Lucas Madeira Da música à arquitetura
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CAMPUS REITOR JOÃO DAVID FERREIRA LIMA
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
Lucas Madeira
O processo de composição de Erich Mendelsohn:
Da música à arquitetura
Florianópolis
2020
Lucas Madeira
O processo de composição de Erich Mendelsohn:
Da música à arquitetura
Trabalho de Conclusão do curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Centro Tecnológico da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Arquiteto e Urbanista Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Almeida Bastos
Florianópolis
2020
AGRADECIMENTOS
À Beatriz de Costa Pereira pelas inúmeras contribuições, leituras, conversas,
revisões e consolos, que praticamente assina junto. Aos meus pais Amarildo e
Márcia que sempre me deram autonomia e incentivaram qualquer projeto, seja em
relação à música, arquitetura ou Alemanha. Ao Colégio Salesiano Itajaí, pelo
incentivo à música e especialmente com o projeto da turnê da Banda Musical na
Europa em 2009.
À Universidade Federal de Santa Catarina, instituição pública e gratuita de
qualidade, a todos os colegas de curso, amigas e amigos, servidores e a todos os
educadores que me entregam este diploma. À maestrina Miriam Moritz, pela
confiança e parceria nos meus quase quatro anos como flautista e arranjador da
Orquestra de Câmara da UFSC. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior, pela bolsa de intercâmbio no programa Ciência sem Fronteiras para
estudar no Karlsruher Institut für Technologie . A todos os meus professores de
alemão, em especial à Annette Keis pela interpretação de importantes referências
deste trabalho. À Rebecca Kanter pela ajuda na tradução do resumo para o inglês.
Pela ajuda relativa a material bibliográfico, Prof. Ulrich Schwarz, Prof. Dr.
Matthias Noell, Arq. Me. Jonathan Schönberger, Prof. Dra. Karine Daufenbach,
Paula de Costa Pereira e aos meus irmãos Tiago e Bruno Madeira. Ao profº Dr.
Marcos Holler pela grande colaboração na pesquisa e nas disciplinas isoladas de
História da Música na Universidade do Estado de Santa Catarina.
Novamente aos meus pais, meu irmão Bruno, Beatriz e Arlete de Costa
Pereira, muito obrigado pelas revisões atentas e por me ensinarem tanto.
Pela confiança do orientador e amigo Prof. Dr. Rodrigo Almeida Bastos, que
esteve disposto desde o final de 2018, quando surgiu a ideia de relacionar música e
arquitetura em um trabalho supervisionado. Por ter compartilhado a sua inquietação
sobre Erich Mendelsohn, que me motivou a aprender e seguir estudando arquitetura.
RESUMO
Este trabalho pretende investigar as relações que o arquiteto Erich Mendelsohn estabelece com a música, com destaque para o seu período produtivo na Alemanha entre 1917 e 1933. A partir da leitura e análise dos croquis e cartas trocadas entre ele e sua esposa Luise, percebe-se a importância de peças musicais de compositores como J. S. Bach e Beethoven. A relação de Mendelsohn com Schönberg também desperta especial curiosidade pelas numerosas semelhanças na vida e obra, sendo a conciliação entre racionalidade e expressão um traço de ambos. A proposição de novos parâmetros não os impede de estarem fundamentados na tradição da música tonal. Estimulado pela música de Bach, Mendelsohn articula as massas construtivas por meio do contraponto entre os planos e pensa no todo ( das Ganze ) da sua criação. O ritmo é uma das ferramentas principais que o arquiteto usa para proporcionar conexão entre as partes e o pensamento como um organismo, no qual cada parte importa e se relaciona com o todo. Tal compreensão se efetiva na análise das fachadas das Lojas Schocken, nas quais se observam diferentes frequências de elementos de abertura ou revestimento relacionadas entre si. A característica totalizante, expressa aqui como Gestalt, se mostra como uma das maiores semelhanças entre os fluxos musical – que flui no tempo – e o arquitetônico – que flui no espaço. Por meio dos seus croquis fantásticos, sendo diversos estimulados e até intitulados por peças musicais, Mendelsohn represa o fluxo do tempo e reinterpreta-o com o seu próprio instrumento, o lápis 6B. Nesse processo denominado como Stauung (represamento), realiza-se a apreensão do fluxo musical de forma subjetiva, para em seguida ser materializado no desenho. Ele não é representado de forma literal, mas como uma nova interpretação, um desdobramento possível da sua impressão. Constata-se que a música é proveitosa para compreender muitas de suas decisões arquitetônicas. Mendelsohn encontra na música de Bach uma forma contrapontística que ainda não havia sido materializada, uma música que não é só fonte de inspiração subjetiva, senão uma referência importante na concepção da sua arquitetura. Palavras-chave: Erich Mendelsohn. arquitetura moderna. música. expressionismo. estética.
