tivesse existido sem o imperativo moral nascido da Religião! Isto é um desafio que lançamos; um repto, a quem o queira aceitar...

De maneira que, à trilogia: fanatismo, superstição e violência, propomos outra que é: EGOÍSMO, IGNORÂNCIA e PODER. Só que precisamos não perder de vista o ponto já estudado atrás, que é de suma importância: a ignorância se opõe à sabedoria, e não, à ciência, porque sabedoria não é o mesmo que ciência. Vimos já isto, e continuaremos a o demonstrar: o cientista pode ser um ignorante, ou, como disse Ortega, um "sábio-ignorante"; um "bárbaro moderno", um “primitivo”!

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* * *

Opondo-se à tese do Realismo grego que se continuou por toda a Idade Média... nas sutilezas dos escolásticos, veio, por fim, a reação antitética que foi o Racionalismo renascentista o qual, desde o início, também se revelou bifrontal. Uma cara deste Racionalismo é o Psicologismo ou Idealismo subjetivo encabeçado por Descartes, a partir do seu cogito, e este modo de pensar se opôs, frontalmente, ao Realismo greco-medieval. Porque, no Realismo, o ponto de partida foram as coisas (res), e o ponto de chegada, o eu pensante. Num movimento inverso, o Idealismo subjetivo ou Psicologismo parte do eu que pensa e vai para as coisas. O pensamento, num e noutro caso, é a ponte em que se dá o trânsito das coisas para o eu, e, vice-versa, do eu para as coisas.

A descoberta dos erros científicos de Aristóteles deu azo a que se pusesse em dúvida, também, sua filosofia. A dúvida foi o ponto de partida para o cogito do maçom René Descartes, e a mesma dúvida motivou a crítica acrimoniosa de outro maçom, Francis Bacon no seu "Novo Organo". Isto significa que a tese do Realismo Greco-medieval suscitou duas antíteses ao mesmo tempo, sendo que estas duas antíteses se mostraram, também, antitéticas uma em relação a outra. Quer dizer que o Realismo Greco-medieval produziu duas oposições as quais, também, se opõem entre si, ou seja, dois Racionalismos: o Racionalismo metafísico, também chamado Psicologismo ou Idealismo subjetivo, e o Racionalis-mo empírico. Este Racionalismo empírico que também recebeu o nome de Iluminismo, é o pai da Ciência experimental, esta que frondeja na atualidade sob a forma de Cientismo, de Fisicalismo, de Tecnicismo, de Industrialismo, de Automação que já se encaminha para a Robotização. Esta corrente do Racionalismo empírico que teve o seu nascedouro no "Novo Organo" de Francis Bacon, surgido como uma das antíteses do medievalismo realista, veio incorporar-se à nascente brotada do próprio Idealismo subjetivo, agora, também tornado empírico, a partir de Locke, este que punha os sentidos, as impressões, o sensualismo... por base de todo o saber. Contudo, isto não significa que o Idealismo subjetivo, o Psicolo-gismo, acabou em Locke; ele prosseguiu rumo a Kant e aos filósofos pós kantianos Fichte, Schelling e Hegel.

A forma de saber empírico, ou Racionalismo objetivo nascido

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em Bacon e engrossado a partir de Locke, parte do postulado que diz: a ciência é objetiva, e não, projetiva; esta forma de saber experimental que parte do postulado da objetividade, se opõe como antítese à tese representada pelo outro Racionalismo, o idealista subjetivo que, como vimos atrás, chegou à conclusão oposta que afirma: a ciência é projetiva, e não objetiva. Segundo esta conclusão, nós é que, em vendo a Natureza em situação, intuímos a verdade, formamos nossos juízos; as coisas não nos enviam juízos, nem leis nem princípios, nem essências, mas, apenas impressões, e nada mais que impressões.

Em oposição a isto, dizem os sensorialistas e empíricos: a ciência precisa ser objetiva, e não, projetiva, nem finalista; ela deve regular-se pela matéria de que trata, sem interferência nenhuma do investigador. O fenômeno ocorre fora de nós, e independente de nós, e o havemos de observar, e depois provocá-lo, para que se repita quantas vezes quisermos. Observação e experimentação, eis o método da Ciência.

Foi esta forma de saber empírico ou Racionalismo objetivo, com seu postulado da objetividade que diz: a ciência é objetiva, e não projetiva; este Racionalismo objetivo que se opõe ao outro Racionalismo, o idealista, o subjetivo... cujo enunciado afirma o oposto, isto é: a ciência é projetiva, e não objetiva; foi esse Racionalismo objetivo, empírico, sensorialista, que inspirou os filósofos franceses do século XVIII, a começar pelas "Cartas Inglesas" de Voltaire, Racionalismo objetivo que recebeu também o nome de iluminismo, século este cognominado o “Século das Luzes".

"Dizer Voltaire", escreveu Vítor Hugo, "é caracterizar todo o século dezoito". Mais: "Vendo na prisão do Templo as obras de Voltaire e Rousseau, Luiz XVI, prisioneiro, disse: "Esses dois homens destruíram a França" - o que significava: sua dinastia".

Todos os filósofos enciclopedistas, ou do século XVIII, dentre os quais se agiganta Voltaire... na luta contra o clericalismo e o poder hereditário dos reis, tiveram uma missão histórica: a derrubada da nobreza e da intransigência clerical. Os ecos daquela batalha teológica, vencendo duzentos anos de história, se faz ouvir já no grau de Aprendiz, na clara alusão às masmorras cavadas sob os castelos dos poderosos, repetindo-se, depois, com forte acento, no grau 19.

Duas vezes esteve encarcerado Voltaire na Bastilha: a primeira,

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porque o Regente durante a menoridade de Luiz XV, supôs fosse ele o autor de uns versos que o acusavam de pretender usurpar o trono. Posto desta vez na rua, porque o Regente descobriu o seu engano, da segunda foi preso por ter desafiado para um duelo o Cavaleiro Rohan. Não parou, contudo, muito tempo na prisão, porque prometeu trocá-la pelo exílio na Grã-Bretanha. Aqui, na Inglaterra, abeberou-se de tudo o que faltava na França: liberdade religiosa e de pensamento; a aceitação da ciência como fundamento do saber, mas essa, com base no experimentalismo, conforme o apregoara Francis Bacon, ou na experiência dos sentidos, conforme o ensinara Locke.

Passados três anos nos quais escreveu suas famosas "Cartas Inglesas", retornou a Paris, munido de todo o explosivo ideológico que derrubaria a Bastilha. Essas "Cartas" por isto, como o afirma W. Durant, foram o "primeiro galicanto da Revolução Francesa".

A Voltaire, Diderot, D'AIambert, que eram enciclopedistas, se acrescentam Holback, Helvério e Rousseau, todos os seis maçons. Todos estes formavam um como único indivíduo filosofante, pois não havia idéia que nascesse na cabeça de um que logo não se alastrasse pelas dos outros.

Todavia, como sói acontecer, sempre que nos deparamos com urna tese e sua respectiva antítese, temos de procurar a síntese, pelo que não só a ciência, mas todo o conhecimento humano participa da dupla qualificação de objetividade e de projetividade, havendo apenas variações de graus com que tais qualificações atuam, seja no ponto de partida inicial, seja nos resultados finais. No entanto, apenas para fim de estudo, consideramos como puramente objetivas as ciências da natureza visto que partem das experiências que se realizam fora de nós. Neste caso, não há como não classificar como projetivas as ciências humanas, dado que nunca podem desvincular-se de nós donde vem que sempre estamos presentes na questão. Se não podemos abstrair-nos da questão, segue-se que tais "ciências humanas" não são objetivas como a física, a química, a astronomia, a matemática, etc., (consideradas objetivas apenas para argumentar), para serem, sem dúvida, subjetivas ou projetivas, dado que nós nos projetamos nos fenômenos. Assim, a idéia de Deus, os juízos morais, os costumes, a história, a economia, o direito, a ética, a estética, etc. são projeções nossas, e tais "ciências" serão como nós as fizermos a partir de nós. É por isso que o Jeová, de Moisés, era um Deus que andava no jardim, e Adão podia ouvir-lhe os passos e a voz (Gên. 3,

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8). Pois, então, Jeová era projeção de Moisés, assim como também seu Decálogo... que foi calcado sobre o Código de Hamurabi.

Assim sendo, Protágoras está certo, e o homem, não qualquer um, mas o de elite, o sábio, é a medida de todas as coisas. Aceitamos isto como verdade para as ciências humanas, onde tudo se reduz a opiniões; não, todavia, para as ciências da natureza, dado que estas não são projetivas, mas, objetivas, isto é, acontecem independentemente do homem. Um eclipse da Lua não tem nada a ver com o homem; agora, o problema da superpopulação, da criminalidade infantil, da violência, etc., muito pouco tem a ver com leis da natureza; são isto assuntos puramente humanos; e se tais problemas forem submetidos a regras morais, temos de convir que a moral, a religião, Deus, são projeções humanas dado que escapam à objetividade das ciências.

Se “o homem" como diz Pascal, "é, em si mesmo, o objeto mais prodigioso da natureza", que outro objeto, coisa ou pessoa, senão ele, para ser a medida de todas as coisas? É por isto que o ponto de partida para Sócrates, dado como o princípio da sabedoria, é a sentença famosa: "Conhece-te a ti mesmo!"; porque, sendo o "homem a medida de todas as coisas" (Protágoras), ninguém pode opinar sobre nada, sobretudo do que é humano, a não ser a partir de si; então, este padrão de medida, que é o próprio homem, terá de ser conhecido de si mesmo, antes de as coisas a serem modificadas com e por ele. Conseqüentemente, como escreve Gusdorf, "a fórmula de universo tem sempre validade para um universo mental e vital particular". Descartes partiu do seu primado inicial, do seu cogito: penso, logo, existo. O que significa dizer que o pensamento próprio de cada um é a medida de todas as coisas. Ora, não há homem onde não há o pensamento; ser e pensar, já o afirmara Parmênides, são uma e a mesma coisa!

Tudo isto é verdadeiro, e, nos períodos de formação e ascensão das sociedades, das civilizações, só os mais sábios tiveram voz. Talvez, no entanto, em lugar de "mais sábios" devêramos dizer "mais inteligentes", ou então, havemos de dizer que a sabedoria é progressiva e apresenta graus. O certo é que o homem não pode desvincular-se da vida, que é toda problematicidade. O homem faz parte da vida, encontrando-se não só inserido nela, como impregnado dela; ora, a vida não espera pela sabedoria plena para agir, e antes, toca por diante, empregando

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o método animal..., que é o mais antigo de quantos houve no mundo..., o ensaio-e-erro..., dê no que der. Já dizia Sêneca que, "na desgraça, há que se tomar por caminhos arriscados"; e Ortega: "só me é certa a incerteza!". "A vida é o texto eterno, a sarça ardendo à margem do caminho em que Deus faz ouvir sua voz". E é deste jeito que a vida se enriquece de experiências.

De tais experiências se acha enriquecido o sábio da tribo, quase sempre um velho cuja tarefa constitui-se em saborear os alimentos, e, pelo sabor, saber quais os saudáveis. Daí que saber tem duplo sentido: de conhecimento e de degustação. Mas não era só sobre alimentos que o velho sábio experimentado nas lides da vida, era chamado a opinar; sobre todas as coisas ele era o conselheiro de que se valia o chefe representativo do poder político. Já se vê, então, que "a medida de todas as coisas" não eram todos os homens, mas, quem de direito, tivesse, por sua comprovada inteligência, criatividade, liderança, valor e sabedoria. Se assim não fosse, não havia, como sempre houve, uns homens seguindo outros, pelo que não existiriam líderes. Pois, o que se observa é que todo homem possui inata capacidade de se deixar guiar, crédulo, submisso, por outro homem... ao qual crê que sabe mais. O mais sábio, então, o de inteligência mais atilada, o mais experiente, o mais inventivo, o de mente mais clara... que melhormente enxerga no meio da congérie, no meio das coisas em situação, o caminho a seguir, esse é o único que pode ser considerado "a medida de todas as coisas", ainda mais que ele nunca fala em seu próprio nome, mas, no de um Árbitro supremo. É, pois, sempre, em torno de um líder, ou guia, ou chefe que todas as sociedades se formam, e não que elas se formem porque sim, por leis da Natureza exterior, e depois é que aparecem os líderes, os condutores, os chefes, os filósofos-feiticeiros, os fautores de religiões. Quando se diz que os homens resolveram reunir-se em sociedade, é preciso não esquecer que, até para a reunião primeira, foi preciso quem a planejasse, a pregasse, quem a promovesse, dado que a massa sempre segue um cabeça. Se não houvesse esta anuência de todos em seguir uma cabeça, e antes, cada um quisesse seguir a sua própria, as sociedades não se formariam, como diz um brocado da sabedoria popular, "cada cabeça uma sentença". Ora, se cada cabeça for uma sentença, o mínimo que se pode esperar de uma multidão de mil cabeças independentes e atuantes, é que ela seja um Leviatã ou um Briaréu, uma confusão tal qual a da Torre de Babel!

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"Deus nasceu nos bosques" (diz Oliveira Martins). "A floresta é o berço do medo". Todavia, "não foi o medo que inventou o mito: foi a imaginação independente e por força da atividade própria. Do mito, que deu realidade a quimeras, nasceu o medo religioso: nasceu deus, cuja imagem é sempre dupla - bem ou malfazeja, terrível como as sombras errantes animadas, ou simpática à maneira da luz do céu sereno. Luz do céu sereno" é o dia claro, a claridade é Deus, e da palavra dia se derivou o termo Deus. "Não foi o sol, diz Spiegel, que primeiro chamou a atenção do selvagem. O céu noturno, cujas luzes contrastam com a escuridão da terra, impressiona muito mais a imaginação ingênua... A lua é o pai da ninhada de estrelas; a lua é homem, o sol a esposa por toda a América, por toda a África. O culto lunar é o primitivo, o solar é posterior”...

"O reinado religioso do sol começa com a civilização. É então que a lua, como todos os vencidos, desce à condição feminina e maligna... Só o sol inspira hinos religiosos e preces repassadas de um sentimento luminosamente puro. Acontece, então, que a mitologia espontânea começa a colorir-se de noções reflexas; a moral, colocando-se ao mito e dando-lhe expressão, é um sintoma de progresso... Com o primeiro deus surgiu o primeiro padre, porque uma autoridade que se sente sem se ver, a que se obedece e se teme sem se conhecer, envolve em si a necessidade de um medianeiro".

Embora Deus tenha sido projeção do homem..., a principiar por um dado homem, desde que ejetado fora desse homem, passou a ter realidade objetiva, da qual logo se passa a ver aspectos, e na qual se passa a crer. As chamadas "provas" da existência de Deus, não são autenticamente provas, mas aspectos da realidade oculta na qual se crê. Estes aspectos são seletivos e por eles se inferem não só o bem senão também os malfazejos no eterno dualismo do Bem e do Mal. 0 núcleo da idéia de Deus representa a religião ortodoxa, adotada pela maioria. Porém, como a imaginação não cessa, outros homens vão trazendo novas contribuições à idéia original, e estas contribuições são as heresias. As heresias, portanto, são um esforço de ampliar a idéia inicial, conferindo-lhe mais dados explicativos, o que permite, depois, tirar dela outras conseqüências além das aceitas pela ortodoxia. Isto acontece não só na esfera da religião, mas em toda esfera humana, inclusive no

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campo das ciências mais objetivas. Fale Toynbee: "Qualquer estudante de questões humanas que imagine poder estudá-las sem estar sujeito a alguma tendenciosidade pessoal está-se enganando a si mesmo. O melhor que um estudante de questões humanas pode fazer é perceber sua própria tendenciosidade e declará-la".

Pois, muito bem: a tendência do iluminismo consistiu em SUPOR... (e esta SUPOSIÇÃO foi havida como sendo a verdade inconteste...) que a Ciência podia ser a salvadora da Humanidade. Esta CRENÇA que não difere das demais crenças que o iluminismo ferozmente combateu..., baseia-se num POSTULADO, dito da objetividade que afirma: a Ciência é objetiva, e não, projetiva. Os pés de barro deste enunciado está em que, sendo ele um POSTULADO, é indemonstrável, e sendo indemonstrável é SUBJETIVO. Portanto, a base da objetividade é subjetiva pelo que deve ser crida de FÉ!

Partindo do postulado da objetividade, o homem seria estudado como qualquer outro objeto da Natureza. O homem se oporia a si mesmo como objeto (de objacere - jazer contra). O homem olharia para si mesmo, só que este si estava fora, espelhado, tornado objetivo, sendo, já, pura projeção. A objetividade, como se vê, é uma projeção, só que sem a consciência de projeção. Basta ignorar que a projeção existe, e já se tem a objetividade!... Este sonho do Cientismo levou Augusto Comte a afirmar: "Mostrarei que existem leis tão determinadas para o desenvolvimento da espécie humana como para a queda de uma pedra". No entanto, como bem observou Toynbee, os "assuntos humanos devem ser distinguidos da natureza humana. Por que? Porque a natureza humana faz parte da natureza em geral. E a imperfeição da natureza do universo é enorme, evidente e intrínseca". Mais: "O egocentrismo de uma criatura viva é também uma negação da moralidade. Não há possibilidade de moralidade em um mundo de criaturas vivas cada uma das quais persegue seu próprio interesse, e nada mais e nada além disso”.

Como, pois, esperar que a Natureza nos dê leis para o desenvolvimento da espécie humana, fora do biológico e no campo social, como pretendia Augusto Comte, se este desenvolvimento específico do homem implica exatamente em negar a natureza animal? Todo homem vive em conflito, até enquanto não consegue, em definitivo, agarrar o animal que é si mesmo, pela garganta,

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subjugando-o, para sempre, que nisto se cifra o ser santo que é o mesmo que sábio ou civilizado. Para quem se ache empenhado nesta luta, vale o que diz Toynbee: "A consciência diz ao ser humano que seu natural egocentrismo é errado, não o deixando em sossego antes de ter ele próprio tentado vencê-lo”. Nesta luta se em-penhava Ovídio, para dizer: "Vejo qual é o melhor caminho e minha consciência diz-me que este é o melhor, contudo é o pior caminho que sigo".

Nesta luta estava empenhado São Paulo para exclamar: – “Miserável homem que eu sou! Porque o bem que quero fazer, não faço; mas o mal que não quero, esse eu faço”. (Rom. 7, 15, 19, 24). Por que assim? Porque "o egoísmo é da essência da vida, e a natureza humana não está isenta dele (...) À medida que um ser humano dá expansão a seu egoísmo está pecando, é consciente do pecado, é censurado por seu pecado pela consciência. Pode indignar-se com a consciência e desafiá-la, mas não consegue facilmente extingui-la". (Toinbee).

Aristóteles disse que o homem é um animal social, mas não explicou por que o é, como se ele o fosse porque sim, por obra ou lei da Natureza: no entanto, afirma Toynbee que "a sociabilidade é impossível sem um código moral mínimo, aceito pela decisiva maioria dos membros de uma sociedade humana”. Ora, de onde procedem os códigos morais?, em que se baseiam eles? Se, como o afirma B. Russell, "nada na ética é conhecido no sentido científico; se não é a ciência que forma e disciplina a ética, então o que é? "Em questões de fato, podemos apelar para a ciência e para os métodos científicos de observação; mas, em questões últimas de ética, parece não haver nada análogo". Se não se pode apelar para a ciência em questões de ética, só se pode apelar para a autoridade do filósofo ou para a do fautor de religião. É assim que Cristo, contrariando a opinião geral, "ensinou que não há mal algum em se colher espigas de milho no sábado, mas que é mau odiarmos nossos inimigos. Tais inovações éticas implicam, evidentemente, uma norma diferente da geral, mas tal norma, qualquer que ela seja, não é um fato objetivo, como numa questão científica. Este é um problema difícil, e não me confesso capaz de resolvê-lo”. Pois este mesmo Bertrand Russell que se confessa incapaz de resolver o difícil problema ético, porque foge à metodologia científica, tem a insolência de classificar os filósofos do ponto de vista científico, falando em filosofia científica

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(?!), afirmando que Platão, que Sócrates são desonestos (!)... porque partem de primados morais tais como Sumo Bem (Sócrates), como a “Forma das formas que é a Forma do Bem". (Platão). Louva os sofistas, os mecanicistas (Leucipo-Demócrito, Epicuro, etc.), porque são filósofos sem preocupações morais. Afirma que, em Anaxágoras, "não se encontra a preocupação ética e religiosa que, passando dos pitagóricos a Sócrates, e de Sócrates a Platão, levou algo da tendência obscurantista à filosofia grega"... Tendência obscurantista!? B. Russell aspira a um impossível... que é uma filosofia científica. Por que é isto um impossível? Porque a própria ciência é filosófica em seus postulados iniciais, em seus primeiros princípios, e as próprias matemáticas puras têm seus alicerces postos em postulados indemonstráveis. Que seria, então, uma filosofia científica? Como criar e manter a civilização sem a moral?, e como haver moral sem religião? sem Deus? Onde é que está, em Bertrand Russell... ou em qualquer outro, a tal de filosofia científica? Dando-se à seta a significação depende da, temos: o industrialismo → tecnologia → ciência → civilização moral → religião → conceituação de Deus. O tecnólogo e o científico, em sua miopia, cuidam que podem rir-se de Deus? Pois sua ciência e tecnologia dependem de que haja civilização, e esta não existe sem moral... a única que pode desvirar a besta que o homem ainda é, em santo, em sábio... Que faça a ciência, então, este trabalho!, que nisto se cifra o desafio que já lançamos!

Diz B. Russell que "a causa tem de partir de algo e, origine-se onde quer que seja, não se pode atribuir uma causa ao dado inicial. Pode-se atribuir o mundo a um Criador, mas mesmo assim o próprio Criador não pode ser explicado. Como, aliás, também, não se podem explicar os postulados em que se fundamentam, escandalosamente, as várias geometrias, sem que se saiba qual delas é a verdadeira”. E prossegue Russell:

"Mas a experiência demonstrou que a pergunta mecanicista conduz ao conhecimento científico, enquanto que a teológica não”. É certo que a pergunta teológica não conduz ao conhecimento científico, e a razão disto é por que a teologia, como vértice da pirâmide, se opõe à sua base que é onde se situa a ciência filamentar, fragmentária, pulverizante. E se considerarmos as ciências todas, não como uma, mas como muitas pirâmides, todas de bases hexagonais, como se foram pinhões arrumados numa

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pinha, os vértices todos das pirâmides estariam reunidos num único ponto, no centro da pinha ou da esfera. Esse ponto é Deus, objeto da teologia. Lá, na periferia da esfera, onde se situam as bases das pirâmides, é o lugar da ciência que, como diz Monteiro Lobato, "conhece mais e mais a respeito de menos e menos". E daí? Daí que, conquanto a teologia não produza a ciência, produz a moral... que sustenta a civilização; e não há moral sem Deus. Logo, a teologia que fundamenta a moral, por esta viabiliza a civilização... sem a qual não há ciência. Mais:

"Os atomistas fizeram a pergunta mecanicista, e deram uma resposta mecanicista. Seus sucessores, até a Renascença, interessaram-se mais pela questão teológica, conduzindo assim a ciência a um beco sem saída". Só que, depois da Renascença, o interesse voltou a incidir sobre o mecanicismo, sobre o fisicalismo, sobre o tecnicismo, pondo em xeque-mate a própria filosofia, a própria teologia e a religião em que se fundamentava a moral; e agora? Pois agora o que ficou num beco sem saída é a própria CIVILIZAÇÃO que, por isto, desanda para a barbárie, e só subsiste ainda graças à inércia do impulso inicial, e pelo quanto ainda há no mundo de moral. Outra do "filósofo" Bertrand Russell:

"Mas se um homem é tão obstinadamente teológico a ponto de continuar a perguntar que fim tem em vista o Criador, sua pergunta se torna, evidentemente, ímpia. Ademais, isso carece de sentido, já que, para dar-lhe significado, teríamos de supor que o Criador fosse criado por algum Super-Criador, a cujos fins Ele servisse". Pois bem: visto que se pede um Super-Criador para o Criador, pela mesma razão dever-se-ia pedir um super-postulado que fundamente o postulado de qualquer ciência, ou os postulados das muitas geometrias, escandalosamente, diferentes, pelo que não se sabe qual delas seja a verdadeira. Outra do filosofastro:

"Um acontecimento é causado por outro, o outro por um terceiro, e assim por diante. Mas se perguntarmos a causa do todo, somos levados de novo ao Criador, o qual não deve ter causa. Todas as explicações causais, portanto, devem ter um começo arbitrário. Eis aí por que não constitui um erro da teoria dos atomistas ter deixado de explicar os movimentos originais dos átomos". Se o começo é arbitrário, podendo ser Deus ou o Acaso, fosse Deus então, esse começo, e assim, o fundamento meca-nicista seria o mesmo do fundamento da religião... de que nasce a

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moral... que viabiliza a civilização. Aristóteles tinha razão, sim, de reclamar contra os mecanicistas. Mais outra de Bertrand Russell:

"Platão está sempre interessado em defender idéias que tornem as pessoas, segundo sua maneira de ver, virtuosas; quase nunca é honesto intelectualmente, pois se permite julgar as doutrinas pelas suas conseqüências sociais. E mesmo nisto não é honesto; pretende seguir o argumento e estar julgando segundo padrões puramente teóricos, quando, na realidade, está torcendo a discussão, para levá-la a um fim Virtuoso”. Mas há, então, outro modo de proceder? Para que serve um discursório sem unidade de idéia, como ocorre com as conversas ao pé do fogo, em que todos falam de tudo, e ninguém chega a nada? Para que serve uma dis-cussão, se o resultado não se aplica ao homem? A verdade que nos patentiza a Natureza é a de que os fracos, ou dóceis, ou mansos, ou bons não têm lugar na vida. Contudo, nenhuma civilização se formaria se cada homem seguisse os padrões da Natureza... que são os codificados por Maquiavel, por Trasímaco, por Hobbes, por Nietzsche. Acaso, o mesmo Protágoras para quem "o homem é a medida de todas as coisas", não se viu forçado a defender a lei, a convenção e a moralidade... contra o arbítrio de um qualquer... como Bertrand Russell? Não concluiu que, embora não se pudesse saber se os deuses existem, era preciso dar-lhes culto? Logo, para Protágoras ser honesto, havia de não defender a lei, o convencional e a moralidade? Ser coveiro da civilização, lançá-la na barbárie, isso é ser honesto? Acaso ser honesto consiste em proceder como um louco que serra o pé do galho em que está trepado? Ora, Platão e Sócrates harto entendiam que, ou se salva a civilização tornando os homens virtuosos, ou tudo o mais - ciências, técnicas, industrialismio, etc... deixam de ter a mínima importância, porque a primeira condição para se ter ciência, é ter civilização! Ainda Russell:

“Um dos defeitos de todos os filósofos, desde Platão, é que suas investigações éticas procedem da suposição de que já conhecem as conclusões a que devem chegar”. Platão já dizia: "a intuição guia a dialética". Quem possui a intuição duma verdade pode expurgá-la - depurá-la de duas maneiras: pode encaminhar-se a ela pela dialética que é indutiva, como faziam os filósofos realistas, ou partir dela, dedutivamente, como o faziam os filósofos idealistas. Fora estes dois grandes métodos, há, ainda, o método

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borboleteante de Bertrand Russel, dos existencialistas e fenomenologistas, que é o de tocar em tudo, e não chegar a lugar nenhum, nem concluir nada. Conhecer, de antemão, as conclusões às quais deve chegar é próprio do mestre... que já teve sua hora de verdade; mas manter este conhecimento em segredo, é defeito? Conquanto o mestre, ao ensinar, ainda aprenda, as "investigações éticas", só são "investigações" para os aprendizes que devem surpreender-se, entusiasmar-se, ao redescobrirem a verdade. "Quem, em matéria de pensamento, de arte ou de amor, se surpreende, rompe a cercadura das evidências estabelecidas”. (Gusdorf). Por isto, como já dizia Kant, "a tarefa do mestre, em filosofia, não é ensinar pensamentos, mas ensinar a pensar”. Ensinar a pensar é ensinar a romper "a cercadura das evidências estabelecidas", o que sempre produz surpresa. Ensinar a pensar é o mestre seguir, com os discípulos, pela estrada do saber, como se ele ignorasse onde ela vai dar, regozijando-se com eles a cada surpresa nova; pois neste gozar as surpresas por parte dos seguidores, e neste revivê-las por parte do mestre, consiste a filosofia que Descartes, por isto mesmo, chamava de "ciência admirável"!... "Ora, se a filosofia nasceu da surpresa, suprimir a admiração equivale a cometer uma espécie de pecado contra o espírito. (...) O primeiro filósofo foi o primeiro que se deixou colher pela surpresa, e de modo definitivo, para toda a raça dos filósofos, pois a ele se deve o arranque inicial”. Gusdorf). Daí que o primitivo nome da filosofia era alétheia que quer dizer revelação, patentização, desnudamento, teofania (de theos = Deus + phainein = brilhar) - manifestação de Deus). Esta alétheia era a teoria, palavra órfica que, originalmente, significava "contemplação apaixonada e simpática", em que "o expectador se identificava com Deus". Esta identificação com Deus produzia o entusiasmo... que era a embriaguez, primeiro obtida pelo vinho (cultos báquicos), e, mais tarde pelo misticismo, pela fé exaltada (cultos órficos); e este ser possuído pelo deus, num e noutro caso se chamava, também orgia... que significava sacramento de purificação da alma do crente, fosse pelo delírio do vinho, fosse pela embriaguez mística. Como, logo, deve proceder o mestre, senão fazendo como Sócrates, como Platão, os quais, se mantivermos a semântica da época, produziam nos discípulos um estado de surpresa intelectual embriagante?, que nisto se cifra o entusiasmo orgiástico originado pela teoria, pela alétheia?, orgia intelectual esta que eles próprios gozaram até o êxtase profundo..., quando, na solidão e no silêncio, meditavam; um dia, sobre o

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enigma do Ser?, ocasião em que tiveram a sua prodigiosa descarga de intelecção?, a sua revelação totalizante? a sua hora de verdade?, a sua teofania?... Possibilitar aos aprendizes romperem, assim, com inaudita violência, "a cercadura das evidências estabelecidas", fazendo que, daí em diante, nunca mais, para eles, o mundo seja qual dantes, acaso é isto defeito?

Eis, pois, que a obra de Bertrand Russell representa o último estertor do moribundo IIuminismo. ÚItima vã tentativa de criar uma "filosofia científica" (?!), de forjar uma "moral objetiva" (?!)... com base no experimentalismo, de tornar viável o absurdo de uma "Salvação pela Ciência" (?!)... pois nisto se cifrou a FÉ, a CRENÇA do Intelectualismo empírico, CRENÇA e FÉ que conseguiu durar duzentos anos..., a qual, agora, analisamos, a partir do Enunciado Terceiro.

Em vez de Salvação, a Ciência nos fadou este infortúnio: "Através das lentes com que a ciência e a tecnologia nos equiparam, lançando-nos na idade atômica, podemos ver, não obscuramente, mas ao clarão letal das explosões de Hiroxima e Nagasaki, que o último inimigo do homem não é a morte mas o próprio homem. O homem é seu último inimigo e o pior: pior que a morte e que o vírus, pior que as bactérias e que os tigres de dente de sabre"... “Assim, a moralidade é infinitamente mais importante para a humanidade do que a ciência e a tecnologia. Sem moralidade não há sociedade, sem sociedade não há ciência e tecnologia, pois estas exigem um número de pares de mãos maior do que um, conforme Robinson Crusoé descobriu quando verificou que seu trabalho no primeiro bote que construiu foi trabalho perdido, porque o construiu tão grande e tão distante do bordo da água que, só contando com as próprias mãos, faltava-lhe a energia necessária para deslocá-lo e lançá-lo à água". (Toynbee). Eis aí, porque "é uma infelicidade para a humanidade que seu êxito tenha sido avaliado pelo aspecto secundário, que é o científico e tecnológico, e que suas realizações no plano das relações humanas - plano em que os desfechos do drama são a vida e o bem contra a morte e o mal - fosse um trágico fracasso". (Toynbee).

Tudo ia indo muito bem nesta rapsódia que fazemos dos textos de Toynbee, tal qual o fizemos, atrás, com os de Ortega, quando, de repente, vemos Toynbee desnortear-se. Diz ele:

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– “Nossas experiências habituais advertem-nos de que devemos dar prioridade ao estudo da natureza da psique humana, e de que precisamos estudá-la não somente pelo interesse intrínseco, como objeto de curiosidade intelectual. Precisamos também estudar a natureza humana com o propósito ulterior de aplicar nossas descobertas ao empreendimento prático de dominá-la, como já aprendemos a aplicar a ciência ao domínio prático da natureza não humana por meio da tecnologia". Mais: "Achamo-nos hoje ainda apenas no limiar deste novo domínio do conhecimento, que talvez nos ajude a nos salvarmos se conseguirmos aplicá-lo na prática. Temos todos de aprender como nos dominar a nós mesmos (disciplina que na Índia Buda já ensinava no VI século a.C.) e, depois de nos dominarmos, devemos aprender como dominar nossas relações uns com os outros".

Aqui se desnorteou Toynbee, visto que, antes de aprendermos COMO nos dominar, temos de saber POR QUE?, nos dominar. E uma vez que o exemplo de Buda foi invocado, tenhamos presente que ele ensinava o COMO por causa dum PORQUÊ ! O como era a técnica ou a prática para escapar ao sofrimento o qual, segundo Buda, só era possível, pela fuga da existência, e isto só podia ser pela anulação paulatina de todos os desejos, até o último deles... que é o desejo de ser. Porém, este como aparece por causa de um PORQUÊ !, e este PORQUÊ reside nisto: ser é mal, e, não-ser, bem. A intenção de anular-se, em Buda, decorre de sua VISÃO DO MUNDO... que lhe patenteia serem as dores e misérias e males nossos, decorrentes dos desejos cuja fonte ou raiz primária é o desejo de ser. Ora, a filosofia se define como sendo "uma visão do mundo da qual se infere uma forma de conduta". A filosofia, portanto, vem antes da psicologia. E se Toynbee argumentasse que o porquê reside em que a humanidade se suicidará, se o homem não aprender a dominar-se, a resposta é: pois que se suicide! Um agnóstico confesso, como não supõe nada, não pode dizer nada, porque todo o dito implica numa suposição de que se parte. E o método proposto do condicionamento psicológico, que implica na sentença: "temos todos de aprender como nos dominar a nós mesmos"; este método, como já propôs Skinner, do condicionamento operante, ou então, da hipnopédia, é aviltante, indigno do homem que deve ser bom por alguma razão que ele descobriu por si mesmo, ou livremente aceitou de outrem, e, jamais, nunca, porque o quer qualquer sociedade, e quer porque

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sim, ou porque o impõe qualquer governo, sem dar as devidas e aceitáveis justificações.

Caiu neste mesmo engano Fritz Kahn para quem "ser céptico é o nível mais elevado que se pode atingir no pensamento"; e conclui: "poder-se-ia dizer, portanto: O cepticismo é a religião do homem culto”. Pois bem: este céptico, que duvida de tudo, que não tem certeza de nada, e chega a fazer do cepticismo uma religião, acha-se com autoridade para sentenciar, baseado no vácuo: "É preciso banir do mundo o sofrimento. Não pretendemos ser filhos da natureza; timbramos em sermos rebeldes contra ela".

Se é nosso dever rebelarmo-nos contra a Natureza para a corrigir, porque a julgamos errada, em que nos basearemos para esse juízo, e nos alicerçaremos para esse feito? Em nós próprios? Mas, nós, porventura, não somos produtos da Natureza? E como pode o produto pretender corrigir aquilo mesmo que o produziu? Porventura, o produto que se rebelar contra o seu Produtor não é destruído por ele?... Então, nós nos basearemos em quê, para essa insurreição, sublevação, revolta? Acaso na piedade?, no amor? E de onde nos vieram tais sentimentos humanitários, senão da fé, da religião, dado que, sem controvérsia, a vida é egoísta, violenta, insensível, amoral? Todavia, se o sujeito se declara céptico, agnós-tico, como há de aceitar que haja Algo transcendental para servir de base à religião, à fé, à moral? Neste mesmo sentido de Fritz Kahn, acrescenta Toynbee:

"Não temos tempo a perder na travessia da longa e árdua estrada da infância à maturidade espiritual, agora que o avanço da ciência colocou armas potencialmente aniquiladoras em nossas mãos ainda infantis". E prossegue: "Este conhecimento (o da psicologia) pode, contudo, ser usado igualmente para uma pesquisa honesta de nossos corações, corrigir nossos caminhos e tentar honestamente elevar o padrão de nossas relações com os semelhantes a um nível que até agora só foi atingido pelos santos".

Eis aí, de novo, crença no Iluminismo, no Racionalismo empírico, defendido no Enunciado Terceiro. Agora é a salvação pela ciência psicológica, variação da salvação pelo Cientismo, pela Razão sem Deus, e, por isto, tornada deusa, isto é, absoluta. Dado que Toynbee se confessa agnóstico e depois sustenta a necessidade da religião, pelo menos para uso dos outros, sua insegurança se

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assemelha a de Protágoras que, embora duvidasse da existência dos deuses, tinha por certo que era preciso adorá-los. Dado que Toynbee se mostra inseguro e confuso, vale perguntarmos a ele: como saber quais são os nossos caminhos? Os dos santos? Mas os santos se fizeram tais, porque tinham uma meta a atingir, a partir de uma crença. Os vários métodos ascéticos, autodisciplinadores, autocondicionantes, objetivam um fim. O santo não se faz santo por obra da Natureza, mas, pelo contrário, por sua obra contra a animalidade e contra o egoísmo naturais! O método existe por causa de onde se quer ir, e este objetivo só a filosofia e a fé podem dar; método nenhum tem "causa sui", não se justifica por si mesmo. O que o justifica é o fim; daí que o método é caminho, e nada mais que isto. Ora, Toynbee sonha com uma humanidade de santos, mas sem os fins que motivaram os homens a se fazerem santos. Que queiramos e consigamos ser santos por nosso próprio esforço, por nossa livre vontade, embora empregando quaisquer métodos, isso é nobilíssimo. Porém, uma santidade pela psicologia?, imposta de fora pela hipnose?, pela lavagem cerebral?, pelos agentes químicos?, pelo condicionamento operante de Skinner?, isso é aviltante escravidão da consciência! O Estado não tem o direito nem o poder de violar a pessoa humana fabricando legiões de "santos"... por mutilação psicológica, de "santos" segundo o que ele entende por santidade!, de "santos" que sirvam aos seus interesses de Estado!, de "santos" insetos sociais!... Já dizia Nietzsche: "Ri-me muitas vezes dos aleijados que se julgam bons pela razão de serem coxos".

