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    ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 23, P. 53-66, JAN./JUN. DE 2008 53

    A (IN)VISIBILIDADE DOS LUGARES KADIWU:

    contribuies da geografia cultural para o estudo de

    populaes indgenas

    !PROF. MSC E DOUTORANDO JOS LUIZ DE SOUZA

    RESUMO:

    ATRAVS DE ESTUDOS DA GEOGRAFIA CULTURAL POSSVEL DISTINGUIR TERRITRIOS QUE ANTERIORMENTE PERTENCIAM

    AOS POVOS INDGENAS. NESTE ARTIGO, A PARTIR DOS TOPNIMOS APRESENTADOS PELA ORALIDADE KADIWU, PODE-

    SE DELIMITAR AS REAS PERCORRIDAS POR SEUS ANCESTRAIS MBAY-GUAIKURU H MAIS DE TRS SCULOS, NA FASE

    NMADE DOGRUPO. OS LUGARES KADIWU DE ANTIGAMENTE, COMPEM, NA ATUALIDADE, REAS DE INTENSA ATIVIDADE

    TURSTICA NOESTADODE MATOGROSSODOSUL, COMOOS MUNICPIOS DE BONITO, AQUIDAUANA E MIRANDA, POR

    EXEMPLO. NOENTANTO, TORNARAM-SE INVISVEIS AOS OLHOS DO OUTRO, PERDENDO O SENTIDO EM TEMPOS DE

    MODERNIDADE. INDEPENDENTEMENTE DESSA INVISIBILIDADE IMPOSTA, OS LUGARES INDGENAS CONTINUAM SENDO

    PONTOS NOESPAO IMPORTANTES HISTRIA CULTURAL DE UM POVO. UTILIZANDO-SE DOS TRABALHOS DE PAUL

    CLAVAL, DISCUTE-SE, NESTE ARTIGO, A CONTRIBUIO DA GEOGRAFIA CULTURAL NOS ESTUDOS DAS POPULAES

    INDGENAS E, TAMBM, COMOSE DEU OBATISMODE LUGARES ENTRE OS KADIWU, FORMANDO, DESSA FORMA, OS

    VRIOS LUGARES CONHECIDOS POR UMA CULTURA INDGENA, MAS QUE ESTOINVISVEIS AOS OLHOS DA SOCIEDADE

    ENVOLVENTE.

    PALAVRAS-CHAVE:GEOGRAFIA, CULTURA, TOPNIMOS, LUGARES INDGENAS, KADIWU.

    CONSIDERAESINICIAIS______________________

    Como so nomeados os lugares? Qual a finali-

    dade de um processo de batismo de lugares em-

    preendido por populaes indgenas? O que se

    pode apreender desse processo em se tratando de

    populaes indgenas? Estes questionamentos, ge-

    rados na experincia com os indgenas Kadiwu,

    na aldeia Bodoquena, a principal da Reserva Ind-gena Kadiwu, ilustram um tema importante a ser

    discutido por meio da lente cultural: os topni-

    mos Kadiwu e sua relao com o territrio tradi-

    cional.

    O estudo dos topnimos vai alm das relaes

    homem-espao, pois estabelece, neste caso, uma

    discusso envolvendo o conceito de territrioarti-

    culado ao de cultura, um campo frtil para a Geo-

    grafia Cultural: [...] a geografia cultural contem-pornea que abre oportunidades para abordar a

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    relao entre etnicidade e territrio [...], consi-

    derar as etnias como objeto de pesquisa [...] e

    desenvolver estudos de etnogeografia (Ratts,

    2003, p. 36).

    A partir dos topnimos apresentados pela ora-lidade Kadiwu, pode-se delimitar as reas percor-

    ridas por seus ancestrais Mbay-Guaikuru h mais

    de trs sculos, na fase nmade do grupo. Na Ge-

    ografia Cultural, os estudos de Claval (2001a;

    2001b) permitem uma discusso profcua sobre o

    batismo de lugares realizado pelas sociedades tra-

    dicionais, bem como as pesquisas de Wagner

    (2000) e Mikesell (2003), que facilitam a com-

    preenso dos topnimos como elementos da cul-

    tura a serem estudados no tocante sua distribui-

    o no tempo e no espao. E, por intermdio da

    Geografia Cultural, encontra-se auxlio terico-

    metodolgico para os inmeros caminhos a se-

    rem trilhados pelos gegrafos, visando a contri-

    buir para dar inteligibilidade ao humana sobrea superfcie terrestre (Corra e Rosendahl, 2003,

    p. 13). Os estudos dos autores supracitados, jun-

    tamente com a pesquisa seja esta considerada

    de campo ou de gabinete possibilitam uma

    anlise sobre o imenso territrio percorrido pela

    sociedade Kadiwu atravs de diferentes espaos

    e tempos e que, atualmente, pode ser explicadoespacialmente sob um olhar que no seja apenas

    geogrfico, mas que tambm considere os aspec-

    tos culturais intrnsecos ao processo de constru-

    o deste territrio.

    Dois importantes conceitos estudados pela

    Geografia (e por outros campos cientficos) ter-

    ra e territrio quando inseridos no tratamento

    de questes indgenas sofrem variaes em seu

    entendimento. Segundo o etnlogo Joo Pache-

    co de Oliveira (1998), o territrio indgena no

    se define somente por critrios histricos, mas de

    igual modo por critrios culturais prprios aos gru-

    pos que o habitam. A espacialidade denominada

    territrio indgena composta a partir das ne-cessidades de sobrevivncia do grupo, entendida

    em sentido amplo e no simplesmente material.

    Refere-se ao carter de identidade relativo ao ter-

    ritrio, ao mesmo tempo fsico e, principalmente,

    simblico.