ABSTRACT
The Composition Process of Erich Mendelsohn:
from Music to Architecture This essay seeks to investigate the connections that the architect Erich Mendelsohn establishes with music, with an emphasis on his work in Germany between 1917 and 1933. Drawing from readings, analysis of sketches, and letters exchanged between him and his wife, Luise, the importance of pieces from composers like J. S. Bach and Beethoven, becomes evident. The relationship between Mendelsohn and Schönberg also sparks curiosity from the multiple similarities in their lives and work, and the conciliation of rationality and expression which is a feature for both. The proposition of new parameters does not prevent them from being grounded in the tradition of tonal music. Inspired by Bach's music, Mendelsohn articulates the built masses through the counterpoint between plans and thinks in regards to the entire creation ( das Ganze ). Rhythm is one of the main tools that the architect uses to provide a connection between pa rts and like an organism, every part matters and is connected to the whole. Such understanding is demonstrated in the analysis of the Schocken storefronts, in which the different frequencies of the elements of opening or cladding and the relationship between them, can be observed. The all-encompassing characteristic, expressed here as Gestalt, demonstrates one of the greatest similarities between musical flow – that flows in time – and architectonic – that flows in space. Through his fantastic sketches, many of them inspired and even titled by musical pieces, Mendelsohn dams the time flow and re-performs it with his own instrument, the 6B pencil. In this process named Stauung , a subjective apprehension of musical flow is made, and subsequently materialized in the drawing. The flow is not represented literally, but as a new performance, a possible unfolding of his impression. It's noted that the music is beneficial in the comprehension of many architectonic decisions of Erich Mendelsohn. He finds in Bach's music a counterpoint form that has not yet materialized, music that is not just a source of subjective inspiration, but an important reference for the conception of his architecture. Keywords: Eric Mendelsohn. modern architecture. music. expressionism. aesthetics.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Observatório Potsdam: croqui (1917) e fotografia (1921) Figura 2 - Torre Einstein, plantas (1920) Figura 3 - Croquis fantásticos: Pavilhão de Jardim (1920) e Cidade imaginária (1917) Figura 4 - Desenhos expressionistas: Casa Nova de Hermann Finsterlin (1919) e Arquitetura Alpina de Bruno Taut (1919) Figura 5 - Perspectiva de uma oficina de aviões e hangar (1914) Figura 6 - Casa Am Rupenhorn, entrada principal (1932) Figura 7 - Loja Schocken de Chemnitz, destaque entorno urbano (2020) Figura 8 - Loja Schocken de Chemnitz, elevação (1928) Figura 9 - Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Berlim (1930) e Croqui musical (1915) Figura 10 - Complexo WOGA, edifício residencial: planta baixa e fachada (1931) Figura 11 - Cinema Universum e Complexo WOGA (1931) Figura 12 - Cinema Universum (1928) Figura 13 - Grosses Schauspielhaus de Hans Poelzig (1919) Figura 14 - Fábrica de Chapéus Steinberg, Herrmann & Co., croqui da fábrica (1921) Figura 15 - Fábrica de Chapéus Steinberg, Herrmann & Co., elevações (1921) Figura 16 - Sede do Berliner Tageblatt, planta (1923) Figura 17 - Fantasias arquitetônicas, croquis