No entanto, caindo em si do engano, corrigiu Toynbee: "Cheguei agora a acreditar que a religião é um acompanhamento inseparável da consciência e do poder de escolha que são as características distintivas da psique humana. Segundo o meu modo de crer, todo ser humano tem uma religião pessoal e toda comunidade humana tem uma religião coletiva, quer a pessoa ou a comunidade tenham noção disso quer não. Cada um de nós, creio, tem uma religião, mesmo se nega que a tenha, e se nega de boa fé". Onde é, logo, que fica o agnosticismo de Toynbee? Se ele declara o mesmo que sustentamos contra o Enunciado Terceiro, isto é, que "oferecer ao homem a ciência como substituto da religião é tão insatisfatório como oferecer uma pedra a uma criança que está pedindo pão”?, onde, então, o seu declarado agnosticismo? Mais:

"O homem não apenas submeteu o ambiente natural mas o

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obliterou, substituindo-o por um ambiente artificial de sua fabricação. Este ambiente artificial é produto da tecnologia do homem moderno, que fez mais progresso nestes últimos poucos séculos do que em toda a duração anterior da história humana, e mais progresso no curso da minha geração do que na quarta parte anterior de um milênio. O homem dominou agora decisivamente a natureza por meio da tecnologia. Mas o vencedor foi a tecnologia e não o homem. O homem apenas trocou um senhor por outro, e seu novo senhor é mais opressor do que o antigo. O homem é ainda escravo do ambiente, mas este é agora o ambiente que ele criou para si mesmo, não o ambiente com o qual a natureza originalmente o dotou. A natureza costumava castigar o homem com chicotes; a tecnologia, própria do homem, castiga-o agora com escorpiões". Por este motivo, "entre todos os males que o homem tem feito e sofrido durante os anos de após-guerra o ressurgimento das religiões históricas acima do nosso horizonte foi o único acontecimento auspicioso... As religiões históricas podem dar ao ser humano o auxilio de que necessita para obter o contacto direto com a realidade espiritual última situada atrás e além dos fenômenos do universo... Só as religiões superiores podem ajudar a humanidade a salvar-se a si mesma, ajudando-a a reconquistar o contacto com a realidade espiritual última que é o fundamento do ser e a fonte da salvação... Os seres humanos ou são pessoas ou não são nada, e portanto a despersonalização leva-os à revolta”. Por fim, só mais duas citações para completar esta rapsódia de textos de Toynbee:

"A religião é a procura do princípio espiritual último no universo. A finalidade desta procura não é apenas a finalidade intelectual de descobrir a verdade última. Mais do que isso, é a finalidade espiritual de descobri-la com o fim de nos colocarmos em harmonia com ela... A curiosidade pode ser concentrada sobre qualquer coisa do universo, mas a realidade espiritual situada atrás dos fenômenos é, acredito, o objetivo último de toda curiosidade e em virtude disso é que a curiosidade transporta em si algo divino".

O Enunciado Terceiro, como estamos vendo, primeiro, invertendo a ordem das coisas, afirma que as religiões são filhas do grau de civilização; segundo, que as religiões não podem reger o povo, porque se apóiam no Absoluto. Até o tempo em que foi redigido esse Enunciado, supunha-se que a Razão era um dom da Natureza, e como tal, não precisava ser explicada. Ainda não tinha surgido a

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Doutrina da Evolução para demonstrar que a Razão tem história, é histórica, emergiu da vida, como a aurora, das trevas. Portanto, ela própria, ao fazer-se a si mesma, apoiou-se em algo que, embora não sendo ela, não pode desvincular-se dela. Esse algo criado por ela para apoiar-se e desenvolver-se, é o conceito que coexiste com a palavra na linguagem. O homem para pensar, não o faz por imagens refletidas do mundo em seu psiquismo, de modo primário, mas, por conceitos abstratos; e estes não existem por si mesmos, independentes do homem, e antes, foram criados por ele, numa segunda leitura do dado natural. Do mesmo modo que um homem para executar um trabalho, primeiro de tudo, tem de criar os instrumentos do seu labor, igualmente, para pensar, precisa produzir os instrumentos mentais que são os conceitos. Os conceitos são para Ortega órgãos de percepção no mesmo sentido em que os olhos são órgãos da visão. E tal como o aprendiz de um ofício que, de tanto executar o trabalho, de modo inseguro, com erros à beça, acaba sendo mestre na profissão, também o homem, de tanto pensar, de criar e aperfeiçoar os instrumentos-conceitos, se faz racional. A Razão, pois, cresce e se agiganta pelo exercício, do mesmo modo que se desenvolvem os músculos do atleta. A mesma Natureza que nos dotou com os órgãos dos sentidos com os quais sentimos o mundo sob a forma de impressões, dotou-nos, também, com a inteligência que colhe as imagens do mundo, e procede a generalização delas em conceitos, cada um dos quais é único para toda uma coleção de indivíduos de uma mesma espécie. De cavalos, de árvores, de pedras, de mesas, para cada um destes conjuntos, temos só um único conceito; e todos os conceitos ficam ocupando os lugares dos entes reais em nossa inteligência.

Dado que o conceito ocupa o lugar do ausente, cada conceito correspondendo a uma coleção de entes específicos do mundo real; seriam os conceitos e as impressões, estas que são o mesmo que imagens, como as duas faces duma mesma moeda, como o afirma Ortega? No pé da hierarquia, sim; não, porém quando o leque avança para o seu cabo, ou quando a pirâmide sobe para o seu vértice, ou quando se avança da superfície, onde estão as bases das pirâmides, para o centro unitário da pinha formada por elas. Assim, por exemplo, os conceitos de parecido, de diferente, de hierarquia, de relação, não têm o outro lado da moeda que seria o das impressões correspondentes. Não vale sair-se como se saiu Bertrand Russell que escreveu: "O argumento de Platão, de que

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não temos órgão do sentido que perceba o que é parecido e o que é diferente, ignora o córtex, pressupondo que todos os órgãos dos sentidos devem estar na superfície do corpo”.. Então, o córtex é um órgão interno dos sentidos? Parecido e diferente são relações, e estas são percebidas pela inteligência, e não pelos sentidos. O córtex, com ser a parte mais alta e mais complexa do cérebro, é, por excelência, o órgão da Razão e sede da Consciência, nunca se podendo confundir com os sentidos internos de cujos trabalhos a Consciência não toma conhecimento. Se ao sangue faltar água, o centro subcortical da sede, uma vez estimulado, envia uma "ordem" à garganta que se contrai, dando a sensação de sede; se é alimento que falta ao sangue, o centro da fome levanta o bloqueio nervoso ao estômago e aos intestinos, desencadeando os movimentos peristálticos que se traduzem por fome. Mas tudo isto acontece na zona subliminar da Consciência. Agora, reduzir o córtex, que é o coordenador e generalizador das impressões sensoriais em conceitos, em órgão interno dos sentidos? Isto é o mesmo que confundir a central de computadores em que se elaboram as dados, com os terminais coletores dos mesmos dados. Os sentidos externos são os terminais de coleta, e o córtex, a central de computação cujos re-sultados são os conceitos. Estes conceitos são recomputados para se obterem resultados mais gerais ainda, o que significa: sobre uns conceitos se montam outros, e outros, e a pirâmide sobe para a unidade do vértice, e o arranjo delas em pinha, faz que os vértices todos se reúnam no centro unitário da esfera. É assim que, como o afirmam os filósofos idealistas, não podemos conhecer o que são as coisas em si mesmas, mas, somente o que se extrai delas para nós através dos nossos sentidos; o que há é um conhecimento para nós, e não, um conhecimento das coisas em si. Conseqüentemente, para o homem, o mundo acaba sendo pura construção humana. Como cada homem enxerga o mundo de um mirante, de uma perspectiva, fica tendo razão Gusdorf quando afirma: “A fórmula de universo tem sempre validade para um universo mental e vital particular”.

Por causa disto, escreve Fritz Kahn: "Ciência não é coleção de conhecimentos, nem busca da verdade, mas sim formação de conceitos... E agora Ortega y Gasset: “O conceito é o órgão normal da profundidade", e isto, porque "as impressões formam uma rede superficial de onde parecem sair caminhos ideais em direção a outra realidade mais profunda... Cada novo conceito é um novo

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órgão que se abre em nós sobre uma porção do mundo, tácita antes e invisível. Quem vos dá uma idéia aumenta-vos a vida e dilata a realidade em torno de vós. Literalmente exata é a opinião platônica de que não enxergamos com os olhos e sim, através ou por intermédio dos olhos; enxergamos com os conceitos".

Como se vê, os conceitos são, de contínuo, criados e projetados pelo homem, decorrendo disto que "a ciência não sofre de «crises», pois é da sua essência passar por crises. Ser crítico é o característico do cientista, cuja crença consiste em nada crer, estando sempre disposto, como Abraão, a destruir os ídolos, a fim de adorar um único Deus - aquele de quem não há imagem, porque permanece para sempre incognoscível, o Misticum eternum, denominado Natureza por nós, homens modernos”. (Fritz Kahn).

Todavia, como a Natureza se acha hierarquizada, os conceitos ou essências se hierarquizam, também, em nosso espírito, começando, aqui, as dificuldades, pois temos de nos haver com conceitos que não possuem correspondentes diretos na realidade objetiva; eles não nascem, em primeira instância, das experiências dos sentidos. Aqui se radica a falha dos que redigiram o Enunciado Terceiro: para eles, o que devia reger o povo era a Razão baseada na Ciência, e não, as religiões, porque se apóiam no Absoluto. No entanto, como vimos demonstrando, a Ciência, por mais experimental que seja, tem de jogar, também, com dados fora da experiência, hajam vista os primeiros princípios e os postulados, ambos indemonstráveis, em que se apóiam ou de onde partem, os quais, portanto, têm de ser aceitos de fé.

Na distinção que fizemos atrás, entre ciências humanas e ciências da natureza, consideramos as primeiras como projetivas, e, as segundas, como objetivas...; consideradas como objetivas apenas para argumentar. Pois chegou o momento de dizermos que as chamadas ciências humanas são totalmente projetivas, no passo que as ciências da natureza o são só parcialmente, pelo que, em parte, são objetivas. Em pesquisa científica, o método é o da observação e experimentação: mas o que isto quer dizer? Simplesmente que, pela observação (humanamente já orientada pela curiosidade, pelo interesse), se colhe o material de pen-samento, formam-se os conceitos a partir das imagens, e depois sai-se a experimentar. Mas a experiência também é orientada... por uma hipótese de trabalho a priori, porque, do contrário, o

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experimentador perder-se-ia na congérie de aspectos que já existem em qualquer pormenor a ser enfocado. Sem uma colocação de problema, sem um suposto (sub-posto, posto por debaixo, como fundamento) não há o que procurar. Toda pesquisa é seletiva, e não se vai investigar tudo ao mesmo tempo numa mixórdia. Toda pesquisa implica problematização, e quem não enxerga problema em nada, nem supõe nada, nada tem que procurar, nem provar. Pois, então, a orientação da experiência, a partir da observação já, de si, norteada; a hipótese de trabalho antecipando o que se quer achar; a colocação do problema... que se crê existir, tudo é projeção humana. Projeto do homem é, ainda, o próprio método de pesquisa, afora os postulados, os primeiros princípios de que se parte para interpretar os resultados e entender o que, porventura, se achou. E depois que se encontrou a parcela da verdade, depois que descobriu a porciúncula de Universo... e que se estabeleceu o enunciado, a lei e a fórmula matemática, quando isto for possível, tudo terminou? Não. Por que agora é preciso colocar essa verdade fragmentária na hierarquia do conhecimento, em razão do que ela fica tendo sentido. Porque "o «sentido» de uma coisa é a forma suprema de sua coexistência com as demais, é sua dimensão de profundidade. Não, não me basta ter a materialidade de uma coisa; necessito, além disso, conhecer o «sentido» que tem, quer dizer, a sombra mística que sobre ela verte o resto do universo". (Ortega y Gasset). As razões menores, particulares, que aparecem numa sentença, numa lei ou numa fórmula, decorrem de uma Razão Última que se acha por detrás dos fenômenos do universo. A mais insigni-ficante roda duma máquina guarda uma relação lógica com o todo de que ela faz parte. Cumpre não perder de vista o "princípio de correlação" que nos permite ver o todo na parte, o Universo na partícula. "Dir-se-ia que a razão se fez estilhaços antes de começar o homem a pensar e, por isso, tem este que ir recolhendo os fragmentos um a um e juntá-los. Simmel fala de uma «sociedade do prato quebrado», que existiu em fins do século passado na Alemanha". (Ortega y Gasset). O prato estará completado quando cada pedaço ocupar o seu lugar no todo, e isto significa: quando a coisa for observada por todos os seus aspectos. No entanto, porque está faltando ainda juntar muitas peças do quebra-cabeça, por causa disto, "a verdade supera a medida do mais genial dos espíritos, mas o homem de gênio, o mestre, é aquele que introduz outros homens na verdade". (Gusdorf).

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Esta é a causa por que a ciência nunca está acabada, e toda ela se resolve na "formação de conceitos" (Fritz Kahn), conceito que cada vez mais rios aproxima da integral que qualquer coisa é. Isto mesmo diz Ortega: "Se fosse possível integrar os incontáveis «aspectos» de uma coisa, tê-la-iamos ela própria, pois a coisa é a «coisa inteira». Como isso é impossível, temos que nos contentar com ter dela apenas «aspectos» e não a própria coisa - como acreditavam Aristóteles ou Santo Tomás... Porque a «coisa» é «em realidade» a soma ou integral de seus aspectos”.

Por este motivo, quanto mais o homem se aprofunda em saber, mais as coisas, para ele, ganham aspectos, mais elas se organizam em hierarquia, mais passam a ter um sentido cósmico. Falar sobre qualquer assunto torna-se difícil, porque não há linguagem para expressar o que é global. Tanto que se toca em qualquer assunto, é tão grande a soma do que aflora à mente, que as palavras se atropelam ao saírem faladas, e, pior ainda, escritas. "Husserl, para ser mais rápido criou uma estenografia pes-soal; apesar disso, em seu espólio inédito, sentimo-lo, de quando em quando, desesperado por não conseguir escrever tão depressa como pensava"... (Gusdorf). Compreende-se, então, que, como diz Ortega "o verdadeiro saber é (...) mudez e taciturnidade. Não é como o falar alguma coisa que se faz em sociedade. O saber é uma fonte que unicamente pulsa na solidão". A razão deste mutismo é a falta do instrumento-conceito para expressar a experiência totalizante; "Bergson define a metafísica «a experiência integral»”.

Então, de passarmos e de repassarmos pela mente os enigmas que a Natureza põe nas coisas mais simples, nós avançamos, e, neste avanço, somos forçados a renovar nossos instrumentos-conceitos que se fizeram obsoletos. Nosso século XX é o mais rico de quantos se foram, em provas desta verdade. Fale Georges Gusdorf: "Com efeito, o século XX, ao mesmo tempo que proporcionava aos científicos e aos técnicos os resultados mais extraordinários em certos domínios bem delimitados, oferece o espetáculo de espantosa confusão intelectual. Os pesquisadores viram-se obrigados a renunciar às certezas mais familiares e a pôr de novo em dúvida os fundamentos sobre que se erguia, desde há séculos, o edifício do saber. Vivemos uma época de ruptura em todos os domínios: crise nas matemáticas e na lógica, desde as

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descobertas das geometrias não-euclidianas, da teoria dos conjuntos, da axiomática; crise na física, desde a teoria quântica, a exploração do universo atômico, a questionabilidade do determi-nismo tradicional, a mecânica ondulatória, a relatividade; crise até na biologia, com a constituição da genética e a crescente incerteza relativamente ao esquema da evolução”...

"Por uma espécie de paradoxo, operou-se uma como que inversão nas relações entre a ciência e a metafísica, e de ora avante as diversas ciências manifestam antes a necessidade de uma infusão de metafísica. De dia para dia, a experiência científica mais se afigura ser experiência humana, que põe diretamente em xeque a inteligência do experimentador. Por outro lado, sente-se a necessidade premente de restabelecer um horizonte unitário, para cada ciência em particular e para a totalidade das ciências. Tal reagrupamento, dado a multiplicidade das direções tomadas pelas pesquisas de pormenor, não pode ser levada a efeito pelos especialistas, senão que, se é que em algum dia chegue a ser realizado, exige o recurso a uma arbitragem que se inspire numa visão global da humana realidade"... Mais:

"De fato, o apelo ao metafísico manifesta-se nos diferentes domínios do saber; emana de científicos desorientados, quer porque os alicerces de seus conhecimentos parece fugir-lhes de baixo dos pés, quer porque não podem mais jungir as certezas novamente adquiridas ao complexo preexistente. 0 matemático Hadamard, no prefácio aos Fundamentos das matemáticas de Gonseth, focalizou admiravelmente esta ruptura com o esquema positivista da evolução: «Eis um estranho fenômeno sem pre-cedente na história do pensamento. Uma ciência chegada ao estado positivo está ocupada em arrepiar caminho e em regressar ao estado metafísico. E esta ciência é a mais simples, a mais antiga, a mais perfeita de todas: é a matemática». São postas em dúvida as aquisições seculares desta ciência: Eis que o “solo firme e definitivamente consolidado lhe foge debaixo dos pés, de sorte que de novo estamos patinhando, como na Idade Média”... Outro matemático, Bouligand, também ele tomado de temor do mesmo "tremor de terra" intelectual, invoca igualmente uma preferência pessoal irredutível, uma espécie de opção estranha à lógica e a suas demonstrações. "Cada matemático apela para uma metafísica, escreve Bouligand; esta varia consoante as pessoas, e,

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no conjunto, oscila entre o pólo da simplicidade unida à generalidade máxima (...) e o pólo da construtibilidade, que jamais deixará de fascinar os práticos dos problemas”...

"Por seu turno, o ilustre físico L. de Broglie realça as mesmas implicações inevitáveis entre a ciência e a filosofia: "A ciência, escreve ele, em seu desenvolvimento é necessariamente levada a introduzir em suas teorias conceitos dotados de valor metafísico, tais como os conceitos de tempo, de espaço, de objetividade, de causalidade, de individualidade, etc. Empenha-se a ciência em dar de tais conceitos definições precisas, que se enquadrem nos métodos por ela empregados, e em evitar toda e qualquer discussão filosófica a respeito dos mesmos; talvez, procedendo assim, ela faz muitas vezes metafísica sem o confessar, o que decerto não é a maneira menos perigosa de fazer metafísica”...

"Consoante o testemunho de eminentes especialistas, não existe portanto autonomia da ciência a respeito da metafísica. As certezas mais positivas prendem-se com atitudes que, em última instância, se justificam por uma prévia tomada de posição pessoal. Paradoxalmente, as ciências da matéria e da natureza parece serem cada vez mais ciências do homem. Quanto às ciências humanas propriamente ditas, psicologia, história, sociologia, o recente desenvolvimento das mesmas descoroçoou as ambições de um positivismo simplista que esperava sujeitar a realidade vivida aos esquemas de um mecanismo hirto. A experiência humana exige que a compreendamos em sua totalidade, em função de uma inteligibilidade complexa que não confere às leis e fórmulas matemáticas senão valor secundário de correlação e de explicitação. O mito do cientismo era uma espécie de romance de antecipação que a experiência não confirmou".

O destaque posto à última sentença é nosso, e o fizemos para sublinhar que o proposto pelo Enunciado Terceiro é esse “mito", "espécie de romance de antecipação que a experiência não confirmou". Depois do quanto temos dito, e do quanto eminentes homens afirmaram em nossas citações, podemos concluir, ainda pela pena de Gusdorf:

"O científico é também e antes de mais nada um homem, envolvido em sua época e que dela recebe suas orientações e

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curiosidades. A ciência não possui, nem possuiu jamais, o exorbitante privilégio de proclamar diretivas à humanidade; muito pelo contrário, recebe-as da consciência humana que se encontra em devir na história". Em razão disto, "as descobertas mais surpreendentes da física invocam sempre uma instância metafísica, na medida em que de cada vez exigem ser reclassificadas na esfera do humano. A ciência não é juiz de si própria, e o científico, que sai triunfante de seu laboratório, encontra-se por vezes desorientado perante as incalculáveis conseqüências que a pura investigação é suscetível de acarretar para a felicidade ou desgraça dos homens. Foi o que sucedeu com os matemáticos, físicos e técnicos de alto valor, que colaboraram na confecção da bomba atômica, quando se convenceram das possíveis significações de seus inventos para o porvir da espécie humana. Alguns dentre eles quase enlouqueceram; outros ofereceram o espetáculo de instabilidade moral que lhes valeu certas aventuras judiciárias retumbantes. Tais reações significam que os homens de ciência em questão descobriram, por debaixo das componentes de um caso excepcionalmente rumoroso, a existência da metafísica. A seu modo, faziam a experiência da «admiração» inaugural"...

"O metafísico, levando a efeito uma segunda leitura do acontecimento, qualquer que este seja, deve interpretá-lo em termos de valor, ou seja, deve situá-lo, em função do destino humano. Subsiste permanentemente sua missão de chamar o especialista à ordem da pessoa. Pelo que, longe de ser boca inútil, o metafísico é aquele para o qual todos nos voltamos nos momentos críticos. Imediatamente se lhe concede a palavra, em meio de universal inquietação, quando Laplace, Riemann, Darwin ou Einstein proclamam suas afirmações, e quase lhe queremos mal, por não as haver previsto. Cumpre-lhe ter resposta para tudo". E é por se haver desprezado o filósofo, desde Augusto Comte, que o mundo se acha, agora, à beira do abismo. O homem foi transformado em número, em coisa, em nada. Ora bem: "a filosofia origina-se na tomada de consciência da irredutibilidade da pessoa. Sua missão consiste em manter o sentido desta irredutibilidade contra quaisquer tentativas de captação. A metafísica não é simples promoção do instinto, do mito, da arte ou da ciência: precisa de reconhecer todos os valores, e de os criticar, a fim de obter a mais perfeita ordenação possível da existência. Os especialistas ignoram-se uns aos outros, o científico rejeita o poeta, e o poeta amaldiçoa o científico. Cabe ao metafísico assegurar indiretamente em seu nível a comunicação impossível entre os

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interessados, já que a verdade não é questão de adição ou de enciclopédia, mas sim de integração e de hierarquia de acordo com as dimensões fundamentais da humanidade". Mas a miopia do Racionalismo empírico não pôde enxergar isto. "Já Nietzsche, testemunha da violenta pressão do positivismo, denunciava "a tartufice do espírito científico". "Superstição relativamente ao filósofo", escrevia ele: "confundem-no com o homem de ciência. Como se os valores preexistissem nas coisas, e nada mais tivéssemos que fazer senão apoderar-nos deles".

Poderíamos continuar transcrevendo Gusdorf... que tem mais coisas escritas no mesmo sentido, isto é, no de mostrar que são PROJETIVAS, não somente as ciências humanas, senão, também, em grande parte, as ciências da natureza e as matemáticas. Face ao exposto, o Enunciado Terceiro mostra-se no avesso do que deveria ser, e é o seguinte:

I - As religiões são mães, e não, filhas, do grau de civilização que cada povo alcança, em razão do que podem e devem regê-lo, pois todas se apóiam no Absoluto, que é Deus, e este, invadindo o terreno intelectual, o domina, fundamenta a Razão, e tira o universo da animalidade em que se achava sepultado desde as origens, para as luzes da Civilização.

II - As religiões, portanto, em lugar de filhas, são mães das civilizações, porque estas, para se formarem, precisam de CÓDIGOS ÉTICOS e LEGAIS, e estes não têm coisa alguma em que se embasar afora Deus, que é o Absoluto. Todavia, as civilizações, em se desenvolvendo, aperfeiçoam a concepção de Deus, melhoram as religiões e humanizam mais os CÓDIGOS ÉTICOS e LEGAIS.

III - Conseqüentemente, não é dizer que as religiões não podem servir para reger o povo: há que se afirmar que não há outro modo de regê-lo. Porque as religiões, por seus CÓDIGOS ÉTICOS, atuam SOBRE o homem natural, não a favor do que ele é, mas CONTRA o que ele é, com vistas a desbestificá-lo, desanimalizá-lo, tornando-o civilizado até o limite da santidade, porque este limite é o da plenitude da civilização.

IV - O Absoluto sempre invade o terreno intelectual dado que ele fundamenta a Razão... que não tem causa sui; a Razão é histórica, tem história biológica primeiro, e social depois. Ela se

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desenvolveu, portanto, exatamente pela posição do Absoluto em que se apóia sempre. Primeiro a Razão põe-no Absoluto, e, quando supera esta posição, transpõe-no, isto é, põe-na de modo mais completo.

V - A retirada do Absoluto do complexo cultural, é o mesmo que retirar à Razão seu fundamento; sem este apoio, ela mesma, então, fica absoluta... dado que não há mais alicerce nenhum abaixo de si. Todavia, como ela, com ser histórica e ter história, não tem causa em si, em sendo retirado seu fundamento, que é o Absoluto, ela fica suspensa no vácuo!...

VI - Dir-se-ia que a Razão tem base na experiência, na ciência experimental - e, então, a Ciência é que seria o absoluto. Mas a Ciência também não tem causa em si, e, por isto, necessita apoiar-se nos Primeiros Princípios e nos Postulados, uns e outros aceitos de fé... por serem indemonstráveis. Eis aí, de novo, o Absoluto!

VII - A experiência, sozinha, nada vale - pelo que precisa ser interpretada em função de uns quantos princípios gerais da cultura; por isto que os animais sabem resolver inúmeros problemas, sem entendê-los, por puro instinto, ou, então, pelo método do ensaio-e-erro. Ora, a Razão principia, precisamente, pelo ensaio-e-erro, e, pensar, até certo ponto, é um ensaio-e-erro mental, subjetivo. E é deste modo, atuando sobre o seu objeto, sobre o mundo em situação, sobre o mundo problemático, que a Razão cresce e se revigora. O mundo é a ocasião do desenvolvimento da Razão, mas não o fautor desse desenvolvimento; o mundo é passivo, e o que é passivo não atua nem cria. Logo, o que impulsiona a Razão para o seu desenvolvimento tem que ser algo ativo. Esse algo ativo é a VIDA, donde vem que a Razão é um instrumento criado pela VIDA para ela edificar-se, para ela alcançar o seu fim - a sabedoria.

VIII - Sendo a Razão mero instrumento duma VIDA que busca sua plenitude, a Razão não é um fim em si mesma. Já vimos que ela não tem causa em si, e agora verificamos que também não é um fim em si mesma. Se não tem causa sui, nem é em si um fim, a Razão é serva, dependente, relativa, e não, absoluta, donde vem que ela depende de Algo em que se apóie e ao qual sirva, e esse Algo é a VIDA.

IX - Então, a VIDA é o Absoluto? Se não houvesse nada mais

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além e acima dela, sim! Até aqui chegou a síntese de Ortega..., que é a da sua Razão Vital. Para ele, a Razão é breve ilha flutuante no mar primário da Vida. No entanto, já construímos a ESCALA ASCENDENTE DA ENERGIA-SUBSTÂNCIA, pensando por sentenças nas quais se condensou todo o atual saber científico, e constatamos que, acima da VIDA... e nascidos desta, estão os sentimentos sobre os quais se sublima o AMOR... além do qual não há mais subir, e que, por conseguinte, o AMOR é que é o ABSO-LUTO. As religiões superiores, as religiões históricas, todas, sem exceção, pregam o Amor, e se fundam no Amor, sendo este Deus-Amor o seu Absoluto.

X - Não são, pois, as religiões que, apoiadas no Absoluto, invadem o terreno intelectual com o fim de dominá-lo, paralisando a Razão e sepultando o universo no obscurantismo. SÃO OS HOMENS DAS RELIGIÕES, porque, embora disfarçados em homens de Deus, em sacerdotes, são bestas egoístas, ferozes, filhos ainda primários da Vida, e, como esta, exclusivistas, intransigentes e imorais. A moralidade plena só se atinge no Amor, e a Vida, nesses tais, ainda não ascendeu até o Amor... que é para onde, em sua evolução, a Vida se encaminha.

XI - Os filósofos franceses cometeram um tremendo erro de perspectiva: combateram a Religião em lugar de combaterem a ANIMALIDADE NO HOMEM, ANIMALIDADE essa que se mostrou plena, em sua ferocidade, quando se desencadeou a Revolução. 0 inimigo do homem ficou e permanece intocado, incólume; porque o inimigo do homem é a animalidade egoísta e amoral, e não, a Religião!

XII - A racionalidade pura e simples, portanto, não fez e não faz o Bicho homem melhor; fá-lo apenas mais apto... a desenfrear sua selvageria, - como milhões de vezes nos atestou a história..., desde quando esse notável Bicho inteligente, por sua "Razão" (?!), descobriu o varapau e inventou seu primeiro machado de pedra..., cada um, sozinho, suficiente para desencadear o inebriante sentimento de Poder...

XIII - Conseguintemente, a hidra de que fala o livrinho do grau 19, "essa hidra de três cabeças - a Intolerância, a Superstição e o Fanatismo, que renasce sem cessar", etc., não será esmagada pelo Templo da Razão, porque a Razão não tem templo nenhum, e, em

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vez de deusa, é simples serva, meio apenas, para se chegar a um fim. 0 objetivo é a Sabedoria que é o mesmo que Santidade que é o mesmo que Amor, e, em lugar de dizer-se: Templo da Razão, há que se dizer Templo do Amor, que é a Jerusalém Celeste, tabernáculo do Cordeiro ou Cristo de Deus. E os nomes das cabeças da hidra não são Intolerância, Superstição e Fanatismo, mas EGOISMO, IGNORÂNCIA e PODER. Porque a Intolerância é já Egoísmo, exclusivismo, ambição que todo INVOLUÍDO tem de ser sozinho, único, na direção do mundo; Superstição é Ignorância, e esta se opõe à sabedoria; mas sabedoria não é ciência, entenda-se isto. Os cientistas podem, sim, ser supersticiosos... a ponto de adorarem a Razão como uma deusa, atribuindo-lhe um templo, o Templo da Razão, fazendo dela um Absoluto. Finalmente, em lugar de Fanatismo ponha-se Poder; porque o fanatismo sempre existiu, no mundo, havendo até os fanáticos e beatos da Razão...; mas, sem poder, fanático algum fez nada; todavia, com poder nas mãos, os fanáticos da Razão não só se insurgiram, violentamente, contra os fanáticos da Fé, senão que ainda derrubaram a Bastilha, o trono, cortaram as cabeças dos reis, dos nobres, e, por fim..., quem o diria?, ... as cabeças uns dos outros... É fora de dúvida que a conquista da Razão não fez o homem melhor; mas é indubitável que o tornou mais apto para vencer, para esmagar, para massacrar, sem controvérsia, todos os inimigos mais fracos; todos, exceto o último patife... que é si mesmo, porque este se acha metido na fortaleza até hoje ainda, inexpugnável da animalidade egoísta e amoral, desde suas priscas origens neste planeta! Para vencer-se a si mesmo, o homem necessita da MORAL que nasce da RELIGIÃO que se funda no ABSOLUTO que é o AMOR que é DEUS.

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ENUNCIADO QUARTO

“A Metafísica e a Psicologia, ocupadas no abstrato, perdem-se em vãs especulações ou caem no Absoluto, pelo que nunca fizeram progredir a civilização".

A Metafísica e a Psicologia nunca propiciaram o progresso da civilização. Se “a Metafísica e a Psicologia, ocupadas no abstrato, perdem-se em vãs especulações ou caem no Absoluto., pelo que nunca fizeram progredir a civilização; vale perguntar: o que são Metafísica, Psicologia, abstrato, absoluto e civilização? Seis partes são oferecidas a estudo neste enunciado do Século XVIII, como sendo a sabedoria exigida ao neófito para entrar na Jerusalém Celeste.

Embora a Metafísica e a Psicologia já tenham sido abordadas atrás, iremos vê-Ias de novo duma nova perspectiva - uma perspectiva globalizante, sintética -, e que será a filosofia do futuro. Retomemos a filosofia; de novo, do seu início:

Em prosseguimento aos filósofos de Mileto, que procuravam a substância ou matéria original por excelência, da qual tudo o mais se derivou, veio Heráclito para quem o que há é um fogo eterno de onde tudo saiu, e para o qual tudo retorna, e isto mesmo sustentaria Nietzsche na sua teoria da eterna recorrência, eterno retorno. Dentro deste vasto ciclo de fogo a fogo, tudo está em mudança, sendo tudo um vir-a-ser em que nada é, porque, no tempo que é, está deixando de o ser para tornar-se noutra coisa... a qual também não persiste, mas se muda em outra, e assim por diante...

Contra este mobilismo heraclíteo levantou-se Parmênides declarando haver uma contradição lógica na doutrina de Heráclito, porque é impossível que o ser não seja... sempre e constantemente o que é. Partindo, então, da premissa de que o ser é, e o não-ser não é, tirou ele todas as propriedades do ser que são: único, eterno, imutável, ilimitado, imóvel, etc. Como as propriedades essenciais do ser são as mesmas do pensar, Parmênides fixou a frase... da qual se conservou um fragmento, que diz: "Ser e pensar são uma só coisa". Esta frase fechou o parêntese aberto por Heráclito e, desde então, a filosofia esteve sempre entre os pólos que representam estes dois

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antagonistas, Heráclito e Parmênides, nascidos quase ao mesmo tempo, em dois lugares extremos do mundo grego - Eléa e Éfeso.

Sendo que ser e pensar são uma e a mesma coisa, para ser, é preciso pensar, e só é, o que pensa. O ser do homem consiste no pensar. O homem é tal, porque pensa. O pensamento é o homem. Como tudo é tirado do pensamento, este se torna a medida de todas as coisas; como o pensamento é o homem, "o homem é a medida de todas as coisas". (Protágoras). Mas, o homem, como metro que é, precisa conhecer-se a si mesmo, para, a partir desse conhecimento de si, poder avaliar as coisas. Daí o "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates. Assim, diria Sócrates: para conheceres tudo, primeiro hás de partir da tua realidade fundamental - o teu pensamento. Por meio deste teu pensamento, conhecer-te-ás! Pensa pois, e que o objeto deste teu pensamento, seja ti mesmo!

Isto é o mesmo que a fórmula cartesiana: pensar é ser - "penso, por isto, sou"; ou então, a fórmula parmenídica: ser é pensar. "Deus pensa pensamentos" (Aristóteles); logo, o Ser de Deus consiste no pensar, tal qual o homem cujo ser, também, consiste no pensar.

Como romper este círculo do pensamento reflexivo que, partindo de ser-sujeito, sempre recai sobre si mesmo?

Atentemos, primeiro, para o seguinte: no ato do conhecimento precisamos distinguir, de um lado, o ato, e'do outro, o objeto. Como fenômeno psíquico, o ato do conhecimento é atividade mental, pensamento dinâmico, pensamento-onda, vibração. Este pensamento vibração, dinâmico, ondulatório, em acontecendo..., este ato cognitivo recai sobre um objeto, sobre uma coisa, pelo que tal pensamento é intencional, proposital, ativo, portanto, querido pela vontade, e dirigido para o seu objeto. Conseqüentemente, uma coisa é o pensamento em se dando no sujeito, e outra, o objeto pensado, exterior ao sujeito.

Do mesmo modo que todo pensamento é pensamento sobre algo, todo querer é querer algo, toda sensação é sensação de algo, todo amor é amor a algo, toda aspiração é aspiração a algo, etc. Esse algo pensado se acha em oposição ao sujeito, como objeto (de objacere que é jazer em oposição ou contra)..., não podendo, por este motivo, ser confundido ou identificado com o ato subjetivo de pensá-lo. Esse objeto, conquanto motive o sujeito a querer pensá-lo, é, em si mesmo, passivo, inerte, estando toda a atividade e movimento no ato

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de pensar existente no sujeito. Portanto, o fenômeno psíquico evidenciado no ato de pensar, resulta da vontade, do querer. Todavia, como uma coisa é o querer, e outra, o querido pela vontade, pela mesma razão, uma coisa é o ato de pensar, e, outra, o objeto desse ato.

Assente que o ato de pensar recai sobre o objeto do pensamento, então, este recair sobre o objeto é, para o ato, essencial, pois, se não houvesse o objeto sobre que recair o ato, não haveria o ato de pensar. Ninguém poderia pensar nada! Conseqüentemente, duas são as condições que impossibilitam o ato de pensar: ou que o ato fique sem o seu objeto, ou o objeto fique sem o ato. No primeiro caso, o homem se dispõe a pensar, mas não sabe sobre o que pensar; no segundo, há o sobre que pensar, mas o sujeito se recusa a dirigir a esse quê seu pensamento. No primeiro caso há uma impossibilidade ontológica, e, no segundo, uma impossibilidade psíquica, volitiva.

Se o objeto pensado sempre está fora e em oposição ao sujeito, como objeto, não podendo, por isto, ser confundido, ou identificado com o ato subjetivo de pensá-lo, então está errada a afirmação de Parmênides de que ser e pensar são uma e mesma coisa, porque o ser é o objeto, e o pensar, o ato; e como o ato não é o mesmo que o seu objeto, porque ambos se opõem, segue-se, então, que um não é o outro.

Face a esta verdade iniludível... de que o ser-objeto se contrapõe ao pensar-ato, pelo que um não é o outro, está errada a afirmação de Parmênides de que ser e pensar são uma só coisa. "Uma e mesma coisa" é igualdade: logo ser = pensar ; e como pensar é ato, então ser = ato. A ser verdadeiro o enunciado parmenídico, de que pensar é igual a ser; de que o algo pensado e o ato de pensá-lo são uma e a mesma coisa, pela mesma razão, a coisa amada é igual ao ato de amá-la; aquela coisa que se aspira ou pretende é idêntica ao ato de aspirá-la ou pretendê-la; o objeto desejado ou querido é equivalente ao ato de desejá-lo ou querê-lo; em síntese, quaisquer objetos, que todos são opostos ao sujeito, deixam de o ser, para serem a mesma coisa que o ato subjetivo... existente no sujeito. A objetividade, conseguintemente, é idêntica a subjetividade, o que está fora é a mesma coisa do que se acha dentro do homem, em todos os pontos, pelo que ninguém precisa do mundo para nada, dado que o ato de pensar e o mundo são uma e a mesma coisa. Tanto é assim,

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que Parmênides não precisou do mundo espontâneo, do mundo à mão... que ele tinha desde a ponta do próprio nariz, para conceber o seu mundo fixo do Ser. Parmênides, partindo do seu postulado de que o Ser é, e Descartes, do seu cogito, um e outro criou um "mundo" de pura idealidade, completamente desvinculado do mundo verdadeiramente real, dado que real vem de res que significa coisa.

E como é que o mundo, em sendo pensado, entrou no sujeito, para ser aí, nele, o mesmo mundo que se acha lá fora? Esta pergunta que, para Parmênides, não tinha sentido, passou a tê-lo para o resto dos filósofos gregos e medievais. Para estes pensadores, o universo, o mundo, as coisas entram na inteligência pelos sentidos. Se "nada existe na inteligência que não tenha entrado através dos sentidos"; se tudo procedeu de fora, então não foi gerado dentro... a partir do primado parmenídico, e, mais tarde, do cogito cartesiano; então, o mundo passou a ser para o homem somente depois que este homem, primeiro, pôs o mundo como objeto, e depois, recriou-o, internamente, pelo ato de pensar, ficando este mundo interior semelhante ao visto fora. O mundo subjetivo é produto do primado parmenídico?, ou do cogito cartesiano?, ou é oriundo dos sentidos?