    No caso do Brasil, as reas indgenas no cor-

    respondem exatamente s reas tradicionalmente

    ocupadas pelos grupos, pois alm da legislao no

    definir claramente territrio, muitas vezes o confun-

    de com a idia que os no-ndios possuem sobre o

    conceito de terra. Por isso, o rgo indigenista ofi-

    cial (Funai) sofre presses advindas de pessoas ju-

    rdicas e/ou fsicas ligadas aos interesses econmi-

    cos sobre a terra. A no correspondncia equivale

    sempre s extenses menores do que o territriotradicionalmente ocupado. Neste sentido, as to-

    ponmias originadas na cultura Kadiwu auxiliam

    no processo de compreenso da real extenso do

    territrio ocupado por esses indgenas, mesmo

    sabendo que a ampliao dos limites da Reserva

    no acontecer, tendo em vista essas informaes.

    A prtica do uso de topnimos antiga e sem-pre necessria, pois sem eles seria, no mnimo,

    complicada a tarefa de indicar um lugar, um obst-

    culo natural, um rio etc. No entanto, o uso de

    nomes nos lugares no o suficiente, pois se tor-

    na indispensvel refinar a aptido de reconheci-

    mento do espao a fim de que se possa orientar-se

    nele. Para Claval (2001, p. 81), a apreenso do

    mundo e da sociedade feita atravs dos senti-

    dos. So os sentidos que nomeiam os lugares e os

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    eventos dando surgimento ao que denominado

    por toponmia que, por sua vez, compreendida

    como um trao da cultura e uma herana cultural

    (Claval, 2001, p. 202).

    Os caminhos percorridos pelos Kadiwu estomarcados por pistas e histrias que, normalmente,

    no esto explcitas. As histrias rememoradas

    pelos ndios retratam feitos hericos que

    (de)marcam lugares e regies. So acontecimen-

    tos relativos aos mitos e que apresentam caracte-

    rsticas da paisagem dos lugares indgenasapresenta-

    dos ao final deste texto. A parte do territrio que

    ficou fora da demarcao est, hoje, totalmente

    ocupada por cidades, fazendas ou distritos que no

    so mais reconhecidos pelos indgenas, a no ser

    pela referncia dos topnimos.

    Os Grupos Tcnicos formados pela Funai para

    estudos de reas indgenas procuram fazer do co-

    nhecimento de topnimos por no-ndios um in-

    dcio de terra tradicional. Um exemplo disso foi oque ocorreu com os Guat, de Mato Grosso, quan-

    do os tcnicos se depararam com um lugar que

    preservava a denominao Baa dos Guats, em

    2000. Corresponderia este fato a uma mera ho-

    menagem ou importante indcio de que ali tives-

    sem vivido indgenas dessa etnia?

    Percebe-se a utilizao desses topnimos pe-los no-indgenas. Todavia, esse uso destitudo

    do sentido original, como tambm ocorre com os

    significados dos lugares e as histrias pertinentes

    aos no-indgenas. A histria da cultura local tor-

    na-se, assim, invisvel aos olhos dos novos mora-

    dores. Atualmente, com o processo de reurbani-

    zao a que esto expostas, as cidades vo rece-

    bendo novos nomes de ruas, perdendo-se, assim,

    o verdadeiro contexto cultural do lugar para dar

    passagem aos modos ou preferncias das munici-

    palidades. Alm disso, as pessoas, com a contnua

    mudana de endereo, no estabelecem laos

    identitrios com lugares novos ou com modifica-

    es profundas.Os lugares so continuamente modificados e a

    identidade com o lugar, adjacente s modificaes,

    pode ser perdida. No entanto, nas sociedades tra-

    dicionais, verifica-se um carter simblico que au-

    menta o poder do lao territorial, enfatizando os

    aspectos espirituais, ticos e afetivos. Para a socie-

    dade Kadiwu, o antroplogo social Jaime Garcia

    Siqueira (1993, p. 189) declara que o territrio

    tema preponderante [...] nas representaes cos-

    molgicas desse grupo, demonstrando o quanto

    culturalmente contextualizado e valorizado em

    funo da prpria histria de contato.

    1. O LUGARINDGENAKADIWU ______________

    Os Kadiwu situam-se, atualmente, em uma rea

    com 538.535,7804 hectares inteiramente ao nor-

    te do municpio de Porto Murtinho, Estado de

    Mato Grosso do Sul. A rea, denominada juridica-

    menteReserva Indgena Kadiwu, foi homologada por

    intermdio do decreto Presidencial n 89.578, de

    24 de abril de 1984. Nela vive, segundo o CensoKadiwu 1998 (Porto Murtinho, 1998), uma po-

    pulao de 1.348 indivduos distribudos, desigual-

    mente, por cinco aldeias: Bodoquena, Campina,

    So Joo, Tomzia e Barro Preto.

    Juntamente com os Kadiwu, verifica-se a pre-

    sena de outras etnias, como a dos Terena e a dos

    Kinikinau (Jos da Silva e Souza, 2003). Tradicio-

    nalmente, os Kadiwu so conhecidos como ndi-

    os que vivem de caa, coleta e da criao de gado,

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    alm da ilustre arte em cermica (Souza, 2005b).

    A populao daReserva Indgena Kadiwufaz uso cor-

    rente da lngua indgena, comunicando-se cotidi-

    anamente por meio desta, alm da lngua portu-

    guesa. Os Kadiwu pertencem famlia lingsti-ca Guaikuru e so provenientes do Chaco Para-

    guaio. Segundo o historiador Giovani Jos da Sil-

    va (2004, p. 40), o grupo Guaikuru eram os que

    mais extensamente se distribuam no Gran Chaco,

    compreendendo os Abipon, Mocovi, Toba, Pila-

    g, Payagu e os Mbay, que ocupavam a rea mais

    setentrional.