de uma arquitetura de dunas (1920) Figura 18 - Fantasia arquitetônica da " Toccata em Ré maior" (1919-1920) Figura 19 - Fábrica da Companhia de Gás de Peter Behrens (1911-1912) e Igreja da cidade velha Königsberg Figura 20 - Casa geminada em Karolingerplatz, fotografia e planta térrea (1922) Figura 21 - Casa Am Rupenhorn: Situação (a), Fotografia de cima (b), entrada dos fundos pelo Stößensee (c) (1932) Figura 22 - Casa Am Rupenhorn: armário para instrumentos (a), sala de música (b) e armário da cozinha (c) (1932) Figura 23 - Casa Am Rupenhorn: Planta baixa porão (a), Planta baixa térreo (b) e Planta baixa superior (c) (1932) Figura 24 - Pavilhão Rudolf Mosse (1928) Figura 25 - Croquis musicais em textos de cantatas de Bach (1920) Figura 26 - Sede do Berliner Tageblatt, fotografia da inauguração (1923) Figura 27 - Sede do Berliner Tageblatt, elevação e corte (1922) Figura 28 - Variações sobre um tema de hall e outros, croqui para um crematório (1914) Figura 29 - Croqui musical "Oskar Beyer, Bachabend" (1926) Figura 30 - Loja Schocken em Nürnberg, croqui e fotografia (1926) Figura 31 - Loja Schocken de Stuttgart, guia para a inauguração (1928) Figura 32 - Loja Schocken de Stuttgart, fotografia da esquina (1928) Figura 33 - Loja Schocken Chemnitz, dia e noite (1930) Figura 34 - Croqui musical Requiem de Mozart (1920) Figura 35 - Croqui para um espaço sagrado, perspectiva interna (1914)
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
DWDS Digitale Wörterbuch der deutschen Sprache
EM Erich Mendelsohn
EMA Erich Mendelsohn Archiv
LM Luise Mendelsohn
SMB Staatliche Museen zu Berlin
WOGA Wohnhaus Grundstücksverwertungs Aktiengesellschaft
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1 INTRODUÇÃO
A relação entre música e arquitetura desperta inquietações em músicos e
arquitetos desde os tempos mais remotos (como Pitágoras, Vitrúvio, Alberti entre
outros), sendo comum o diálogo e a referência mútua. O início dessa pesquisa se
deu por um trabalho supervisionado com leituras amplas, para destacar algumas:
Mammi (1994), Nietzsche (2007), Tschumi (1998) e Wisnik (2017). A partir desses
campos que forma secularmente tratados e seguem inesgotáveis, surgiram
inúmeras questões sobre os limites e relações entre eles, como: no que diferem os
processos compositivos em relação à técnica e criatividade? É a música apenas
energia (que se dá no tempo), enquanto a arquitetura matéria (no espaço)? Em que
medida uma influencia ou contempla a outra?
Sabe-se que há paralelos já realizados entre as áreas, estabelecidos por
exemplo no campo da acústica ou subjetivo como uma inspiração romântica . 1
Interessados na história da arquitetura moderna, reconhecemos o destaque do
Pavilhão Philips (1958) na literatura internacional, amplamente estudado por 2
diversos autores (como KANACH, 2008; STERKEN, 2004; XENAKIS, 1962 e 1976).
No cenário do movimento moderno nacional destacamos a pesquisa de Rabelo
(2007), que faz um panorama das relações matemáticas e geométricas entre as
áreas e relaciona o arquiteto Lúcio Costa com o compositor Heitor Villa-lobos.
Encontramos indícios de relações com a música na obra de Erich
Mendelsohn, essa que, não tão discutida e conhecida pela comunidade acadêmica
(sobretudo no Brasil), nos permitiria buscar outras relações possíveis. A leitura e
análise dos croquis e cartas do arquiteto, que se mostrou um manancial potente de
referências musicais, nos abrem um campo de possibilidades não tão exploradas.