Mais coerentes com a premissa pensar = ser, estiveram os filósofos idealistas ao afirmarem que o mundo, as coisas, só nos podem enviar impressões, e, não, essências, juízos, princípios. Nós é que criamos o mundo a partir das intuições inatas. O mundo que vemos fora, é o mesmo que criamos dentro, em nossa inteligência. E como não há passo do mundo para o eu, pela mesma razão, não há trânsito dos objetos exteriores para o ato de pensar.

Então, o ato de pensar não recai sobre objeto algum exterior, ficando desde sempre em si mesmo, sem transitividade. Portanto, o ato de pensar é igual ao objeto do pensamento que isto é o mesmo que dizer: pensar é ser, ou pensar = ser ; logo, o ato de pensar com se tornar reflexivo, recai sobre si mesmo e fica sendo: ato de pensar sobre o ato de pensar, ou então, pensar sobre o pensar..., tal qual o faz Deus, como o afirmara Aristóteles. Como, segundo esta sentença, não é necessário mais o objeto do pensamento, porque este foi substituído pelo seu equivalente ato de pensar, igualmente não é preciso também o objeto do amar, do querer, do sentir, do desejar, do aspirar, etc. Ninguém precisa de nada, e todo sujeito se basta a si mesmo, tal qual Deus, e o objeto exterior (mundo, coisas) poderia não existir, nem nunca ter existido, sem que isso afetasse a essência do

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sujeito. A única diferença, então, entre o homem e Deus, é que o homem é um deusito, e Deus, um Deus grande. Cada homem é só si mesmo sem que haja, para ele, outros homens; porque, se os houvesse, esses ser-lhe-iam objetivos, exteriores a si..., e quaisquer objetos foram absorvidos na essência do sujeito. Para o deusito homem, também, não poderia existir o Deus em grande, pela mesma razão de Deus ser-lhe objetivo..., e tudo o que é objetivo (objeto do pensamento) tornou-se puro ato de pensar no sujeito. Como o próprio Deus foi tornado um com o homem, o homem ficou sendo o único deus, e como o Deus de Aristóteles, só se ocupa de pensar sobre o pensar, de amar o amar, de querer o querer, de sentir o sentir, de desejar o desejar, de aspirar o aspirar. Tanto para Deus, como para o homem, basta o ato, porque ter o ato é ter a coisa, o objeto, dado que pensar = ser; “penso, por isto sou”. (Descartes). “Ser e pensar são uma só e mesma coisa”. (Parmênides). Toda e qualquer transitividade do sujeito para o objeto, ou deste para o sujeito cessou; todo verbo, outrora transitivo, tornou-se reflexivo, e a ação verbal recai, agora, sobre o sujeito.

O objeto é, então, igual ao pensamento a respeito dele? Basta pensar qualquer coisa para tê-la? Pensar = ser, ou vice-versa? Ser e pensar são uma mesma coisa? Pois, então, todo homem é só consigo mesmo, único, solitário, sem os demais homens, sem o mundo e sem Deus...

Esta redução ao absurdo nos põe patente que a sentença parmenídica (ser = pensar) e o cogito cartesiano (pensar = ser) estão errados. Portanto, ser e pensar não são a mesma coisa. Se ser não é idêntico a pensar, também o ato de pensar não é equivalente ao seu objeto, e se Deus se ocupa só de pensar pensamentos, de pensar sobre o pensar, como queria Aristóteles, ele não pode saber nada sobre o mundo, nem sobre os homens, dado que só pode pensar-se a si mesmo, e nada mais e além de si mesmo...

Posto isto - que ato de pensar é diferente de objeto do pensamento, porque o primeiro é psicológico, dinâmico, ativo, intencional, dirigido pela vontade, proposital, e, o segundo, ontológico, estático, passivo - posto isto, que ato de pensar e objeto do pensamento são diferentes, havemos de concordar, no entanto, que são semelhantes. Em que consiste a semelhança? A semelhança consiste em que um e outro é pensamento. E qual é a diferença? A diferença reside (e nisto se cifrou o engano das filosofias

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transatas) em que o ato de pensar é pensamento dinâmico, em acontecendo, fluente, vibratório, aderente à vida, ao mundo, tal como eles são em REALIDADE, no passo que o objeto do pensamento é pensamento acabado, pronto, estático, parado, fixado, imobilizado na essência, no conceito, no princípio, na lei, na pura IDEALIDADE.

Ora, a vida, as coisas, o mundo, tudo é movente, cambiante, calidoscópico, vir-a-ser, tornar-se, devir, como o notara Heráclito, e o pensamento dinâmico... por ser ato de pensar, acompanha a vida, o mundo, buscando fixar os aspectos cambiantes desse mundo em quadros parados, estáticos, sob a forma de conceitos, de essências. Por isto, os conceitos e as essências são pensamentos parados, semelhantes ao que obtemos com um filmador cinematográfico. Se fosse possível representar pictograficamente os conceitos, poderíamos fazer uma série dessas representações que seria como um filme, não de imagens ou figuras, mas de conceitos. Projetadas essas representações numa tela de cinema, teríamos um "discurso visto" com os olhos. Um discurso é isso: uma série de conceitos arranjados de modo a dar-nos um sentido. Cada conceito ocupa o lugar do ausente que lhe corresponde, em nossa inteligência, porém, esse ausente não aparece na forma primária, como imagem refletida em nosso psiquismo, parelha, portanto, à realidade exterior, com todos os seus pormenores, e sim, como ausente conceptual, genérico, irrepresentável por figura, e que, portanto, só pode simbolizar-se por palavra. Uma palavra simboliza um conceito, e um conceito representa uma multidão de entes individuais seme-lhantes. O conceito fixa na imobilidade da idéia, somente o que for comum à multidão dos entes semelhantes vistos in natura. Aqui, na Natureza, está a realidade que, de fato, existe; lá, no mundo interior, subjetivo, estão os conceitos e as essências fixados na intemporalidade, e que, portanto, não existem, porque existir é estar no tempo; as essências e os conceitos são, como entes de razão, mas não existem, por estarem fora do tempo, da causalidade, do espaço, da mobilidade, etc.

Assim como a realidade cambiante do mundo se fixa na série de quadros do filme; assim como uma sinfonia se fixa nos sulcos do disco; de modo semelhante, graças ao ato de pensar, o mundo, as coisas, a vida, o movimento se congelam rio imobilismo dos conceitos, das essências. Todavia, as essências, os conceitos não

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são réplicas mentais exatas da realidade natural; dado que nunca esgotam essa realidade, e, em razão disto, hão sempre de estar-se enriquecendo de novas significações; elas só se tornariam perfeitas, se pudessem corresponder, algum dia, in totum, à coísa em si, objetiva, fora de nós. Dado que a Natureza, o Mundo, o Universo é mutável, cambiante, móvel, a Realidade o é também, que realidade é o mesmo que coisidade.

Consequentemente, não há dois mundos, separados, estanques, como o entendeu Parmênides, sendo um o mundo do ser; e o outro, do não-ser. Nem é que estes dois mundos se achem encaixados um no outro, como supuseram os idealistas, criando-se o problema insolúvel de como pode o fixo e o móvel interatuarem-se reciprocamente. O problema não existe, porque não há o fixo; o fixo não é real, para ser apenas ideal, estando, por isto, só na nossa inteligência. O real é o móvel, cambiante, calidoscópíco, transformável e não o é só no conteúdo, na substancia, na matéria, senão também na forma. A forma e o conteúdo variam sempre, obrigando-nos a fixar essa mobilidade formal em séries de conceitos encadeados, como os pontos obtidos nos cálculos de funções, por onde passam as linhas dos gráficos; por exemplo: nascituro, bezerrinho, vitelo, garrote, novilho, touro, boi de carga, etc., afora ainda as particularizações que fazemos por meio de adjetivos qualificativos.

O real é o móvel, o transformável, o fenomênico, o existencial. O ideal é o fixo, imovel, imutável, simples recurso da Razão; Razão, a primeira técnica, que, antes do “Homo technicus", não só aprendeu a desfilar os quadros móveis colhidos da natureza, na imaginação, senão que ainda esquematizou cada série de entes naturais semelhantes num único ente de razão - o conceito, o Mundo verdadeiro, pois, não é a Realidade fixada no imobilismo das idéias, como queriam os gregos, nem é a idealidade como pretendiam os filósofos modernos: o mundo é cambiante, fenomênico, existencial, fluente, um só com dois aspectos opostos, inextri-cavelmente unidos, que são o formal e o substancial. A forma e o con-teúdo variam juntos, sem descoincidências, sem defasagens, não por atuação de um sobre o outro e vice-versa, mas porque os dois aspectos, tese e antítese são faces da mesma moeda, são um na síntese da coisa. Mesmo nos fenômenos, quaisquer que sejam, não há nada fixo, e quando um fenômeno se repete, isto se chama refazer o ciclo em continuidade. A constância na variação é a lei, mas

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constância, repetição, ritmo, compasso não pode ser considerado como imobilismo, como fixismo... Ora, uma coisa qualquer é uma SÍNTESE entre FORMA e CONTEÚDO, sendo mais do que a forma, e mais do que o conteúdo se estes fossem concebidos em separado. Uma forma pura, sem conteúdo, sem substância, é uma abstração... que só é na nossa inteligência como conceito; uma substância pura, sem forma de nenhuma espécie, é o caos ininteligível. Como atua a forma na substância e vice-versa? Pois uma não atua sobre a outra, porque não há uma e outra dado que ambas são UMA, e qualquer alteração ocorrida numa coisa, ocorre na forma e no conteúdo ao mesmo tempo.

A forma, não só a externa, mas todo o universo formal..., é propriedade da substância organizada; tomar forma é organizar-se; a forma é organização da substância, desde sempre, assim como sua desorganização é o caos. Por isto, toda atuação na substância é, concomitantemente, atuação na forma, é trans+form+ação. A raiz do vocábulo é form; trans ou tras é prefixo que significa "ir além de"; e ação é o ato. Logo, se alguém, não importa se animal, ou homem, ou Deus, quiser formar seja lá o que for, terá de atuar na substância trans+form+ando-a... do que era antes, no algo novo que intentar. Na roda de oleiro, o artesão dá nova forma ao barro, ou seja, muda-lhe a forma anterior que isto é transformá-la em vaso, em pote. Ora, é fora de discussão que, se a forma pode mudar-se ou ser mudada, então, é porque ela não é fixa. E não sendo fixa, que sentido tem, logo, a proposição dos filósofos idealistas no que concerne a estarem encaixados um no outro o mundo do ser e o do não-ser... do que resultou o seguinte problema insolúvel: como atua o que é fixo no que é móvel, e vice-versa? Como atua a alma sobre o corpo, a forma sobre a substância, e esta, sobre aquela?

Move-nos a riso ver os pensadores esfalfarem-se por demonstrar como pode a alma-essência-pura, como FIXA, atuar no corpo... todo transformismo, e, reciprocamente, como pode o corpo atuar na alma. A hipótese dos dois relógios independentes, mas, sincronizados, é absurda..., porque o relógio da essência eternamente está parado. E como se pode falar em sincronismo entre algo móvel, e algo, parado? Absurdo! Como falar Descartes e outros em "alterações da alma", sem ligação, mas simultâneas com as alterações do corpo, e vice-versa? Alteração vem de alterar (alter - outro, e ar - tornar) que significa tornar outro, modificar ; e como pode

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o que é fixo, alterar, modificar? Se, no torno, o formão fixo pega a madeira móvel, o formão come a madeira, e sai a peça torneada! Se, no carro em movimento, a faixa fixa do breque se atrita com a roda móvel, pára a roda, e pára o carro. O mesmo, com o motor que começa por mover-se sozinho; depois, por meio da peça chamada fricção, ele se conecta com o resto do veículo... e o arrasta ao movimento. No atrito do móvel com o fixo, ou anda o fixo, ou pára o móvel, ou o fixo e o móvel se gastam, se comem mutuamente. Como, então, resolver o problema de o fixo e de o móvel se interatuarem, sem que o fixo se mova, e sem que o móvel pare?

Eis a resposta: na Realidade da Natureza ou da Técnica, simplesmente não há tal problema; o fixo só é possível em idéia e é o conceito ou essência, o qual, por isto mesmo, é só ente de razão. Em Realidade não há artifício possível que permita, por exemplo, quebrar o conteúdo de uma pedra, deixando-lhe incólume a forma anterior. Ao se lapidar o diamante, atua-se no conteúdo e na forma juntamente, pelo que o brilhante sai facetado, reverberante de luzes irisadas, não só no conteúdo, senão também na forma. Pela mesma razão, o corpo e a alma não são duas coisas, mas UMA, não havendo pura alma sem corpo orgânico, nem na Terra, nem nos Céus, valendo isto, portanto, também, para todos os espíritos quaisquer que sejam suas hierarquias, e, o que é mais, para Deus. Subindo-se pela hierarquia da ENERGIA-SUBSTÂNCIA... como já o fizemos alhures, deparamos com o seu último termo, além do qual não há mais subir, e este ÚLTIMO TERMO é o AMOR. Esse AMOR é a Substância ou Matéria de Deus. O que é, então, Deus como ESSÊNCIA, Deus como FORMA? Dado que Deus é Amor, a Forma ou Essência de Deus é a FORMA ou ESSÊNCIA DO AMOR...

Heráclito já tinha dito que o princípio genital de tudo, assim como também o jazigo de todas as coisas é o eterno FOGO... que sempre arde, e jamais se apaga. Fogo é luz e calor, tanto o da combustão que combina o combustível com o seu respectivo comburente, como da fissão nuclear que abre um átomo em dois ou mais diferentes, como o da integração (empacotamento) de átomos de hidrogênio pesado na formação de átomos de hélio. Esta produção de hélio por integração de núcleos de hidrogênio, operação inversa, portanto, da fissão, é a que nos proporciona todo

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esse dilúvio de luz e calor manado do Sol. No entanto, em qualquer dos casos, a luz e o calor são energias; e energia é massa (matéria), donde se segue que matéria é energia e vice-versa, ou então, que matéria e energia são termos reversíveis entre si. Como as energias se transformam umas nas outras, com perdas dinâmicas (degradação) e ganho evolutivo, o último termo de degradação dinâmica, além do qual não há mais descer, corresponde ao último termo da evolução além do qual não há mais subir, e este termo é o AMOR. Este, portanto corresponde ao FOGO de Heráclito (IGNE NATURA RENOVATUR INTEGRA! - o fogo renova todas as coisas)..., princípio e fim de tudo; este é a MATÉRIA primordial... que os filósofos miletanos procuravam...; este AMOR é a ENERGIA-SUBSTANCIA-DEUS em todas as religiões históricas, isto é, superiores. Fale Ortega:

"Quando Aristóteles (em rigor, antes dele se produziu o termo) se encontra com que tudo está "feito de alguma coisa" como cadeiras e mesas e portas estão feitas de madeira, chamará a esse ente de que (ó ex oy) estão feitas todas as coisas, a "madeira" (hylé) - entende-se, a “madeira por excelência, a última e universal madeira ou "matéria". Nossa palavra matéria não é senão a madeira metaforizada".

A “Matéria primordial" dos filósofos de Mileto, a Luz incriada... que deu princípio ao Universo, o Fogo de Heráclito, tudo é essa "madeira por excelência, a última e universal madeira ou "matéria”; é a em que tudo se reduz, ao evoluir, termo final... além do qual não há mais subir, visto haver atingido o último estágio da Madeira ou da Matéria que é o Amor. Não podendo ir por diante nas transformações, isto é, não podendo subir mais, pode, contudo, descer, cair, pelo que, com isto, esse ALGO (Fogo, Luz, Madeira última, primordial Matéria, etc.) se torna na matéria prima de que tudo é feito em nosso baixo mundo.

Eis, pois, que o começo e fim se confundem, como ocorre com tudo o que é cíclico. Aquilo que se lê no Apocalipse (22, 13), e diz: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro", refere-se a um grande ciclo, o maior da Criação, de Algo que era no começo, e o será no fim. Esse Algo está no tempo, porque só o que está no tempo tem começo e fim. E nada pode estar no tempo, na mudança, na transformação, no movimento, que não esteja, também, no espaço. Estar no tempo e no espaço é ser

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material, ou substancial. Substância diz sub-estância, estância embaixo, sub-estar ou estar por baixo como suporte da coisa, como matéria da coisa que temos sob as vistas, e podemos, às vezes, até tatear.

Desde já, todas as coisas, sem nenhuma exceção, mostram-se duplas em sentido, respondendo a duas perguntas: o que são?, e de que são feitas? O que é isto?, isto é uma mesa. De que é feita? É feita de madeira, de ferro, de pedra, etc. Que é?, pergunta pelo que a coisa é, pela forma, pela essência, pelo ser-da-coisa. De que é feita?, pergunta pela substancialidade da coisa. Como as substâncias são transformáveis, é intuitivo que existe uma matéria, uma substância primordial, primeira, primária, primaz, Alfa e Princípio de que se fez o Universo e tudo o que nele há.

Os primeiros filósofos, no VI século a.C., buscavam a substância que fosse primordial na ordem das transformações, da qual tudo o mais decorresse. Procuravam responder à pergunta: o que existe? Pois claro: quando supomos que uma coisa existe por si mesma, logo verificamos que procede de outra, e esta, de outra... e assim por diante. A pergunta só estará respondida quando for achada a Substância basilar, o Princípio e o Alfa do Universo. O ar, a água, a terra, o fogo, ou os quatro elementos juntos, foram propostos como sendo a Substância fundamental.

Heráclito (576-480 a.C.) de Éfeso - Jônia - assentou que o fogo era o elemento primitivo de tudo, graças ao qual tudo está em perpétuo movimento e transformação. Nada está quieto, tudo muda, tudo passa, tudo é um em passando, um tendo sido e um estando a ser; tudo era um fogo crepitante no começo e sê-lo-á no fim. 0 Fogo primordial, matriz e nutriz do movimento e da transformação, é o Princípio genital, assim como também o seu jazigo, onde tudo começa, e em que tudo se converte; ele é Alfa e o Ômega!

Neste ponto do desenvolvimento filosófico, surge Parmênides (450 a.C.), natural de Eléia, que disse: - existe uma contradição lógica na doutrina de Heráclito, porque ele afirma que o que é, não é. Se tudo o que é, deixa de ser o que é, para ser outra coisa, então não é! Para ser, é preciso que seja sempre.

A dupla acepção do verbo ser, que é ser e existir ; ser, como verbo de estado, e existir, como verbo de movimento, visto que

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implica tempo e transformação; esta duplicidade de acepção permitiu a Parmênides a transposição de sentido: procurava-se pelo que existe, fundamentalmente, que é o começo da cadeia de transformações observáveis na Natureza; Heráclito afirma que não há esse "quid" basilar, porque tudo está fechado num circuito de mudanças em que começo e fim se confundem no FOGO.

Nada é, no sentido de nada existe, basilarmente, a não ser o próprio movimento. Parmênides toma o verbo ser na acepção de verbo de estado, do ser que é, que sempre é si mesmo, porque não muda, porque não está no tempo, e diz: o que Heráclito supôs fosse o ser-em-mudança, porque nunca é, por isto, não é. Logo, isso que nunca é, é o não-ser.

E partindo Parmênides do seu ser que é foi criando o que se convencionou chamar Metafísica, dado que se opõe à física que é a Natureza. Com isto, Parmênides fixou o Ser na imobilidade, e ninguém conseguiu tirá-lo daí para o movimento. Porque o Ser é Uno, por isto mesmo é Absoluto. Porque é puro Pensamento, por isto é abstrato. A Metafísica, pois, é o Realismo greco-medieval nascido a partir do primado de Parmênides: "ser e pensar são uma só coisa" cuja fórmula, por conseguinte, é: ser = pensar. A Psicologia ou Psicologismo é esta mesma fórmula às avessas: pensar = ser, e nasce do cogito cartesiano: penso, por isto, sou. Pois a tudo isto o Enunciado Quarto chama "vãs especulações" que "caem no Absoluto, pelo que nunca fizeram progredir a civilização". No entanto, esta sentença, além de não ser verdadeira, porque o homem não prescinde do Absoluto, já em suas tomadas de posições iniciais, já em suas verdades últimas, ainda expressa uma ingratidão e inconsciência sem limites; quem está em cima, sobre os ombros dos antecessores, é certo que enxerga mais longe, porém, é porque se acha sobre os que ficaram mais embaixo. Isto mesmo diz Ortega da filosofia, e por isto a compara ao "número da «torre humana» que faz a família de acróbatas no circo". Suponhamos que fosse possível aos pensadores do Século XVIII negarem esse apoio; ou melhor: suponha-se que nossa Civilização se acabe em nada. Como é que tudo há de começar de novo, senão refazendo todo o passado? Então, como poderia progredir a civilização sem esse passado em que se apóia, ainda mesmo quando é para negá-lo? "Assim como o homem não pode saltar por cima de sua sombra, também a humanidade não pode ultrapassar sua própria história”. Como, logo, chamar "vãs" a essas especulações, e afirmar que elas

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"nunca fizeram progredir a civilização"? Essas "vãs especulações" conservam o mesmo grau de validade duma criança que só serve para dar trabalho, além de dormir, comer e brincar... Porém, como sem ela não há o homem adulto produtivo, não se vá dizer que a criança não presta para nada: pois, além de ela valer por ser pessoa humana, vale também por ser o adulto em potência, o adulto em que ela se transformará!... Seria o caso de alguém ter admoestado a Benjamim Franklin, falando-lhe da tolice que representava, um homem sério, como ele o era, ocupar-se de empinar papagaios!...

O pensamento filosófico que move o mundo ocidental, tinha que principiar, que partir de um ponto. "Dir-se-ia (diz Ortega) que a razão se fez estilhaços antes de começar o homem a pensar e, por isso, tem este que ir recolhendo os fragmentos um a um e junta-los. Simmel fala de uma "sociedade do prato quebrado", que existiu em fins do século passado na Alemanha". Sendo assim, "a dialética é a obrigação de seguir pensando, e isto não é um modo de dizer, mas uma efetiva realidade". Por esta razão, "se os filósofos antecessores já não houvessem feito essas «experiências de pensamento» teria que fazê-las o sucessor e, portanto, permanecer nelas e ser ele o antecessor". Eis por que "A verdade metafísica é o denominador comum dos metafísicos: ela os aparenta por detrás das polêmicas em que se envolvem, os desmente a uns pelos outros, ao mesmo tempo que os verifica mutuamente pela convergência da mais essencial e generosa intenção que manifestam. Mas a verdade não é afirmação particular, nem a soma de todas as afirmações possíveis: ela continua sendo um projeto sem cessar e por cada um reafirmado, projeto que se trai desde que se instala". (Gusdorf). "Daí que contra o que o profano acredita, as filosofias se entendem muito bem entre si: são uma conversação de quase três milênios, um diálogo e uma disputa contínuos numa língua comum que é a própria atitude filosófica e a presença dos mesmos bicórneos problemas"... "Deste modo, a série dos filósofos aparece como um só filósofo que houvesse vivido dois mil e quinhentos anos e durante ele houvesse «prosseguido pensando»". (Ortega y Gasset).

Todo esse labor metafísico começou quando Parmênides trocou o sentido de SER, como verbo de movimento, que equivale a existir (exemplo: "Haja luz"; ou "a luz seja", ou "a luz exista", como está no Gênese), pelo sentido de verbo de estado em que SER é estar parado, fixado na imobilidade. Perguntava-se pela substância: o que

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existe?, e Parmênides respondeu à pergunta não formulada: quem é? - donde a resposta: o ser é...

* * *

E a Psicologia, em que consiste? A palavra foi criada por Aristóteles, aparecendo em seu livro De Anima, e possui hoje várias conotações. No Século XVIII, Wolf deu ao termo psicologia dupla acepção de racional e empírica. Como empírica, a psicologia é ciência experimental, não havendo nada contra ela. Como racional, ela é a concepção filosófica segundo a qual tudo parte das intuições sediadas na alma humana, sendo tais intuições os a prioris... fontes de todo o conhecimento deduzido deles, conhecimento que, por isto, aparece como a posteriori. É o Psicologismo..., termo que aparece no Século XIX "e designa em primeiro lugar qualquer filosofia que assuma como fundamento os dados da consciência, isto é, da reflexão do homem sobre si mesmo”. (Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia). Por conseguinte, o termo Psicologia referido no Enunciado IV é o mesmo Psicologismo do Século IX, ou Filosofia Moderna do Idealismo, surgido a partir do cogito de Descartes.

Ora, o Idealismo ou Psicolgia Racionalista é a mesma Metafísica, porém vista de perspectiva oposta. Os filósofos miletanos principiaram por uma substância que existe subjacente as coisas (res), e esta filosofia se chamou realista. Quando, da substância que existe (res), Parmênides fez a transposiçao para o Ser que é, este Ser, embora ideal, foi havido por real. Por oposição, o mundo objetivo que nossos olhos vêem e nossas mãos apalpam, ficou sendo o mundo de irrealidades, de sombras, de ilusões. Houve, portanto, o trânsito das coisas (res), da realidade objetiva, do mundo exterior, para o eu que pensa, dando a fórmula ser = pensar – ser, aqui, já tomado como sendo a essência, e não, como a coisa in natura. No Psicologismo ou Idealismo, o trânsito foi do eu que pensa para o mundo exterior. O pensamento é ponte; Descartes partiu do pensamento como de existência indubitável, para deduzir primeiro o eu, depois Deus, depois o mundo. Depois de Descartes, todos os filósofos idealistas fizeram o mesmo, isto é, partiram de uma idéia, de uma intuição a priori, inicial, para dela deduzirem tudo. Se Francis Bacon chama “teia de aranha” à Metafísica, ao pensamento grego, porque, embora tenha começado na substância, nas coisas, abandonou-as para fixar-se na idéia, como não lhe havia, ainda mais, de parecer teia de aranha o Idealismo que só chegava às coisas, ao mundo, depois de estar a teia armada, pronta?

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“Se o espírito do homem”, segundo Bacon, se expressou, “atuar sobre dada matéria, atuará de acordo com a substância dela e por ela se limitará; mas se atuar sobre si próprio, como a aranha a tecer sua teia, será uma coisa sem fim, acarretando com isso teias de aranha de conhecimento, admiráveis pela delicadeza do fio e do trabalho, mas sem valor ou utilidade”. (Will Durant, História da Filosofia). Ora, quando Bacon tinha trinta e cinco anos é que nasceu Descartes; e aquilo que Bacon, imputava ao Realismo greco-medieval, Descartes, e os idealistas cumpriram ipsis litteris.

Este empirismo preconizado por Bacon, no alvorecer dos tempos modernos, pós medievais, veio engrossar-se com a corrente de John Loccke em que se apoiaram todos os filósofos fautores da Revolução Francesa. O Realismo destes filósofos franceses, com ser empirista, se opunha polarmente ao outro Racionalismo, o subjetivo, de base cartesiana, ao qual, por seu subjetivismo, foi chamado Psicologia, e, mais tarde, Psicologismo. Então, é como diz o Enunciado Quarto: "A Metafísica e a Psicologia, ocupadas no abstrato perdem-se em vãs epeculações...” Abstrato por que? Porque uma e outra toma o Pensamento por realidade, e o Mundo, por ilusão.

Como querendo tornar outra vez ao Mundo objetivo, àquele mundo dos filósofos de Mileto e de Heráclito, assentaram os filósofos empiristas que esse Mundo objetivo é que é o Mundo real, e aquele outro, o dos metafísicos e idealistas é quimérico, ilusório, irreal, mundo "abstrato" em que os psicologistas e metafísicos se perdem "em vãs especulações ou caem no Absoluto" etc. Quer dizer: o Absoluto, assim como as especulações psicologistas e metafísicas são vãs, vazias, inúteis, porque só o real e palpável é o verdadeiro. Só tem valor o que for objetivo; o resto é vã espe-culação sem valor ou utilidade. Estamos, pois, nas nascentes do Cientismo, do Tecnicismo, do Industrialismo, da Automação e da Robotização. Faz duzentos anos que foram lançadas as bases de nossa civilização tecnológica, e isso, com a promessa de que nossa Terra transformar-se-ia num paraíso.

Como diz o Enunciado Quarto que "a Metafísica e a Psicologia, ocupadas no abstrato, perdem-se em vãs especulações ou caem no Absoluto, pelo que nunca fizeram progredir a civilização”, segue-se que progresso é tudo o que vemos hoje, que nos enche os olhos de maravilha... e de terror! Para os pensadores do Século XVIII, civilização é Cientismo, é Tecnicismo. E é?

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O Cavaleiro da Águia Branca e do Pelicano afirma, ainda hoje, que a palavra perdida é a “Liberdade de Consciência”. A liberdade que se procurava, foi conseguida no Século XIX, e deu no laissez-faire, na calamidade do Industrialismo e na bem merecida reação de Karl Marx, criador do Comunismo... este que forçou o Intervencionismo, estatal que pôs limites à liberdade. Que lição se tira disto? Pois não é outra senão a de que quando a besta... que ainda é o homem, quer ser livre, é preciso impor-lhe férrea mordaça..., porquanto só podem ser livres, saibam-no todos, o sábio e o santo. Acaso, então, a Palavra Perdida é a "Liberdade de Consciência"? Ou é o Ámor, o único que se opõe frontalmente ao Egoísmo que provoca todos os males do mundo?

Voltaire escreve: "Não devemos dizer: «inventemos princípios por meio dos quais possamos tudo explicar» e sim, frequentemente: «Façamos cuidadosa análise da matéria e em seguida tentemos ver, com muito cuidado, se ela se coaduna com algum princípio»”. Pusemos algum princípio em destaque para, agora, perguntar: que princípio? Princípio é donde se parte, e, por isto mesmo, se chama princípio! Ora, como é que este princípio apareceu, para ser invocado depois, e servir de base à cuidadosa análise?, e isto, com o fim de verificar se tal análise, então a posteriori, se coaduna com ele que, com ser princípio, se mostra a priori? Mas como pode ser isto?, se todo princípio é abstrato, e já se negou validade ao que é abstrato? Mas, prossegue Voltaire:

"O Chanceler Bacon mostrou o caminho que a ciência deve trilhar... Mas depois surgiu Descartes e fez justamente o contrário: em vez de estudar a natureza, quis adivinha-la... Ele, o melhor dos matemáticos, criou apenas romances no terreno da filosofia". Eis a inutilidade da Psicologia, no entender de Voltaire à frente dos Enciclopedistas. E contra a Metafísica e Psicologismo assenta Voltaire como há de ser a sabedoria: "É nos possível calcular, pesar, medir e observar; esta é a filosofia natural; o mais não passa de quimera".

Pois, então, que nos venha Voltaire com sua observação, com seu peso, com sua medida e com seu cálculo, e nos diga por que a vida é egoísta e amoral, cuja lei é a da vitória do mais apto, do mais forte e do mais astuto?; por que o cordeiro é para os dentes do lobo, o pombo para as garras e bico do gavião? Venha com sua observação, peso, medida e cálculo dizer-nos: por que o homem

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deve lutar contra sua natureza animal, negando-a, para ser o oposto da animalidade, que nisto se cifra o ser santo?! Que é da moral científica que a Ciência prometia, em razão do que, ufana, investiu contra Deus, fundamento das religiões que alicerçam a moral?

Em "Sistema da Natureza" diz o Barão d'Holbach, irmão nosso: "Se recuarmos até os começos, descobriremos que a ignorância e o medo criaram os deuses; que a fantasia, o entusiasmo ou o embuste os ornaram ou desfiguraram; que a fraqueza os adora e a credulidade os conserva; e que o costume os respeita e a tirania os ampara com o fim de fazer a cegueira do homem servir a seus próprios interesses”. Pois bem, Holbach! Vem cá, agora, e vê isto: já não estamos nos começos; cessou a nossa ignorância científica, pelo que nossa tecnologia já vence a automação e caminha para a robotização; o medo que, segundo dizes, nos fez criar Deus, já não existe, e, por isto, retornamos à Natureza cuja moral é a de Nietzsche: "ser justo é ser forte" ou astuto; pelo que "a bondade ou a justiça é o desassombro do forte". E agora que todos sabemos por Nietzsche, Sartre e outros que "Deus morreu”, que "seu trono é uma poltrona vazia”; agora que sabemos que "morreu, acabou", nada havendo depois da morte, pelo que tanto faz ser um santo como ser um demônio; agora que tudo isto aconteceu por obra do Cientismo, do Fisicalismo, do Tecnicismo, nosso medo, aquele mesmo que, outrora, criou Deus, tornou-se no medo dos homens-feras, medo dos bichos-homens com os quais nos ombreamos nas grandes cidades, ninguém mais tendo segurança, porque o homem se tornou no diabo materialista e ateu capaz de todas as torpezas inimagináveis.

Temos sobre a mesa o jornal "O Estado de S. Paulo”, de 13/7/79, que traz uma nota com o título: O Limite da Crueldade. Isto mostra que Joseph Mengele não está sozinho! Diz a nota que na fronteira da Tailândia com a Malásia, a polícia tailandesa descobriu... que um casal de contrabandista de drogas, sequestrava criancinhas, matava-as, substituia-lhes as entranhas por drogas, a fim de poder passar, com elas, na fronteira, como se estivessem dormindo... Como é, então, Irmão Diderot: continua o Irmão pensando que "o primeiro padre surgiu quando o primeiro velhaco encontrou o primeiro tolo"? Pois agora, como não somos mais tolos, todos somos velhacos..., e a civilização vai soçobrar na barbárie!... Os homens ao deixarem de ser tolos, como o queria o

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Irmão Diderot, tornaram-se, agora, além de velhacos, astutos e fortes... como era de esperar-se, pois tal o impõe a lei das selvas. Com poder infinito nas mãos, o bicho-homem requintou-se em perversidade; este foi o resultado de a tecnologia ter-se plantado num mundo ainda imoral, e, agora, sem salvação, porque assassinaram Deus... e Deus está morto... Que se pode seguir disto? Diga-o Albert Einstein que, interrogado sobre quais seriam as armas usadas numa Terceira Guerra Mundial, respondeu não fazer a mínima idéia, mas, acrescentou: se chegarmos, contudo, a uma Quarta Grande Guerra, as únicas terríveis armas usadas serão machados de pedra.

Que é, pois, civilização? Civilização é a vitória sobre a animalidade; é a negação daquilo que a Natureza impõe a todo bruto ou seja: ser forte, ou ser astuto, ou ser ambas coisas ao mesmo tempo, no que é mestre o bicho-inteligente, sendo a astúcia a macro-lição que a todo o instante nos dá a Natureza, do animálculo ao bicho-homem, e se resume na camuflagem, no mimetismo, no fingimento, no ludíbrio, na falsidade, no engano, na mentira, tudo tendo em vista desnortear o inimigo, por sua vez, sempre atento e traiçoeiro. Os mais geniais homens da Terra, em todos os tempos e em todos os lugares, observando a Natureza, a grande madrasta e sem entranhas e cega e amoral, conceberam SUA NEGAÇÃO TOTAL num DEUS BONDOSO. Logo esse DEUS principia a falar na MENTE do iluminado, e essas falas de DEUS se transformaram em REGRAS nos Códigos Éticos, e estes passaram a reger a conduta individual, os costumes, o comportamento na vida comunitária. Armou-se, então, o SISTEMA FILOSÓFICO que explicasse a razão dessa inversão, dessa negação da Natureza: Ei-lo:

No Princípio, ALGO que saiu de Deus, e por isto é Deus, porque ficou autônomo, porque ficou livre, corrompeu-se, inverteu-se, negativou-se. Por causa disto a CIVILIZAÇÃO consiste em negar a negação ou seja, em negar a Natureza que nega o Sumo Bem. Esta volta a Deus, desde sempre, se chamou RELIGIÃO que vem de religare, e só se religa aquilo que, tendo estado ligado antes, desligou-se depois.

As religiões superiores, históricas, portanto, não nasceram da ignorância e do medo, mas da sabedoria clarividente de alguns gênios, e os fautores de religiões foram os primeiros filósofos. A ignorância veio depois, quando, por faltarem mentes iluminadas,

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homens medíocres, enfatuados por um saber insignificante, se fizeram sacerdotes e pastores; como não podia ser de outro modo, esses ignorantes se mostraram quais eram, medonhos, terríveis, quando detiveram nas mãos o PODER. Aí, então, os teólogos calhordas, empregando sofistarias, torceram o sentido dos textos sacros, acomodando-os às conveniências suas de bestas que eram, fazendo da religião um mal. Aconteceu, então, que a canalhice e os canalhocratas, amplamente, se instalaram nos postos de comando, e foi o reinado furibundo da canalhocracia!

A ignorância veio depois, mais tarde ainda, quando, já no Século XVIII, os filosofastros desse tempo, coveiros da Metafísica e da Psicologia, não entendendo nada do fenômeno histórico que estava bem nas pontas de seus narizes, negaram o Ser, o Absoluto, Deus, proclamando a Natureza suprema mestra. Em lugar de aceitá-la como uma realidade invertida no negativo, no avesso, negando que ela, nessa manifestação de negativo e de avesso, pudesse servir de base para a MORAL... SEM A QUAL NÃO HÁ CIVILIZAÇÃO, em vez disto, afirmaram-na a ela como estando na sua forma positiva, direita, correta. E, ao mesmo tempo, em vez de irem verificar o que de sublime dizia a Religião, na sua lídima pureza original, premeditadamente, confundiram-na com a canalhocracia reinante. Não quiseram entender que a Religião nega a Natureza negativa, egoísta e amoral, porque seu objetivo único, porque não há outro, é desvirar o bicho-homem da animalidade grosseira, façanha esta que a tal de "filosofia natural" (?!) jamais poderia realizar.

Aqueles coveiros da Metafísica e da Psicologia confundiram filosofia com ciência; confundiram Civilização com Cientismo, com progresso material; confundiram Evolução com desenvolvimento industrial, com tecnologia. O resultado daquelas ignorâncias e confusões colhemos agora: a CIVILIZAÇÃO (que nunca foi progresso tecnológico, mas DESEJO DE CONVIVÊNCIA FRATERNA) se derroca hoje, e, em meio a todo esse explendor moderno de fogos de artifício e de consumismo frenético, irremediavelmente, ruma-se para o caos. Se depois da Terceira, chegar a haver uma Quarta Guerra Mundial, as armas usadas serão machados de pedra! (Einstein).

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ENUNCIADO QUINTO

"A Literatura não pode ser um facho, de vez que abraça erros e verdades de uma época, servindo assim para consagrar o Mal, com o prestígio da antiguidade, ou o Bem, e este é tão limitado, que melhor auxilia a Educação que a Sabedoria".

A Literatura não serve para alumiar, como se fora um archote, porque abraça erros e verdades duma época, servindo, assim, tanto para o Bem como para o Mal, ficando um e outro consagrado pelo prestígio da antiguidade. Mas este Bem é tão limitado, que a Literatura acaba por auxiliar mais à Educação que à Sabedoria.