    Pertencente ao subgrupo Mbay-Guaikuru, os

    Kadiwu se autodenominam Ejiwajegi l-se ed-

    jiadjegui (Dicionrio, 2002, p. 42). O etnni-

    mo Kadiwu refere-se aos Cadigegodi, os habi-

    tantes de lugares onde cresce a planta cadi (Sus-

    nik, 1978, p. 11, traduo do autor do original

    em espanhol). Entretanto, diversas denominaes

    aparecem em livros e documentos referindo-se aomesmo grupo, dentre elas a Caduvei, Caduvo,

    cadiuveos, Cadiuu, Cadios, Cadiuos, Cadivens,

    Kadiueu, Kadiuo e Cadineos (Jos da Silva, 2004,

    p. 45).

    Neste artigo, em todas as nomenclaturas referen-

    tes s sociedades indgenas foram seguidas, exceto

    nas citaes, as normas da Associao Brasileira deAntropologia (ABA; Cf. Schaden, 1976, p. XI-XII).

    2. TERRITRIOS(DE)MARCADOSPELOSANCESTRAISDOS

    KADIWU ________________________________

    Dentre os lugares (de)marcados pela territori-

    alidade Kadiwu, pode ser citado o topnimo

    Aquidauana, que atualmente um dos maiores

    municpios de Mato Grosso do Sul. Este um exem-

    plo peculiar, pois se trata de um legtimo batismo

    de lugar realizado pelos indgenas, embora tenha

    sofrido alteraes na fontica e, principalmente,

    em seu significado (Souza, 2005c).

    Os Mbay-Guaikuru possuem uma caractersti-

    ca distinta representada pela estratificao social.H a presena dos nobres (Kadiwu puros) e dos

    cativos (em sua maioria constituam-se de prisio-

    neiros de guerra provenientes dos Mbay); den-

    tre esses ltimos havia [...] representantes das se-

    guintes tribos: Guach, Guat, Guarani, Kaingang,

    Bororo, Kayap, Chiquito, Chamacoco e uns pou-

    cos mestios paraguaios (Mtraux, 1996, p. 161,

    traduo do autor, original em espanhol). Antro-

    plogos como Darcy Ribeiro (1980, p. 59) pro-

    curaram estabelecer relaes entre as conquistas

    territoriais e a estratificao social:

    [ ...] o territrio que, no auge de sua expanso,

    cobriam nas sortidas guerreiras, se estendia de

    Assuno, no Paraguai, a Cuiab, em Mato

    Grosso, e desde as aldeias os Chiriguano a oes-

    te, no interior do chaco, atas barrancas do

    Paran. Cativos trazidos de tribos de toda esta

    rea, os serviam em suas aldeias [ ...] . Suas

    tendncias ao domnio de outros povos e a estra-

    tificao de sua sociedade em camadas de se-

    nhores e servos anterior aos primeiros contatoscom elementos europeus.

    O poder guerreiro dos Mbay-Guaikuru foi for-

    mado a partir da educao de jovens que partici-

    pavam de rituais de iniciao guerreira a partir dos

    14 anos e, ainda, com a utilizao de cavalos eu-

    ropeus, os quais, conforme aponta Freundt (1946),

    colaboraram para que os Mbay-Guaikuru pudes-

    sem ampliar consideravelmente seu raio de ao.

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    Rivasseau, em livro publicado no ano de 1941,

    realiza uma confuso com topnimos: ao apresentar

    os limites das terras dos ndios Guaikuru, afirma que

    entre este ultimo rio [Nabileque] , na parte sule inferior do seu curso, desde a foz de um pequeno

    afluente margem esquerda, o rio Niutaque e

    o rio Aquidauana, acima mencionado, ser-

    vindo de limite ao sul, que se acham os terrenos

    reservados tribo dos Guaycurs. (Rivasseau,

    1941, p. 55)

    Rivasseau se confunde, e confunde, por sua vez,

    os leitores, ao apontar o rio Aquidauana como um

    dos limites do terreno reservado aos ndios Kadiwu,

    que ele denomina Guaycurs. O rio a que o autor

    se refere o rio Aquidab e no o Aquidauana.

    Geograficamente, o rio Aquidauana est mais ao norte.

    Outra confuso acerca dos topnimos que est re-

    produzida nas bibliografias consultadas refere-se aonome do rio Miranda e do prprio Aquidauana. Ao

    rio Miranda, os autores Hildebrando Campestrini e

    Acyr Vaz Guimares (1995, p. 15) assinalam que [...]

    em 1580, Melgarejo, enviado por Joo de Guara,

    teria fundado, s margens do rio Mbotete (atual

    Miranda), a povoao de Santiago de Xerez, aban-

    donada anos depois. Gilson Rodolfo Martins, emseus estudos sobre Santiago de Xerez, tambm pro-

    curou uma melhor definio do topnimo:

    [ ...] atendidas as reivindicaes dos colonos,

    coube ao CapitanAndrDiaz fazer o levan-

    tamento e reconhecimento da rea para onde a

    cidade [Santiago de Xerez] seria transladada.