Uma compreensão que se consolida como uma contribuição acadêmica que, ainda
1 Com o termo romântico nos referimos à visão de mundo centrada no indivíduo e sua subjetividade do século XVIII, oposta à objetividade e razão do iluminismo. 2 O projeto foi uma parceria interdisciplinar que relaciona um poema eletrônico do compositor Edgar Varese, a concepção de Iannis Xenakis e a arquitetura de Le Corbusier e foi construído a partir de uma série de relações matemáticas, no qual os planos vertical e horizontal se fundem em parabolóides hiperbólicos.
11
que modesta na forma de um trabalho de conclusão de curso, pode servir para
outros músicos e/ou arquitetos que enfrentam o dilema entre as áreas.
Erich Mendelsohn (1887-1953) figura entre os grandes arquitetos alemães do
início do século XX. Apesar de ser por alguns anos um dos arquitetos mais
bem-sucedidos da República de Weimar, esteve à margem do círculo de arquitetos
alemães mais conhecidos . O século XX é marcado por um afastamento da tradição 3
e busca de novas formas, que no campo da arquitetura se traduz pela negação da
tradição arquitetônica predominantemente eclética do século XIX. Historiadores da
arquitetura moderna, como Zevi (1982), Frampton (2008) e Giedion (2004),
reconhecem uma narrativa de oposição entre racionalismo e expressionismo , 4
situando como racionalistas Mies van der Rohe, Le Corbusier e Walter Gropius, e
como expressionistas Erich Mendelsohn, Hans Poelzig, Peter Behrens. Pelo lado
dos racionalistas, a função fornece a lógica do jogo compositivo e libertando a forma
para ser consequência do sistema racional. Pelo lado dos expressionistas, uma
maneira mais subjetiva e pessoal de compor uma obra de arte, um termo cunhado
pela imprensa que vem das artes visuais do período pós Primeira Guerra na
Alemanha e Áustria. A arquitetura expressionista é geralmente associada às formas
orgânicas, e nela o reconhecimento de valores arquitetônicos universais possibilita
ao artista a manipulação arbitrária da composição, possibilitando inclusive a
reprodução de proporções ou valores pessoais.
O uso do termo composição no título desse trabalho expõe como acreditamos
que Mendelsohn entende a criação da sua arquitetura, amparado especialmente
pela música de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Ele encontra na música de
Bach uma forma e construção compositiva pertinente, que parece lhe fazer mais
sentido do que as referências arquitetônicas da mesma época (século XVIII) ou do
que as musicais ou arquitetônicas que lhe são contemporâneas. Os valores de
composição que Mendelsohn (2000) exemplifica na música de Bach (unidade,
3 Acredita-se que por sua personalidade arrogante e cultura judaica em tempos de ascensão do antissemitismo, o que lhe levou a projetar para muitos clientes também judeus (JAMES, 1997). Outros motivos para o ostracismo teórico do arquiteto compõe um capítulo de Zevi (2002, p. 217). 4 James (1997) encontra no funcionalismo dinâmico uma alternativa para definir a obra de Erich Mendelsohn, abordagem que segundo a autora integra a experimentação estilística, inovação construtiva e influências da cultura ao redor.
12
contraste, relação entre forma e massa, proporções, escala e relação entre planos)
serão utilizados para analisar a sua obra, que não por acaso são exatamente os
pontos abordados por Robertson (1963) em " The principles of architectural
composition ", de 1924.
Segundo Colquhoun (2004), a palavra composição foi rejeitada em diversas
vanguardas arquitetônicas do século XX. Uma das fontes para essa negação é a
influência de Viollet-le-Duc que, amparado pelo conceito hegeliano de Zeitgeist 5
(espírito do tempo), compreende um edifício como um organismo com uma essência
própria. Qualquer recurso de composição que contenha valores e regras estéticas
definidas a priori , seria tomado como uma desconsideração desse organismo
perfeito.