A primeira pergunta que cabe fazer, em relação a este Enunciado é: que é a Literatura? E a resposta mais espontânea nos diz que ela é uma arte, e, como tal é meio de comunicação; é o retrato que patenteia, perpetua, o que foi certa sociedade numa dada época. Ela é o veículo de transmissão de cultura entre as gerações. Povos, sociedades, sem registros nenhuns, são sociedades e povos sem história. Portanto, a arte é a mesma história apresentada com exaustiva minudência.

Artistas do último período glaciário, deixaram nas paredes das cavernas pinturas e desenhos perfeitos de bisontes, ursos, mamutes, cavalos selvagens, armadilhas com que se pegavam animais até do porte de mamutes, cenas de combate a arco e flecha, cenas de caça ao cervo e à cabra montês, etc. Nota-se até que houve uma evolução dos desenhos para traços cada vez mais rápidos, dinâmicos, em linhas de movimento, quais nossos desenhos pedagógicos modernos. De tais desenhos excessivamente esquematizados originaram-se as escritas primitivas. Muito pode colher o especialista (antropólogo) destes desenhos; no entanto, como não havia ainda escrita, a história de tais povos cavernículas é apenas presumida. Igualmente não se gravaram nem se grafaram os sons dessa época que, por certo, não era muda nem silenciosa... Houvesse literatura nesses recuados tempos, teríamos, por isto mesmo, sua história.

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A generalização que fizemos há pouco - "a arte é a mesma história apresentada com exaustiva minudência" - tem sua plenitude na literatura, dado que esta não só retrata a sociedade, seus usos e costumes, senão que também transmite todos os conhecimentos até então alcançados. Em sentido amplo, portanto, a Literatura é archote, pois que ilumina e nos permite enxergar o passado.

Enxergar o passado, dissemos, embora esse facho também permita iluminar o futuro. Nem o pitecântropo, ao pé do fogo, que conservara do incêndio da floresta ocasionado por raios, nem o Homo Neandertalense com seu martelo e machado de pedra, nem o Homo Sapiens de Crô-Magnon, todos sem escrita, puderam iluminar o futuro com o archote da Literatura, porque esta ainda não havia. O primeiro, para nossa civilização ocidental, foi Moisés que, após descer do tope do Sinai, levantou acima da cabeça seu livro de pedra, seu archote de idéias... que encheram de luz o primitivo por dentro e iluminaram trinta e cinco séculos de história; ele, o primeiro que impôs ao homem do ocidente a precisão de espancar as trevas interiores do seu passado animal. As sentenças "não furtarás! ", "não matarás!", são absolutamente desconhecidas da Natureza!... Depois veio Cristo e lançou as bases do homem perfeito cujo ele é modelo, e que ainda hoje é projeto apenas para a multitudinária maioria. A Literatura evangélica, a Boa Nova, continua sendo Nova e Boa apesar de seus quase dois mil anos de existência (Novae sed Antiquae), e continuará insuperável pelos tempos que se hão de contar.

Disto se tira a segunda definição de Literatura: longe de ela ser apenas o “retrato que patenteia, perpetua, o que foi certa sociedade numa dada época", é, sobretudo, o projeto da Civilização futura; não, apenas, "o veículo de transmissão de cultura entre as gerações", mas, ainda, plasmadora da sociedade que há de vir... Se o literato-historiador se ocupa do passado, e o escritor, do presente, o profeta vislumbra o futuro e o descreve; e esta descrição também é Literatura... E quando o Profeta maior, Cristo, afirma que o primitivo (cachorrinhos – Mat 15, 26) se há de virar de besta egoísta e amoral em civilizado, em santo, sem o que seu mundo ruirá na barbárie... quantas vezes o homem se esquecer disto, esta Literatura (!), não só é que serve à Educação, como o afirma o Enunciado Quinto, senão que ela expressa a própria Sabedoria!...

Só esta Literatura que antecipa o porvir, e, por isto, pode atuar no presente criando o futuro, só esta se consagra, não tanto

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por ser antiga, mas pela verdade que estabelece. Se "o prestígio da antiguidade" tivesse força para fazer perpetuar o que foi considerado maléfico e errado pela crítica, a história não seria diálética, isto é, feita de tese, antítese e síntese. A tese seria, então, o passado consagrado contra o qual, em vão, a antítese lutaria; mas não; a antítese vence a tese que a antecedeu no tempo, e se impõe. A história, portanto, se desenvolve pelo método dialético que copia, em tudo, o ensaio-e-erro animal; quer dizer: faz-se uma experiência sem se saber no que vai dar, e isto é a tese; depois, toca-se a fazer exatamente o contrário que é a antítese; numa terceira fase, que é a da síntese, junta-se o que for bom da tese com o bom da antítese. Um exemplo, para aclarar:

O Capitalismo do século XIX, com ser, em muitos aspectos, execrável, suscitou a antítese do Comunismo, igualmente, em muitos aspectos, também abominável. A síntese será a junção das partes boas de um e de outro, do que resultará um Capitalismo socializado ou a Socialização do capital, que é para onde, tanto os países capitalistas como os comunistas estão indo. A propriedade tem que ser privada, mas com função social.

A afirmação, portanto, de que o erro, o desacerto e o Mal se perpetuam com base no prestígio da antiguidade, é uma afirmação improcedente, injustificável, vazia, carente de provas e exemplos históricos; por que? Porque, invariavelmente, quando o erro, o desacerto e o Mal se perpetuam em determinada civilização, esta se desfaz em nada... Não é preciso muita inteligência para entender que o erro, o desacerto e o Mal, em vez de construir o que quer que seja, destroem tudo o que, por ventura, haja sido feito em épocas anteriores. O erro da construção das Pirâmides acabou com o Egito; o erro da Guerra do Peloponeso, após ter-se desfeíta a Liga de Delos, acabou com a Grécia; o erro, entre outros, de permitir que loucos se fizessem imperadores em Roma, fê-la cair para sempre. Nos últimos estertores de Roma, a guarda pretoriana vendia o cargo de imperador, depois assassinava o ambicioso para revender o cargo a outro idiota qualquer... "Gibbon descreve como o senador Didius lulianus, cego pela ambição, gastou imensa fortuna para comprar dos guardas pretorianos o cargo de imperador, depois que aqueles acabavam de assassinar o ocupante precedente. A história desenvolve-se rapidamente até o final inevitável. O imperador recém-impossado mal teve tempo de comer

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o jantar preparado para o seu predecessor - a comida ainda estava quente - quando foi por sua vez assassinado". O erro de Luiz XVI, de Maria Antonieta e de toda a nobreza da França em não pôr em prática o conselho dos ministros Turgot primeiro, e, depois, Necker, que consistia em “apertar o cinto”, fê-los, a todos, literalmente, perderem as cabeças; o erro de supor que a Razão, a Ciência e a Tecnologia podiam criar um Céu na Terra, pelo que Deus se tornou numa hipótese desnecessária, inútil, senão até prejudicial, vai derrubar nossa Civilização ocidental, ou, então, ela vai ter de endireitar-se, isto é, sair do puro horizontalismo, ganhar também a vertical, pois lhe está faltando a indispensável dimensão da altura, da transcendência, ou seja: sua abertura para a Totalidade, com a filosofia, e, para Deus, com a religião.

O Enunciado Quinto faz distinção entre Educação e Sabedoria, ao admitir que a Literatura, quando é um Bem, auxilia antes à Educação que à Sabedoria. Neste caso, que vem a ser Educação?

Educação é o processo de transmitir a cultura de uma geração a outra, e cultura é o mesmo que civilização; logo, educar é civilizar. Ora, civilização, já o dissemos, é humanização que é o mesmo que vitória sobre a animalidade mais grosseira. Ser civilizado é ser o oposto do que é qualquer ente biológico da bactéria ao pré-homem macacóide, todos, por suas naturezas, egoístas e amorais. Por conseguinte, ser civilizado é ser, quanto possível, altruísta e moral, tendendo, cada vez mais, para a maximização destes valores só plenificados no santo. Coerente com isto, escreve Toynbee: "Nenhuma civilização conhecida chegou a atingir o objetivo da civilização. Nunca houve uma comunidade de santos sobre a Terra".

Sendo que civilização é idêntico a desanimalização, a humanização, a santificação, a sabedoria; e dado que estas coisas se conseguem pela educação, segue-se que a educação, não é só que auxilia, senão que forma o santo, o sábio. E uma vez demonstrado que a Literatura, quando um Bem, auxilia a educação; e assente que a educação forma o civilizado, o humanizado, o santificado, o sábio, disto se tira que a educação é base da sabedoria, donde ser possível sentenciar: sem educação não há sabedoria; e se a Literatura serve à educação, ipso facto, serve à Sabedoria. Ora, se a Literatura, quando um Bem, serve à

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educação... e esta consiste em desbestificar, em santificar, em tornar o homem sábio, como afirmar que ela, Literatura, não é um facho? Se a Literatura pode produzir um tal Bem, ainda que diminuto, com servir à educação, base da sabedoria, basta isto para dar-lhe foro de archote..., pois que ela alumia o caminho que leva o primitivo a tornar-se civilizado, ou o homem comum a negar-se de animal e fazer-se santo e sábio.

Vejamos tudo isto doutra maneira: a educação tem em vista tornar o homem intelectual e moralmente melhor; porém, como a educação age mais pelo exemplo, educação fica sendo o ato de os pais se copiarem socialmente nos filhos. Nisto consiste o que se poderia chamar de geração segunda, dado que a primeira é a geração biológica do corpo. "Educar é continuar o ato de geração"... "Todo homem é construtor da sociedade em que vive". (Papa João Paulo II). Ora, para construir, é preciso saber; e, para saber, é preciso ter sido educado. Esta é a razão por que, parelho ao desenvolvimento físico da criança, dá-se o desenvolvimento social. Assim o contorno social constituído pelos mais velhos, sempre está transferindo seus valores aos mais jovens, donde vem que a fisionomia do social, grosso modo, se mantém. Grosso modo, dissemos, porque assim como há variações da genética biológica, também há variações da genética social. No entanto, apesar das variações ao acaso, o perfil social se mantém, e este se constitui no que se chama cultura que é o mesmo que nível de civilização o qual, como se pode ver, não é fixo. Por isto, junto com o estabelecido como prática comum que deve perdurar na cultura, existe o ideal em projeto não ainda realizado e por realizar-se através da mobilidade e do progresso. Deste modo, a educação não é uma coisa feita, mas em se fazendo sempre graças à Literatura de vanguarda, graças aos livros, estes archotes cujas luzes são as idéias antigas, como projeto, que eles, em renovando, tentam atualizar. Tudo isto se implicita no conceito de Educação.

Sendo a Literatura o relato duma época, ela é educativa no sentido de transmissora de cultura. Porém, como diz o texto do Enunciado Quinto, ela abraça erros e verdades, servindo assim tanto para o Bem como para o Mal. Todavia, como é que havemos de saber o que é erro, e o que é acerto e verdade de uma época, quando estamos imersos nela? "Por isso (diz Ortega), se o senhor

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quer ver bem sua época, olhe-a de longe. A que distância? Muito simples: à distância justa que o impeça ver o nariz de Cleópatra”. Um exemplo disto, temos no século XVIII; toda a literatura dos enciclopedistas, dos iluministas, orientou-se à derrubada da mo-narquia, nobreza e clero. Ninguém reparou, então, que tudo não passou de um grande equívoco, visto que o mal basilar permaneceu incólume, intocado, e esse mal consiste em ser o homem filho da vida... a qual se mostra egoísta e amoral, seguindo-se disto que onde houver PODER há abuso. Como prova disto podemos apresentar três casos:

I - Toda a fúria dos enciclopedistas contra a monarquia, nobreza e clero redundou na queda temporária da monarquia e nobreza..., temporária, porque tudo voltou ao que era dantes com Napoleão, e a seguir deste. As cabeças do rei e da rainha caíram aos golpes da guilhotina; depois das destes, rolaram também as dos nobres, e, por fim, as dos próprios revolucionários. Mas, por que não se guilhotinou um único padre? Por que a guilhotina não decepou as cabeças dos bispos e dos cardeais? Porque a Igreja era fonte da força que lhe vinha do próprio povo. E por que caíram o rei e a nobreza? Porque o povo não os apoiou. Onde é, então, que reside o mal? Pois o mal está no PODER, esteja ele nas mãos de quem estiver, e apareça ele sob quaisquer das suas inúmeras vestimentas. O poder sempre, sobretudo quando centralizado e por isto mais forte, é perigoso..., e o perigo vem de o homem ter uma ascendência animal, e, como filho que é da Natureza cega, egoísta e amoral, ele tende a ser sempre um abusador do poder, mascare este como quiser. O único caminho, pois não há outro, consiste em o homem negar-se de animal, tornando-se sábio e santo, e só nas mãos deste, poder-se-á pôr, sem perigo, as rédeas do governo. Fora daqui, o poder precisa estar diluído entre muitos, e isto se chama democracia. Democracia, logo, é o regime de máximo esforço e mínimo rendimento; porém, dos males, este é o menor,

II - Quando, no século XIX, o Liberalismo dos revolucionários franceses ficou vitorioso, o PODER que era antes da nobreza, passou-se para a burguesia, e os industriais burgueses fizeram tanto mal aos operários miseráveis, quanto os nobres e o rei ao povo de França. O PODER deslocou-se apenas de umas para outras mãos; porém, como os homens são sempre os mesmos, isto é, filhos duma... Vida, duma Natureza egoísta e amoral, o efeito pernicioso

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de tal PODER persistiu. O equívoco do homem consiste em supor que o mal está nas estruturas as quais intenta sempre mudar; mas não: o mal está no homem natural, insensível, dragontino, egoísta e amoral, qual o é sua mãe-madrasta e mestra Natureza.

III - Pois a antítese, a contraditória do Capitalismo medonhamente desumano do século XIX, foi o Comunismo ideado por Karl Marx. E, pois, tomando a nuvem por Juno, Marx, por sua vez, foi bulir nas estruturas, fazendo, como sempre, reformas exteriores, deixando o bicho-homem tal qual é, medonho, terrível. O resultado foi que, tanto o Comunismo como o Nazí-fascismo são, no dizer de Ortega, duas formas de se mostrar idiota, porque um e outro são repetições históricas das monarquias absolutas em que os reis se serviam do povo tal qual os criadores dispõem de seus rebanhos. "Por isso são bolchevismo e fascismo, as duas tentativas "novas" de política que na Europa e seus confinantes se estão fazendo, dois claros exemplos de regressão substancial”... "Um e outro - bolchevismo e fascismo - são duas falsas alvoradas; não trazem a manhã do amanhã, mas a de um arcaico dia, já usado uma ou muitas vezes; são primitivismo. E isto serão todos os movimentos que recaiam na simplicidade de travar uma luta com tal ou qual porção do passado, em vez de proceder a sua digestão". Ora, as vítimas de Lenin, só da época da coletivização, se contam por seis milhões de camponeses russos, as de Hitler, só de judeus assassinados, seis milhões; as de Mao-Tse-Tung, só da Revolução Cultural, cem milhões - quase a população do Brasil.

Pois muito bem: nossa demonstração de que não vale nada mudar as estruturas, idealizar sistemas políticos, sem reformar o bicho-homem, acaso pode sofrer contestação? Não; não pode. Logo, é a verdade cuja posse é a sabedoria? Sim, é. Como é, então, que a Literatura não serve à Sabedoria, se foram as obras literárias dos séculos XVIII e XIX que serviram para estas conclusões? Como afirmar ser a antiguidade de tais obras que as consagra, se elas serviram sempre, somente, para se poder construir sua antítese, sua contraditória, que vigorou no movimento histórico seguinte, conseqüente? Se a Literatura é o facho que ilumina a mente do historiador, do filósofo e do profeta, não nos venham os Irmãos Iluministas nos dizer que ela serve só, quando é um Bem, para a Educação, de um modo imediato e próximo, com visos de pura erudição, sem, ao mesmo tempo, atender à Sabedoria, que é

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mediata e distante, no seu fim precípuo de salvar a Humanidade da barbárie moderna... que é essa que aí está... dos homens de mãos finas, engravatados, bem vestidos, limpos e perfumados. O Liberalismo tético do século XIX propiciou o aparecimento de tais bárbaros modernos, e o Comunismo antitético, também. Reaparecimento, dissemos, porque de tais bárbaros se encheram os salões dos reis tiranos de todos os tempos. O bárbaro, portanto, não é só aquela figura tradicional do homem de cabelos, barbas e pelos hirsutos, sobraçando seu escudo de madeira e couro, e sua lança de ponta de pedra. É também os homens da pena, e da toga, e do bisturi, e do escritório, e do governo, quando destituídos da visão totalizante, da transcendência, da dimensão vertical, divina, a só que pode produzir o civilizado em sua plenitude que é o santo, o sábio. Isto mesmo pela pena de Ortega:

"Esta civilização do século XIX, dizia eu, pode resumir-se em duas grandes dimensões: democracia liberal e técnica. Tomemos agora somente a última. A técnica contemporânea nasce da copulação entre o capitalismo e a ciência experimental"... "Pois bem: o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unipessoal de cada homem de ciência, mas porque a técnica mesma - raiz da civilização - o converte automaticamente em homem-massa; quero dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno"... "Porque convém repisar a extravagância deste fato inegável: a ciência experimental progrediu em boa parte mercê do trabalho de homens fabulosamente medío-cres, e menos que medíocres. Quer dizer, que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, deu guarida dentro de si ao homem intelectualmente médio e lhe permite operar com bom êxito”. Esse “bom êxito" dá ao homem de ciência atual uma perspectiva errada do que seja a sabedoria, e o faz pensar que ele próprio é um sábio. E é, então, que, "chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber". Esta atitude produziu um tipo de homem que jamais existiu na face da terra - o sábio-ignorante. "Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é

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um ignorante, porque é "um homem de ciência" e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio-ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio”... "O resultado mais imediato desse especialismo não compensado tem sido que hoje, quando há maior número de "homens de ciência" que nunca, haja muito menos homens "cultos" que, por exemplo, em 1750”... "No dia em que volte a imperar na Europa uma autêntica filosofia - ÚNICA COISA QUE PODE SALVÁ-LA -, compreender-se-á que o homem é, tenha ou não vontade disso, um ser constitutivamente forçado a procurar uma instância superior. Se consegue por si mesmo encontrá-la, é que é um homem excelente; senão, é que é um homem-massa e necessita recebê-la daquele"... "Para que a filosofia impere, não é mister que os filósofos imperem - como Platão quis primeiro -, nem sequer que os imperadores filosofem - como quis, mais modestamente, depois. Ambas as coisas são, a rigor, funestíssimas. Para que a filosofia impere, basta que haja filosofia, quer dizer, basta que os filósofos sejam filósofos. Há quase uma centúria os filósofos são tudo, menos isso - são políticos, são pedagogos, são literatos ou são homens de ciência".

A Sabedoria não é ciência visto que segue rumo oposto ao desta. A ciência esmiuça a porciúncula, fragmenta o próton e quer saber do “quark” nuclear, quer saber do plasmídeo que governa o DNA que mantém repetitiva a célula quando esta se reproduz; quer saber o que é o vírus, a bio-molécula, de como sua engenharia genética poderá criar espécies novas de bactérias, e até substituir os gens defeituosos nos gametas humanos. Tudo isto é a tecnologia que não vai além de produzir conforto material. No entanto, o Homem tem precisão de avançar na direção oposta, na da Sabedoria que se situa na Totalidade, no rumo do Absoluto, de Deus. E daqui que lhe vêm (e não há mais de onde possam vir) as regras de moral... que lhe ditam a conduta, plasmam os usos, disciplinam os costumes e se fixam nos códigos éticos e legais.

O mundo se vai hoje com a breca, porque caímos num tremendo erro, no do Cientismo, nascido no século XVIII, que nos prometia podermos viver sem Deus. Com a proclamação enfática de que Deus morreu, de que seu trono é uma poltrona vazia, acabou-se o alicerce da moral, e, com a permissividade que se

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seguiu disto, tudo, até o próprio Cientismo e Tecnologia vão soçobrar no caos. Se não caímos a nada ainda, é por causa da inércia do movimento que subsiste, ocasionado pelo impulso inicial dado pelas religiões.

A Literatura abraça erros e verdades de uma época, enquanto dura a época, como já o demonstramos, porque, então, não se sabe o que é o erro e o que é o acerto. Todavia, afirmar que, em épocas posteriores, após a depuração histórica operada pela crítica, a Literatura continua consagrando o Mal, só por causa do prestígio da antiguidade, isso ainda está por demonstrar-se... com exemplos da história. Uma sentença de Vieira, ou de Bernardes, ou de Camões, ou de Milton, ou de Goethe, etc., pode ser estudada pelos pósteros, e servir como exemplo histórico para o historiador... que tem na Literatura sua fonte principal de informação, dado que nesta aparece até aquilo que os documentos ocultam; ou como exemplo filosófico para o pensador, porque a filosofia é uma disciplina, eminentemente histórica; ou como fato artístico em que a forma de expor é o tudo. Quando Camões vai, a compasso ingente de seus alexandrinos, cantando os feitos heróicos do braço português, certamente que é para causar deleite, quando ainda podia deleitar, e, sobretudo, para ser assimi-lado como estilo modelar, e não, para serem postas em prática quaisquer teorias, como verdades atuais, ainda que tenham sido havidas como verdades ao tempo do grande Vate. Quando Vieira vai estendendo suas pontes pelo ar, a partir das alegorias que arranjava; quando, com todas as forças de eloqüência... que faria inveja a Cícero, a Demóstenes, nos arrebatava, ou nos levava às lágrimas, usando com maestria dos seus tropos, de suas antíteses vibrantes, de suas metáforas, de sua musicalidade... às vezes feita do estrondo de clangorosos metais, entendemos que isso é Litera-tura perpetuada, consagrada, não pelo prestígio da antiguidade, mas pelo mérito que tem a força do seu verbo portentoso! Daí a recomendação dos filólogos e gramáticos: "Leiam os bons escritores!".

A este respeito, escreve José Marques da Cruz, que alguém, em diálogo com Rui Barbosa, lhe perguntou como formara o seu estilo; a resposta foi: - "Lendo Vieira" - E depois? - "Relendo Vieira" - Mas, certamente, algum outro escritor influiu... - "Não, senhor; tornei a ler Vieira".

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Herbert Wendt, falando da literatura de Buffon, diz: "Os livros bem escritos são os únicos que a posteridade lerá. O estilo é o próprio homem. Com efeito, Buffon era um poeta, o poeta da natureza. E quando um dia Rousseau, o filósofo da natureza, o visitou, beijou emocionado a soleira da sua porta”.

Contudo, é perfeitamente explicável essa arremetida dos Irmãos Iluministas, redatores do Livrinho do Grau 19, contra a Literatura. Ocorre que o Racionalismo, esposado por eles, nada tem a fazer com a Literatura, do mesmo modo como é impotente face a tudo o que não se reduz a princípio de razão. Augusto Comte e todos os positivistas, até hoje, fracassaram ao tentar reduzir o humano a esquemas de racionalidade. Um enunciado do Livrinho do Grau 14 diz: "A ciência exata, a Moral, a política, a economia social, os direitos do povo, os direitos individuais, tudo está sujeito a regras matemáticas, que é mister compreender e aplicar". Tal enunciado é tipicamente positivista, e até pode ter sido redigido pelo próprio Augusto Comte que, quando ainda não era maçom, escreveu isto: "Mostrarei que existem leis tão determinadas para o desenvolvimento da espécie humana como para a queda de uma pedra”. Não passara um século, e isto causava riso. "Importa sumamente (diz Gusdorf) evitar toda e qualquer extrapolação, e esquivar-se à tentação de afirmar mais do que sabemos". Mais cauteloso, "o positivismo contemporâneo parece haver tomado consciência de que o cientismo fazia da ciência uma espécie de absoluto, e que, por conseguinte, recaía no pecado da metafísica, contra o qual fazia profissão de protestar".

A sociologia (vocábulo criado por Augusto Comte) saiu a estudar os grupos sociais primitivos, na esperança de encontrar uma só que fosse lei natural que regesse a sociedade. Foi uma decepção; por toda parte, sempre, topou com o mago, com o feiticeiro, com o encantador,com o xamã, com a pitonisa, com o chefe-sacerdote-legislador fautor de religião a criar e promulgar regras em nome do deus. Não há lei natural, e a sociologia constituiu-se num fracasso para o Positivismo, para o Cientismo. Nada podendo conseguir, o "cientista" sociólogo, "cientista" com aspas, achatou o mundo, tirando-lhe toda a hierarquia, pelo que afirmou ser o fenômeno religioso dependente do fenômeno social, em lugar de, vice-versa, como é o certo, dizer que fenômeno social decorre do fenômeno religioso..., dado que, jamais, nunca, houve o social antes do

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religioso. Não há, pois, dizer, como se costuma: "os homens resolveram reunir-se em sociedade!" Os homens não resolveram nada, nem antes, nem agora; quem resolve são os líderes que, carismáticos, possuem o condão de aglutinar outros homens em torno de si. As civilizações todas, sempre, sem exceção, tiveram início ao comando dos líderes religiosos, antes de estes mesmos, depois, se fazerem legisladores éticos e legais. Para disciplinar a besta que o homem sempre foi... e ainda o é, faz-se preciso impor-lhe freios morais, códigos éticos e legais, e nada disto pode existir sem o fundamento religioso cujo postulado é Deus.

A sociologia, como a história, como a economia, como a política, como a filosofia, etc., não é ciência, porque não possui leis, embora cada uma tenha o seu objeto. As mesmas causas, sob as mesmas condições externas, podem produzir resultados ou iguais, ou diferentes. Os fenômenos sociais não se repetem mas se sucedem; não repetição... em círculo fechado, e sim sucessão... em espiral, seja em fase de abertura, seja na de fechamento, o que nos suscita a idéia de respiro... para dentro e para fora. Ninguém, por isto, pode prever nada, a não ser como pura probabilidade em razão do que a profissão de profeta, de previsionista, de futurólogo, não passa de um equívoco. Este equívoco racionalista consiste em supor que os fenômenos sociais são parelhos aos físicos, aos químicos, aos astronômicos. O homem se mostrou irredutível aos princípios de razão, portando-se muito diferente de um corpo celeste, ou físico, ou químico, ou biológico inferior.

Por este motivo, o Racionalismo nada tem a fazer, não é só com a Literatura, senão, também, com todas as demais artes. O Racionalismo não entende a história, a economia, a política, a religião, o esporte, as artes, as paixões, os sentimentos, a guerra, etc..., porque nada disto é racional, embora, porque pensável e sensível, façam parte do animal que se convencionou chamar racional (! ).

O jornal "O Estado de S. Paulo", de 22/7/79, trouxe um longo trabalho de Henry Fairlie, tirado do "The New Republic", que vem em apoio desta nossa tese. Eis alguns textos tomados àquele jornal: "talvez não tenha havido, na História, movimento mais brilhante e superficial do que o Iluminismo; não houve, talvez, homem mais brilhante e superficial na história da mente humana que Voltaire". Como a ciência só se ocupa do particular, do periférico,

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situado diametralmente em oposição à Totalidade, o homem da superficialidade superou ao da profundidade, o homem de ciência, ao pensador. Já tinha alcançado Albert Einstein que "a ciência sem a religião é capenga, a religião sem a ciência é cega", quando a própria ciência se fez pura especulação abstrata, fugindo ao que se propunha de começo, que é seguir o método experimental. Como conseqüência disto, escreve Henry Fairlie, "tudo o que temos recebido da ciência são conjecturas e cálculos cada vez mais abstratos e irrefutáveis em seus termos, os quais, aparentemente, não podem nem mesmo ser submetidos ao método experimental. A ciência está tratando de coisas tão vastas e distantes, lá no universo, ou tão minúsculas e invisíveis, dentro da nossa estrutura, que já não tem mais pé nem cabeça para nós". Face a este resultado, os homens de ciência buscam, agora, o que desprezaram antes, enquanto que os homens da Totalidade se omitem. Eis isto pela pena de Fairlie: "A ciência tem recorrido crescentemente à religião e à filosofia buscando salvar-se da capenguice e encontrar resposta às indagações que não pode nem tem obrigação de responder. Mas a religião e a filosofia contentam-se sobretudo em ignorar ou desdenhar o que a ciência está fazendo, e permanecem, portanto, quase malignamente cegas em seus esforços isolados para alcançar a verdade". Conseqüentemente, "considerando o que significa religião para a humanidade, e o que significa ciência, não é exagero dizer que o rumo futuro da História depende da decisão desta geração sobre as relações entre elas" - A. N. Whitehead, A Ciência e o Mundo Moderno, 1925.

E a Maçonaria? Como fica ela frente a tudo isto? A Sublime Instituição, sublimíssima sob o aspecto moral, precisa, urgentemente, rever toda a sua parte filosófica, não se descuidando - como há duzentos anos vem fazendo - do que ela própria se propõe que é ocupar-se da "investigação incessante da Verdade". Não pode ela mais, portanto, continuar misturando coisas diferentes, alhos com bugalhos, como se diz, e dando tudo como sendo a Verdade; ei-lo: "A ciência exata, a Moral, a política, a economia social, os direitos do povo, os direitos individuais, tudo está sujeito a regras matemáticas, que é mister compreender e aplicar". (Grau 14). Oxalá "o prestígio da antiguidade" da Literatura do Grau 19 e outros, não cegue os maçons, fazendo-os acreditar que, por ter sido tal Literatura um facho, continue a o ser, pelo futuro! Não o é, absolutamente, visto que abraça erros e verdades de uma época que recebeu o nome de Iluminismo, de Racionalismo, época que propiciou o Cientismo, o Tecnicismo... os

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quais prometiam um Céu na Terra, e, no entanto, o que nos deu foi o terror da ameaça da destruição e da morte?

* * *

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ENUNCIADO SEXTO

"A conduta moral e intelectual do homem se amolda à época e país em que vive, noções que mudam em cada geração e,

às vezes, em cada ano, se os sábios tiverem o caminho livre para proclamar suas idéias".

A primeira coisa que se há de fazer em relação ao texto acima, é separar a conduta moral da conduta intelectual por serem coisas distintas, pelo que não podem ir, assim de cambulha. Conduta intelectual é o método, o fazer, do bem fazer. Tudo o que se planejar fazer, seja nas artes, seja nas ciências, seja nos trabalhos quaisquer, tem de seguir a norma imposta pelo próprio trabalho, ciência ou arte. Essa norma se chama método, e basta mudá-lo para que surja uma coisa diferente. Contra a norma medieval do “magister dixit" (o mestre disse), Galileu propôs outra, a da observação e da experimentação. Ocioso seria dizer o que produziu este método. Só que ele não mudou, faz duzentos anos, contrariando o inserto no Enunciado Sexto; para este, o método pode variar como varia a moda, o que não é verdade. Tudo isto faz parte do bem fazer que se reduz à operação. Operar (de opera - obra, trabalho, ocupação) é realizar uma obra exterior. O ato de fazer, então, recai sobre um objeto exterior - o trabalho.

Coisa mui diversa é a conduta moral, o bem agir, que não recai sobre objeto nenhum exterior com o fim de modificá-lo. Fazer é modificar; agir é comportar-se em relação a outrem. Tudo, neste caso, acontece, reflexivamente, na consciência, no foro íntimo, onde se acha inscrito o código de conduta que se há de seguir nas relações com o próximo. Os juízos, aqui, já não são científicos, mas juízos morais; não recaem sobre coisas, como no bem fazer, mas dizem respeito às pessoas em relação às quais cumpre bem agir. E o código deste bem agir não muda de contínuo, vindo a ser outro, senão que se mantém fixo, podendo apenas ser aperfeiçoado. Por causa disto tal código ético se constitui no denominador comum de todas as religiões superiores que regem todos os povos de todas as nações ditas civilizadas. Não há isso de a moral mudar-se "em cada geração e, às vezes, em cada ano", como se moral fosse moda... de vestir... das mulheres!

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A moral sempre existiu no mundo associada à religião, sendo o código de conduta entre os homens, ditado por Deus. Todavia, na Grécia, buscou-se outra base para a moral, e foi quando a religião entrou em decadência, sobretudo pela obra dos cépticos que submeteram os artigos de fé ao crivo da razão, obra que foi secundada pela dos sofistas que eram uns versáteis argumentadores pró e contra tudo. Ora, sofistas quer dizer sábios, e contra estes levantaram-se os filósofos que, mais modestos, se davam apenas como amigos da sabedoria. O substitutivo da religião passou a ser, agora, então, a filosofia. O problema da moral, que fora sempre da esfera da religião, passou-se para a da filosofia.

Então, vem Aristóteles e estabelece o postulado que diz: o homem é um animal social. Da aceitação deste postulado, e o é, porque Aristóteles não o demonstrou, vêm todas as decorrências: sendo, por natureza (?) animal social, o homem procura viver em sociedade; vivendo em sociedade, espontaneamente nascem normas de relacionamento que são os códigos éticos... os quais se reforçam ao se tornarem mais restritos nos códigos legais. Essas normas de relacionamento... nascidas de o homem ser, por natureza, animal social, são os usos e os costumes... os quais são relativos, e se mudam de acordo com as épocas, com os povos e com os países. Ora, costumes, em grego, é “éthos" de que se derivou “etniké" que é ética. Os romanos fizeram o mesmo: costume, em latim é "mores"; de mores saiu “Moralem " que quer dizer moral.

Pronto !; perfeito !; está colocado o carro adiante dos bois, perfeitamente ao gosto dos racionalistas iluministas do século XVIII ! O homem é um animal social? Sim, é; então, compelidos a viver em sociedade, os homens se acomodam entre si; e esta acomodação são os hábitos que se tornam usos e costumes, como tais costumes são "mores" e "éthos", deles vem moral e ética. Como foi, então, tudo isto nos primórdios? Muito simples: os homens, porque sociáveis por natureza, reuniram-se em sociedade, e dessa reunião surgiram os comportamentos que se fizeram costumes os quais, aos poucos, se foram inscrevendo no que se convencionou chamar de códigos éticos e legais. Da prática social saíram os códigos. Tal como na língua: primeiro é a prática, depois, a gramática. Diz Aristóteles: "O homem, quando aperfeiçoado, é o melhor dos animais; mas, isolado, é o pior de todos; pois a injustiça é mais perigosa quando armada, e o homem equipara-se ao nascer com a arma da inteligência e com a qualidade

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de caráter que pode usar para os fins mais reprováveis. Por conseguinte se ele não tiver virtude, será o mais daninho e feroz dos animais”. E prossegue:

“E só o freio social pode dar-lhe virtude. Pusemos em destaque freio social para sublinhar que, para Aristóteles, os mesmos homens, por obra da natureza, se reuniam em sociedade; e bastou isto para que, espontaneamente, surgissem os códigos éticos, os códigos legais, a moral, que tudo são “freios sociais”. E Deus?

Quando Laplace expunha sua teoria do mundo a Napoleão, este perguntou-lhe: - “E onde fica em seu sistema o lugar para o criador dos mundos?" - "Sire" - respondeu Laplace - "essa hipótese tornou-se desnecessária". Tal qual, para Aristóteles, Deus e a religião são epifenômenos, nascendo, portanto, da sociedade, e não, vice-versa, que a sociedade seja oriunda do fenômeno religioso, e haja nascido, em primeira instância, de um primado ético-legal, vindo da parte de Deus, o único capaz de disciplinar os instintos anti-sociais da besta que, em parte, o homem ainda é. "Deus morreu", dizem os modernos, e o antigo Aristóteles, também, não deixa por menos, ao afirmar que os mesmos homens, sem que para isso fosse necessário Deus, criaram seus próprios códigos éticos, sua moral.

Como se vê, o postulado de Aristóteles permitiu colocar-se o carro adiante dos bois, e este feito provocou a parada do carro com a conseqüente enorme confusão. Em meio a esta balbúrdia, em meio a este caos, fala-se hoje em “nova ética” sem pecados e sem tabus. Por que? Ora, porque ética, de "éthos” quer dizer costumes. Daqui se tira que haverá tantas éticas quantos são os possíveis costumes... Tudo, portanto, é permitido, e essa permissividade raia pela loucura mais rematada dos homens... e de um mundo que, porque insensato, porque doido, vai soçobrar no abismo da barbárie. Por enquanto, os bárbaros que já existem em profusão, ainda trajam roupas alinhadas, limpas e perfumosas...; mas é já já que tais roupas cairão em desalinho, e começarão a aparecer as barbas e os cabelos hirsutos, ambos malcheirosos, dos verdadeiros primitivos. Como é que se chamam estes primitivos, esses “barbaros modernos" (Ortega) segundo o Enunciado Sexto? Pois chamam-se sábios. Demonstremos isto:

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Declara este sexto enunciado “que a conduta moral intelectual do homem se amolda à época e país em que vive, noções que mudam em cada geração e, às vezes, em cada ano, se os sábios tiverem o caminho livre para proclamar suas idéias".

"Se os sábios tiverem o caminho livre para proclamar suas idéias", suas proclamações modificarão a "conduta moral e intelectual do homem", ou seja, o homem mudará seu modo de proceder não só intelectual (método científico-racional), como ainda estará sempre alterando a sua conduta, o seu caráter. Conseqüentemente, não só as noções intelectuais, senão também os juízos morais, se "mudam em cada geração e, às vezes, em cada ano", e é deste jeito que o "homem se amolda à época e país em que vive". Tudo, por conseguinte, vai depender dos sábios. Estes, logo, é que fazem as épocas em cada país, e os demais homens vão-se amoldando a essas épocas, não só modificando seu modo de pensar, como ainda seu modo de agir moral, sua conduta, seu caráter. Se existe, portanto, algo de constante em todo esse calidoscópio de mudanças, de transformações ininterruptas, em toda essa moção ou devir, em todo esse vir-a-ser ou tornar-se do próprio homem, é a presença do colégio de sábios. Este é o absoluto que fundamenta tudo o mais.

E o local onde se reúnem esses sábios, se não é a "Casa de Salomão" da utópica cidade "Nova Atlântida" de Francis Bacon, porque nesta cidade há religião e há Deus, se não é esta, então, só pode ser o explêndido palácio-laboratório em que se congregam os Alfa Mais (A+) sob o comando de Sua Fordência, no "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley. Somente num mundo cientifico qual este, sob o mais absoluto controle químico-genético-hipnopédico, seria possível mudar o comportamento moral, a conduta, o caráter numa geração, nunca, porém, num ano, como se o comportamento moral pudesse confundir-se com moda..., e não fosse um condicionamento muito mais arraigado do que os hábitos...

E os sábios basear-se-iam em que, para operar essa mudança? Em nada, senão em si próprios; basear-se-íam, somente, naquilo que, por eles, ficasse decidido em seus consistórios de Alfas Mais, pois que tais sábios ter-se-iam feito a si mesmos absolutos, verdadeiros deuses, no lugar de Deus, repetindo-se, assim, a conhecidíssima façanha de todos monarcas e tiranos de que nos dá conta a história!...