    O espao selecionado localizava-se na regio

    banhada pelo rio Mbotetey (topnimo, hoje,

    no mais usado), tambm denominado na topo-

    nmia colonial como Bitetey, ou ainda rio dos

    Apstolos e mais tarde Mondego, na rea com-

    preendida, atualmente, pela Bacia Hidrogrfi-

    ca dos rios Miranda e Aquidauana, na parteno-inundvel do Pantanal sul-mato-grossen-

    se. (Martins, 2002, p. 246)

    Na Enciclopdia dos Municpios Brasileiros, a

    histria da criao do municpio de Aquidauana

    repete as informaes dadas por Martins:

    Nas proximidades das runas de Santiago de

    Xerez, encontradas em 1776 pelo explorador

    Joo Leme do Prado, antiga cidade fundada em

    1579 pelo espanhol Ruy Diaz de Malgarejo,

    margem esquerda do rio Mbotetein, ergue-se

    Aquidauana, crca de cento e oitenta quilme-

    tros da confluncia desse rio com o Miranda

    [ ...] . ( Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-

    tstica, 1958, p. 60)

    No item Acidentes geogrficos, da mesma

    obra, encontram-se divergncias quanto ao nome

    antigo do rio Aquidauana:

    divide a cidade em duas partes [ ...] nasce naserra de Amambae conflui para o Miranda, que

    desgua no Paraguai aos 19 26 de latitude

    Sul. Antigamente era denominado Mbotete, vo-

    cbulo de origem guarani, e ainda Embotete,

    Araniani ou dos Guaxes [...] . (Instituto Brasi-

    leiro de Geografia e Estatstica, 1958, p. 63)

    A possibilidade de o rio Aquidauana ter sido

    chamado de Mbotrtrin, Mbotetu, Embotetu,

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    Bitetey abre um campo de estudo que no se pre-

    tende aqui. No entanto, o topnimo Aquidaua-

    na de onde surgiu? Essa uma questo que pode-

    r ser analisada no quadro de topnimos Kadiwu

    disposto no final do artigo. Ainda assim, segundoo Plano de Conservao da Bacia do Alto Panta-

    nal PCBAP (PLANO, 1997, p. 898), descobriu-

    se que os Kadiwu ocupavam, no sculo XVI e

    primeira metade do sculo XIX, uma extensa re-

    gio (inclusive com a funo de servir como pas-

    sagens para suas guerras) que, na atualidade, trans-

    formou-se em importantes municpios sul-mato-grossenses, como se percebe no mapa apresenta-

    do a seguir.

    Fonte:PLANO de Conservao da Bacia do Alto Paraguai PCBAP/ Projeto Pantanal,

    Programa Nacional do Meio Ambiente. Braslia: PNMA, 1997, p. 898. Base cartogrfica1991. Autor: Jos Luiz de Souza/ UFMG/ CAPES, 2005.

    Os Mbay-Guaikuru eram conhecidos pelo

    epteto ndios cavaleiros por todos aqueles

    que atravessaram seu territrio, seja para ex-

    plorao, seja para passagem para outras regi-

    es, a exemplo das mones em plena expan-

    so geogrfica para o oeste do Brasil, atravs

    do rio Paraguai e seus afluentes. Nesta fase,

    em particular, observam-se as expresses-ad-

    jetivas utilizadas pelas mones, de acordo

    com os estudos do historiador Srgio Buar-

    que de Holanda, referindo-se aos ndios

    Mbay-Guaikuru:

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    [ ...] outro embarao nada desprezvel era a pre-

    sena, nas campanhas, do terrvel gentio Ca-

    valeiro ou Guaicuru, que se opunha a qualquer

    intruso nos seus domnios [ ...] . (Holanda,

    1990, p. 86)[ ...] Domados, enfim, os caiaps e os ferozes

    ndios cavaleiros [ ...] . (Holanda, 1990, p. 94)

    Com a crescente colonizao de Mato Gros-

    so, incluindo-se o atual Mato Grosso do Sul, os

    Kadiwu tiveram que se subjugar ao regime de al-

    deamento. Em 1899, o governo de Mato Grosso

    ordenou a delimitao de uma rea para os Ka-

    diwu e, em 1931, foi ratificada a medio, dando

    em usufruto aos indgenas as terras que vo da ser-

    ra da Bodoquena ao rio Paraguai e do rio Niutaca

    ao rio Aquidab. Iniciava-se, assim, o processo de

    sedentarizao dos Kadiwu. A rea delimitada

    desta etnia passou a ser alvo de inmeras tentati-

    vas de invaso e ocupao, mesmo aps a Homo-logao daReserva Indgena Kadiwu, em 1984.

    Segundo Giovani Jos da Silva, a Reserva Indge-

    na Kadiwu apenas parte do imenso territrio ocu-

    pado pelos ancestrais Mbay-Guaikuru, sobre as

    quais, ao longo do sculo XX, os Kadiwu procu-

    raram constituir social e culturalmente um territ-

    rio quer no plano fsico, quer no simblico (Josda Silva, 2004, p. 24).

    3. TOPONMIAS:UMAHERANACULTURAL ________

    Sobre a herana cultural, Claval (2001, p. 201)

    afirma: No suficiente se reconhecer e se orien-

    tar. O explorador quer conservar a memria as ter-

    ras que descobriu [...]. Para isso, inicia-se o pro-

    cesso de batismo das terras e a criao de vocabu-

    lrio prprio para diferenciar um lugar do outro.

    Mesmo nas residncias setoponimizamos cmodos:

    a sala, a cozinha, o quarto. A nomeao do lugar

    auxilia a construo de uma memria sobre os lu-

    gares. O batismo de lugares impregnado pela

    cultura de um povo, sociedade, por meio de even-tos ocorridos em tempos idos. Dificilmente acos-

    tuma-se com novos nomes para velhos lugares, tal

    como os no-ndios que, com muita dificuldade,

    adaptam-se s trocas de nomes de logradouros,

    bairros, Estados etc.

    Para os Kadiwu, a situao no diferente.