Apesar de Mendelsohn (2000) acreditar nessa ideia de organismo e ter
características diversas que dificilmente se reduzem a um só termo , nos parece 6
valioso contextualizá-lo com o expressionismo, este que busca uma síntese no
interior de diversas tensões. A polaridade ideológico-temática – em oposições como
"espiritualismo e animalidade, intelecto e sentido, individualismo e coletividade,
natureza e mundo industrial" (CHIARINI apud ZEVI, 2002, p. 101) – foi corrente na
Alemanha nessa época. O seu próprio método de projetar, por meio de croquis,
expõe a correlação entre o metafísico e o real, entre a utopia e a materialidade. O
mundo onírico das imagens fantásticas, muitas vezes proveniente de fluxos
musicais, se transforma em materialidade nos seus desenhos.
O expressionismo não é associado a algum tipo de música específico e
costuma ser definido como a música da época da Primeira Guerra ou "mais
genericamente a qualquer música, na qual uma superfície aparentemente
extravagante e caótica transmite a turbulência da psique do compositor" (FANNING, 7
5 Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879) foi um arquiteto restaurador e teórico francês que escreveu importantes tratados como o Dictionnaire raisonné de l'architecture française du XI au XVI siècle (1854-1868) e Entretiens Sur l'architecture (1863-1872), sendo um dos maiores influenciadores da formação os arquitetos do século XX. (FREIGANG e KREMEIER, 2015) 6 Como a adoração à obra de Bach, em especial à Arte da Fuga (exemplo de Mendelsohn para uma construção contrapontística), que assim como o sistema dodecafônico de Schönberg, é o extremo de uma organização racional e cerebral, que se assemelham ao racionalismo arquitetônico de Mies van der Rohe, Walter Gropius e Le Corbusier. 7 " A term applied to prominent artistic trends before, during and after World War I, especially in the visual arts and literature in Austria and Germany. By analogy it may apply to music of that time, or
13
2001). Um compositor associado a essas características é Arnold Schönberg
(1874-1951), especialmente pela sua obra da década de 1910. O compositor criador
do dodecafonismo e Mendelsohn têm diversas semelhanças em sua vida e obra e
isso nos ajuda a comprendê-los, mas procuraremos entender o porquê de
Schönberg não ser tão relevante para Mendelsohn como Bach. Sua esposa, Luise
Mendelsohn (1894-1980), que era violoncelista, lembra dos croquis do marido nos 8
programas dos concertos que iam, assim como nas Bachabende , noites na casa
deles dedicadas ao compositor.
Em entrevista da esposa à Susan King, conta que Mendelsohn: [...] gostava da paz e silêncio e por isso gostava de trabalhar de noite… Ele ficava realmente incomodado pela maioria dos barulhos exceto pela música, que funcionava como uma cortina entre ele e o mundo de fora [...] Na verdade ele não colocava música especialmente para desenhar, mas parece que quando tocava música ele ficava mais inspirado a desenhar 9
(KING apud STEPHAN, 1999d, p.152)
O fato de Luise considerar a música uma "cortina" entre Mendelsohn e o
mundo de fora, nos traz um ponto central a ser investigado: será a música para o
arquiteto apenas uma "cortina"? E ainda: de que forma Mendelsohn se relaciona
com a música e como a reconhecemos na sua obra?