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Tudo isto, porém, é utopia. Utopia, sim, mas que guarda um paralelismo com a realidade que vivemos hoje. Porque, depois da “Morte de Deus"... proclamada pelos "sábios-ignorantes" (Ortega), isto é, pelos homens de ciência especialistas em miuçalhas cada vez mais insignificantes, indo cada vez mais para o limite do nada, e, paralelamente, sem nenhuma noção pelo conjunto do saber, no rumo da Totalidade, esses tais "sábios-ignorantes", como decorrência da “Morte de Deus”, anularam também todas as religiões e especialmente o cristianismo. Por causa disto, como diz Dom Luciano José Cabral Duarte, "se sondarmos a mentalidade contemporânea, encontramos, por todos os lados, um materialismo radical, que assume as feições dos três ídolos da nossa época: o ídolo do poder, o ídolo do hedonismo e o ídolo consumista da riqueza. Por toda parte, em regimes políticos de signos opostos, está proclamada a prevalência do "ter" sobre o "ser". A antiga moral é ridicularizada e os postulados libertários da nova moral (que na realidade é amoral) avançam incoersivelmente sobre um campo de batalha abandonado. No mundo inteiro, o panorama é quase o mesmo, igualmente trágico: desmorona a família, crimes como o aborto e a eutanásia passam a ser protegidos pela Lei e o coração humano prossegue insensível às injustiças sociais que nos rodeiam, e cuja erradicação só uns poucos quixotescos tomam a sério".

Pois, muito bem: o mundo não se modifica, hoje, a toque de caixa, não só no tocante à ciência, senão, também, no que se refere à moral? Sim, modifica-se. E não é condição imposta pelo Enunciado Sexto que, para isto acontecer, era preciso terem os sábios "o caminho livre para proclamar suas idéias"? Sim, essa é a condição "sine qua non”. Pois, então, os tais que promovem essa revolução e mudança em todos os setores, empregando a televisão, o rádio, as revistas e o jornais são os "sábios" que o Enunciado Sexto preconizava? Sim, são. Pois aí está: como dissemos, os bárbaros, que ainda trajam roupas limpas e perfumadas, já já as terão sujas, rasgadas e malcheirosas; a par disto as barbas, os cabelos e os pelos (às vezes postiços) tornar-se-ão crescidos, hirsutos. Um destes tais... que tiveram o caminho livre para mudar uso e costumes ("mores" - Moral), foi Bokassa. Eis parte do que se apurou no processo de Bangui: "O último depoimento foi de um ex-cozinheiro de Bokassa, que revelou que certa vez o ex-imperador o conduziu para o interior de uma câmara fria no palácio de Berengo, onde estava o corpo de um homem sem cabeça. O então imperador teria pedido ao cozinheiro

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que preparasse um mechoui (um churrasco à moda árabe). Aterrorizado, o cozinheiro recusou-se, mas acabou atendendo ao pedido depois de ter sido ameaçado com a aplicação de injeção que produzia fortes queimaduras internas. A cena macabra de preparação ocorreu no próprio palácio governamental. O cozinheiro explicou que o mechoui, normalmente feito com um carneiro inteiro atravessado por um espeto e assado na brasa, foi apreciado com muito gosto por Bokassa, que se regalou a começar pelos testículos".

Nisto - e noutras coisas quais esta, se cifrou o terem, os "sábios" caminho livre para mudar a “moral", de ano para ano!... Como a “moral" ficou optativa, podendo ser mudada ao bel-prazer de cada um, visto que todos se têm a si por sábios, e tanto que opinam, sobre todas as coisas... a partir do seu "eu acho!”, por causa disto, as mudanças da ética... como podem ser anuais, seguem qualquer direção do tempo, podendo, perfeitamente, ser arcaístas... como a antropofagia de Bokassa. Acontece que o homem é um animal sui generis, precisando, por isto, de freios morais não optativos, mas compulsórios com base numa autoridade extra-humana. Fale o Prêmio Nobel Jacques Monod: "Todo ser vivo é também um fóssil. Traz em si, e até na estrutura microscópica de suas proteínas, os traços, senão os estigmas, de sua ascendência. Isto é muito mais verdadeiro para o Homem do que para qualquer outra espécie animal, em virtude da dualidade, física e "ideal", da evolução de que é herdeiro”. Esta sua superioridade o fez vencedor sem controvérsia. E prossegue Monod:

"Doravante dominando seu meio, o Homem só tinha de si um adversário sério - ele mesmo. A luta intra-específica direta, a luta de morte, tornou-se desde então um dos principais fatores de seleção na espécie humana. Fenômeno extremamente raro na evolução dos animais. Atualmente, a guerra intra-específica, entre raças ou grupos distintos, é desconhecida nas espécies animais. Nos grandes mamíferos, mesmo o combate singular, freqüentemente, entre os machos, só raramente provoca a morte do vencido. Todos os especialistas concordam em pensar que a luta direta, o struggle for life de Spencer, desempenhou apenas um papel menor na evolução das espécies. O mesmo não acontece com o Homem. Ao menos, a partir de um certo grau de desenvolvimento e de expansão da espécie, a guerra tribal ou racial evidentemente desempenhou um papel importante como fator de evolução".

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Esta luta inexistente intra-espécie, incomum entre os mamíferos, tornou-se numa constante na espécie humana. "No decorrer do tempo, quando apareceu o telantropo, aumentou o peso do cérebro, excedendo o limite simiesco. Aumentaram também as realizações e habilidades. Os semihomens ampliaram cada vez mais o seu habitat e, no princípio do plistoceno, já povoavam todas as regiões maís quentes do Velho Mundo. E aí, em novo ambiente, apresentaram-se-lhes problemas que só poderiam ser resolvidos se aplicassem ainda mais a sua razão e inventassem armas e utensílios melhores. A arma mortífera ideal tornou-se para eles a pedra trabalhada. Um cérebro de novecentos gramas, declarou o pessimista Hooton, é suficiente para um comportamento humano ótimo. O que passa disso é empregado em maldades. Os pré-homens dotados de grande cérebro ainda estavam longe de atingir esse ótimo, mas, com o auxilio da nova arma milagrosa, a pedra, já praticavam toda a sorte de atos sangrentos"...

Por causa desta má índole do humano, continua Hooton: ..."Não vejo por que, olhando um macaco nos olhos, qualquer homem possa pretender algum parentesco com ele, baseado nas suas maneiras. Todo o macaco que se preza rejeitaria qualquer pre-tensão a uma origem comum com o homem. Uma amarga verdade". Uma grande verdade, sim, da qual Bokassa, hoje, no século XX, acaba de dar a prova..., consistindo isto numa advertência aos "sábios" que pretendem que a moral seja optativa, em vez de compulsória, inexorável, porque provinda dum poder sobre-humano.

..."Enquanto os antropologistas ainda não se tinham decidido sobre se os sul-africanos deviam ser considerados macacos ou homens, Weinert escrevia esta frase que tem sido freqüentemente citada: Nenhum macaco mata, assa, e devora os membros da própria espécie: isso é humano. E acrescenta: Era bonito considerar o ato de Prometeu como o primeiro da humanidade nascente; mas nós não podemos deixar de antepor-lhe o ato de Caim. É duro, mas, em princípio, é certo. Os velhos mitos que falam de origem da raça humana dizem exatamente isso”. (Herbert Wendt – À procura de Adão).

E de tais pré-homens descendemos nós, e, para não virmos a encher a medida desses nossos avós, carecemos duma moral

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compulsória, inexorável, e não, dessa moral optativa, frouxa, mutável, acomodatícia, como pretende o Enunciado Sexto.

Como se não bastara tudo isto, esta doutrina da relatividade da moral, da moral movediça, encontra sua mais linda e cabal refutação em outra oposta, que se dá ao iniciando maçom; de modo que subir o iniciando de Aprendiz a Filósofo, em vez de ser isso ir por diante, é tornar atrás. A doutrina está no passo em que se pergunta o que é o vício. E vem a resposta que o vício é a propensão impetuosa que nos arrasta para o mal; quer dizer: o vício é a manifestação da animalidade egoísta sobre a qual se assentam todos os atos que contrariam a moral. Como a besta em nós precisa ser domada, então aquele texto fala em pôr “freio salutar" a ela, fazendo-a dócil, para que possamos nos elevar "acima dos vis interesses que atormentam o vulgo profano e acalmar o ardor das paixões". Este trabalho é lento e tenaz, e só se aplicam a ele aqueles que, como nós, procuram habituar seus espíritos a curvar-se "às grandes afeições e a não conceber senão idéias sólidas de bondade e de virtude, porque é só regulando nossos COSTUMES pelos PRINCIPIOS ETERNOS DA MORAL, que podemos dar à nossa alma esse equilíbrio de força e de sensibilidade que constitui a SABEDORIA, ou antes a CIÊNCIA DA VIDA".

Se os princípios da Moral são eternos, por isto mesmo, imutáveis, absolutos, eles nascem de Deus..., dado que não há outro Algo de que possam nascer. E se os costumes são regulados pela Moral, primeiro está a Moral, depois, os costumes decorrentes dela. Conseguintemente, Aristóteles está errado, e o homem não é, por natureza, um animal social; é-o por força das regras morais que lhe disciplinam a conduta e o forçam a desvirar-se de besta que é, por natureza, em civilizado. Como o homem é uma espécie da ordem dos primatas, o estudo destes pode lançar alguma luz sobre os primórdios daquele. Para o estudo deste ponto empregaremos nosso método rapsódico; fale Fritz Kahn:

"Essencial é - e perante este fato devem calar todas as divergências - que o cérebro do macaco e o do homem diferem, radicalmente e de maneira análoga, do de qualquer outro animal dotado de cérebro, graças ao distintivo comum dos primatas; cérebro propriamente dito, cérebro recente em vias de reprimir o cérebro primitivo. "Livrar-se do cérebro velho, subjugar a animalidade" é a divisa dos primatas; e quer os símios, quer o

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homem, lutam com o mesmo problema, até hoje sem vitória. Em razão da analogia fundamental do seu cérebro, os símios e o homem têm afinidades excepcionais na estrutura psíquica. A imagem da natureza humana se obterá mais facilmente pela observação do símio do que pelo estudo do homem, criatura difícil de analisar"...

"Se quiseres entender o homem, dirige-te ao macaco”...

"Os símios são "esquizóides", isto é, dominados em parte pelo cérebro primitivo e em parte pelo cérebro recente; em conseqüência, animais gregários e contraditórios, com tendência para vencer o gregarismo da sua natureza; observam-se assim, nos primeiros degraus da escala, hordas numerosas e rigorosamente organizadas; nos graus intermediários, clãs reduzidos e dispersos; e entre os antropóides e o homem, simultaneamente o rebanho e os indivíduos”.

Rebanho e indivíduo pusemos em destaque para mostrar que, contra o que disse Aristóteles, nem sempre o homem é um animal gregário, rebanhável, social. Há, igualmente, a tendência ao individualismo, ao solipsismo próprio do gênio, do guia, do condutor de homens, feito para mandar e não, para obedecer. Daí todo um capítulo da obra “Um Estudo de História" de Arnold J. Toynbee, que trata da retirada e do regresso dos grandes homens. O tumulto causa enfado, angústia, cansaço, e eles se retiraram; depois, a solidão os enriquece de saber, e eles retornam. Para o absolutamente gregário, não acontece isto. Lã contra lã, cabeça baixa, no dizer de Nietzsche, lá se vai o rebanho seguindo o seu guia, que sempre traz novas da sua solidão, em que esteve a lucubrar. O individualista e o rebanho integram-se pelo modo como o descreve Fritz Kahn:

"O símio normal, como todo animal gregário, gosta de que haja quem pense e resolva por ele; quer ter um guia que segue cegamente. Os mais fortes, os mais astuciosos, os mais ambiciosos do rebanho se aproveitam dessa fraqueza e arvoram-se em "chefes", que desempenham para a galeria o papel de "pai do povo", e são na realidade tiranos, exploradores da fraqueza dos símios medianos, para exercer um terrorismo e gozar todos os privilégios dum monarca. Os inferiores do clã são submissos e bajulões; em conseqüência, todo macaco importante vive cercado

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duma corte de criaturas venais. As piores são as macacas. Estas enxameiam em torno do paxá; coçam-lhe horas inteiras o pelo, beijam-lhe as orelhas, oferecem-se. Como os símios praticam os contatos sexuais "more bestiarium”, a macaca mostra-lhe, à guisa de "cumprimento simiesco" o traseiro, gesto que entre os homens se considera expressão de pouco caso. O macaco-chefe costuma receber as homenagens devotas da sua côrte com ares típicos de grão-senhor, simulando indiferença, ou esquivando-se absolutamente; contudo, as momices da macacada são gratas ao seu coração, porque o símio é vaidoso, desmedidamente vaidoso. Pode gastar horas enfeitando-se; e não há gorro de truão que lhe pareça bastante impróprio para o enterrar na cabeça e se julgar assim mais do que os outros. Tudo o que brilha o encanta; e nada lhe merece mais respeito do que um uniforme. Por este motivo, costuma-se fardá-lo; um dos mais famosos símios amestrados percorria o mundo, com o nome de "General Tom". Nos trópicos é comum vê-los associar-se aos soldados e tornarem-se "mascotes" do regimento. Esses macacos "militarizados" depressa aprendem a diferençar o oficial do soldado raso; adulam o primeiro e não escon-dem o seu pouco caso ao segundo. Assimilam até os preconceitos raciais e tratam os negros como se eles - os símios - pertencessem a uma raça superior. Com o mesmo orgulho se avêm com subalternos, ordenanças, jornaleiros, porque no exército se consideram membros da casta dos oficiais, e em casa como "senhores".

"Nas ciências dos seres vivos não é com leis e sim com teses que operamos. Também estas, porém, são a base indispensável de que a pesquisa necessita para construir"`. Vejamos tais teses, seriando-as por algarismos romanos:

I - "Os animais gregários são medrosos, covardes, não se dão ao trabalho de pensar, não querem assumir responsabilidade"... "A maioria dos homens - escreveu Bertrand Russell - prefere deixar-se matar a pensar. A história o atesta”.

II - "Os primatas gostam de barulho, porque são medrosos por natureza e o ruído afugenta o medo”.

E foi este medo natural aliado à capacidade da imaginação, surgida mais tarde, que criou a religião. Esse mesmo medo, na guerra, é substituído pela coragem... produzida pelo clangor dos

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metais, trompas e clarins, e pelo estrondo profundo dos ins-trumentos de percussão. Fale Milton:

Em perfeita falange lá se move,Ao dório som dos pínfanos, das flautas, O exército infernal. Assim se ergueram Às alturas do brio o mais ilustre Os antigos heróis, indo às pelejas; Assumiam assim, em vez de raiva, Meditado valor, firme, inconcusso, Que por igual detesta e repudia Da morte o medo, a vergonhosa fuga. Tinha este som, por variações solenes,O poder de induzir serenidadeNas torrentes de idéias impetuosas, E de expulsar a dor, tristeza e medo, A aflição torva, a dúvida terrível,Dos corações dos homens e dos Numes.

III - "Os símios são, na maior parte, animais gregários. Os antropóides, pelo contrário, vivem individualmente. O homem, situado na árvore genealógica entre as duas espécies, traz em si os característicos de ambas. Daí a (...) fórmula: “A espécie humana divide-se em dois tipos: animais gregários e indivíduos independentes.O destaque é nosso, e o pusemos para sublinhar que o postulado de Aristóteles que diz ser o homem um animal gregário, isto é social, representa só meia verdade. Ora, meia verdade, é mentira; e foi sobre esta mentira do postulado aristotélico que se erigiu o nosso mundo atual cuja Ética é a não-Ética, e cuja Moral é a imoralidade, dado que esta "Moral" (com aspas) pode mudar-se como se fora moda, e ser como quisermos que ela seja... A Moral ou Ética, antes de Aristóteles, não se fundamentava nos costumes, nos usos, pois que tinha sua base em Deus... único capaz de disciplinar todo o comportamento humano. Por conseguinte, usos, costumes e hábitos estavam para a Moral, como os capítulos, artigos e alíneas para a Lei; eles estão compreendidos nela, e, por isto mesmo, não a compreendem.

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IV - "O bando não gosta de individualistas nem estes simpatizam com o clã. Irrompe inevitavelmente a hostilidade. O indivíduo, mais fraco, recua - "Odi profanam Vulgus et Arceo"; se empreender a luta, sucumbe". Haja visto quantos, na história, sucumbiram ao vão peso do número! Cristo já dizia... para o bando hostil que o enfrentava: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais os monumentos dos justos, e dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos associaríamos com eles para derramar o san-gue dos profetas. Assim, vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós pois a medida de vossos pais" (Mat. 23, 29 a 32). Um estereótipo do que ocorre com os homens de elite individualistas, de todos os tempos e de todos os lugares, temos "A História de Fernão Capelo Gaivota", de Richard Bach. Agora Ortega: "Quando vejo que para um homem ou grupo se dirige fácil e insistente o aplauso, surge em mim a veemente suspeita de que nesse homem ou nesse grupo, talvez junto de dotes excelentes, há algo sobremodo impuro". Daqui se tira que a ovação, para ter valor, vai depender de quem aclama: se as massas aplaudem "fácil e insistente", vale reagir como Phocion: "porque, como a multidão o aplaudisse, perguntou: - Que asneira eu disse?" Diante de uma só pessoa podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele que não se valoriza a si mesmo - no bem ou no mal - por razões especiais, mas que se sente "como todo o mundo", e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais”... "Imagine se um homem humilde que ao tentar valorizar-se por razoes especiais - ao perguntar de si para si se tem talento para isto ou para aquilo, se sobressai em alguma ordem - adverte que não possuí nenhuma qualidade excelente. Este homem sentir-se-á medíocre e vulgar, e mal dotado; mas não se sentirá "massa". E é indubitável que a divisão mais radical que cabe fazer na humanidade, é esta em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada especial, mas que para elas viver é ser em cada instante o que já são, sem esforço de perfeição em si mesmas, bóias que vão à deriva".

V - "Atrás do cérebro recente, ou cérebro anterior delicadamente cinzelado, no fundo da abóbada craniana, jaz como um dragão o cérebro primitivo, ou cérebro posterior: o "bruto no homem", o centro dos reflexos, a sede dos instintos e das

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sensações obscuras: fome, sede, fadiga, impulso sexual, instinto de conservação, instinto gregário, todos os instintos englobados na qualificação de "maus" como a vaidade, a inveja, a avareza, a cobiça, a crueldade, a astúcia"... "Todos nós somos esquízóides; todos - idealistas e materialistas - somos o mesmo ser abnegado e egoísta, condescendente e irredutível, dominador e submisso, generoso e avaro, bom e cruel, sincero e mentiroso - tudo isto, entrelaçado numa teia inextricável em que estamos enredados”.

"Aí temos, pois, a imagem do homem, à luz da ciência moderna: um primata que não é símio nem antropóide, mas um primata de espécie peculiar, meio animal gregário e meio indivíduo solitário, com muitos traços simiescos, alojando no crânio dois cérebros que fazem dele um esquizóide, incomparavelmente superior às demais criaturas pelo cérebro recente, e merecendo incontestavelmente o título de rei da criação". Nenhum outro ser ergue os olhos para os astros e diz como Kant: "Duas coisas enchem a alma de admiração e reverência tanto maiores, quanto mais e mais intensamente a reflexão se concentrar nelas: o céu estrelado acima de mim; e a lei moral dentro de mim. Disto se conclui:

VI - "Os primatas não são animais, porque aspiram a vencer em si a animalidade. Ninguém pode considerar-se como fazendo parte daquilo de que quer libertar-se. Os outros - os animais normais - contentam-se com ser animais. Os primatas sentem em si a animalidade como um mal. Um primata é um ser que será tanto menos animal, quanto mais houver adquirido o caráter de primata. Eis justamente o objeto do nosso desejo veemente, a meta para que tendemos, com todas as nossas forças, a nossa educação, a nossa literatura, a nossa religião, a nossa arte, a nossa filosofia, as nossas crenças: deixar de ser animal. E o que nós denominarmos homem ideal é, do ponto de vista da ciência natural, o primata ideal, o ser completo e exclusivamente dirigido pelo cérebro recente, a criatura que dominou os instintos do seu cérebro primitivo e se converteu em mero pensamento e sentimento, em puro espírito e moral: o santo”.

Primata significa primeiro, primaz, primacial na classe dos mamíferos; pois, então, o supra-sumo dos primatas é o homem perfeito, o santo, como inferiu Fritz Kahn. Finalmente, isto:

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VII - Graças aos esforços do casal de psicólogos norte-americanos Beatrice e Allen Gardner, pôde-se ficar sabendo que os macacos, sobretudo chimpanzés e orangotangos, podem aprender a falar... a linguagem de gestos, própria para os surdos-mudos. Com o auxilio deste método de linguagem, ficou-se sabendo que tais antropóides memorizam, raciocinam, fazem generalizações (formam conceitos a partir de indivíduos isolados, isto é, abstratizam), inventam combinações de palavras... pelo que criam palavras novas. Que os macacos reflexionam, isto é, pensam frente a um problema, Kohler já o havia demonstrado. Fale Bertrand Russell: "Parece haver dois modos de aprender: um, mediante a experiência, e o outro através do que Kohler chama "discernimento" (insight)"... "Contudo, o problema real já está suficientemente definido no trabalho de Kohler: é a análise do "discernimento" (insight) oposta ao método do reflexo condicio-nado”. Portanto, o que se acha potenciado, altamente, no primata supremo, o homem, já se encontra em germe no chimpanzé. Quanto a que os macacos aprendem a linguagem dos surdos-mudos, pode ser visto nas seguintes obras: Klaus Thews, "Etologia - A Conduta Animal, um modelo para o homem?”; e a Revista "Realidade" n.º 98 - maio de 1974).

Esta tendência dos primatas em negar-se de animal fez com que os melhores da espécie projetassem esta sua anti-animalidade num Ser perfeito a que, desde sempre, se chamou Deus. A animalidade, desde então, passou a ser censurada, e a produzir o medo do castigo. Eis, aqui, a gênese da Moral, que, por este modo, passou a disciplinar a formação dos usos e dos costumes, e não, vice-versa, como pretendeu Aristóteles, a partir da sua meia verdade (o postulado do homem ser social), meia verdade... que se tornou mentira desde o momento que foi tomada pelos modernos para criar um mundo sem Deus, sem Moral e sem tabus!...

Primeiramente, pois, como diz Oliveira Martins, em “Sistema dos mitos”, "não foi o medo que inventou o mito: foi a imaginação independente e por força da atividade própria. Do mito, que deu realidade a quimeras, nasceu o medo religioso: nasceu deus, cuja imagem é sempre dupla - bem ou malfazeja, terrível como as sombras errantes animadas, ou simpática à maneira da luz do céu sereno"... "Na palidez da noite, ao clarão da lua, as sombras são fantásticas... A confusão do objeto com a imagem dá

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individualidade à sombra - e essa sombra é que fala e vive nos sonhos”... "Deus nasceu nos bosques. A floresta é o berço do medo”... "Com o primeiro deus surgiu o primeiro padre, porque uma autoridade que se sente sem se ver, a que se obedece e se teme sem se conhecer, envolve em si a necessidade de um medianeiro"... "Não foi o sol, diz Spiegel, que primeiro chamou a atenção do selvagem. O céu noturno, cujas luzes contrastam com a escuridão da terra, impressiona muito mais a imaginação ingênua... A lua é o pai da ninhada de estrelas; a lua é homem, o sol a esposa, por toda a América, por toda a África. O culto lunar é o primeiro, o solar é posterior”...

..."O reinado religioso do sol começa com a civilização. É então que a lua, como todos os vencidos desce à condição feminina e maligna... Só o sol inspira hinos religiosos e preces repassadas de um sentimento luminosamente puro”... Eis, pois, que "a mitologia espontânea começa a colorir-se de noções reflexas; a moral, colando-se ao mito e dando-lhe expressão, é um sintoma de progresso".

Aí está, como a moral nasceu da religião; como a ética é inexplicável sem a autoridade de Deus. 0 deus Sol aparece com a cidade; cidade, cidadão, civil, civilização, tudo derivado da raiz civ (civitatem), e, em português, cid. O deus primitivo é a claridade do dia; deus-luz; deus deriva-se da palavra dia! Assim, o homem ético reside no homem místico..., porque, geneticamente, não há ética sem mística. A Maçonaria, no grau de Aprendiz (não no 19), se ocupa com a formação ética do homem, do destino final ou fim último dele. Esse fim é o Bem supremo - a felicidade! Moral derivada de "Mores" (costume), e Ética de "ethos" (costume), é uma aberração, pois que faz a moral relativa, aberração procedente do postulado de Aristóteles que diz ser o homem, por natureza, um animal social. Sem o individualismo do Chefe, não haveria o gregarismo do bando de macacos..., e de homens primitivos..., porque todo rebanho precisa de um guia. Logo, o enunciado aristotélico representa só meia verdade. A moral e a ética não nascem no homem gregário, no homem-massa, “profanum vulgus", que não pensa por si, que não resolve por si, que não é si mesmo, que vive a crédito da sociedade, sem autenticidade; procedem do individualista-chefe que, autêntico, é si mesmo, e, se impõe aos demais, falando em nome de Deus. Sua palavra é irresistível, hipnótica; sua expressão, eloqüente,

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carismática; sua pessoa, terrível como a verdade em toda a sua nudez! Por que? Porque, quem, edificado na solidão e na autenticidade, ousou dar xeque-mate às verdades mais familiares, não vai, agora, entender-se com amenidades e hipocrisias sociais!...

Já o homem-massa, o gregário, o contente consigo mesmo, com sua vida apenas vegetativa, com sua ausência de ideal superior, não tem pejo de dizer: "Pensar toma tempo" - explica um industrial americano - "e nem sempre é agradável”. Como haver-se, o individualista, no meio duma multidão de tais homens... para os quais bastariam apenas quatrocentos gramas de massa cerebral? Fausto, em sua solidão bradava:

Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade, do que toda essa récua inchada de vaidade; lentes e bacharéis, padres e escrevedores. Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores de diabos e infernos, atribulados sonhos e martírio sem fim de ânimos, bisonhos. E Schopenhauer: "O nosso mundo civilizado não passa de uma

grande mascarada. Encontram-se aí cavaleiros, frades, soldados, doutores, advogados, padres filósofos, e que mais se encontram ainda?. É a maldição do homem de gênio que, na própria medida em que ele parece aos outros grande e admirável, estes lhe parecem pequenos e mesquinhos. Contudo tem que calar toda a vida essa opinião, como eles calam a sua. Entretanto é condenado a viver numa ilha deserta, onde não encontra ninguém que se lhe assemelhe, e sem outros habitantes senão macacos e papagaios. E é ainda vítima da ilusão, que lhe faz tomar de longe um macaco por um homem”. Tal é o nosso mundo: "Um deserto de homens e de idéias", como já dizia Osvaldo Aranha!

Por causa de o mundo estar atufado dessa gente trivial, vulgar, apática, sem brilho, descolorida, cansativa, "macacos e papagaios", no dizer de Schopenhauer, Miguel de Unamuno propôs aos espanhóis empreenderem uma grande jornada em busca do túmulo de D. Quixote. Decepcionado com o prosaísmo da Europa e da Espanha do seu tempo, do nosso tempo, a esperança de Unamuno é que, encontrando o túmulo de D. Quixote, os espanhóis, e com eles os

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europeus, novamente inspirados pelo incontaminado idealismo do cavaleiro manchengo, voltassem a realizar grandes coisas.

Eis aí, vincados como que com a unha no texto do Livro da Vida, as duas espécies de homens: o individualista e o gregário, ambos indispensáveis à constituição da sociedade humana. A construção dos códigos éticos e legais, corre por conta dos individualistas; a prática vivencial de tais códigos, corre por conta de todos, de toda a sociedade, esta que é a síntese entre a tese povo, e a antítese eleita criadora. A queda duma civilização se dá quando o homem-massa, gregário por natureza, em se fazendo demagogo, se apossa dos postos de comando; com isto, o que antes era elite criadora, se torna, agora, apenas em elite dominante. Fale Will Durant:

"Inconscientemente Darwin completara a obra dos enciclopedistas: haviam eles removido a base teológica da moral moderna, mas deixando a moralidade em si intacta e inviolada, suspensa misteriosamente no ar; uns haustos de biologia era tudo quanto se tornava necessário para varrer esse remanescente da impostura. Homens que podiam pensar, cedo perceberam o que os mais profundos cérebros de todas as épocas haviam percebido: que nesta batalha a que chamamos vida o de que necessitamos não é bondade, mas força; não é humildade, mas orgulho; não é altruísmo, mas resoluta inteligência; que a igualdade e a democracia se chocam contra a seleção natural e a sobrevivência dos mais aptos; que não as massas, mas os gênios são o objetivo da evolução; que não "justiça", mas poder é o árbitro de todas as diferenças e de todos os destinos. Assim o parecia a Nietzsche”.

Conseqüentemente, “a filosofia ética de Spencer não constitui o corolário mais natural da teoria da evolução. Se a vida é luta na qual os mais aptos sobrevivem, então a força é a virtude suprema e a fraqueza é o defeito único. Bom é o que sobrevive, o que vence; mau, o que falha. Unicamente a covardia vitoriana dos darwinistas ingleses e a respeitabilidade burguesa dos positivistas franceses e dos socialistas alemães podiam iludir o inevitável desta conclusão. Aqueles homens eram bastante bravos para rejeitar o cristianismo e a teologia cristã, mas não ousavam ser lógicos e rejeitar também as idéias morais, a adoração da fraqueza, da suavidade, do altruísmo que haviam brotado dessa teologia".

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E por aí vai Nietzsche, tirando outras conseqüências da doutrina da Evolução, afirmando, como é certo, que o objetivo da Evolução é criar o super-homem, só que, para Nietzsche, este é um super-bruto ao invés de um santo. Desde que a Evolução, em chegando ao homem, nega a natureza animal, por causa do cérebro recente... e dos instrumentos de cultura que o próprio homem criou, dos quais se sobressaem os códigos éticos e os códigos legais.. com base na autoridade de Deus, fica patente o absurdo de Nietzsche em trocar o super-homem-santo pelo super-homem-bruto. Uma natureza que persiste em ser qual é, egoísta, madrasta, amoral, daria no super-bruto de Nietzsche; como ela se nega no homem, já por causa do cérebro recente dos primatas, já pelos instrumentos que o próprio homem criou... para o seu aperfeiçoamento (cultura, religião, ética), o resultado inevitável é o aparecimento do super-homem verdadeiro, o santo, o sábio, cujo modelo supremo é Cristo. Este o fim último do homem, o objetivo final da Evolução.

Se o involuído homem natural não pode servir de modelo, então, onde está o padrão a ser seguido? Aceito que moral vem, de "mores" que quer dizer costumes, então, a partir de quê... se formam os bons costumes? Onde o padrão?, onde o molde?, se este não pode ser achado IN NATURA? Acaso a base está no postulado de Aristóteles que diz ser o homem um animal social? Que, por ser social por natureza, tem, implicitadas em si, as virtudes todas que permitem a formação da sociedade? Neste caso, como explicar o individualismo dos antropóides, correspon-dentes, na espécie Homo sapiens, aos condutores de rebanhos humanos, aos gênios, aos profetas, aos fautores de religiões, aos filósofos, aos sábios, aos santos? Acaso, tais individualistas não têm antecedentes na natureza dos antropóides solipsistas, em oposição aos símios gregários, como já o demonstramos?

E uma moral relativista que hoje é, e amanhã não é; que se fundamenta no próprio homem, por sua natureza, também móvel, mutável, acaso pode ser havida como sabedoria? Dado que não pode o neófito chegar à Jerusalém Celeste pela ponte da fé, porque está caída, pelo que foi mandado sentar-se, para construir outra ponte sobre o abismo, atravessando-o pela sabedoria, acaso se pode chamar de sabedoría a essa moral (de “mores", costumes) que nunca é, porque sempre se está mudando, sempre está vindo-a-

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ser? Como pode o homem apoiar-se nessa areia movediça, para a edificação sua, da sua vida, da sua civilização?

Finalmente, o último xeque-mate reservamos para o próprio Aristóteles que disse na "Política": "Para viver isolado deve-se, ser ou animal ou um deus". Se há homens que vivem sós, sendo eles deuses, isto é, santos, sábios, super-homens, ou então animais, ou seja, bandidos, perversos, malvados, facínoras, segue-se que tais homens autênticos, que são façanhosos, no bem ou no mal, não são gregários. Logo, nem todo homem é sociável, não sendo verdadeiro o postulado que afirma ser o homem um animal social. Esta última sentença de Aristóteles confirma tudo o quanto dissemos referente aos símios gregáríos, e os antropóides individualistas.

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ENUNCIADO SÉTIMO

“Sendo as opiniões e instituições relativas ao lugar que os países ocupam no tempo, querer que idéias, pelo correr dos séculos, se sedimentem nos mais civilizados e se firmem neles, é querer que desapareça o intervalo que separa a semeadura da produção do fruto".

Há, aí, duas afirmações que se resumem em uma, da qual resulta a conclusão final: a primeira afirma que “as opiniões e instituições" são relativas ao tempo e aos países em que atuam; a segunda, que as idéias não se devem firmar ou sedimentar nos mais civilizados. Resumindo estas duas partes em uma, temos: nem as opiniões, nem as instituições, nem as idéias se devem firmar, sedimentar, estratificar nos homens..., porque (eis a conclusão), acontecendo isto, desaparece o intervalo que separa a semeadura da colheita.

Esta metáfora agrícola empregada no Enunciado Sétimo não foi muito feliz, porque, na relação plantio-colheita agrícola, tem que haver um intervalo de tempo, porque, após uma colheita, é exigido o preparo da terra para outra sementeira. No domínio das idéias não acontece isso, porque no ponto em que se está colhendo os frutos de uma semeadura anterior, já se faz o plantio da colheita seguinte. Por causa disto, nenhum homem e nenhuma sociedade consegue só colher, sem, ao mesmo tempo, plantar para o futuro. Dado que o homem vive em função do futuro, seu presente consiste em executar o que planejou para o seu futuro. Seu passado é uma coisa que o homem e a sociedade levam às costas, nem sempre com gosto ou prazer. Vejamos esta verdade em rápida e suscinta visão histórica:

O mundo grego foi uma vasta colheita duma semeadura ocorrida nos tempos homéricos ou heróicos, e, ao mesmo tempo, foi semeadura do que se colheu na fase de helenização, em que a cultura grega se disseminou pelo resto do mundo, sobretudo, o mundo romano. A corrente helenista caldeada à cristã, foi a sementeira plantada no fim do Império Romano, que frutificou na

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Civilização Ocidental. Quando, na Idade Média, se fazia o caldeamento entre a filosofia socrático-aristotélica e a doutrina cristã, e se galvanizavam os deuses e heróis greco-romanos, tor-nando-se nos santos cristãos, tudo isto era estar plantando uma sementeira sob a forma de opiniões, instituições e idéias que frutificaram na antítese da Renascença. Nesta, por causa do que ocorreu na Idade Média, a filosofia principiou a fragmentar-se nas várias ciências particulares. Surgiu Galileu com o seu método científico da observação e experimentação; e, paralelamente, nascia a filosofia moderna a partir do cogito de Descartes. Esta filosofia moderna, também chamada Idealismo, Psicologismo, chegou até John Locke com o qual se inaugurou o empirismo sensualista.

Este empirismo principiado por Locke, que fazia o conhecimento decorrer da experiência dos sentidos, engrossou-se com a outra corrente empírica vinda de Francis Bacon, mas com isto de diferente: Bacon, além de estar eivado de formalismo escolástico, ainda mantinha a idéia de Deus, e não dava importância à matemática. Cumpria a esses tempos criar, por oposição, por antítese, por contraditória, o materialismo que floresceu e frutificou exatamente com os filósofos maçons, iluministas, nacionalistas empíricos, ideólogos da Revolução Francesa, fautores da Enciclopédia.

Esse materialismo dos filósofos maçons enciclopedistas foi grafado no Livrinho do Grau 19, como se pode ver no Enunciado Segundo que prega a primazia do interesse material sobre o moral. No Enunciado Terceiro, nega o valor das religiões, porque se apóiam no Absoluto que é Deus. No Enunciado Quarto, arremetem-se, esses pensadores, contra a Metafísica e a Psicologia, porque se ocupam do Absoluto, ou brotando ou desaguando nele. No Enunciado Sexto, afirma-se a relatividade da Moral, de modo que tudo se há de apoiar nos sábios que, para mudar usos e costumes... até todos os anos, precisam ter o caminho livre para proclamar suas idéias. E este moralismo relativista do grau 19, choca-se contra a Moral absoluta do grau de Aprendiz..., fazendo controvertida a Doutrina Maçônica. No Enunciado Sétimo, que é este, afirma-se a separação entre uma semeadura e sua colheita, ao que juntamos: a colheita duma semeadura anterior se faz ao mesmo tempo em que se semeia para uma colheita posterior. Só que, negando, na prática, o dito neste mesmo Enunciado Sétimo, faz duzentos anos que estamos a

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remastigar esse alimento deteriorado que, por isto mesmo, está provocando intoxicação, e, se não for logo renovado, fará sucumbir a Sublime Ordem.

Ninguém, pois, se rebele com o diagnóstico da nossa querida grande Enferma, nem pretenda impedir-lhe a aplicação do único remédio que há para o caso, remédio (quem pudera crê-lo?) que a própria Maçonaria se receitou, faz dois séculos, ao enunciar: nem as opiniões, nem as idéias, nem as instituições... das quais a Maçonaria é uma, podem sedimentar-se, porque face ao compulsório e inexorável dinamismo da vida... representado pelo ciclo semeadura-colheita, qualquer parada significa morte!

O ciclo semeadura-colheita não pode ser quebrado. Nas flâmulas da Revolução Francesa tremularam os dísticos maçônicos: Liberdade, Igualdade e Fraternidade... divisas criadas por "Claude de Saint Martin e era corrente nas Oficinas dos Martinistas do Século XVIII, antes que a República, em 1792, a tomasse da Maçonaria”. (A.T.Cavalcanti de Albuquerque – “O que é a Maçonaria”). Todavia, como nem a igualdade nem a fraternidade acham guarida nas leis da Natureza, vigorou somente a liberdade... dos fortes no Liberalismo econômico que se fez opressão no Industrialismo..., opressão denunciada por Karl Marx em "O Ca-pital", o que provocou a réplica do Intervencionismo estatal que temos hoje. O materialismo iluminista do século XVIII, deificando a Ciência e a Razão, ao mesmo tempo que combatia a Metafísica, o Psicologismo e a Religião, solapou os alicerces da Moral; esta obra obteve reforço na Doutrina da Evolução que denunciava a ancestralidade animal do Homem. Tudo isto foi semeadura do que colhemos agora de bom... que é a tecnologia, e de mau... que é a ausência de norte filosófico para o mundo, ausência de projeto para o futuro..., por isto mesmo, lúgubre, ameaçador!