    Apenas os eventos ocorridos nos lugares indge-

    nas que trazem a lembrana da ocupao pret-

    rita dos antepassados. Segundo Eddington (apud

    Santos, 2004, p. 144), o evento um instante do

    tempo e um ponto do espao. Milton Santos com-

    pleta a idia de Eddington afirmando que o prin-

    cpio da diferenciao deriva da combinao de

    uma ordem temporal e de uma ordem espacial

    (Santos, 2004, p. 144). As referncias aos lugaresesto na memria coletiva, no acervo cultural dos

    indgenas, pois basta um nome para despertar a

    lembrana dos eventos ocorridos nos lugares in-

    dgenas. Em paralelo, situa o lugar no espao.

    O termo toponmiasurge da necessidade de se

    realizar um estudo lingstico ou histrico da ori-

    gem dos nomes prprios de pontos espaciais (to-pnimos) e fruto do conhecimento cientfico.

    Dessa forma, os Kadiwu, alm de desconhece-

    rem o termo, no entendem a importncia dos

    diversos batismos de lugares que seus ancestrais

    Mbay-Guaikuru realizaram. No apenas o ter-

    mo cientfico que desconhecem, pois os topni-

    mos Xatelodo, Aquidauana, Xapena, Betione, den-

    tre outros so pontos espaciais que no mais per-

    tencem ao cotidiano da sociedade indgena, a no

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    ser na memria coletiva, pois esto fora da rea de-

    marcada. Os lugares transformam-se em no-luga-

    res, compostos de outra simbologia que no en-

    contram ressonncia ou significado para os Kadiwu

    do sculo XXI, parafraseando-se Marc Aug (1994).

    3.1 TERRITRIOREMEMORADOSNAFORMADETOPNIMOS

    KADIWU

    Os topnimos Kadiwu se assemelhariam ao

    que a cincia denominaria de mito. O etnlogo

    Claude Lvi-Strauss (1981) entende o mito como

    uma interpretao ou revelao do pensamento de

    uma sociedade, ou seja, a concepo da existncia

    e das relaes que os homens devem manter entre

    si e com o mundo que os cerca.

    Os eventos que marcaram o lugar indgena

    Kadiwu so ricos em mitos; sobretudo, para o

    mundo contemporneo, que assume todas as con-

    tradies da modernidade, os mitos primitivos

    no so mais do que fantasias transformadas emlendas, como algo que possuiria um valor inferior

    se comparado a outros, relegando, dessa forma, a

    segundo plano, o caminhar histrico de uma soci-

    edade. Os tempos de antigamentetornam-se importan-

    tes medida que, por meio dos feitos, das viagens

    e das incurses pelo territrio indgena, memri-

    as vo sendo formadas. A partir delas, surgem es-teretipos presentes no mito coletivo de uma dada

    sociedade embora isso no ocorra antes que a

    lembrana dos tempos de antigamentesofra as muta-

    es passveis de influncias do presente (Souza,

    2005a, p.12).

    A seguir, focalizam-se os depoimentos a res-

    peito dos nomes de lugares utilizados cotidiana-

    mente, encaminhados de forma espontnea por trs

    Kadiwu: Etelvino de Almeida, Creuza Verglio e

    Martina de Almeida, sujeitos Kadiwu e falantes

    do idioma, j sistematizados juntamente com al-

    gumas informaes sobre cada um dos topnimos.

    Pode-se classific-los em:

    topnimos criados pelos Kadiwu e que se-ro utilizados pela sociedade no-indgena;

    topnimos utilizados pela sociedade no-

    indgena e que so utilizados pela socieda-

    de Kadiwu aps sua traduo para a lngua

    Kadiwu;

    topnimos criados pelos Kadiwu a partir

    da traduo para a lngua Kadiwu e que ape-

    nas so reconhecidos por essa sociedade.

    AQUIDAUANA a expresso Aquidauana

    refere-se tanto ao rio quanto ao municpio de

    Aquidauana, no Estado de Mato Grosso do Sul.

    Segundo o escritor Cludio Robba (1992, p. 40),

    para alguns autores, o nome Aquidauana, segun-

    do toponmia Tupy Guarani e dos ndios Guai-

    curus, quer dizer: ac grande; da lugar; oana araras; portanto, lugar das araras grandes.

    No entanto, de acordo com a lngua Kadiwu,

    o que se percebe que os Kadiwu emprestaram

    sua lngua para originar o nome da cidade, na ver-

    dade, do rio. Entretanto, no se refere s araras

    grandes, e sim a rio estreito ou pequeno. Na

    lngua Kadiwu, ao comparar as palavras utilizadaspela sociedade indgena com as do autor no se

    encontra nenhuma correspondncia, como se pode

    perceber noDicionrio da Lngua Kadiwu, publicado

    pela Sociedade Internacional de Lingstica SIL

    (Dicionrio, 2002, p. 13 e 178):

    Arara azul........................................ Yogeegi

    Arara vermelha.................................yogeegiwaga

    Aquidauana......................................Akidawaani

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    Os Kadiwu entrevistados, porm, afirmaram

    que no prprio dicionrio constam erros quanto

    forma de falar e escrever a palavra e que o correto

    AKIDAWAANIGI(l-se akidaunigui). Na lngua

    Kadiwu, Akidirefere-se a rioeWaanigi significariapequenoouestreito. Os Kadiwu utilizam-na, cotidia-

    namente, para designar a cidade de Aquidauana.

    BETIONE o nome dado a um rio que corre

    no municpio de Bodoquena, mas, igualmente,

    o nome de uma pousada turstica e restaurante si-

    tuados s margens desse mesmo rio. , tambm,

    uma palavra da Lngua Kadiwu e significa taman-

    du. No entanto, os depoentes afirmaram que a

    grafia do topnimo est em desacordo com a da

    lngua: BITIONI. Na sociedade Kadiwu, a lngua

    uma questo de gnero, pois os homens e as

    mulheres possuem o seu modo prprio de falar.