No campo da arquitetura, a música é geralmente vista como uma inspiração
subjetiva romântica e se usam termos emprestados de maneira rasa. Um exemplo é
o ritmo, usado para denotar uma repetição exaustiva e literal de aberturas. Veremos
que a criação de Mendelsohn está muito ligada a princípios de composição musicais
e sua análise pode ajudar a entendê-la. Frank Michael Beyer (2004) explora a 10
more generally to any music, in which an extravagant and apparently chaotic surface conveys turbulence in the composer’s psyche." (FANNING, 2001) 8 A grafia dos nomes Luise e Erich foi usada até 1938, quando o casal exilado na Inglaterra trocou os nomes para, respectivamente, Louise e Eric (STEPHAN, 1999, p. 7-9). Optamos pela grafia original dos nomes (Luise e Eric), mas há referências que utilizam a outra. 9 " He liked peace and quiet and therefore liked to work at night… He really was annoyed by most noises except music, which acted like a curtain between him and the outside world [...] Actually he did not put music on especially to sketch by, but it seemed that when music was playing he became more inspired to sketch ." Entrevista de LM à Susan King, no livro "The drawings of Eric Mendelsohn" (Berkley: University of California 1969, p. 28-30). Infelizmente não se obteve acesso ao livro para consultar a data da entrevista e contextualizar melhor a afirmação. (STEPHAN, 1999, p. 153) 10 Frank Michael Beyer (1928-2008), foi um compositor, professor, intérprete e funcionário da cultura. Foi liderança dos movimentos de vanguarda musical pós-guerra em Berlim. Seu pai foi Oskar Beyer,
14
dimensão arquitetônica de algumas obras de Bach desenhadas ou citadas pelo
arquiteto, e será fundamental para confirmar não somente a influência do compositor
na sua obra, como a nossa hipótese de que a música não é simplesmente uma
inspiração. A Gestalt bachiana consiste em uma importante referência e 11
desenvolve-se na obra do arquiteto por meio dos planos, volumes, revestimentos,
ritmos e luz.
A pesquisa da relação entre música e arquitetura na obra de Mendelsohn,
com diversas relações concretas de referências, nos ajuda a desmistificar a criação
como fruto de uma inspiração e genialidade, ideais difundidos em ambas as áreas. A
oposição entre a racionalidade e subjetividade que atravessa o trabalho, assim como
a própria historiografia da arquitetura moderna, nos indica duas dimensões que
dialogam para a criação.
Conscientes da limitação do trabalho, optamos pela análise de algumas obras
de Mendelsohn na Alemanha entre os anos de 1917 e 1933, também por entender
que o desenvolvimento de sua obra nos diferentes países (Palestina, Inglaterra e
Estados Unidos) e intercalado com períodos de inatividade torna a mesma
demasiada heterogênea, o que nos demandaria uma análise mais abrangente.
Não foi encontrada qualquer pesquisa específica em português sobre Erich
Mendelsohn no Brasil (SCIELO, Periódicos CAPES) , tampouco bibliografia 12
específica do arquiteto nas bibliotecas das universidades públicas de Florianópolis.
Alguns livros disponíveis na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAU-USP) foram fundamentais (ECKARDT, 1960;
JAMES, 1997; MENDELSOHN, 1944; WHITTICK, 1956; ZEVI, 1983), enquanto
outros tiveram que ser encomendados da Alemanha e dos Estados Unidos (BEYER
O., 1967; BEYER F., 2004; MENDELSOHN, 2000; STEPHAN, 1999 e 2004).
historiador, amigo pessoal, primeiro biógrafo (artigo na revista Wendingen por volta de 1920) e entusiasta da obra Erich Mendelsohn. 11 Optamos pelo uso do termo em alemão para manter mais amplo o seu significado. Entende-se Gestalt como a articulação das partes como um organismo, a ideia de que todas as partes estão relacionadas e compõem o todo. 12 Exceto Zevi (2002) e literatura geral sobre arquitetura moderna e expressionismo (como BENEVOLO, 2000; DORFLES, 1986; FRAMPTON, 2008).
15
Fontes primárias importantes foram os croquis e as cartas do arquiteto
trocadas com a esposa, disponíveis respectivamente no banco de dados on-line
( Staatliche Museen zu Berlin - SMB, 2020) e no Arquivo Erich Mendelsohn (EMA -
Erich Mendelsohn Archiv , 2014), ambos da biblioteca de arte dos Museus Estatais
de Berlim (SMB). A tradução, quando não fornecida, foi feita por nós. Procuramos
termos musicais e compositores alemães e austríacos contemporâneos ou
anteriores ao arquiteto em estudo, e com a frequência da ocorrência dos nomes
desses compositores foi possível ter uma noção da importância de cada um . 13
Tendo em vista tantas indicações, estudar a relação que existe entre música
e arquitetura na obra de Mendelsohn parece ser um caminho fecundo para entender
os processos de criação do arquiteto, aparentemente irredutível exclusivamente aos
epítetos de expressionista, orgânico ou funcionalista dinâmico. A sua relação com a
música abre janelas muito interessantes e proveitosas para investigá-lo, como
também as relações possíveis entre arquitetura e música que daí se descortinam.