E o mesmo grau 19, que pelo seu Enunciado Sétimo, denuncia a relatividade das opiniões, das idéias e das instituições no tempo e no espaço, ou seja, nas épocas e países, pretendeu fixar na imobilidade a doutrina do Cientismo como um absoluto, e da Razão como uma deusa. "Que simboliza a Jerusalém Celeste ou Templo da Verdade? - Simboliza o Templo da Razão". Assenta que é "a Razão, única filha do Eterno, imortal como a Verdade que lhe serve de trono." Diz que ela "não tem princípio nem fim", quando a Razão é histórica, tem história biológica, e cresceu e se

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desenvolveu com o cérebro. Diz que Deus a ideou, "idealizou-a o Criador", quando ela é crudelíssima conquista individual daquele que cresceu por praticar a meditação retardada, que é o ensaio-e-erro animal, passando daqui para o ensaio-e-erro praticado in abstracto, no espaço subjetivo, na imaginação, e que só se tornou raciocínio e razão, quando, vencendo a morosidade do pensamento por imagens, se fez pensamento abstrato feito só por conceitos universais. E acaso isto é o fim? Não. Porque todo o desenvolvimento científico-racional acaba numa sentença, quando não, numa fórmula. Pois o passo seguinte, em vez do raciocínio, é a intuição... que consiste no pensar sintético por sentenças, ficando estas no lugar outrora ocupado pelos conceitos abstratos da fase anterior, donde vem que, seguindo-se à Razão, vem a Hiper-razão... e se a primeira é a quinta dimensão, esta última é a sexta.

Apesar de muito bem considerada a relatividade das idéias e das instituições, os Irmãos iluministas não atinaram (!) que suas próprias idéias também eram relativas, assim como era relativo o grau 19 que instituíam, isto é, do qual faziam uma instituição ..., e que, por isto mesmo, precisava ser reformulado, quando os tempos o exigissem. Pois claro! Recuados duzentos anos no tempo em relação a hoje, não podiam perceber que a Razão não é infinita, mas limitada e planimétrica, e que seu estágio superior é a Consciência Volumétrica em que o "raciocínio", em se fazendo da velocidade do raio, passa pensar por teses gerais, por sentenças, o que se chama intuição! Não perceberam, então, que o pensamento científico, para progredir, emprega hipóteses (intuições) que são verdades preliminares, verdades “adivinhadas”; supostas, dependentes de comprovação pela experiência...; porque a experiência sozinha, sem a hipótese, sem a intuição preliminar, não sabe por onde ir, nem por onde começar. Portanto, a hipótese guia a experiência, e esta aperfeiçoa a hipótese, e é assim que se chega à verdade. Não repararam, então, que os primeiros princípios das ciências, e os postulados e axiomas das matemáticas, não se podendo provar, são aceitos de fé, intuitivamente!

Há hipóteses com tamanha intuição de verdade que, como se podem provar, são hipóteses; se não se pudessem provar seriam postulados ou axiomas. De maneira que uma hipótese não é um simples palpite desassisado; trata-se dum ato de farejar a verdade, e a isso se dá o nome de intuicão. "É da natureza das mentes

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excelsas farejar a verdade, ainda que não possam vê-Ia. Shakespeare, Leonardo da Vinci, Goethe pressentiam verdades - como os filósofos pré-socráticos da Grécia”. Assim, "a inteligência se manifesta pelo fato de alguém saber coisas, que supostamente não deveria saber. Goethe está num cemitério quando ainda estudante de direito, e faz uma descoberta anatômica de aspecto evolutivo numa época em que ainda não havia histórias da evolução. Mais tarde, já diretor de teatro, faz no seu jardinzinho uma descoberta semelhante no campo da botânica: a metamorfose das plantas. Shakespeare fala de átomos como se vivesse 300 anos mais tarde, e Newton concebe que forças elétricas mantêm unidos os átomos. Wells descreve a explosão de uma bomba atômica sobre Paris 30 anos antes de existir mesmo essa palavra. (Fritz Kahn - O Livro da Natureza).

Fale, agora, C. W. Ceram: "Ter gênio significa, entre outras coisas, possuir a faculdade de reduzir à expressão mais simples o que é complicado e de reconhecer um princípio numa estrutura”. Por causa disto, por causa da sua Supra-razão, o gênio supera, por toda parte, a mediocridade dos especialistas, numa nova versão do dualismo símio-antropóide, homern-massa versus elite-criadora, individualista-gregario. "A desconfiança do "especialista" pelo "out-sider" bem sucedido é a desconfiança do burguês pelo génio. O homem de carreira assegurada despreza o pesquisador de zonas inseguras e que não faz disso meio de vida. Esse desprezo é injusto".

E prossegue C. W. Ceram: "Por mais longe que remontemos à pesquisa científica, não é difícil verificar que um número extraordinário de descobertas foi feito pelos "diletantes", os "outsiders", ou até "autodidatas" que, levados pela obsessão de uma idéia, não sentiram o freio da formação especializada, as ven-das do especialismo, e saltam por cima das barreiras erguidas pela tradição acadêmica”...

"Otto von Guericke, o maior físico alemão do século XVII, era jurista de profissão. Denis Papin era médico, Benjamin Franklin, filho de um modesto fabricante de sabão, tornou-se, mesmo sem formação ginasial e universitária, não só um político ativo (para o que podem bastar qualidades menos importantes), mas também um sábio de valor. Galvani, o descobridor da eletricidade, era médico, e, segundo prova Wilhelm Ostwald em sua "História da Eletroquímica", deveu sua descoberta justamente à deficiência de

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seus conhecimentos. Frauenhofer, autor de eminentes trabalhos sobre o espectro, até aos quatorze anos não sabia ler nem escrever. Michael Faraday, um dos mais importantes naturalistas, era filho de um ferrador de cavalos e começou como encadernador. Julius Robert Mayer, descobridor da lei da conservação da energia, era médico. Também era médico Helmnholtz quando, aos vinte e seis anos, publicou seu primeiro trabalho sobre esse mesmo assunto. As obras mais notáveis de Buffon, matemático e físico, tratam de geologia. O homem que construiu o primeiro telégrafo elétrico foi o professor de Anatomia Thomas Sommering. Samuel Morse era pintor, assim como Daguerre. O primeiro criou o alfabeto telegráfico, o segundo inventou a fotografia. Os obsecados criadores do aeróstato dirigível, Zeppelin, Gross e Parseval, eram oficiais e não tinham nenhuma idéia sobre técnica”.

Outra vez Fritz Kahn: "Fato digno de nota é que muitas das descobertas fundamentais na botânica se devem a leigos: a fecundação, mediante os insetos, as plantas carnívoras, as leis da hereditariedade. Assim Goethe descobriu que a flor é um grupo de folhas modificadas. As flores são folhas que, em lugar de fabricarem amido, se incumbem da distribuição, do cruzamento e da pro-pagação dos gens"... "Quando um doutor de Bremen - que à semelhança de Mendel e Sprengel nem era cientista do ramo -- descobriu que a drósera, uma planta comum das charnecas, devora insetos, naturalmente suscitou risota". Mas essas risotas ficam para os parvos diplomados que deviam saber que a ciência não é de ninguém. Foi pensando assim que "O antigo vendedor de arenques, apesar da caçoada dos profissionais, partiu com a Ilíada no bolso para procurar Tróia e encontrou-a, soterrada no entulho, exatamente como Homero a tinha descrito no mínimo detalhe, incluindo a banheira de Helena". Esse homem foi Heinrich Schliemann. De novo, W.Ceram: "Isso não parece um conto de fadas? Um homem que obtivera o maior dos êxitos comerciais queimar atrás de si todos os navios do seu negócio para seguir o sonho da sua juventude? (...) ousar desafiar o mundo científico, tendo na cabeça pouco mais do que Homero, opor sua fé à dúvida em Homero, desprezar a pena dos filósofos, para tirar a limpo com a pá o que até ali uma centena de livros havia perturbado?". Verdadeiramente cabe para Schliemann parte do discurso do xeque Abd-er-Rahman ao arqueólogo inglês Layard, que figura como mote no livro de C. W. Ceram, Deuses, Túmulos e Sábios, pág. 185:

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"Meu pai e o pai de meu pai, antes de mim, abriram aqui as suas tendas... Há doze séculos que os verdadeiros crentes - Deus seja louvado, só eles possuem a verdadeira sabedoria - se estabeleceram neste país, e nenhum deles ouviu jamais falar em palácios subterrâneos, nem tampouco os que os precederam. Então, eis que aparece um franco de um país afastado muitos dias de viagem, vai diretamente ao lugar, pega dum bastão e traça uma linha para cá, uma linha para lá: “Aqui", diz ele, "está o palácio; e lá, diz ele, "está o portão"; e mostra-nos o que durante toda a nossa vida esteve sob os nossos pés, sem que nada soubéssemos. Maravilhoso! Maravilhoso! Aprendes isso pelos livros, por artes mágicas ou pelos vossos profetas? Di-lo, ó Bei! Diz-me o segredo da sabedoria !”...

Tal, o segredo da sabedoria - a intuição!, que... está para o raciocínio, assim como a Razão comum, para a Consciência Volurnétrica... Fritz Kahn invoca, por isto, a autoridade de um intuitivo, Arquimedes, para crer nos resultados do cálculo moderno para o conteúdo de matéria do universo:

"Pode-se confiar na cifra 1078 prótons para o conteúdo do universo, pois já Arquimedes a havia encontrado! Numa carta ao Rei Gelon dizia ele que com a matemática se poderia calcular o conteúdo do mundo. Por ordem do rei, cuja curiosidade despertara, pôs-se então a calcular e chegou ao resultado seguinte: 1063 grãos de areia. Um grão de areia pesa 108 g., que são 1616 prótons. 1063 X 1016 = 1079 prótons! Não se deve perguntar por que meio chegou Arquimedes a esse número. Deve-se admirar, e o melhor que se pode extrair desta história para a vida é que devemos nos libertar da idéia de que somos mais inteligentes do que os homens da Antiguidade, de qualquer antiguidade e de qualquer raça! Os inteligentes foram inteligentes em qualquer época, e os tolos não avançaram um ponto.

Eis a comprovação farta do que dissemos: as verdades comprovadas se organizam em sínteses, em enunciados globais, em teses gerais, e a Super-razão trabalha, velocissimamente, com estas sentenças globais, do mesmo modo que a Razão comum, planimétrica, trabalha com as generalizações menores que são os conceitos abstratos. Imagine-se o que seria o pensar intuitivo pleno de dois serafins "conversando" (?!) por teses gerais, ao invés de por conceitos! Tal é o fim da Razão - a SABEDORIA - donde se tira que a Razão é meio..., como, igualmente, é meio de se chegar a ela, o pensamento tardonho, moroso, concreto do animal, todo feito de ação de movimento corporal, no ensaio-e-erro, e, depois, do primi-

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tivo, todo feito por cadeias de imagens. Pantomima, do grego pan (todo ou tudo) e mimos (mímica, gestos), é a primitiva linguagem do australantropo, do pitecantropo, ao pé do seu perpétuo fogo tribal, linguagem física, objetiva, corporal, ritual, pelo que tudo o que se quisesse contar, fosse o que fosse, havia-se de armar um teatrinho... e representar. A pantomima continuava a acontecer, depois, na imaginação, passando a ser subjetiva; quer dizer: no lugar dos fatos acontecidos objetivamente, em realidade, ficaram as imagens deles, tornando-se revivências psíquicas. Quando, no lugar e a partir das imagens sensoriais, surgiram os conceitos abstratos, as antigas correntes de imagens da psico-pantomima se fizeram raciocínios. Mais um passo, e estes raciocínios puderam organizar-se em sentenças gerais, e estas substituíram os conceitos no discurso intuitivo; o que era, então, raciocínio moroso se tornou, agora, intuição fugaz.

Esta é a razão por que os filósofos dizem que a ação é uma forma enfraquecida de contemplação. Aqui é pensar com o corpo, com as mãos; o pensar do primitivo era um agir com mãos espectrais, invisíveis, imaginárias...; o pensar abstrato é conceitual, sem quaisquer mãos; o pensamento intuitivo percorre cadeias inteiras dialéticas sem se perceber, cadeias que se acham enfeixadas nas sentenças, nos enunciados globais. A Razão, pois, é conquista individual duramente merecida, e não, dádiva gratuita do Eterno.

Concluindo, apliquemos à própria Sublime Instituição Maçônica sua doutrina exarada no Enunciado Sétimo, pois, como instituição que é, sofre o relativismo dos países e das épocas. Ora, diz o Enunciado: "querer que idéias, pelo correr dos séculos, se sedimentem nos mais civilizados e se firmem neles, é querer que desapareça o intervalo que separa a semeadura da produção do fruto". E faz nada menos de duzentos anos que as idéias são as mes-mas. Logo, elas se sedimentaram, se fossilizaram nos maçons que as repetem sem repensá-las, como se tais idéias fossem válidas hoje. Aconteceu, então, exatamente aquilo contra o que o Enunciado Sétimo alertava: deixou de haver intervalo entre a semeadura e a colheita; quer dizer: as idéias superadas, caídas num arcaísmo de duzentos anos (!), se enunciam hoje, em meio a reverente pompa... Então? Por causa disto, cessou, por completo, a colheita dos frutos. Sem frutos nenhuns, os melhores, os que po-

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deriam pensar, não suportando o enfadonho bater de malhetes, afastam-se. Os que permanecem, entreolhando-se, se perguntam: "o que está acontecendo?" Pois ocorre, nada menos, que se pretende impingir idéias fossilizadas, bolorentas, que serviram há duzentos anos, e isto, em desatenção ao estabelecido no próprio Enunciado Sétimo. Isto mesmo, noutra colocação:

O Enunciado Sétimo pretende que tudo o que se planta numa época, colhe-se na seguinte. Assentado que o Racionalismo e o Iluminismo... associados à Doutrina da Evolução se constituíram em sementeira de há duzentos anos, cujos frutos colhemos hoje; e certo, como é, que enquanto se colhe uma semeadura, semeia-se outra, para o futuro, o que devia a Maçonaria ter semeado? Devia ter plantado, de há muito, o que precisamos agora, com urgência! O que se aconselha, então, fazer, com enorme atraso? Isto:

I - Revisar e reestruturar toda a parte filosófica dos Rituais, considerando que o passado ancião, senil, por sua caducidade está falando tolices;

lI - Dar ao mundo tresvariado um NORTE FILOSOFICO..., pois ele, tresandando, perigosamente ameaça meter-se "no vale da sombra da morte"! (Sal 23, 4).

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ENUNCIADO OITAVO

“O governo melhor é aquele que destrói as más Leis de seus predecessores, quer por desatualizadas, quer

por servirem a interesses particulares".

O Enunciado Oitavo diz que o melhor governo é o que derroga as más leis, e que são más por dois motivos: primeiro por desatualizadas; segundo, por atenderem a interesses particulares. Assim, o próprio Enunciado Oitavo por sua dupla afirmação, divide nosso estudo em duas partes. A primeira é por que as leis se desatualizaram. A segunda, quando e por que as leis atendem a interesses particulares.

As leis são feitas para reger a sociedade; ora, admitir que as leis se desatualizam equivale a afirmar que a sociedade se muda, se transforma, pelo que não é fixa. Logo, a sociedade é uma unidade dinâmica, estando em constante vir-a-ser, ou tornar-se, ou devir. Evoluindo a sociedade, seu regime se muda de totalitarismo tirânico para o liberalismo democrático, entrando em ação o segundo motivo: as leis que, na tirania, servem aos interesses pessoais dos absolutos donatários do poder, são substituídas por outras que só atendem aos interesses coletivos. Daí a nossa divisão do Enunciado em duas partes: a primeira refere-se à sociedade como dinamismo e transformação; a segunda, trata de como as leis totalitárias que sob quaisquer carizes, atendem só a interesses particulares, podem mudar-se em leis democráticas, as únicas que podem atender aos interesses coletivos.

Primeira parte: "O melhor governo é aquele que destrói as más leis". Acrescente-se a isto... que o melhor governo, para o ser, precisa estar bem assessorado, porque, do contrário, as leis são só para ficar no papel. De nada valem boas leis se não houver quem cuide da aplicação delas, e da vigilància no seu cumprimento, porque, muitos há que acham e dizem ser as leis tal qual as virgens; existem para ser violadas.

'`Toda comunidade - diz Bertrand Russel - se defronta com dois perigos: a anarquia e o despotismo". Convenhamos, todavia, que a pior tirania é melhor do que a anarquia, porque a tirania é ordem, e

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a anarquia, não. E é anarquia até que estes extremos se alternem; por causa disto, quando um Estado democrático, por extemporâneo, por frouxo, por demagógico, cai na anarquia, só o remédio de um poder discricionário pode salvar a nação. Daqui se tira que o melhor governo depende da situação em que ele se instala: se a situação for de decadência, quando a corrupção dos costumes e a imoralidade invadem todos os escalões do poder, as leis, ainda que boas, são só para dissimular, para embair. E quando alguém se lembra e pergunta: "E a Lei?", logo o outro responde com a frase atribuiria ao presidente Vargas: "Ora, a Lei!”...

Por esta razão, a Lei, a Constituição, o Estatuto escrito é só a codificação, o regramento que tende fixar o funcionamento da sociedade que já existe em regime de empirismo. Primeiro, a ação em movimento no presente, e que, por conseguinte, é a atualização de uma potencialidade interna do social; primeiro, o que já se faz, empiricamente, em sociedade natural e atual, e que se resume na adesão de todos a um projeto, a um programa, a um "modus vivendi"... já em execução, mas ainda na fase das tentativas, na do ensaio. Depois, o Estatuto que rege o já existente, fazendo que o direito natural seja também direito positivo. A Lei, portanto, é apenas a sanção que fixa práticas as quais, sem ela, poder-se-iam desvirtuar pela incessante variação. Este é o espirito de quaisquer leis: fixar o que é transformável, ou, como na ciência, descobrir a constante na variação, o fixo no móvel. Contudo, apesar da Lei, a variação continua a acontecer, e é assim que a Lei se desatualiza, fica no passado, passa a emperrar o desenvolvimento, donde ser preciso revogá-la, por má. Deste modo, como diz a primeira parte do Enunciado, o governo melhor é o que revoga as más Leis de seus predecessores por desatualizadas. Eram boas Leis no tempo de sua promulgação, e agora, em se defasando, em se desatualizando, se fizeram más.

Não percebendo que o fenômeno social não só antecipa como suscita a sua Lei, muitos se equivocam, supondo que o social é um produto ou resultado de leis; quer dizer: o Estatuto antes da sociedade. Tais sujeitos, acometidos de legislorréia, querem formar a sociedade no papel, como se as Leis foram plantas de casas, de edifícios, de pontes, de cidades artificiais. A partir de especulações filosóficas, imaginam a sociedade ideal; depois, legiferando sobre tudo, criam as utopias. Por este modo nasceram "A

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República" de Platão, a "Cidade de Deus" de Santo Agostinho, a "Utopia" de Thomás Morus, "O Leviatã" de Thomas Hobbes, a "Cidade do Sol" de Tomás Campanela, "O Príncipe" de Maquiavel, a “Walden II" de Skinner, "O Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, e em experiência no mundo, o "Comunismo" de Karl Marx. Diz Ortega que "A idéia da sociedade como reunião contratual, portanto jurídica, é o mais insensato ensaio que se fez de pôr o carro adiante dos bois".

Dado que a sociedade é, sempre, sem exceção, uma unidade dinâmica, móvel, transformável, donde o fato de ela se defasar em relação a Lei que, por isto, se desatualiza, tornando-se má, embora fosse boa no seu tempo, segue-se que a organização maior dessa unidade dinâmica, o Estado, possui as mesmas propriedades de uma sociedade pequena. Disto decorre que, também, continua Ortega, "Estado e projeto de vida, programa de ação ou conduta humanos, são termos inseparáveis"... "Antes que nada é o Estado projeto de um fazer e programa de colaboração. Chama-se às pessoas para que juntas façam algo. O Estado não é consanguinidade, nem unidade linguística, nem unidade territorial, nem contiguidade de habitação. Não é nada material, inerte, dado e limitado. É um puro dinamismo - a vontade de fazer algo em comum -, e mercê a isso a idéia estatal não está por nenhum termo físico... Isso é o Estado. Não uma coisa, mas um movimento”.... "O Estado é em todo instante algo que vem de e vai para".

Por causa de o Estado ser puro dinamismo, devir, tornar-se, vir-a-ser, com a lei, sem a lei, ou apesar da lei..., então, ele possui seus altos e baixos, seus avanços e recuos, seus progressos e retrocessos, sua vida e sua morte, não tendo nada disto a ver com promulgações de boas ou más leis. Nos períodos de decadência, de degeneração dos costumes, as boas leis também se tornam obsoletas. Quando Roma caiu, de nada lhe valeu seus Códigos de Direito, hoje, matéria obrigatória nos cursos de advocacia. Quando se cai, cai-se, apesar de quantas boas leis possam existir. Todavia, como o Enunciado Oitavo afirma que o melhor governo é aquele que revoga as más leis por desatualizadas, vale perguntar: o que fazer com as boas leis quando elas também se desatualizam em virtude de a civilização estar caindo? Seria bom também atualizá-las, fazendo das boas, más leis... para ficarem conformes com os tempos novos de decadência? Não. Não é preciso fazer tal atualização; as boas leis

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ficam só no papel... para a posteridade admirar, e perguntar-se: por que caiu tal civilização, apesar de suas maravilhosas leis? Ao responder esta pergunta, estaremos desenvolvendo a segunda parte deste estudo, em que o Enunciado Oitavo diz: o melhor governo é aquele que revoga as más leis por atenderem a interesses parti-culares.

Escreveu Bertrand Russell que "toda comunidade se defronta com dois perigos: a anarquia e o despotismo”. A isto acrescentamos que estes extremos se alternam; por causa disto, quando um Estado democrático, por frouxo, por demagógico, ou por extemporâneo, cai na anarquia, só o amargo remédio de um poder discricionário pode salvar a nação. Daqui se tira, dissemos atrás, que o melhor governo depende da situação em que a sociedade se encontra quando ele se instala: se a situação for de decadência, quando a corrupção dos costumes e a imoralidade invadem todos os escalões do poder, só uma nova ordem de um poder totalitário, mas, honesto, poderá salvar a civilização.

Agora, Ortega: "É, com efeito, muito difícil salvar uma civilização quando lhe chegou a hora de cair sob o poder dos demagogos. Os demagogos têm sido apenas os grandes estranguladores de civilizações. A grega e a romana sucumbiram nas mãos desta fauna repugnante, que fazia Macaulay exclamar: "Em todos os séculos, os exemplos mais vis da natureza humana deparam-se entre os demagogos".

Nas épocas de decadência os demagogos que são homens-massas, gregários, medíocres, vazios de idéias, nada criativos, se acercam do poder; e como sabem o que melhor convém prometer, e são loquacíssimos, soltam a voz, vociferam, fazem tal escarcéu, que acabam sendo cridos... e levantados aos postos de comando, não a encher os cargos, no dizer de Vieira, mas a encher-se com eles. Este ponto está nos "Sermões" em que o Padre escreve: "Um lugar vago na república tem os mesmos inconvenientes que teria no mundo o vácuo. Se houvera vácuo no mundo, havia-se de inquietar toda a natureza, havia de correr toda impetuosamente a ocupar aquele lugar. O mesmo sucede nos lugares vagos. Inquietações, perturbações, tumultos, e tanto mais precipitosos e desordenados, quanto correm todos, não ao comum, senão cada um ao seu, não a encher o lugar, mas a encher-se com ele”. É deste parecer também Platão que fala por seu porta-voz, Sócrates: "E por esta razão os

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homens de bem não consentirão em assumir o poder por amor de dinheiro, nem por amor de honras. Porque nem quererão merecer o nome de mercenários, se exigirem francamente o preço de seus serviços, nem o de ladrões, por manejarem à força para obter secretamente . Tampouco assumirão o poder por amor de honras, porquanto não são ambiciosos. Assim sendo, só por compulsão e medo de penalidades se podem persuadir a exercer funções públicas; e esta é, decerto, a razão de se considerar desonroso aceitar alguém o poder antes que a isso seja compelido. Ora, a mais severa penalidade é a de ser governado por um homem inferior, quando a gente se recusa a governar; e é, em minha opinião, o medo de tal penalidade que impele os virtuosos a tomar os postos do governo; e, quando o fazem, entram na administração, não como quem entra no gozo de um benefício, mas como quem se submete à inevitável necessidade - não porque esperem usufruir vantagens, mas apenas porque não encontram outrem que lhes seja superior ou igual para lhe passar o ofício. Realmente, é provável que, se houvesse uma cidade constituída só de bons, haveria competição para fugir ao poder, precisamente como agora existe para o obter..."

Essa quase impossibilidade de achar homens de bem para exercer o poder, levou o Padre Vieira a responder ao rei D. João IV, como se pode ver: "Senhor. – No fim da carta de que Vossa Majestade me fez mercê, me manda Vossa Majestade diga meu parecer sobre a conveniência de haver neste Estado ou dois capitães-mores ou um só governador. Eu, Senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultoso serão de achar dois homens de bem que um”.

Pusemos em destaque o ponto em que Vieira declara, com base na experiência não só de sacerdote e pregador das cortes, como ainda na de estadista desiludido, serem ladrões todos os enviados ao Brasil para exercerem o mando; disto decorreu sua inferência: "menos mal será um ladrão que dois"; e "mais dificultoso serão de achar-se dois homens de bem que um". Esta é a razão por que "correm todos, não ao comum, senão cada um ao seu, não a encher o lugar, mas a encher-se com ele"... Diz ainda Vieira: "Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros

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homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: – Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos." Mais: "Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a India, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: – Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? – Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres". Ainda isto: "Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes, chamavam-se laterones. E depois, corrom-pendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones". De lado (latim, latum) saiu laterones de que se derivou, por corruteIa, latrones, ladrões. Como, no entanto, não se pode viver sem um governo, este se torna, um mal necessário, donde se tira que o melhor governo será aquele que entende não ser possível haver bom governo num mundo mau e de homens dragontinos, em razão do que, no cabeçalho de seus documentos mores, ao invés de porem: "Nós, pela graça de Deus”... haviam de escrever: "Nós, um mal necessário”... ou então: "Nós, dos males o menor”...

Poderiam pôr, também, no cabeçalho: "Nós, por determinação divina”... Tal o entendia não menos que o próprio Cristo, em razão do que disse a Pilatos: "Tu não terias sobre mim poder algum, se ele te não fôra dado lá de cima". (João 19, 11 – Bíblia Sagrada – Versão Clássica do Padre Antonio Pereira de Figueiredo). Então, o poder de Pilatos vinha do Céu? Segundo Cristo, sim, vinha. Contudo, é fora de qualquer dúvida que a autoridade de Pilatos emanava de Tibério César; logo, o poder de César procedia de cima, de Deus, não como graça..., que nenhum dos césares a merecia, mas como pura determinação, donde se segue que o imperador Tibério exercia o mando por investidura divina. Daí, então, todos os césares, tal qual o faziam todos os reis tiranos, poderiam eufemizar as duras palavras “determinação”, "compulsão"; trocando-as por “graça”, e escreveram no cabeço de seus decretos: "Nós, pela graça de Deus”...

Ora, o governo que, todo ele, segundo Cristo, é exercido por investidura divina, é um bem ou é um mal? Que dizer do governo

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de Herodes?, do governo de Nero?, do governo de Calígula? Que dizer do poder que se atribuía à Guarda Pretoriana... para vender o cargo de Imperador de Roma a ambiciosos ricos, depois do que... os assassinava para desocupar o lugar para outro candidato?

A ser verdade que o governo é exercido por investidura do Alto, como o afirmara Cristo, o melhor governo é aquele de que o povo necessita, estando quase correto o dito popular que afirma: "cada povo tem o governo que merece”; é substituir a palavra "merece" por "necessita" e tudo se acerta. Também São Paulo, escrevendo a Tito, recomenda que "todos estejam sujeitos aos governadores e às autoridades constituídas" (Tito 3, 1); aos Romanos, diz que "todo o homem esteja sujeito às autoridades", e que "não há autoridade que não venha de Deus". (Rom. 13, 1). A ser verdade isto, de São Paulo, de Cristo, há governos que são chicotes com que Deus castiga os homens pelo desvio da ordem moral e conseqüente queda na animalidade, assim como os há que são bençãos para o povo que se mantém no comedimento, na virtude.

De maneira que o melhor governo para Deus não é o mesmo que melhor governo para os homens. Jesurum (Israel) engordou, e por isso escoiceia; dá coices a Deus, porque se fartou, porque se engrossou (Deut. 32, 15); merece, portanto, ser açoitado para que, renegando a animalidade reentre na senda estreita da desinversão da besta, readquirindo a perdida sabedoria, a perdida santidade. A sabedoria nasce do sofrimento, em razão do que nenhuma religião surgiu ou se firmou em épocas de fastígio; tais períodos são de afastamento de Deus, que é quando as Erínias e as Parcas se conluíam para fazer declinar a civilização. Contudo a queda pode ser sustida, se vier em socorro dos homens o varapau ou chicote de Deus; um exemplo histórico disto nos dá Toynbee ao escrever: "A principal causa imediata do Risorgimento Italiano do Sec. XIX, segundo parecem concordar os historiadores, foi o abalo e o repto administrado à Itália pela provação de ter sido conquistada e governada temporariamente por uma França revolucionária e napoleônica.

Deus, segundo a lenda bíblica, triunfou sobre Satanás, porque permitiu a este afligir a Jó com a miséria e com males. Mostrou Satã, então, sua crassa ignorância... ao cuidar que Jó era fiel a Deus por ser rico... Em vez de saber que é mais difícil vencer na prova da riqueza que na da pobreza, supôs que, na vida rica, o homem é mais temente a

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Deus. Ignorava o Demo, então, que a sabedoria nasce do sofrimento, e que, portanto, o vencedor na prova mais difícil da riqueza, mais facilmente venceria a mais fácil da pobreza. Nisto se cifrou o erro de Satã, e Jó, amparado até pelo sofrimento, pode manter-se na virtude. Tal também o entendeu Ortega para escrever: "Na vida pobre o indivíduo necessita tanto de Deus que vive de Deus. Cada ato, cada instante de seu existir é referido à divindade, conectado com ela".

A recíproca disto está na obra de Goethe, "Fausto", em que este personagem sendo um sábio quando pobre, se fez ignorante... no ponto em que trocou a virtude de uma vida austera de estudo e de meditação, pela futilidade das riquezas do mundo e pelo pecado. De nada lhe valeu sua portentosa erudição, engenho e arte, erudição tamanha que ganhou até foro de adjetivo passando a chamar-se faustiana; embora erudição não seja sabedoria, aquela pode servir a esta. A sabedoria coexiste com a virtude, e nunca, jamais, com os desatinos que uma vida rica possa proporcionar. Ortega: "Na vida rica o homem fica sem raízes em nada, solto no ar. Flutua no elemento aéreo de suas crescentes possibilidades”. Esta é a razão que levou Cristo a sentenciar: "é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no Reino do Céu”. Conseguintemente, se o Diabo fosse mesmo poderoso, como se alardeia, para perder os homens, havia-os de fazer ricos, pondo por obra suas artimanhas todas, as mesmas de quando se dispôs a infernar Fausto.

O pedaço de terra mais fértil, dadivoso, da Grécia chamava-se Beócia. Por isto mesmo ali se manifestou a tríplice causa que torna os homens em porcos - quais aqueles companheiros de Ulisses, transformados em tal pela maga Circe, e sem muita dificuldade, como ela mesma o disse. Kóros, Ubris, Átê formam um trio em que há duas concausas e um resultado, os três sempre presentes no entardecer das civilizações. Toynbee: "Objetivamente, Kóros significa: "excesso no comer e no beber ou "saciedade"; Ubris significa: "conduta ultrajante"; e Átê, “desastre". Por causa disto, "para as mentalidades helênicas, a palavra “beócio" implicava um significado completamente diferente. "Beócio" tradu-zia um ethos que era - um ethos sem a menor harmonia com o gênio que prevalecia na Cultura Helênica. Este desacordo era acentuado pelo fato de, exatamente por detrás de Citeron e em torno de Parnes, por onde a via férrea segue atualmente, ficar a Atica, a

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"Helade da Helade": o país cujo ethos impressionou a quinta-essência do Helenismo ficava frente a frente com o país cujo ethos impressionou as sensibilidades helênicas normais como nota dissonante. Este contraste está condensado nas expressões contundentes: "Porco Beócio" e "Sal da Ática".

A Ática, na Grécia antiga, ficava numa região peninsular de solo rochoso, de pouca fertilidade, contrastando isto com seu extaordinário povo que deu ao mundo a quinta-essência do helenismo; o grosso da cultura sorvida pelo Ocidente, procede do manancial ático. A Beócia, possuidora de terras férteis, em novo contraste, só nos inspirou de forma negativa, e hoje ainda nossos dicionários registram a palavra "beócio" com o significado de bronco, rude, estúpido, boçal, grosseiro, inculto, ignorante, etc. Face a isto, façamos a seguinte suposição: que teria sucedido se os antigos governadores - o de Atenas, capital da Ática, e o de Tebas, capital da Beócia - tivessem trocado entre si seus respectivos reinos e tronos? É certo que um e outro cairia: o autocrata tebano tiranizaria os atenienses com sua vara de ferro, acostumado, como estava, a reger bárbaros. Vice-versa, o governante ateniense gostaria de aditar a Beócia com cetro de ouro. Um e outro, certamente cairia; por que?... Já se vê, então, que o melhor governo é aquele que corresponde à realidade vivida, e as boas leis para um povo são más para o outro e vice-versa; para o povo rude da Beócia as boas leis do civilizado ateniense seriam havidas como suaves, como frouxas; vice-versa, as leis barbáricas dos beócios sofreriam a mais severa repulsão pelos evoluídos áticos; para os tebanos, vara de ferro; para os atenienses, cetro de ouro; cada povo tem o governo de que necessita; os atenienses mereciam ser aditados por um governo democrático, no passo que os tebanos necessitavam submeter-se a um poder arbitrário. Vai aí a diferença entre merecer e necessitar.

O melhor governo, portanto, do ponto de vista dos homens, é o que se curva ao peso do cargo, e não, o que se faz carregar por ele, ou seja, é aquele que carrega o cargo... às costas, ao invés de, como sói acontecer, fazer do cargo a disputada, maravilhosa e rica montaria. O melhor governo é o constituído por uma elite criadora (não somente dominante), capaz de fazer vibrar as multidões que dançam ao som e compasso duma música celestial, na expressão de Toynbee. Em contrapartida, o pior governo (também do ponto

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de vista dos homens) é o que troca a dança pela marcha forçada, a música divina pelo estardalhaço da fanfarra, e a batuta do regente pelo bastão do sargento-instrutor (ainda Toynbee). Portanto, do ponto de vista humano, como o declara Bertrand Russell, “os go-vernos bons e maus se definem pelas qualidades éticas dos detentores do poder, e não pela forma da constituição". Se não é a forma da Constituição, que é a Lei Maior, que faz o bom ou mau governo, e sim, as qualidades éticas dos detentores do poder, segue-se que o melhor governo não é o que desfaz as más leis de seus predecessores, visto que de nada valem boas leis se os ocupantes dos cargos são ladrões, corruptos, sem princípios, sem ética, puros demagogos. Quando falta o "intus"; a interioridade moral, o exterior nada é. Provemos isto:

A Carta Magna do Santo Ofício eram os Evangelhos em que Cristo pregara e exemplificara o amor, e só o amor, e nada mais que o amor. Pois a sofistaria dos inquisidores pôde, em nome do Cristo-Amor (oh! Céus!), praticar todas as formas de torturas, de atrocidades, e, por fim, a morte pelo fogo, contra os denunciados como hereges, dentre os quais (oh! dor!) criancinhas tenras, apenas falantes, tidas por endemoninhadas! E mais: as denúncias podiam ser anônimas...

O caso de Jacques de Molay é um apenas dentre tantos... de presas ricas sobre as quais o Santo Ofício pôde deitar suas garras de Satanás. De Portugal, todos os cristãos-novos tiveram que se desterrar, porque quem tinha haveres corria com o risco de ser agarrado pelo Santo Ofício, espécie de KGB ou Gestapo católicas, não por causa da heresia pretextada, mas pela confiscação dos bens os quais, por Lei, deviam ficar para a Coroa; contudo, esta não via um único centavo... que tudo ficava em despesas do Tribunal, carceragem, alimentação e mordomias.

Para poder construir a Companhia das índias Ocidentais, projetada por Vieira, precisava-se do dinheiro judeu; mas este, embora convertido ao catolicismo, estava fugido... de medo do Santo Ofício. Havia-se de não confiscar os bens dos judeus convertidos, ainda que o Tribunal os condenasse por heresia e os queimasse vivos na fogueira. Como, por Decreto do rei os bens dos condenados pertenciam à Coroa, bastou que o rei (e era D. João IV) dispensasse a cláusula da confiscação para que os bens não mais oferecessem motivos para se pretextarem heresias. Tal foi o

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golpe urdido e aconselhado, à socapa, supõe-se, pelo matreiro Pe. Antonio Vieira. O Tribunal e o papa espernearam, mas o rei manteve sua posição; os judeus convertidos retornaram a Portugal; formou-se a Companhia das lndias Ocidentais; Portugal melhorou sua economia; e o Santo Ofício ficou prejudicado em sua parte financeira. Se há alguma coisa grande na política do Pe. Vieira que deu certo, foi esta da criação da Cia. das lndias Ocidentais... O mesmo que em Portugal, assim, também na França. Filipe, o Belo, fazendo queimar vivo Jacques de Molay como herege, teria motivo para deitar as unhas nos bens dos Templários. Para isto precisava de um comparsa poderoso, e o conseguiu na pessoa do papa (!) Clemente V. Um papa (!) e um rei, ambos em conlúio, usando a Lei-do-Amor dos Evangelhos para queimar na fogueira o inocente Jacques de Molay!...

E agora vem o Enunciado Oitavo dar-nos, como verdade, que o melhor governo é o que revoga as más leis, sancionando boas em seus lugares. Quem está com a razão, com a verdade, é Bertrand Russell para quem "os governos bons e maus se definem pelas qualidades éticas dos detentores do poder, e não pela forma da constituição".

Eis, pois, que o governo vale, primordialmente, pela LEI MORAL que nele impera, isto é, que na pessoa humana dele se inscreveu, de modo indelével, desde o berço, vindo o sancionamento e promulgação de boas leis civis..., com a revogação das más leis, em segundo plano. Tudo isto, do ponto de vista humano.

Do ponto de vista de Deus, todos os governos são bons, e todos exercidos por investidura divina, porque, embora poucos o saibam, O OBJETIVO PRECIPUO DE QUAISQUER GOVERNOS É FORÇAR, POR MEIO DE SEUS CÓDIGOS ÉTICOS E CÓDIGOS LEGAIS, A DESVIRAGEM DO ANIMAL QUE O HOMEM É, EM CIVILIZADO. A coação existe sempre, ande ela às claras, que é o policiamento ostensivo exibindo todo o seu poder compulsório, ou esteja disfarçado sob a forma de coerção social extrínseca, esta, de atuação mais fraca, que nasce da espontânea reprovação coletiva; tudo isto conduz à coerção social intrínseca que se nomeia, também, condicionamento operante (Skinner), não ficando fora do conjunto, os reflexos condicionados (Pavlov), que tudo vem a dar no que se entende por EDUCAÇÃO.