    Dessa forma, a verso masculina para a palavra

    bitionie a verso feminina, bioni.

    NIUTACA Essa palavra denomina o rio quetem seu curso no norte do municpio de Porto

    Murtinho e que limita a Reserva Indgena Kadiwuao

    norte. possvel encontrar, em vrias bibliografi-

    as e no registro da terra indgena em cartrio a

    expressoNaitaca. Porm, pelos Kadiwu, deno-

    minado de NIWITAKADI, que significa lugar da

    mentira, ou rio mentiroso. Isso claramente ex-plicado pela caracterstica temporria do rio que,

    na poca da estiagem, seca, ou seja, o rio desapa-

    rece, passando por rio mentiroso ou lugar da

    mentira.

    LALIMA significa, na lngua Kadiwu, sumi-

    douro, mas a grafia utilizada e conhecida pelos

    no-ndios est em desacordo com a dos Kadiwu.

    Essa palavra deriva da palavra Kadiwu LALIMA-

    GADI. Faz referncia ao nome de fazenda no mu-

    nicpio de Bodoquena e de uma aldeia dos ndios

    Terena, situada em Miranda.

    NABILEQUE rio que limita a Reserva Indgena

    Kadiwuao Oeste e, tambm, o limite entre os

    municpios de Porto Murtinho e Corumb. umcaso em que a grafia do topnimo foi modificada

    por confuses na fala. Tem origem Kadiwu e

    grafada como NABILECAGADI, significa barro es-

    corregadio. A histria do significado desse nome

    remete poca dos tempos antigos quando os

    Kadiwu iam vender seus produtos em Porto Co-

    imbra, s margens do rio Paraguai. As mulheres

    que acompanhavam os homens ficavam beira

    desse rio, brincando nuas no barro escorregadio.

    WETEGA atualmente, no se refere a uma

    localidade, mas a um grande hotel situado na ci-

    dade de Bonito MS. Os arquitetos conseguiram

    se apropriar do significado da palavra em sua ori-

    gem e construram um imponente prdio, decora-

    do com toras de aroeira. Na lngua Kadiwu, agrafia correta WETIGAe significa pedraoumonta-

    nha. De certa forma, a construo realmente ma-

    jestosa.

    XAPENA tal como a palavra anterior, Xape-

    na no uma localidade, mas nomeia uma fazenda

    no municpio de Bodoquena, prxima Reserva In-

    dgena Kadiwu. Os Kadiwu grafamEXAPENAe seusignificado presilha para cabelo.

    XATELODO tambm denomina uma fazen-

    da muito conhecida na regio da serra da Bodo-

    quena. A rea onde est situada pertence ao anti-

    go territrio da sociedade Kadiwu. No entanto,

    sua grafia est em desacordo: EXATELODO, que

    significa babau: espcie vegetal cujas folhas so

    utilizadas pelos Kadiwu para fazerem o telhado

    de suas casas.

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    LAUDEJ o tempo modificou a forma fala-

    da e, posteriormente, a escrita dessa palavra de

    origem Kadiwu, que nomeia uma outra fazenda

    prxima ao Kadiwu. A forma, de acordo com a

    lngua Kadiwu, LAWODIJADI. Seu significadorefere-se a um lugar onde tem muito sangue, pos-

    sivelmente um lugar com muitas histrias.

    NAMOCOLI nomeia a fazenda Namocoli.

    uma palavra de origem Kadiwu que deriva de

    NAMOKOLIGI e tem como significado o nome de

    uma espcie de palmeira conhecida pelos Kadiwu.

    O plural para essa palavra NAMOKOLIGIJADI.

    NIOAQUE nome de municpio de Mato

    Grosso do Sul. Embora a pronncia seja semelhante

    e o territrio onde se encontra Nioaque ter sido

    passagem para os Mbay-Guaicuru, possvel que

    o topnimo NIOAQUE seja mesmo de origem

    Kadiwu. Para a palavra NEWAGI(l-se Neuagui),

    encontra-se uma histria relativa a esse lugar: [...]

    nas andanas do povo Kadiwu, quando eram n-mades na regio de Nioaque, uma jovem fraturou o

    ombro e por causa disso se chama NEWAGI, om-

    bro (Depoimento de Etelvino de Almeida, 2005).

    YOTEDI nome de um restaurante na cidade

    de Campo Grande, capital do Estado. De acordo

    com ndios Kadiwu, um deles passou o nome para

    o dono do restaurante. A palavra possui a mesmagrafia e significaestrela(L-seitdi). Nesse caso, houve

    um emprstimo cultural, mesmo que tenha se rever-

    tido, posteriormente, em vantagem econmica.

    Os prximos topnimos Kadiwu, que sero

    apresentados em seguida, possuem seus significa-

    dos relacionados lngua Kadiwu e no tm cor-

    respondncia nenhuma com os topnimos utili-

    zados pela sociedade dos no-ndios, mas so uti-

    lizados comumente pela sociedade indgena para

    localizao espacial. So, normalmente, tradues

    do nome em lngua portuguesa para a lngua Ka-

    diwu.

    BELANXA conhecido ponto de venda de

    produtos pelos Kadiwu. , tambm, o local ondeocorreu, em 1932, um conflito entre Kadiwu e

    coronis que arrebanharam muitos jovens Kadiwu

    da poca para defenderem as foras do governo

    [...] (Siqueira Jr, 1993, p. 216). Trata-se de Porto

    Esperana, no municpio de Corumb.