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Ora, para se domesticarem cavalos e burros bravos, são imprescindíveis rédeas invencíveis, lombilho, chibata e esporas; para o homem xucro, bestial, bárbaro, moralmente ignorante, não importa se doutor em qualquer matéria, igualmente são necessários o chicote, o relho, a guasca, o azorrague, o varapau...; e ninguém melhor para os brandir do que demônios consumados... quais o eram, nos casos há pouco vistos, Filipe, o Belo, Clemente V, papa (!), e todos os sabidíssimos inquisidores, sem nenhuma exceção... Contra todos estes, a nossa mais veemente repulsa, a nossa mais profunda indignação, o nosso mais firme, inabalável, intento de jamais, nunca, os imitar. Eis, pois, que, se for este o nosso inquestionável propó-sito, até os monstros infernais referidos há pouco, agiram em nós de forma educativa, civilizadora..., donde se tira que a educação pode ser conseguida, também, pela contraditória daquilo que se quer ensinar...

É fora de dúvida que, num mundo malvado, de diabos, como já foi este nosso, e ainda o é, em parte, não pode ser rei um Serafim; tem que ser um Coisa-Ruim mesmo, e que ainda exceda os demais em crueldade. Se Deus é o Pai, e nós, os filhos, dele já escreveu o rei sábio: o pai que ama ao filho não poupa a vara. (Prov. 13, 24). Dado que todo governo vem de Deus, vale, para quaisquer povos involuídos, bárbaros, a sentença de Cristo a Paulo: "dura coisa é para ti recalcitrar contra o aguilhão! (Act. 26, 14). De modo que Deus não só enviou Jesus, o Cristo, para nos ensinar como nos remir a nós mesmos da animalidade pela prática incessante do amor, o único que salva; esmera-se ele, também, em nos enviar, vez por outra, Demonázios para exercerem governos atrocíssimos que nos escorcham, e depois queimam-nos com vitríolo as carnes nuas, febris, trementes. Dos males o menor; e este é o menor dentre os males achado por Deus com que nos vergascar a fim de que nos desviremos de bestas, nos desfaçamos de animal, nos neguemos de dragões... Milhões de infernos tem suportado o homem desde o alvorecer da civilização, e todos esses milhões de martírios não foram ainda suficientes para forçá-lo a tomar o caminho de tornar-se sábio e santo... que é o mesmo que CIVILIZADO!

Por conseguinte, o governo bom para o civilizado e mau para o bárbaro, ou, o que dá na mesma, bom para o bárbaro e mau para o civilizado, um e outro vem de Deus, segundo Cristo e São Paulo; vem do automatismo sereno, implacável, imperturbável, irrecorrivel, das

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Leis Cósmicas, segundo esta filosofia que expomos. Tudo simples!, tudo claro!, tudo preciso!, tudo exato! O homem mau, dragontino, é triturado nas moendas, nas mós silenciosas e inexoráveis do universo, desde o Caos primevo, para que se desvire de dragão ignorante e perverso em sábio, em santo, e estes, uma vez prontos, transfigurados, divinizados, irão, após a última morte física, para a Ilha Afortunada de Platão, para a Glória dos Bem Aventurados de Cristo, para o Convívio dos Bons de Sócrates, para o Oriente Eterno dos maçons... que é a Jerusalém Celeste desta filosofia.

Bom e mau governo ficam na dependência de os governados serem ou não civilizados. Se o povo é bruto, xucro, primitivo, bárbaro, dragontino, o governo será peão domador de burro bravo. O governo de bárbaros, seja qual for sua forma, sua constituição, suas leis, será como o descreve Trasímaco, no diálogo de Platão. Trasímaco a Sócrates:

– “E cada governo estabelece as leis para a sua própria vantagem: a democracia leis democráticas, a tirania leis tirânicas e os outros procedem do mesmo modo; estabelecidas estas leis, declaram justa, para os governos, esta vantagem própria e punem quem as transgride como violador da lei e culpado de injustiça. Eis portanto, excelente criatura, o que afirmo: em todas as cidades o justo é uma e mesma coisa: o vantajoso ao governo constituído; ora, este é o mais forte, donde segue, para todo homem que raciocina corretamente, que em toda parte o justo é uma e mesma coisa: o vantajoso ao mais forte".

Polarmente em oposição a Trasímaco, dá-nos Ortega a fórmula de governo própria a civilizados:

"A forma que na política representou a mais alta vontade de convivência é a democracia liberal. Ela leva ao extremo a resolução de contar com o próximo e é protótipo da "ação indireta". O liberalismo é o princípio de direito político segundo o qual o Poder público, não obstante ser onipotente, limita-se a si mesmo e procura, ainda à sua custa, deixar espaço no Estado que ele impera para que possam viver os que nem pensam nem sentem como ele, quer dizer, como os mais fortes, como a maioria. O liberalismo - convém hoje recordar isto - é a suprema generosidade: é o direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o mais nobre grito que soou no planeta. Proclama a decisão de conviver com o inimigo; mais ainda, com o inimigo débil.

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Era inverossímel que a espécie humana houvesse chegado a uma coisa tão bonita, tão paradoxal, tão elegante, tão acrobática, tão antinatural".

Revogar as más leis, sancionando boas em seus lugares, embora seja indispensável, não é característica que distinga o melhor governo. O que fundamentalmente caracteriza um bom governo é a posse duma autêntica interioridade moral por parte dos detentores do poder, não moral de demagogos que é a só gritada da boca para fora com o fim de embair, mas moral silenciosa daqueles que crêm na excelência de um Poder Divino do qual receberam uma mordomia; daqueles que crêm numa Lei Maior da qual todas as demais que legiferarem, hão de decorrer; daqueles que crêm em um Árbitro Excelso em cujos DECRETOS se hão de embalar a Constituição Ética e a Constituição Política do seu país. Não moral de “Mores" que quer dizer costumes, nem ética de "ethos" que também quer dizer costumes..., uma e outra derivada do postulado de Áristóteles que diz: o homem é um animal social, e, sendo-o, possui em si todas as qualidades que o tornam civilizado por si mesmo..., tornando-se Deus numa hipótese desnecessária (!); não essa moral e essa ética sem divindade, mas MORAL E ETICA que em todas as civilizações... que precederam a Aristóteles, se chamou sempre MANDAMENTOS DE DEUS.

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ENUNCIADO NONO E DÉCIMO

IX – “O Progresso é o resultado das leis físicas, unidas às leis intelectuais”. X – “Separar uma da outra, é anulá-las reciprocamente”.

O Nono Enunciado afirma que "O Progresso resulta da aplicação das leis físicas unidas às leis intelectuais", e o Décimo diz que a separação uma da outra acarreta na anulação de ambas. Os Enunciados Nono e Décimo, portanto, podem ser vistos como sendo, um só.

O que afirma no Enunciado Nono é obscuro, porque em nenhum lugar do texto do Livrinho ficou esclarecido o que venha a ser leis físicas nem leis intelectuais. Leis físicas seriam as leis da física? Mas seria física em sentido restrito de ciência, ou seria física em sentido lato, amplo, que, para os antigos, significava Natureza?

Afora esta dificuldade, vem a segunda: que quer dizer leis intelectuais? Seriam só as do pensamento, que são as da lógica, ou seriam também as da matemática?

Seja como for, o Progresso resultante da aplicação da física-matemática é só material, científico, tecnológico. Ora, não se falou aqui do progresso moral... que cada um de nós tem que fazer caminho da virtude, sem o qual, nem mesmo o progresso científico-tecnológico, que por sua natureza é somativo, nem mesmo esse subsiste. Isto mesmo é o que afirma o Ritual ao escrever: "Enquanto o edifício social não repousar no progresso moral, unido ao intelectual, (...), não haverá paz na terra, nem a Justiça regerá nossos destinos".

Era preciso que soubéssemos o que significam leis físicas, e, depois, leis intelectuais, ambas necessárias ao Progresso, e ainda, que Progresso? para ver se a conclusão que afirma: "Separar uma da outra, é anulá-las reciprocamente", está certa.

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ENUNCIADO UNDÉCIMO

“Os bens do progresso científico se anulam com a corrupção dos costumes que rompem os vínculos da família e implantam a desconfiança entre os associados, como os da moralidade de um país se desvanecem quando caminha para o seu embrutecimento".

Aqui se enuncia uma verdade lapidar, que merecia ser eternizada em letras de ouro nas faces graníticas de um monumento; em sua sabedoria sustenta este Enunciado que "os bens do progresso científico se anulam com a «corrupção dos costumes»", costumes que, segundo vimos demonstrando, têm seu sustentáculo na Moral; não moral de "mores" que quer dizer costumes, donde viria que os costumes estariam assentados sobre si mesmos...; não esta moral de “mores”; nem ética de "ethos" que também quer dizer costumes, uma e outra com base no postulado de Aristóteles que afirma... (mas não o demonstram) ser o homem um animal social..., pelo que, sendo-o, possui, em si, quanto necessita para sair sozinho da barbárie, e atingir o pináculo da civilização... Não esta moral que dispensa Deus... como hipótese desnecessária, mas MORAL que se chamou sempre MANDAMENTOS DE DEUS... É por demais evidente (ah! miopia moderna!) que a norma para os costumes, não podem ser os mesmos costumes. Tem que haver uma instância superior fora deles..., que os discipline..., à qual cumpre sempre recorrer... Costumes, portanto, que se inspiram numa Moral que emana de Deus.

Como foi possível ao homem... não é inventar, não é criar, mas descobrir Deus?... Do mesmo modo como ele assenta um postulado, e, sobre este, edifica toda uma ciência, como é a geometria. Diz Ortega:

"Quero, no entanto, observar que, diante da doutrina teológica, que faz do homem uma especial criação divina, e a zoológica, que o inscreve nos limites normais da animalidade, cabe um terceiro ponto de vista que vê no homem um animal anormal. Sua anormalidade teria consistido nessa super-abundância de imagens, de fantasmagorias, que nele começou a manar e dentro dele criou um "mundo interior". O homem seria dessarte, - e em vários sentidos

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do vocábulo, - um animal fantástico". Com ser o homem um animal fantástico, que desenvolveu o cérebro-inteligência em lugar das patas, pernas, garras, chifres, farpas e dentes venenosos... a custa de lucubrar, de especular sobre o mundo e sobre si mesmo, "criou" um "mundo interior"... composto de tudo o que é humano (religião, política, ciência, arte, etc.), estando Deus no pináculo de todas as hierarquias desse mundo interior, exatamente como se acha no tope supremo de todas as hierarquias de quaisquer outros mundos possíveis. Do pensar sobre o mundo e do pensar sobre si surgiu o “mundo interior" em que se divisou uma hierarquia de valores cujo tope, oculto em brumas, Algo havia, e esse Algo indefinido acabou por chamar-se Deus... que é derivação da palavra Dia ou Claridade. A primeira característica que se assinalou a respeito de Deus, foi que ele é Luz... que se contrapõe às Trevas, sendo a Luz boa, e as Trevas, más. Da plenitude da Luz... cujo resplendor pode tornar cego quem o encarar sem ter os olhos protegidos, inferiu-se a plenitude do Bem, e esta foi a segunda característica consignada a respeito de Deus... pois que sendo ele a Luz Excelsa, Luz Plena, por isto mesmo é o Sumo Bem. Fale Vieira: "As trevas são negação de luz, e as negações não têm nem podem ter bondade, porque não têm ser (...). Porque a luz, como tem ser, e tão excelente ser, tem bondade e é boa; porém as trevas, como são negação e não têm ser, não podem ter bondade nem são boas". Tudo o que existe é lucigênito, dado que a mesma matéria era luz antes, e é agora energia metamorfoseada; e todo ser vivo é lucífago, pois que se nutre da luz condensada nos alimentos. Ora, se a Luz se dá a si mesma na criação de tudo, como energia que é; e depois torna a dar-se a si mes-ma como nutrição de tudo quanto vive, que outro Algo havia de ser posto como sendo o Sumo Bem? Diz mais Vieira que "a etimologia deste nome Deus, deriva do verbo dar: chama-se Deus porque dá”. Deus dá o que? Já o dissemos: Deus dá tudo, porque dá a luz de que tudo se forma, e de que todo o vivo se sustenta. Esta é a razão suficiente para que Divindade ou Deidade sejam o mesmo que Claridade, porque a raiz "dei" do vocábulo deidade, é variação de "div" (de divindade) que, por sua vez, veio de “di ", do sânscrito, e significa “que brilha".

Sartre, descorçoado com o problema ético, não via perspectiva nenhuma para o esforço humano de alicerçar a Moral num Bem Absoluto, porque, entre os homens, "não pode haver consciência infinita e perfeita para pensá-lo". Por outro lado, nenhum

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homem se torna ético em conformidade com uma lei que ele mesmo, ou outros como ele, criou. O homem não pode, por si mesmo, criar a ética, por faltar-lhe autoridade; e não pode fundá-la no Bem Sumo por ser este humanamente impensável. Ora, o Sumo Bem não se prende à questão de ser pensado por uma consciência infinita e perfeita, que nenhum homem tem. Ele se situa na esfera da experiência, que não na do pensamento abstrato. Esta experiência... a fez o primitivo, e, porque irredutível a termos de razão, permanece ao alcance de todos desde sempre a para todo o sempre. Repita, logo, o homem moderno, a experiência dos antigos: olhe ele o Sol por um instante fugacíssimo, e aquela luz que o faz chorar, e lhe produziria escotoma e cegueira se persistisse em fitá-la por mais tempo, ainda não é plenitude de luz, porque o Sol é apenas uma estrela de quinta grandeza, amarela, não azul ou branca, que destas cores são as estrelas mais quentes e bri-lhantes. A estrela mais brilhante do céu é Sírius, de primeira grandeza, da Constelação do Grande Cão, sendo ela o olho do cão. Se essa estrela fosse posta no lugar do Sol, seus raios queimar-nos-ia com uma luz e calor quarenta vezes mais intensos que a do nosso Astro-Rei. Os 40 e poucos graus centígrados que suportamos, multiplicados por 40 dariam 1.600 graus. Pois a 1.500 graus funde-se o ferro... Para podermos viver da luz de Sirius, se fosse ele o centro do sistema, no lugar do nosso Astro-Rei, a Terra havia-se de postar à respeitável distância de seis vezes e pouco da que vai da Terra ao Sol. A luz solar, portanto, é boa, não podendo subir a mais nem descer a menos do que é; qualquer extremo, para cima, ou para baixo, matar-nos-ia. De que nos vale, logo, luz maior do que a do Sol, se nem essa podemos suportar nos olhos? Contudo, veja-se quanto a luz do Sol cria e nutre, e esse bem, conquanto ainda não sumo, já é exemplo para o sábio e santo imitar.

Eis, pois, que esta experiência de encarar o Rei da Claridade, por um átimo de tempo, válida só em seu nível empírico, irredutível, portanto, à racionalidade, serve de base para se intuir o Bem Sumo, porque se a Luz, como ser, é bem, e as trevas, como não-ser, é mal, a plenitude da Luz é a plenitude do Bem, sendo as Trevas a negação absoluta do ser ou o nada.

Já vimos a razão por que o Bem Absoluto ou Sumo Bem é impensável; é que ele se situa no campo do empirismo puro, sendo a experiência radical vivida pelo fautor da Religião. No entanto

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Sartre supõe que se houvesse homem com "consciência infinita e perfeita", esse tal poderia pensar o Bem Absoluto. Quer dizer: o pensar de uma "consciência infinita e perfeita" seria um pensar absoluto; e só um pensar absoluto poderia pensar o Sumo Bem. Pois vai aqui um argumento irretorquível: nem mesmo a "consciência infinita e perfeita" seria capaz de um pensar absoluto... porque todo o pensar é relativo, visto que fica na dependência de um ponto de partida inicial por sua natureza impensável. O ponto de partida inicial é sempre uma situação supra-racional. Por causa disto, se a base da Moral, o Bem Absoluto, é impensável, por não se poder pensar o ponto de partida inicial, por igual modo podemos dizer serem impossí-veis as ciências todas, as matemáticas, as várias geometrias, dado que não há neste mundo mente nenhuma com abrangência suficiente para "pensar" (!) os primeiros princípios e os postulados; por serem eles supra-racionais ou intuitivos, não podem ser pensados. Contudo, sobre eles, ou a partir deles, pudemos construir as ciências todas, as matemáticas e as geometrias; assim, de igual modo, partindo a INTUIÇÃO, DO BEM ABSOLUTO, podemos, sim, construir a MORAL... que alicerça tudo o mais, porque é base da própria civilização... sem a qual não haverá nem ciência, nem matemáticas, nem geometrias, quanto mais o resto. Por conseguinte, há, sim, um FUNDAMENTO... e é o mais radical de todos - para nos afiançar que o Bem Sumo existe, pelo que se nos faz necessário imitá-lo, sendo honesto, não mentiroso, não defraudador nem ladrão, não o que abusa do mais fraco, e que pode perdoar a agressão daquele que, num momento, se nos mostrou superior em força, mascare-se esta como quiser.

Quando a Religião (consciência de Deus no homem) entra em colapso, a Moral (Testamento de Deus) se desvanece, o interior animalesco do homem se desenfreia, cresce, infla-se, exterioriza-se em atos anti-sociais, os bons costumes se corrompem, trocam-se por maus, e a civilização fecha o seu ciclo... podendo ir parar até na barbárie. Quando a Religião vigente entra em colapso, seja pelo trabalho dos sofistas e dos cépticos, como aconteceu na Grécia; seja pelo trabalho demolidor dos pensadores, a partir dos filósofos enciclopedistas, como está ocorrendo hoje..., pois se prega que Deus morreu, que a Moral é puro concenso e costume, então a animalidade passa a imperar, e, com ela vem a dissolução da sociedade. Os vínculos da família, então, se rompem..., como agora está acontecendo, o índice demográfico cai nas nações "desenvolvidas"... a

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ponto de assustar seus respectivos governos, estabelece-se a desconfiança entre todos os membros da sociedade, cresce o número de crimes contra a propriedade e contra pessoas; e o país ou países (como agora) caminham para o seu embrutecimento.

Os filósofos franceses do século XVIII aplicaram seus aríetes contra a Metafísica, contra o Psicologismo, contra o Absoluto que é Deus (ver os Enunciados II, III, IV, VI), deixando a Moral sem sustentação, suspensa no ar. Veio Darwin, Spencer, Nietzsche, Sartre e outros, e cada um, por sua vez, foi trabalhando na demolição que agora está pronta, completa, acabada. Nossa Civilização Ocidental, cambaleante como está agora, precisa, urgentemente, de uma filosofia que, em idéia, reponha Deus no seu lugar de onde, em idéia, foi tirado. É preciso que sua voz se faça ouvir de novo... em meio ao estridor das máquinas de homens enlouquecidos, em nova forma portanto, insuflando, com isto, nova vida espiritual à sociedade humana. Eis, pois, que a verdade lapidar posta neste Enunciado Undécimo, merecedora de ser escrita com letras de ouro, se contradiz com o que afirmam os Enunciados Segundo, Terceiro, Quarto e Sexto.

Sem fugir às bases do grau 19, nem ao que ele se propõe, já expusemos, nesta obra, a filosofia que dominará o mundo futuro, se houver futuro para o mundo... Como já o vimos, a Razão é meio de se chegar à Verdade, sendo, esta, o fim. Ora, o meio não se pode confundir com o fim. O método racional... nasceu com os gregos, e eles ficaram muito admirados de que os homens do passado pudessem ter vivido muito bem, e até formando grandes civilizações, sem tal método, isto é, sem o uso da Razão. Para os judeus, por exemplo, bastava a Lei, e tudo o que quisessem saber estava no Livro da Lei !

Os gregos, no entanto, conservaram-se na crença, primeiro: de que há uma realidade por detrás das coisas; segundo: que essa realidade podia ser apreendida por meio da Razão. A Razão, portanto, é meio, é Ponte... estendida por sobre o abismo, e que leva do antro das trevas... ou caverna de Platão, ao foco da Luz... ou Jerusalém Celeste, sendo essa Luz a Verdade. Este é o nosso ponto de chegada.

Construir a Ponte científico-racional que nos levará do "antro das trevas ao foco da luz", ou seja, que nos permitirá "atingir o

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apogeu da civilização", não é mais nem menos do que fazer a Grande Síntese de todo o conhecimento. Dilthey estava errado quando, segundo José Ferrater Mora, "baralhava sem descanso as filosofias e concluía, melancolicamente, que não pode haver outras senão as que foram". Estava errado, porque não se trata de baralhar as filosofias, a fim de ver como é possível criar mais uma, e sim, como construir a SÍNTESE que as impeça de permanecer em perpétuo antagonismo...

A síntese é, sempre, a construção de uma nova unidade dentro da qual se harmonizem as duas partes antagônicas, que por isto se chamam tese e antítese. Trata-se, portanto, da abertura de um campo mental novo, de uma generalização que abarque as duas contradições... numa nova unidade. Alguns exemplos, apenas para elucidar: O homem primitivo contava pelos dedos das mãos, e, depois, pelos dedos dos pés também, e por isto mesmo, esses números são chamados dígitos ou naturais. As coisas eram contadas pelos dedos das mãos e dos pés, e iam até 20 que era um homem; ora, um homem já era uma nova unidade que englobava uma vintena; dois homens eram 40; um homem e uma mão, 25, etc. Todavia, quem conta, fá-lo nas duas direções, para diante e para trás; se para diante, soma, adiciona, para trás, subtrai, diminui do que se tem. As dívidas são números negativos que, somados aos haveres, os diminuem. Ao conjunto que engloba os números naturais e os números negativos, dá-se, hoje, o nome de números inteiros. Os números inteiros, portanto, são uma síntese ou generalização que abarca os dois anteriores que se negam como positivos e negativos. Mas, porque se chamam números inteiros? Porque, de repente, apareceu para o homem, uma necessidade nova, um repto, um desafio: dividir alguma coisa; havia-se de dividir os números inteiros em partes ou frações. A nova coleção numérica, o novo conjunto... que abrange os números naturais, os números inteiros e os números fracionários, passou a chamar-se números racionais. Tudo ia muito bem, quando surgiu outro repto, outro desafio, outro problema: o homem descobriu números que não dão divisões exatas. Pitágoras foi o primeiro a constatar que seu teorema famoso, o do quadrado da hipotenusa ser igual à soma dos quadrados dos lados do triângulo retângulo, falha, não dá certo, quando os lados ou catetos do triângulo forem iguais entre si. Estava lá o triângulo retângular de lados iguais a rir-se do seu teorema. Se os lados do triângulo forem iguais, podem ser reduzidos a 1 e 1; a hipotenusa

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será 1 + 1 = 2; e qual é a raiz quadrada de 2 ou √2? Qual, a raiz de √3?, de √5? Esses números foram chamados irracionais, porque não se submetem à razão que divide. O nome que se deu ao conjunto que engloba ou sintetiza os anteriores e mais estes irracionais, é o de números reais. Reais por que? Porque a realidade do mundo contém esses números. A circunferência, o círculo estão nas coisas, na redondeza do Sol, da Terra, da Lua; está no toco da árvore cortada em plano horizontal. Pois, dividindo a circunferência pelo seu diâmetro encontramos 3,14159..., portanto, um número irracional a que se deu o nome de π (pi). Mas as dificuldades não pararam, e o homem continuou criando instrumentos matemáticos novos para solucioná-los. Assim veio a álgebra; assim veio a geometria analítica, os cálculos superiores da alta matemática.

Como se vê, conforme as dificuldades foram surgindo, ou seja, todas as vezes que apareceu uma negação ao estabelecido, uma barragem ao curso das coisas que, antes, iam indo muito bem, sempre que surgiu uma antítese, um desafio, um repto (Toynbee), teve-se de criar sempre um campo mental novo, fazer uma síntese, dar uma resposta ao repto ou desafio. Esse campo mental novo é sempre abrangente e abarca as contradições numa nova unidade que é o conjunto mais amplo. Esta regra não tem exceção, servindo para a história, para as ciências da natureza, para as matemáticas, para as ciências sociais, para a filosofia, etc. Fazer a síntese é o que se chama em Maçonaria, fechar o triângulo, serviço que faz o Orador das Lojas ao concluir um assunto que lhe chega em duas proposições que se negam por contrárias - tese e antítese; cumpre-lhe, pois, fazer a síntese, isto é, fechar o triângulo.

Ora bem: tivemos, até meados do século XIX, o mundo sob o signo do CRIACIONISMO que dominava todas as religiões e todas as filosofias, exceto, apenas, a de Spencer... que não concluiu no plano moral. E porque não concluiu? Porque o bumerangue atirado por Spencer, em fazendo o grande giro da nebulosa ao gênio, por fim, veio dar-lhe no nariz! Ocorre que a natureza, lá fora, no que concerne à VIDA, não serve, em nada, de modelo moral para o homem. E as conclusões que Spencer não quis tirar do seu Evolucionismo, tirou-as Nietzsche, e aconteceu o que dissemos: o bumerangue veio dar onde tinha que dar: no nariz!

O CRIACIONISMO, pois, dominava todas as filosofias e todas as religiões. De meados do século XIX para cá, surgiu, e

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cada vez mais se firma, a antítese, ou repto, ou desafio do EVOLUCIONISMO. A guerra entre ambos contendores, entre os dois antagonistas, está acesa, e não haverá vitorioso. O Criacionismo não pode contra a Ciência, e esta não consegue fundamentar o Moral... que propicia a Civilização. Como sem a Moral tudo se acaba, inclusive a ciência e a tecnologia de que o homem moderno tanto se ufana, segue-se que salvar a Moral é salvar a Civilização, e para isto não há outro caminho senão o imposto pela história, e que consiste em fazer a SÍNTESE, isto é, abrir um campo mental novo, construir o triângulo... ao fechar o terceiro lado que se opõe ao ângulo, fazer uma generalização que agasalhe na NOVA UNIDADE a tese Criacionismo e a sua antítese Evolucionismo. Nossa civilização está caindo porque não se fez essa síntese. O beco sem saída da história só se abrirá com essa síntese; o não ter sido feita, desorientou os guias espirituais da humanidade: os sacerdotes perderam a fé, bandeando-se com os que pretendem salvar o mundo por meio de reformas exteriores na política e na sociedade; ou então, fazem como a avestruz da qual se diz que mete a ca-beça num buraco para não ver, e assim se sente perfeitamente protegida de quaisquer perigos. Quanto aos outros intelectuais, estes se debatem no mais estreito materialismo cuja última conseqüência não pode ser outra senão o caos. O libertarismo pretendido pela mulher não tem nenhuma base filosófica, a não ser a de Protágoras... para quem "o homem é a medida de todas as coisas", donde vem que, para qualquer mulher saber como é o certo fazer, basta consultar-se a si mesma, e o que achar que é, isso é. As libertárias acham que tudo é permissível segundo a "nova moral sexual" (!?), e quando lhes perguntamos que base tem essa “nova moral”, respondem-nos que o fundamento dela é a realidade que está aí, à vista de todos. Eis, pois, a regra vigente: faça-se o que se quiser fazer, sem peias morais nenhumas, que isto são tabus, e o feito vira realidade; depois essa mesma realidade serve de base para se ir por diante no libertarismo cada vez mais ousado, petulante, permissível, libertino, ultrajante, desagregador...

O jornal "O Estado de S. Paulo", em sua edição de 10/6/79, traz uma reportagem de mais de uma página, em que a ministra francesa Françoise Giroud responde às perguntas feitas por Gilles Lapouge. Ela diz: "O que choca hoje é que a civilização ocidental não tem mais projeto". Fala ela do "projeto religioso" que vigorou até o fim da Idade Média; depois veio o “projeto econômico" que entra em

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sua fase de exaustão, e já se pergunta: "por que produzir ?” E prossegue: "Não creio que uma civilização possa ter por único projeto a manutenção de seu nível de vida". E acrescenta: "Talvez nasça um projeto. Talvez ele esteja germinando em alguma parte". No mesmo jornal, porém, do domingo seguinte, dia 17/6/79, saiu um editorial com o título em letras graúdas: "Sem projeto, não existe Ocidente". E por que está o mundo carente de projetos? Diga-o Ortega: "Não poderá estranhar que hoje o mundo pareça vazio de projetos, antecipações e idéias. Ninguém se preocupou de preveni-los"... "No dia em que volte a imperar na Europa uma autêntica filosofia - única coisa que pode salva-la -, compreender-se-á que o homem é, tenha ou não vontade disso, um ser constitutivamente forçado a procurar uma instância superior".

Pois bem: esse "projeto", e essa “autêntica filosofia”, não estão mais por achar-se; ei-los; é a SÍNTESE... Como, inevitavelmente, soí acontecer, quando a uma tese se contrapõe uma antítese, ou seja, quando a um desenvolvimento qualquer surge uma negação, uma contradição, um repto, um desafio, só resta uma coisa a fazer: é a SÍNTESE. Essa Grande Síntese Filosófica que se impõe agora, como uma necessidade de vida ou de morte para a Civilização, pode ser vista no Capítulo VII desta obra com o título de "O Alfa e o Ômega".

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ENUNCIADO DUODÉCIMO

“Não basta conhecer nossos deveres, nem promulgar nossos direitos; é necessário saber cumprir uns e garantir os outros".

Toda sociedade, após formar-se, estatui as regras pelas quais deve reger-se, regras reformáveis de tempos a tempos, para que acompanhem o mobilismo do social, pois todo ele, sem nenhuma exceção, é uma unidade dinâmica, transformável. O estatuto da sociedade fixa as regras para que o dinamismo estando às soltas, sem lei, não se degenere em arbítrio individual, que é quando a pura vontade do chefe se transforma em lei. Todavia, apesar da lei, a vivência coletiva vai criando situações novas, o que implica a necessidade de mudanças no estatuto, e tais mudanças precisam ser discutidas e aprovadas em plenário. Portanto, no ponto em que a sociedade se mostra sempre como movimento e transformação, os vários estatutos que a regeram no passado, mostram-se como pontos fixos, tal qual ocorre com os pontos do gráfico de uma variável numa função matemática.

Ora, assentado isto, que são direitos e deveres numa sociedade, por sua natureza, em perpétuo dinamismo? Toda sociedade é criada para um certo fim; as pessoas se reunem para fazer algo; este algo é o objetivo posto num plano de ação ou projeto. Daí que toda a empresa (e toda sociedade é um empreendimento) se apóia numa trípode cujas pernas são: planejamento, organização e controle. Até para os empreendimentos mais insignificantes quais sejam derrubar uma árvore ou consertar a torneira, é preciso, primeiro, planejar o que se vai fazer; depois, organizar as ferramentas e a técnica; por fim, controlar os resultados... que se forem obtendo no transcurso da operação, para que nada falhe. Ao homem que tinha planejado sua própria salvação, e, depois, em função deste planejamento, tinha organizado seu proceder, sua conduta, sua vida, a esse, Cristo recomenda, como indispensável ao coroamento da obra, o controle dizendo: "Vigiai e orai, para que não entreis em tentação". (Marc. 14, 38). Esta tentação existe ao ser desenvolvido quaisquer empreendimentos: é a tentação de alterar na última hora o que foi planejado e organizado, como se, de repente, a improvisão, a ação direta, a experiência irre-

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fletida, fortuita, ocasional, fosse o melhor caminho.

Eis, pois, que o estatuto de qualquer sociedade tem por fim cercear o arbítrio de quem decide, impondo-lhe obediência, impedindo-lhe os desmandos e arbitrariedades... que poriam em perigo o empreendimento, a empresa. Ora, em qualquer estatuto há o capítulo relativo aos direitos e deveres dos associados. E o primeiro dever de todo sócio, o de número um, é vigiar, é controlar para que o estatuto seja cumprido; sem isto, não vale nada depois, vir falar em direito. No entanto, o curioso é que sendo a vigilância o primordial dever de todo associado, nunca esse dever está explicitado no estatuto; por que? Porque esse primordial dever está vinculado ao seu fundamental direito, e ambos pertencem a um Estatuto maior que é o da Natureza, a qual fez todos os entes vivos... dos quais o homem, EGOÍSTAS; e todo egoísta quer, sempre, o máximo aproveitamento com um mínimo de esforço. Por causa disto, o chefe de qualquer sociedade é um egoísta, tal qual todos os seus acessores; e se estes pretenderem violar o estatuto, só pode ser para beneficiarem-se em detrimento dos demais que, porque também são egoístas, têm a obrigação, o dever precípuo de vigilar, de controlar, de estar alerta, em guarda, contra quaisquer abusos. Se os interesses dos associados forem frustrados, a sociedade se desfaz.

Se isto acontece nas sociedades mínimas, é óbvio, acontece também nas máximas como o Estado, como a Civilização. Aqui há também direitos que são interesses a se promulgarem, e deveres que são controles a serem conhecidos; e é preciso garantir os interesses por meio do cumprimento dos deveres de vigilância, ou então, como o afirma o Enunciado Duodécimo: "Cumprir uns e garantir os outros".

Ora, todos os direitos do homem, quaisquer que sejam, se resumem num único: O DIREITO À FELICIDADE. Este é o INTERESSE supremo para o qual se canalizam todos os esforços do homem que busca, sem descanso, o BEM-ESTAR... entendido este em totalidade, como FELICIDADE completa. Como todos os deveres decorrem dos direitos, correlatamente, todos os deveres também se resumem num só: PUGNAR PARA SER FELIZ. O problema todo consiste em achar o caminho da felicidade; nisto é que os homens se dividem em seitas, em facções, em bandeiras, em partidos; mas o pior facínora, assim como o mais ínfimo dos seres vivos, só tem este problema: como fazer para ser feliz. Fale Spinoza: "Ficará eu sabendo pela experiência que as mais freqüentes ocorrências da

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vida quotidiana são vãs e fúteis... Decidi-me então a investigar se existiria algum objeto que fosse um bem verdadeiro, capaz de se comunicar, e capaz de só ele, com exclusão de qualquer outro, afetar a alma, um bem cuja descoberta e posse desse em resultado uma eternidade de regosijo supremo"... E a esse respeito, disse Gusdorf: "A iniciativa de Spinoza surge aqui como procura de regosijo, e a mais árida especulação intelectual aparece subordinada à exigência de uma plenitude de vida: “Minha alma sofria, por ignorar se haveria possibilidade de, mediante um en-contro, instituir vida nova". É por isto que, entendam-no todos, "a filosofia não é divertimento, alheio à vida; é obra de edificação, no sentido prenhe do termo; é o cometimento de uma sabedoria ativa que quer, por entre as influências contraditórias, delinear-se como linha de força e linha de vida”.... "A verdadeira questão consiste aqui em saber qual seja precisamente o sentido da verdade em filosofia. A investigação filosófica impõe-se como tarefa justificar a existência, por outras palavras tende - assegurar uma correspondência entre a vida humana e uma verdade que a fundamente em valor. Não se trata de jogo de idéias, mas de tentativa para assumir a realidade humana integral e elevá-la de sua desordem congênita a uma ordem onde se exprima a obediência do espírito. A existência empírica é a ocasião inicial e a saída terminal, ao mesmo tempo que o critério. O mito platônico da caverna descreve a odisséia filosófica que transita das incertezas do conhecimento usual à contemplação da verdade, e que volta de novo a ocupar seu posto na caverna entre os demais homens, onde sua presença daí por diante deve significar a visitação dos valores superiores de que ele teve comunicação”... "Pelo que, o filósofo e, mais geralmente, o homem de gênio, é um revelador do mundo, ou antes um transformador das significações”.

No mito platônico, por que volta o filósofo à caverna, junto dos demais homens, de modo que sua presença aí, daí por diante, signifique "a visitação dos valores superiores de que ele teve comunicação"? Por que não vai ele ser feliz sozinho, vivendo de suas contemplações, mas, isolado, à maneira dos anacoretas? É que a fase do isolamento temporário, que é o de quando o pensador recompõe o seu universo interior, essa já passou; cumpre-lhe a ele, agora, aplicar sua força benfazeja sobre os demais homens, e nesta aplicação de força, sua pura idéia se torna também vivência, experiência, sabedoria; e é por causa desta última conquista sua, a da

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sabedoria (de sabor, de experiência), que o pensador volta sobre seus passos, retornando à caverna. Se lhe fosse possível ser feliz só com suas idéias, ele não retornaria. Mas a felicidade, o "eterno regosijo" (Spinoza), está intimamente associado com a vivência, com o sentimento, com a emoção. Daí que ninguém pode ser feliz sozinho, e aquilo que, antes, era puro ego-ísmo, se torna no nostr-ismo e na nostricidade, no dizer de Ortega. Fale Gusdorf:

“Nenhum homem é uma ilha, e o regime celular de Robinson, muito longe de representar uma posição invejável, aparenta-se ao mais doloroso grau de reclusão penitenciária. Contudo, importa não esquecer, como observa Taine que o náufrago Robinson levava com ele um barco cheio de civilização inglêsa, utensílios e uma vocação colonial, uma Bíblia e tradições puritanas". Por esta mesma razão, já dizia Goethe: "O maior castigo que me poderiam inflingir seria habitar sozinho o paraíso".

Dado que ninguém pode ser feliz sozinho, donde, para o ser, é preciso estar organizado em sociedade, segue-se que o dever de lutar para ser feliz se cifra no lutar contra seus próprios impulsos anti-sociais, impulsos que se acham acorrentados no íntimo de cada um. Seus impulsos anti-sociais são suas tendências egoísticas, animalescas, desagregadoras. Negar-se, portanto, de animal; atingir o estado de humanidade; tornar-se civilizado, eis o programa, o projeto de LUTA PARA SER FELIZ, o que só pode ser, quando o homem-empresário de si mesmo se tornar num anti-animal, num transfigurado, num santo. Fale Toynbee: "Mas se houve alguns raros homens ou mulheres transfigurados, nunca sucedeu tal cousa com uma sociedade civilizada. A civilização, tal como a conhecemos, é um movimento mas não é uma condição, é uma viagem mas não é um porto. Nenhuma civilização conhecida chegou a atingir o objetivo da civilização. Nunca houve uma comunidade de santos sobre a Terra". Os destaques são nossos, e os pusemos para sublinhar que o objetivo, a meta, o ponto final da civilização é a vitória total sobre a animalidade, é a santidade, como vimos demonstrando.

Então, o principal direito do homem, é o DIREITO À FELICIDADE. Disto decorre o seu fundamental dever, que é o de criar os instrumentos que viabilizem essa sua FELICIDADE. O principal instrumento criado e mantido pelo homem é a sociedade em grande, a civilização em curso... cujo objetivo final é a comunidade de santos sobre a Terra. Sendo assim, não vamos nós perder tempo em estudar

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os deveres miúdos promulgados nos estatutos de nossas organizações menores, nem os direitos nossos que se resumem em interessículos. Usemos nosso tempo e nosso esforço para analisar quais os nossos direitos, e quais os nossos deveres na grande Sociedade cujo objetivo é atingir o apogeu da civilização, onde todos seremos felizes para todo o sempre.

Aos neófitos é entregue um formulário maçônico com as seguintes perguntas, ao serem eles iniciados na Maçonaria:

Quais os deveres do homem para com Deus?

Quais os deveres do homem para com a Humanidade?

Quais os deveres do homem para com a Pátria?

Quais os deveres do homem para com a Família?

Quais os deveres do homem para consigo mesmo?

Os neófitos dão as mais disparatadas respostas que o Orador lê, frente à assembléia de maçons. No entanto, nem os neófitos, nem os maçons mais graduados, voltam a meditar sobre o que se perguntou, pelo que ninguém fica sabendo nada, embora esteja no grau máximo do filosofismo. Vamos, pois, responder a estas questões, e o faremos na ordem inversa por uma questão de didatismo. Quais os deveres do homem para consigo mesmo?

Já ficou respondida esta questão. Os deveres do homem para consigo mesmo são criar os instrumentos com os quais possa vencer sua própria animalidade grosseira. Os deveres seus são planejar, organizar e controlar sua vida para atingir seu FIM ÚLTIMO que é sua FELICIDADE, o que só pode ser quando se fizer CIVILIZADO, isto é, plenamente vitorioso sobre sua animalidade, o que significa, quando se tornar SANTO. SANTO é o mesmo que SÁBIO, uma e outra palavra derivada da raiz "sab" (latim, sapere) saber... que tanto é sabor, de degustar, de saborear, como é conhecimento advindo da experiência, e não da pura operação intelectual. E a raiz de experiência é “per” (latim, periculum), como o afirma Ortega; diz ele “que o radical per de periculum é o mesmo que anima a palavra ex-per-imentar, ex-per-iência, ex-per-to, per-ito. Não tenho vagar agora para fazer ver, através de rigorosa via etimológica que o sentido originário do vocábulo "experiência" é: ter passado perigos". Sábio, portanto, é que experimentou, o que provocou o desconhecido, correndo riscos, "passando perigos". Que perigos?

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Pois todos aqueles perigos que assediam o homem que se resolveu negar-se de animal, tornando-se civilizado em grau extremo... que é o da santidade. Exemplos? A história está pontilhada dos que se asse-melharam a Sócrates, dos que levaram Cristo a sério, imitando-o! Só o santo-sábio é feliz que não o resto dos que, iludidos, procuram a felicidade por atalhos quaisquer, mesmo o das religiões que pregam não precisar mais do que crer para salvar-se. A oportunidade nos obriga a dizer a todos... que a crença, a fé, não é mais do que o lado fino da cunha..., indispensável, sim, para penetrar na animalidade, mas que só com isto não dá para vencê-la, para desmontá-la, para reduzi-la a nada para todo o sempre...

Sendo tais os deveres do homem para consigo mesmo, quais seriam seus deveres para com a família?

Primeiro que tudo, o que é a família? Acaso é o puro acasalamento de um macho com uma fêmea, sendo o macho, o homem, e a fêmea, a mulher? É certo que a família é a união de ambos, homem e mulher, mas tendo em vista a prole que repõe, que substitui na sociedade os pais que hão de morrer. Família sem filhos é fruto sem sementes. Não é preciso insistir no óbvio: uma sociedade sem crianças que substituam os adultos que morrem, está fadada a desaparecer; e isto acontece sempre quando uma sociedade qualquer faz do sexo um fim, ao invés de um meio. Família, portanto, é o casal e os filhos.

Ora, a mulher é o outro eu do homem; e se, como dizia o latino, “amicus est alter ego”, o amigo é outro eu, mais propriamente é alter ego a esposa, a companheira, a outra metade, a, por todos os títulos, sócia, na composição da unidade superior, a família, a célula básica do social. Daqui se tira que o casamento nunca deveria ter por base a furiosa atração carnal, e sim, uma profunda amizade nascida na identidade de propósitos. O casamento há de ser por amor, mas amor não é o mesmo que cio animal que, embora possa ser fogoso no pré-ato, se faz seguir de indiferença, após saciado. Valha como exemplo do que afirmamos, a experiência relatada por Toynbee:

"Desde que me retirei para a minha concha em Winchester, como reação contra a pressão da vida tribal, tinha a tendência de trabalhar como um lobo solitário... Mas aprendi agora a apreciar um modo diferente de trabalhar. Minha parceria no trabalho com Verônica em Chatham House continuou depois que ela se tornou minha

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segunda esposa em 1946 e desde nossa aposentadoria ela ainda continua a fazer os índices de todos os meus livros". E prossegue:

"Na vida humana o summum bonum é o companheirismo humano. Não há substituto para ele. No entanto, faltaria alguma coisa, mesmo na vida pessoal mais feliz, se esta não fosse suplementada por uma vocação que encontrou satisfação. Neste campo impessoal também, devo muito a Chatham House. Achei meu trabalho lá satisfatório tanto intelectual como moralmente. E também me deu a oportunidade de outro trabalho, fora de seus limites. De 1927 a 1954, graças à minha parceria com Verônica, pude conduzir o Survey of International Affairs executando ao mesmo tempo uma aventura privada própria: o “A Study of History”. Não havia desarmonia entre estes dois trabalhos. Cada um deles se beneficiava com o outro".

Sendo a esposa o outro eu do homem, todos os deveres que ele tem para consigo mesmo se duplicam nela, de modo que, também, valem para ela todos os deveres que o homem tem para consigo. Os deveres deste, para com a família, consistem, portanto, em primeiro lugar, em auxiliar a companheira, por todos os meios possíveis, na sua também auto-realização, na sua, também, conquista do seu FIM ÚLTIMO, na sua, também, FELICIDADE ETERNA, só possível a ela, quando, também, ela for SÁBIA-SANTA. A família, então, se transcende de si, adquire uma dimensão divina, toma-se de sacralidade, pois que se torna escola-oficina de auto-construção para um e outro membro dessa primeira sociedade. Com a vinda dos filhos, cada um igual aos próprios pais quanto à destinação de felicidade, mais a escola se amplia de valor moral. Aí, então, todos se ajudam, quais alpinistas, na conquista do ainda inatingível Everest em cujo tope se divisa a radiosa luz da felicidade eterna. O cimo do Himalaia atrai o montanhista que, para escalá-lo, precisa associar-se a grupos; ninguém pode ser feliz sozinho! O melhor do grupo vai na frente; é o chefe ou líder da escalada. O segundo em valor vai por último; os mais fracos vão no meio. O chefe introduz uma cravelha que é um forte cravo de aço, numa fenda da rocha, com o auxílio de um martelo, e na cravelha prende um mosquetão, e, neste, um estribo para pisar ou enfiar a perna. Por meio de cravelhas suficientemente próximas, o montanhista vai subindo pelas paredes íngremes até algum socalco. Aí, firmando-se, puxa pelos demais montanha acima. Assim no alpinismo, assim na conquista do pináculo da civilização... Ninguém pode ser feliz sozinho!...

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A família é o primeiro grupo em que todos se sustentam uns aos outros. Não só é necessária força física e ânimo inquebrantável para o trabalho de todos os dias e todas as horas, nem só destreza e habilidade para as execuções das tarefas infindáveis; mas, sobretudo, são indispensáveis qualidades morais de responsabilidade, de fidelidade, de confiança, de amizade, de amor... O líder do grupo, o mais forte, o mais sábio, vai na frente..., e tanto pode ser o pai como a mãe; o segundo segue com os demais do grupo, com os filhos, que se supõe mais fracos... pelo menos enquanto pequenos, todos recebendo todo o apoio possível... É assim que se compreende o que venha a ser a FAMÍLIA.

Os filhos crescem, reproduzem-se e morrem... tal qual seus próprios pais; mas quando a descendência destes pais chega à terceira e quarta geração, ei-los, de novo, que retornam, como tetranetos de si mesmos. Ou, de outro modo: o trineto do meu filho sou eu mesmo que retorno, numa nova retomada das vestes carnais, para que a escalada do Himalaia prossiga!... Quem o diria?! Meu tetravó sou eu mesmo que retornei à carne como tetraneto dele?

É por esta razão que o criador do Esperanto, Dr. Lazaro Ludoviko Zamenhof, ao traduzir a Bíblia, diretamente dos originais hebráicos, em lugar de escrever no segundo mandamento do Decálogo: "vingo a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração" (Ex. 20, 4), como está em qualquer outra tradução, escreveu: "vingo a iniqüidade dos pais nos filhos na terceira e quarta geração". Não "ĝis Ia tria kaj kvara generacioj", mas “en la tria kaj kvara generacioj" (Eliro 20, 4). Não "ĝis" que quer dizer até, mas "en Ia" que quer dizer na. Por que não na primeira, nem na segunda? Porque na primeira e na segunda os filhos pagariam pelas iniqüidades, ou delitos, ou pecados dos pais. E isto é impossível, pelo que está escrito: "Não se farão morrer os pais pelos filhos, nem os filhos pelos pais, mas cada um morrerá pelo seu pecado" (Deut. 24, 16). Cumprindo esta lei, o rei Amazias fez morrerem os seus servos que haviam ferido o rei anterior, seu pai. Porém não executou os filhos desses servos, por causa do que disse o Senhor a Moisés: "Não serão mortos os pais pelos filhos, nem os filhos por seus pais, mas cada qual morrerá pelo seu delito" (II Crô. 25, 4). Isto mesmo veio da parte do Senhor à inspiração de Jeremias: "Cada um morrerá pela sua iniqüidade" (Jer. 31, 30).

Em coerência com isto afirma Deus, no segundo

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mandamento, que usará de misericórdia até mil gerações para com aqueles que o amam e guardam os seus preceitos. Não se trata de o merecimento dos pais se transmitirem aos filhos; a regra é a mesma de quando Deus se refere à iniqüidade: os pais não receberão os benefícios devido aos filhos, nem estes farão jus à misericórdia merecida pelos pais, mas cada um terá o seu, seja em prêmio, seja em castigo. Promete Deus usar de misericórdia para com aqueles que o amam e, lhe são obedientes, venham tais espíritos tomar corpo de matéria densa quantas vezes vierem. A herança, portanto, não segue a linha direta de sucessão, mas indireta, como no atavismo, não na primeira, nem na segunda, porém, possivelmente, na terceira, ou quarta, ou quinta... geração, que é quando o merecedor vem, noutra forma corporal, receber aquilo a que tem direito líquido e certo. Ninguém, pois, se maravilhe, face ao enigma de um homem vir a ser tetraneto de si mesmo...

E a escalada do Himalaia continua, fora da carne e dentro dela... através de cadeias de gerações... em que os mesmos espíritos retornam à faina terrena de suas conquistas eternas...

Isto mesmo que é para uma família, também o é para outra, outra e mais outra, muitas delas entrelaçadas... E tudo forma a Pátria... que reúne os patrícios. Pátria - terra do pai - é uma forma genérica que abrange as formas específicas que se nomeiam: País, Estado, Nação. País refere-se à terra, território, e desse termo derivam-se paisagem, paisanagem, paisanada, paisano. O Estado diz respeito à organização sócio-política; é o modo de ser ou de estar; é a disposição, arranjo, ordem, situação, organização, regimento, etc. A Nação é o conjunto de habitantes; é a raça, cos-tumes, língua, tradição, cultura. É a comunidade dos cidadãos de um Estado sob o mesmo regime de comunhão de interesses; é o povo, excetuado os governantes. A Pátria é o conjunto de tudo, sendo mãe e pai ao mesmo tempo, porque, como diz Vieira, "o nome de pátria é derivado do pai, e não da mãe". Se fora derivado de mãe, diz Vieira, seria mátria; todavia, o nome de pai aparece suavizado para ser igualmente mãe, e fica sento pátria. Escreve Ortega:

"Queira-se ou não, a vida humana é constante ocupação com algo futuro. Desde o instante atual nos ocupamos do que sobrevém. Por isso viver é sempre, sempre, sem pausa nem descanso, fazer. Por que não se reparou em que fazer, todo fazer,

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significa realizar um futuro? Inclusive quando nos entregamos a recordar. Fazemos memória neste segundo para lograr algo no imediato, ainda que não seja mais que o prazer de reviver o passado. Este modesto prazer solitário se nos apresentou há pouco como um futuro desejável; por isso o fazemos. Conste, pois: nada tem sentido para o homem, senão em função do porvir”.

Isto, de Ortega, é irrecusável, e, sendo-o, havemos de convir que há futuro e há futuros. O futuro remoto, longínquo, é o FIM ÚLTIMO do homem, é a sua FELICIDADE ETERNA, somente conquístável quando ele se tornar sábio-santo. Este fim distante, todavia, se decompõe em infinitos fins próximos de cuja realização vai depender a posse da FELICIDADE como FIM ULTIMO. Por isto é que há futuro e há futuros; os fins próximos, menores, servem aos fins maiores até o Fim Ultimo. Ora, as metas menores são meios... de se atingir as maiores... Não haveria os séculos se não se transcorressem os segundos; portanto, os segundos ficam assegurados pelos minutos, estes pelas horas, dias, meses, anos, séculos, etc. Logo, até o "tempo elementar" fica eternizado na unidade que o engloba, e esta, na seguinte, e assim por diante. Tal qual, com todas as realizações, pelo que não se pode desprezar as ações mínimas, as supostas insignificâncias. Daí dizer Ortega: "Para quem o pequeno nada é, não é grande o grande".

Como ninguém pode realizar-se sozinho, então, a família, a sociedade, a pátria são meios indispensáveis de o homem edificar-se como sábio e como santo, o que, portanto, só pode ser pela cooperação na obra auto-construtiva dos demais: esposa, filhos, parentes, amigos, vizinhos, concidadãos, pátria, próximo. Tudo, pois, fica na dependência da auto-realização de cada um, para que o passo seguinte se efetive..., tal qual como, sem segundos, não há minutos, horas, dias, meses, anos; como, sem areia, cal e tijolos, não há casas, nem cidades; como, sem átomos, não há moléculas, micelas, células, entes vivos de nenhuma espécie. Do pequeno se constrói o grande, ou este não existiria sem as coisas mínimas de que é construído, e isto, sem nenhuma exceção. Por causa desta verdade incontestável, são ignorantes crassos todos aqueles que deliram ao sonhar com reformas exteriores, em grande, na economia, na sociedade, nos regimes políticos, sem primeiro atentar para a transformação, para a transfiguração, para a reforma vital, vivencial dos próprios homens que, como tijolos num edifício,

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respondem pela construção dessas unidades maiores. Isto é axiomático, inexorável, peremptório, exato: no entanto, o mundo está fervilhando daqueles que pretendem o impossível: fazer da Terra um paraíso, no momento mesmo em que se acha essa Terra habitada por dragões... Todos esperam reformas, mas ninguém se reforma a si mesmo, como se a reforma do grande não dependesse da reforma do pequeno... que há de pôr em prática em si, aquilo que foi planejado para o todo...

Portanto, a pátria, a nação, o Estado, tudo é instrumento ou meio de o homem realizar-se na direção do seu Fim último. Todavia, como já o dissemos, ao tempo em que o homem se edifica a si próprio, por causa mesmo desta sua auto-edificação, ele aperfeiçoa, pouco a pouco, seus instrumentos éticos, políticos e legais, sem os quais ele não passaria de um animai, isto é, de um bárbaro. No entanto, embora o homem crie os seus instrumentos éticos, políticos e legais, e estes instrumentos criem o homem, ambos, homem e instrumentos, surgiram juntos, de forma rudimentar, não se podendo dizer que um veio antes do outro. O caso é o mesmo do órgão e da função, ou de qual veio antes, se a galinha ou o ovo; se o martelo, ou a tenaz... O biólogo inglês Harvey disse, e até seu dito foi posto em latim para que tivesse mais força de sentença... contra a teoria da geração espontânea a partir do lixo, da sujeira: "Omne vívum ex ovo" - todo ser vivo vem de um ovo. E, senhor Harvey, todo ovo vem do quê?

Contudo, de ideologias o mundo se acha inflacionado hoje, tendo o homem criado mais instrumentos do que podia usar. O que lhe falta a ele agora é voltar-se para si mesmo, num trabalho áspero e tenaz, fazendo que essas teorias de papel, vazias de pragmatismo, se saturem de vida, de ação, transformando-se no que se chama SABEDORIA, ou seja, em vivências cotidianas, em hábitos arraigados ao ponto de estes adquirirem a força, o automatismo e a espontaneidade irrefletida dos instintos. A SABEDORIA está associada à CONDUTA, nada tendo a ver com sabença ou sabichice que leva o erudito a conhecer todas as escolas de pensamento que já houve e há no mundo.

Então, quais os deveres do homem para com sua pátria? Todos os seus deveres se resumem em CONSTRUÍ-LA ! E para construí-Ia, cumpre-lhe a ele construir-se, o que só pode ser na família, na sociedade. Se o dever do homem para com sua pátria é construí-Ia, segue-se que ela não está feita? Não. Não está. O homem, em se

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edificando a si mesmo, edifica a pátria, e esta só estará pronta, acabada, perfeita, estável na paz e na felicidade, quando todos os seus filhos forem sábios e santos. Fora disto, tudo são paliativos, ilusões com que todos se vão enganando a si mesmos. Este sentido de dinamismo, de movimento, de transformação altera a concepção que sempre se teve de pátria como coisa. Fale Ortega:

"Nunca foi fácil ao pensamento greco-romano conceber a realidade como dinamismo. Não podia desprender-se do visível ou seus sucedâneos, como um menino não entende do livro senão as ilustrações. Todos os esforços de seus filósofos autóctones para transcender essa limitação foram vãos. Em todos os seus ensaios para compreender, atua, mais ou menos, como paradigma, o objeto corporal, que é, para eles, a "coisa" por excelência. Só conseguem ver uma sociedade, um Estado onde a unidade tenha caráter de continuidade visual; por exemplo, uma cidade".

Nesta transposição do estático para o dinâmico, na compreensão do que seja a pátria, colocamo-la como algo por fazer. E algo por fazer é futuro... no qual devemos nos concentrar; daí que não podemos viver do passado, conquanto tenhamos de considerá-lo, na medida em que ele nos sirva para construir o futuro. Um homem só pode ser conhecido e conhecer-se depois que passou a ter passado. Esse passado mostra a todos, inclusive a si mesmo, como se comportou, como agiu nas várias situações. Este comportamento é uma como "constante" do seu psiquismo. Somente em casos excepcionais, o homem deixará de cumprir a sua "lei" interna. As modificações existem, face a propósitos e projetos novos, mas nunca serão totais...; daí que toda a conquista neste terreno, isto é, de o homem modificar a sua "constante", é lenta. Isto mesmo que é verdade para um homem, o é, também, para uma nação, de modo que seu futuro vai depender de como é a "determinante" do seu psiquismo coletivo, gravado na sua história, mais seus projetos novos, ainda por realizar-se. Diz Ortega: "Sangue, língua e passado comuns são princípios estáticos, fatais, rígidos, inertes; são prisões. Se a nação consistisse nisso e em mais nada, a nação seria uma coisa situada a nossas costas, com o que não teríamos nada que fazer. A nação seria algo que se é, mas não algo que se faz. Nem sequer teria sentido defendê-la quando alguém a ataca”. Portanto (ainda Ortega), "ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente; haver feito juntos grandes coisas, querer fazer outras mais; eis aqui as

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condições essenciais para ser um povo... No passado, uma herança de glórias e remorsos; no porvir, um mesmo programa para realizar”... Agora Renan: "A existência de uma nação é um plebiscito cotidiano"

A pátria, portanto, consiste num leque de projetos que se convergem para um PROJETO único, primordial: a FELICIDADE dos patrícios, dos cidadãos, das famílias, dos indivíduos, cada um, de si, um centro de dinamismo canalizado ao seu FIM PESSOAL, ao seu FIM ÚLTIMO, somente frente ao qual tudo o mais se justifica. Dado que ninguém pode ser feliz sozinho, o sofrimento do meu irmão, sobretudo se tiver origem nas injustiças sociais, é problema meu, porque lhe sou compatriota, concidadão. Mas toda a luta deve ser ferida contra o involuído, e não contra quaisquer sistemas, dado que nenhum presta, quando o homem é dragontino.

Os horrores e misérias do povo francês de antes da Revolução eram ocasionados pela nobreza e pelo clero, pelo que a Religião passou a ser encarada como um mal, aliás, como tudo o que se apoiasse no Absoluto. Daí a guerra movida à metafísica, à filosofia como fontes do mal. No Empirismo, pai da ciência, residia todo o bem. Então, “Viva a Ciência!", e "Morte à Religião!", "Morte à Metafísica!" Depois, as misérias e horrores do povo inglês, alemão, e demais nações industrializadas, em meados do século XIX, eram ocasionados pelas máquinas inimigas e pelos industriais sem entranhas que deixaram à solta seu interno troglodita das cavernas, e isto porque o cientismo e o tecnicismo míopes fizeram-nos perder a visão do Absoluto... que fundamenta a moral que disciplina a besta em nós. Então, agora, numa volta ao passado, "Viva a Religião!" e Morte ao Golem da Tecnologia!" No primeiro caso, os culpados eram a Igreja e a nobreza; no segundo, os industriais e suas máquinas. Quem, por toupeira que seja, usando só o olfato, não farisca em ambos casos, em quaisquer casos, em todos os casos, um denominador comum que é o HOMEM? e só o Homem e nada mais que o Homem? Que dos deveres do homem para consigo mesmo decorrem todos os demais possíveis deveres seus? Se "morreu acabou”, fica plenamente justificada a miséria dos mais fracos face à opressão dos poderosos, sejam estes a nobreza e o clero da França, do século XVIII, sejam os industriais em meados do Séc. XIX. Uns e outros, todos pautam-se pela "Carta Magna da Animalidade" cujo Artigo Um diz: “Sê forte e/ou astuto e sobreviverás!"...

Escreveu Sêneca: "Calígula (que a natureza degenerou, penso

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eu, para mostrar quanto pode o máximo dos vícios no máximo da prosperidade) gastou em um dia só para um almoço dez milhões de sestércios; e, embora ajudado pela fantasia de seus cortesãos, pôde a custo encontrar a maneira de converter o tributo de três províncias em um almoço”. Mas, que adiantaria morrerem milhões numa revolução para substituir Calígula por outro, se cada um a seu modo, todos são Calígulas? Alcançou isto Olivier Wormser, em razão do que declarou: "Todas as teorias socialistas são justas em suas intenções, mas viciadas em sua base, porque o ser humano é o que é”. Se o vicio de base está em ser o homem o que é, nada se tem a fazer senão reformar esse homem. Por isto, quem disse que destruir o tirano não é destruír a tirania, afirmou uma grande verdade; só que esse sujeito pensava ser preciso destruir o sistema tirânico, e isto é perder tempo e esforço; porque, o que é preciso destruir, não é a tirania-sistema... que é exterior, mas sim, a tirania que está oculta no íntimo de cada um. Esta tirania é que é necessário seja destruída, porque, do contrário, quaisquer que sejam os sistemas exteriores, o tirano interior estará sempre pronto a desfechar o seu traiçoeiro golpe desumano. Se a "Carta Magna seguida na prática for a da "Animalidade", quando não for possível usar a FORÇA, aplicar-se-á a ASTÚCIA!; e astúcia significa mimetismo, camuflagem, ludíbrio, dissimulação, engano, despistamento, hipocrisia, que tudo vem a ser mentira...

"Descartes (escreve Gusdorf), contemplando desde a janela o movimento da rua, pergunta, numa página célebre, como poderá obter a certeza de que os transeuntes não são meros fantoches, puras aparências sem conteúdo interno". Como pode amar a seu irmão, um tal homem que despreza a experiência radical do corpo, por todos os modos ininteligível, mas, do domínio da SABEDORIA com base na experiência, no sensível? Eis, pois, que (Gusdorf) "o intelectualismo ingrato como é, parece ser incapaz de realizar a revolução franciscana reabilitadora do corpo, pois que o aceita como sendo o irmão, o próximo, o semelhante do pensamento”... Se até mesmo um querubim, um serafim, tem de haver-se com um corpo, ainda que espectral, tal qual nós, após a morte física, sem o qual uma alma essência pura é puro jogo vazio de palavras; pois "que pode o puro espírito, escrevia Lagneau, se não começar por se dar um corpo que atue sobre os demais corpos?”; se, por causa disto, São Francisco chamava ao próprio corpo de irmão corpo, a primeira lição da SABEDORIA é a meditação do próprio corpo, sendo este a primeira realidade radical

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inacessível à razão que só sabe lidar com o que é fixo. Entendamos, de uma vez por todas, que o corpo próprio é a realidade primeira de que o homem tem vivência, e que é só a partir dele, e pela instrumentação dele, que poderá ter quaisquer outras experiências possíveis. A razão, a inteligência, é realidade segunda, a cavaleiro, mas dependente da primeira, no ponto em que, sem sentidos e sem cérebro, não existe pensamento. A realidade primeira (corpo) é a realidade substancial, substantiva, no passo que a segunda é pura idealidade, puro princípio de razão, pura redução ao estático, ao parado, daquilo que, por sua natureza, é fluente, móvel, transformável. Por isto, quando Descartes, olhando os transeuntes pela janela, se perguntava: como fazer para ter certeza, certeza racional, de que aquelas figuras que vejo moverem-se não são sombras, ilusões?, quando punha isso em dúvida, devia voltar para si mesmo o olhar, e interrogar-se: acaso sou eu mesmo uma sombra? Por que razão ele, coerente com isto, não armou o seu cogito de outro modo, afirmando: eu sou uma sombra que pensa?, ou, então: penso, logo a ilusão que sou, existe? Se sem o cérebro não há pensamento; e o cérebro é corpo... ininteligível para a razão, porque esta, para saber, precisa fixar tudo na imobilidade, e o cérebro, porque móvel, porque vibrável, escapa-lhe ao domínio, então temos isto: sem o existir do cérebro não haveria o pensar da inteligência, e o cogito cartesiano havia-se de inverter de sentido e ficaria: existo, logo penso!

Eis, pois, que contra o intelectualista solitário que duvida da existência real do próximo, portanto, por coerência, duvida da existência própria, contra esse, temos de opor o sábio da experiência radical, pelo que, como diz Gusdorf, "importa que o pensador seja homem de comunicação e de comunhão”... Conseqüentemente... "o homem de hoje, exposto a toda sorte de ameaças, sem nada que o proteja, procura na filosofia não já apenas exercício intelectual, mas razões de ser muito imediatas".

Eis aí que, em nosso giro, partindo dos deveres do homem para consigo mesmo, passando pela esposa, filhos (família), sociedade, chegamos à pátria, concluindo ser nosso dever para com ela, construí-Ia, pelo que todo trabalho proveitoso para nós, para nossa família, para a sociedade é esforço de construção da pátria, tenhamos ou não consciência disto. E quem diz ser obrigação do homem, em relação à pátria, construí-Ia, deixa

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implícito o dever de defendê-la dos inimigos, pois é óbvio que não há quem esteja construindo algo, em que põe toda a sua vida, toda a sua alma, e toda a sua inteligência, que, ao mesmo tempo, se disponha a deixar que outrem o estrague. Se a pátria cair nas mãos do inimigo, todo o trabalho que cada um vem fazendo se frustra, ficando todos nós e todos os que nos são caros expostos a todos os perigos. Assim, o primeiro dever do homem para com sua pátria é construí-Ia, e segundo, defendê-la!

Somos, agora, chegados ao ponto em que se interroga: quais os deveres do homem para com a Humanidade? O que há, primordialmente, a considerar nesta frase, é que ela é Racionalista nos termos do Idealismo..., porque é próprio deste tomar tudo pela sua generalidade máxima. Um exemplo desta generalização levada ao extremo é o termo Humanidade. Ortega: "A idéia progressista consiste em afirmar não somente que a humanidade, - um ente abstrato, irresponsável, inexistente que então se inventou, - progride, o que é certo, mas também progride necessariamente". O destaque do que se acha entre os travessões, é nosso, e é o que nos interessa agora. Coerente com o dito por Ortega, já afirmavam os romanos: "Amicus humani generis", significando esta locução que o amigo do gênero humano, o amigo de toda a gente, é o mesmo que amigo de ninguém! Ia indo Ortega, quando ainda jovem, num transatlântico, da Argentina para a Espanha, e no mesmo navio teve contato amistoso com umas lindas senhoras norte-americanas; como ele as tratasse lá sem muita reverência, e elas achassem que por ser norte-americanas, e, por cima, mulheres, possuíam algo de superior, deram-se por ofendidas. Uma delas chegou a dizer a Ortega: "– Reclamo de sua parte que me fale como a um ser humano". A resposta de Ortega não se fez esperar: " – Senhora, não conheço essa personagem a que chama "ser humano". Conheço somente homens e mulheres". Depois comenta Ortega, com o que concordamos: "Aquela criatura havia sofrido, em algum College, a educação racionalista da época, e o racionalismo é uma forma de beatice intelectual que, ao pensar uma realidade, procura tê-la em conta o menos possível". Mais: "Essa doutrina é o que se tem chamado intelectualismo, a idolatria da inteligência, que isola o pensamento de seu encaixe, de sua função na economia geral da vida humana. Como se o homem pensasse porque sim, e não porque, queira ou não queira, tem de fazê-lo para sustentar-se entre as coisas! Como se o pensamento pudesse despertar e

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funcionar pelas suas próprias molas, como se começasse e acabasse em si mesmo, e não, - o que é a verdade, - engendrado pela ação e tendo nela as suas raízes e o seu termo!". Mais isto: "Toda a minha obra, desde os seus primeiros balbucios, foi uma luta contra essa atitude, que há muitos anos chamei "beatice da cultura". Beatice da cultura, porque neIa se nos apresentava a cultura, o pensamento, como algo que se justifica a si mesmo, a saber, que não precisava de justificação, mas que é valioso por sua própria essência, sejam quais forem a sua concreta ocupação e o seu conteúdo. A vida humana devia pôr-se ao serviço da cultura, porque só assim se carregava de substância estimável. Assim sendo, ela, a vida humana, nossa pura existência, seria, por si mesma, coisa balda e sem apreço". Ainda isto: "Essa maneira de inverter a relação efetiva entre vida e cultura, entre ação e contemplação, deu motivo a que nos últimos cem anos, - portanto, até bem pouco, - se suscitasse uma superprodução de idéias, de livros e obras de arte, uma verdadeira inflação cultural (...) Em vez de atender ao consumo, vão-se produzindo, por produzir, as idéias necessárias, de que o homem de hoje precisa e que pode absorver. E, como acontece no capitalismo, saturou-se o mercado e sobreveio a crise". Não poderíamos dizer melhor.

Então, quais os deveres do homem para com a Humanidade?, para com o ser humano?, para com o gênero humano (humani generis)? Resposta: nenhuns ! ... Porque tudo isso são abstrações... e não é possível que tenhamos deveres a cumprir para com abstrações. Tudo isso fica muito cômodo para o intelectualista, para o idealista, para o beato da razão, para o retórico que vocifera, mas não diz nada. Tudo muito fácil, facilidade expressa por Henry Fonda ao dizer: "É mais fácil amar a Humanidade do que amar o próximo".

Conquanto não haja deveres para com a Humanidade in abstracto, há deveres para com a humanidade in concreto, e a humanidade in concreto se chama PRÓXIMO, próximo que tem sua definição dada no Evangelho pelo próprio Cristo, na parábola do samaritano. Quer dizer: não se trata de pronunciamentos teóricos, de interpretações preciosistas dessa realidade crua que está aí, à mão; não se trata de interpretá-la em termos grandiloqüentes, rebuscados, de princípios sócio-polítícos, que tudo vem a ser: fugir do compromisso imediato, urgente, vivencial, pondo a realidade

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preeminente o mais distante possível, usando, para isto, de um intelectualismo acadêmico que, tomando tudo no geral, só sabe falar de Humanidade, de seres humanos, de humani generis. Nada de ideo-logias que intelectualizem a vivência simples, espontânea, vital do próximo, de modo a retardar o que se tem a fazer, e já, pelo vizinho que necessita de nós, seja lá para o que for. Nada de transferir esta ajuda do plano primário, concreto e urgente do necessitado, para a alta esfera da política, esta que logo pensa em fome e saúde, como se todo problema se resumisse em encher o ventre e curar doenças... Aqui, o homem não é a Humanidade in abstracto, com a qual não temos nada que ver, ficando-nos, por isto, muito fácil tratar desse assunto participando de discussões prenhes de retórica, de belíssimos conceitos gerais de Direitos do Homem, sem nem ao menos uma ordem jurídica de fato, com base na força, que proteja esse Homem das infinitas violações. Não se trata de reunião de foruns internacionais, de congressos, que só sabem fazer uma coisa: reduzir tudo à expressão mais simples do parlatório, do psitacismo, em razão do que os lugares dessas reuniões, com muita propriedade, se chamam parlamentos!...

A maior dificuldade encontrada pela veneranda missionária Madre Teresa de Calcutá, foi a da linguagem: a que ela fala, e a que todos estão acostumados a ouvir. Falando ela numa Convenção Internacional do Rotary, no Anhembi, para doze mil rotarianos, disse a um dos repórteres: "– Creio que vocês e eu poderíamos começar a compartilhar aquilo que temos. Esse gesto iria gerar maior compreensão entre os povos". Dito isto, já veio o repórter com sua descompromissada parlenda: "Teologia da Libertação?" Tinha que ser!, tinha que jogar para o abstrato!... aquilo que, por sua natureza, é concreto, vivencial, urgente, real, existente aí, à mão, ou na ponta do nariz!... De certo ficou claro a mensagem da missionária quando afirmou categórica, imperativa: "– Não queremos o dinheiro de vocês, mas o tempo de vocês, que vocês se doem aos pobres. Que tenham tempo de se doar até doer!". É isto o que se tem a fazer: ter tempo para os outros... como o teve o samaritano que interrompeu a sua viagem para cuidar de socorrer ao que havia sido roubado e espancado por ladrões, e agora jazia semimorto à beira do caminho... pelo qual um sacerdote primeiro, e um levita depois, um e outro, referto de teorias, havia passado de largo.

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Finalmente, eis-nos na última questão: quais os deveres do homem para com Deus? Definir Deus... que é traçar fines ou limites a ele, é impossível, dado que ele é infinito. No entanto podemos falar a respeito dele. O primeiro que falou de Deus, relacionou-o com a luz, donde vem que o nome deus deriva-se de dia, e divindade ou deidade provém de claridade. Heráclito já tinha posto por princípio gerador de tudo, o Fogo que sempre arde e jamais se apaga. E nós, ao escrevermos o capitulo VII - O Alfa e o Ômega -, estabelecemos uma hierarquia nas transformações da ENERGIA-SUBSTÂNCIA que, a partir do primeiro enunciado (I - Matéria e energia são, mutuamente, reversíveis ou redutíveis), chega ao dé-cimo que diz:

X - Como não há posto nenhum mais acima do AMOR; como não existe o trans-amor ou super-amor, ele se torna sem REFERÊNCIA, sem RELAÇÃO a nada mais acima de SI, e isto o faz ABSOLUTO. Sendo o AMOR ABSOLUTO, então o AMOR É DEUS, ou, como o intuiu São João: "Deus é Amor".

Uma vez que a porção do Amor que é Deus, atuante no santo, surgiu de baixo, por evolução, procedente da vida que, por sua vez, brotou das energias dinamicamente degradadas; e como não pode, o que é Deus, ser criado, nem evoluir desse nível divino (o do amor) para cima; e para chegar a esse último estágio de evolução, o amor teve de partir de algo que, no seu começo mais remoto, era Deus, vem esta conclusão necessária: aquele AMOR que aparece no fim do processo evolutivo, além do qual não há mais subir, é o mesmo do princípio, quando, em PRIMEIRA INSTÂNCIA, os filhos do mundo celeste foram criados. Porque, se não tivesse acontecido a INVOLUÇÃO, teríamos este formidoloso estapafúrdio: o AMOR que é DEUS surgiu do CAOS por evolução (!?) Como isto é absolutamente impossível, o contrário é que é a verdade: o AMOR QUE É DEUS, além de preceder a INVOLUÇÃO... quando da criação dos espíritos celestes, ainda esteve presente sempre, desde o CAOS, como princípio que é de integração; nada se formaria se esse princípio não atuasse, como, de fato, não atuou durante todo o tempo da INVOLUÇÃO em que tudo caiu e se desfez no medonho CAOS.

Por causa de o AMOR que era no princípio, antes da INVOLUÇÃO ser o mesmo AMOR que aparece no fim da EVOLUÇÃO, pôde Cristo dizer: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o

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princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro" (Apoc. 23, 13), resultando isto na fórmula do Universo em sua expressão linear:

A→C→Ω

A = Ω

Dando-se à seta a significação de vai para, o Universo é uma grande circunferência que tendo saído de A, vai para o CAOS (C), representando esta fase a da INVOLUÇÃO. Depois, prosseguindo de "C", retorna para de onde saiu, que é o Ômega, consistindo nisto toda a EVOLUÇÃO.

Assentado isto, quais os deveres do homem para com Deus? Cumprir seus desígnios para com o próprio homem. E que desígnios de Deus são esses? Todos, quaisquer que sejam, se resumem num só: propiciar todos os meios de o homem retornar à celestina Pátria de onde, um dia, saiu qual Filho Pródigo da parábola. E voltar significa adquirir a forma luminosa que possuía antes; significa reconquistar o perdido amor; significa tornar-se SÁBIO E SANTO. Os desígnios de Deus para com o homem coincidem com os deveres do homem para consigo mesmo: executar seu projeto... de vencer a animalidade, o que o levará ao seu FIM ÚLTIMO... que é, também, o seu PRIMEIRO PRINCÍPIO. Para conseguir o homem realizar este seu PROJETO, projeto número um da EMPRESA que é SI MESMO, não poderá descuidar-se das duas outras pernas da trípode sobre que se apóia toda empresa: ORGANIZAÇÃO de sua vida em função do seu FIM ÚLTIMO, e CONTROLE dos resultados, para alcançá-lo paulatinamente.

Eis que em nova versão do "Eu sou o Alfa e o Ôrnega, o princípio e o fim", aqui, também os extremos se confundem, e os deveres do homem para com Deus, coincidem com os deveres do homem para consigo mesmo, porque Deus e o homem, um e outro quer uma mesma coisa: Deus quer a felicidade do homem, e este não quer outra coisa além de ser feliz. Deste modo, sem que o homem tenha a pretensão de ser Deus... (o que é impossível, dado que Deus é infinito e absoluto, no passo que o homem é limitado e relativo), contudo, é próprio do homem procurar atingir sua plenitude, sua dimensão divina, vecendo sua animalidade, tor-

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nando-se civilizado no grau excelso..., que é quando ele se torna sábio e santo. Aqui está o que exige Deus do homem, e o impõe através dos seus MANDAMENTOS... sobre os quais, e só sobre os quais, e nada mais além dos quais, se hão de construir os usos, os costumes e as instituições.

A felicidade é a plena luz, e só nesta luz reina a sabedoria e a santidade. A animalidade é o inferno em que dominam a dor, a angústia, a aflição e a solidão... daquele que se condenou a si mesmo pelo pecado do egoísmo, e a si mesmo fechou-se na caverna... tanto mais estreita, escura e profunda, quanto maior for sua deserção do Cristo-Amor, do Cristo de Deus.

FIM

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