    GAPEIJADI o nome dado pelos Kadiwu

    Fazenda Cafezal; refere-se traduo, para a ln-

    gua Kadiwu, do nome atual, pois caf na lngua

    Kadiwu se grafa como gape.

    GAXIANA a forma como todos os Kadiwu

    se referem ao Paraguai (pas), lugar muito impor-

    tante na histria cultural desta sociedade devido

    participao dos Kadiwu na Guerra do Paraguai.

    GAXIANA NAKIDI o nome dado pela

    sociedade Kadiwu ao rio Paraguai. Nesse caso,a traduo para a lngua portuguesa seria rio des-

    se lugar.

    GOLUMBA assim conhecido o nome do

    municpio sul-mato-grossense Corumb entre os

    Kadiwu. Refere-se a uma variao do nome para

    a lngua Kadiwu.

    LIBINIENA significa bonito; portanto, como a sociedade Kadiwu se refere ao munic-

    pio de Bonito, em MS. Novamente, o fato de a

    lngua falada entre os homens Kadiwu e as mu-

    lheres Kadiwu possurem especificidades faz

    com que existam duas verses para a cidade de

    Bonito. Na forma masculina, a palavra bonito

    se grafa libinienigie, na forma feminina, libiniena.

    Dessa forma, refere-se traduo para a lngua

    Kadiwu do nome atual.

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    NABUDOCENA como os Kadiwu se re-

    ferem cidade mais prxima denominada Bodo-

    quena; trata-se de mais uma variao do nome atu-

    al para a lngua Kadiwu.

    NEMAGATAWANIGI como os Kadiwudesignam a cidade de Porto Murtinho. Na socie-

    dade Kadiwu, existe uma histria inerente a esse

    lugar que, por sua vez, relaciona-se Guerra do

    Paraguai, quando houve participao dos ndios

    Kadiwu; diz-se que, nessa guerra, houve poucas

    mortes, pois apenas dois Kadiwu morreram em

    combate, segundo a histria oral. Essa a tradu-

    o da palavra: poucas mortes.

    NIALIGI ELIODI a traduo do nome utili-

    zado pela sociedade no-indgena para o Estado de

    Mato Grosso do Sul. Nesse caso, foi realizada uma

    traduo do nome para a lngua Kadiwu. Nialigi

    significa mata grande e infinita e eliodi, campo, ou

    seja Mato Grosso, antes da diviso oficial em 1977.

    NIGOTAGA importante lugar na histriados Kadiwu. Foi nesse lugar do municpio de

    Miranda-MS onde constantes trocas eram realiza-

    das entre os Kadiwu e os no-ndios, na Estao

    Ferroviria Guaicurus, atualmente desativada. Os

    Kadiwu denominavam esse lugar de nigotagaque

    significa cidade.

    NIPODIGIELIODI tal como o nome do Es-tado de Mato Grosso do Sul, uma traduo do

    nome existente e utilizado pela sociedade no-

    ndia para a capital desse Estado. Tambm houve

    uma traduo do nome para a lngua Kadiwu: ni-

    podigi, cujo significado enorme, grande, bastan-

    te, muito ou extenso e eliodi, campo, ou seja cam-

    po grande.

    Nem todas as toponmias mostram a histria

    do lugar presente. Nem mesmo o seu estudo per-

    mite revelar todos os aspectos do passado, pois

    estes se configuram por intermdio da conjuno

    de fatores polticos, econmicos e, de igual modo,

    culturais. Esses fatores transformam os lugares cri-

    ando armadilhas para os pesquisadores que, a esserespeito, devem manter-se atentos ao seu objeto

    de estudo. Os topnimos criados pelos Kadiwu

    so explicados pelos prprios ndios. Pertencente

    ao ethosKadiwu, os significados de cada lugar

    possuem uma complexa elaborao de smbolos,

    que so essenciais sociedade Kadiwu. A rique-

    za da lngua Kadiwu permite que com uma nica

    palavra seja possvel resumir uma histria, um even-

    to, uma lembrana ou um mito, seja dos tempos

    de antigamente ou recm-criado por um compo-

    nente da sociedade.

    LTIMASCONSIDERAES_____________________

    Os estudos desenvolvidos acerca da relao da

    cultura com o espao encontram muitas possibili-dades de anlise emprica em todas as matrizes da

    Geografia Cultural. Tanto na matriz francesa, li-

    derada por Paul Claval (2001a; 2001b), passando

    pelos estudos de Carls Ortwin Sauer (2000) e seus

    discpulos Philip L. Wagner e Marvin W. Mikesell

    (2000), da Escola de Bekerley, como nos estudos

    da percepo e topofilia de Yi-Fu Tuan (1974).Percebe-se, pela leitura que se realiza, que os

    topnimos trazem em si a marca da paisagem vista

    pelos antigos e gravadas por meio da memria

    coletiva. Muitos sul-mato-grossenses desconhecem

    a participao dos ndios Kadiwu na Guerra do

    Paraguai ou acreditam que o municpio em que

    vivem possui um nome indgena que, por sua vez,

    possa carregar a marca da histria da cultura do

    povo que vive bem prximo deles.

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    Darcy Ribeiro (1980), que esteve entre os

    Kadiwu em 1947, aponta que se foi possvel a

    afirmao da sociedade Kadiwu no tempo e no

    espao, a mesma se viabilizou pela existncia de

    uma mitologia viva e presente, principalmentequando sua coeso e solidariedade estavam amea-

    adas pela presena de uma maioria de cativos to-

    mados em diferentes tribos. No perodo de sua

    mxima expanso, um ncleo de valores altamente

    consistente contribuiu para a preservao da sua

    unidade poltica. Atravs de suas representaes em

    formas de episdios, a mitologia assegurou ao gru-

    po a conscincia de uma origem, situao e desti-

    no comuns, acentuando a noo de sua especifici-

    dade como povo diferenciado pelos costumes.

    No passado os Kadiwu asseguraram o auto-re-

    conhecimento e o reconhecimento da sociedade que

    os cerca, todavia, esse processo no foi suficiente

    para garantir a visibilidade necessria a partir dos to-

    pnimos criados. Esta invisibilidade est presente noslivros didticos, nas lacunas de pesquisas cientficas

    e nas formas de tratamento da alteridade. Os lugares

    Kadiwu de antigamente compem, na atualidade,

    reas de atividade turstica no Estado de Mato Gros-

    so do Sul, como os municpios de Bonito, Aquidau-

    ana, Miranda e Nioaque, por exemplo, mas, torna-

    ram-se invisveis aos olhos do outro, perdendo o sen-tido em tempos de modernidade.

    Essa perda remete a tantas outras perdas de

    percurso da modernidade, como as assinaladas por

    Lvi-Strauss (1981, p.17) e enfatizadas por Chau

    (apudGrupioni, 1994, p.192). Ao contrrio do que

    foi prometido pela idia de progresso, depara-se

    com a separao de tudo. Por outro lado, encon-

    tra-se a cultura indgena que ensina que o verda-

    deiro progresso trata-se da integrao entre o sa-

    grado e o profano, o humano e a natureza e as

    relaes de liberdade, justia, comunidade, igual-

    dade entre os prprios seres humanos.

    Outras histrias buscam ocupar hoje os lugares

    antes pertencentes aos Mbay-Guaikuru. Contu-do, ao mesmo tempo em que apagam da mem-

    ria dos novos moradores os feitos hericos e even-

    tos mitolgicos da cultura Kadiwu, acabam por for-

    talecer ainda mais esse vnculo com a regio. Os

    Kadiwu no necessitam de provas de que seus an-

    cestrais ali estiveram, pois basta o nome de batismo

    recebido pelo lugar para saberem todas as informa-

    es relativas a ele, tais como, localizao, aconteci-

    mento, poca mesmo que na temporalidade pr-

    pria dos indgenas: tempos de antigamente.

    Mesmo os lugares Kadiwu sendo capturados pela

    imposio da homogeneidade dos lugares (Ratts,

    2003, p. 36), perdida sua essncia ao serem absor-

    vidos pelos no-ndios e caracterizado como invis-

    veis, os Kadiwu continuam a existir e a se reprodu-zirem buscando sua sobrevivncia fsica e simblica

    no cotidiano daReserva Indgena Kadiwu. Como afirma

    Carneiro da Cunha (1986), a irredutibilidade da et-

    nicidade presente nos Kadiwu continua sendo o

    esteio que promove a proclamao da diferena que

    identifica os grupos e caracteriza os lugares.

    Para finalizar, um lugar re-institucionalizado cons-tantemente a cada monumento e estrada construdos.

    Independentemente de quais grupos ocuparo o novo

    lugar, seja ele de passado indgena ou no, sempre se

    buscar explorar e encerrar o espao em sistemas de

    representaes que permitem pens-lo. Como Claval

    afirma, batizando os lugares e os meios, os grupos

    humanos os transformam em objeto de discurso. Im-

    pondo-lhes suas marcas e instituindo-os, fazem deles

    uma categoria social (Claval, 2001, p. 218).

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    Embora a (in)visibilidade dos lugares indgenas

    componha um processo de esquecimento de uma

    histria viva e contnua, por ser dinmica, a intrnseca

    relao entre a ao cultural e o territrio continuar

    servindo de palco e cenrio para os diversos estudosdentre os quais escontra-se a Geografia Cultural.

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    ESPAO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 23, P. 53-66, JAN./JUN. DE 200866

    ABSTRACT

    BY MEANS OF STUDIES OF THE CULTURAL GEOGRAPHY IS POSSIBLE TODISTINGUISH AREAS THAT PREVIOUSLY BELONGED

    TOTHE INDIGENOUS PEOPLE. IN THIS ARTICLE, FROM TOPONYMS PRESENTS IN ORAL KADIWU, WE CAN DEFINE THE

    AREAS COVERED BY THEIR ANCESTRAL MBAY-GUAIKURU FOR MORE THAN THREE CENTURIES IN THE NOMADICPHASE

    OF THE GROUP. AT THE PRESENT TIME, THE OLD PLACES KADIWU COMPOSE AREAS OF INTENSE TOURIST ACTIVITY IN

    THE STATE OF MATOGROSSODOSUL AS THE MUNICIPALITIES OF BONITO, AQUIDAUANA AND MIRANDA, FOR EXAMPLE.

    HOWEVER, THEY BECAME INVISIBLE TO THE EYES OF THE OTHER ONE, LOSING THE SENSE IN MODERNITY TIMES.

    REGARDLESS OF IMPOSED INVISIBILITY, THE INDIGENOUS PLACES REMAIN IMPORTANT POINTS IN THE SPACE OF THE

    CULTURAL PEOPLE HISTORY. BY USINGTHE WORK OF PAUL CLAVAL, IN THIS ARTICLE WE DISCUSS THE CONTRIBUTION

    OF CULTURAL GEOGRAPHY IN STUDIES OF INDIGENOUS PEOPLES. WE ALSODISCUSS HOWHAPPENED THE PLACES

    BAPTISM BETWEEN KADIWU, FORMINGTHUS THE VARIOUS PLACES KNOWN BY AN INDIGENOUS CULTURE WHICH ARE

    INVISIBLE TOTHE EYES OF THE SURROUNDINGSOCIETY.

    KEYWORDS: GEOGRAPHY, CULTURE, TOPONYMS, INDIGENOUS PLACES, KADIWU.