13 Os compositores mais citados nas cartas foram: J. S. Bach (132 vezes), Ludwig van Beethoven (78), Richard Strauss (70), Johannes Brahms (34), Richard Wagner (31), W. A. Mozart (28) e A. Schönberg (20). Outras buscas com seus resultados por ordem de frequência: Wright (30), Goethe (27), Behrens (24), Haydn (11), Schubert (8), Schumann (7), Mahler (7), Nietzsche (7), Gropius (7), Le Corbusier (5), Hans Scharoun (5), A. Vivaldi (4), I. Stravinsky (1). Não retornaram resultados: Bartók, Berg, Berlioz, Pachelbel, Tchaikovsky, Telemann e A. Webern.
16
2 MODERNIDADE E EXPRESSIONISMO NA OBRA DE MENDELSOHN
Erich Mendelsohn costumava fazer croquis frequentemente. Ele não os
utilizava somente para a leitura dos edifícios e seus espaços, mas sobretudo para
experimentar soluções. Seu traço carrega uma materialidade eloquente, ainda em
que croquis fantásticos. Tal processo fica evidente nos termos da transposição de
um fluxo de tempo da música para a matéria espacial arquitetônica (BEYER, 2004),
abordada na seção 3.1.
Por meio deste hábito que ele mesmo chamava de ocupação secundária, "o
cotidiano se torna algo mais do que o cotidiano" (apud BEYER, 1967, p. 37), e isso
lhe tomava um bom tempo e intuição. Mendelsohn tinha a convicção que o acúmulo
de imagens e reflexões seria transferido para o escritório depois. Esse relato
destacado por Oskar Beyer (1967) foi feito das trincheiras da Primeira Guerra
Mundial enviado junto com uma série de croquis (figura 1 à esquerda) e cartas para
sua esposa Luise . 14
No final da sua vida, em uma carta dirigida a seu amigo Oskar Beyer,
Mendelsohn diz que, se fosse possível, recomeçaria a partir dos seus primeiros
esboços. É exatamente nessa época que ele faz uma série de croquis musicais e
concebe o Observatório de Potsdam (1917-1922), chamado posteriormente de Torre
Einstein. O observatório seria construído para a validação da recente Teoria da
Relatividade de Albert Einstein e serve para Mendelsohn discutir a matéria e a
energia na sua arquitetura (figura 1 à direita) . 15
14 Carta de Erich Mendelsohn (EM) a Luise Mendelsohn (LM), 27/05/1917 de Ilipan (BEYER, 1967, p. 37). 15 Diversos autores se debruçaram sobre a Torre Einstein e a questão da relatividade, com destaque para JAMES (1999a). Segundo a autora, quem mais encontrou paralelos entre os conceitos científicos e a obra do arquiteto foi HELLWAG (1926). O autor faz uma análise física do terreno e entorno da Torre Einstein e paralelos com a Teoria da Relatividade de Einstein.
17
Figura 1 - Observatório Potsdam: croqui (1917) e fotografia (1921)
Fonte: Compilação a partir de SMB (2020) e James (1999a, p. 36)
A obra emblemática na carreira do arquiteto, segundo Argan (1992, p. 246) é
a chave da arquitetura expressionista". Mendelsohn "soube intuir a urgência de
encontrar uma linha de construção que desintegrasse a estática rigidez da
arquitetura tradicional", que também seria capaz de reconquistar o espaço através
da ideia de um sistema monolítico e indivisível (DORFLES, 1986, p. 47). Os
materiais utilizados para a construção acabaram não refletindo o forte e dinâmico
gesto na exploração da organicidade do concreto armado. O que poderia ser uma
grande inovação estrutural acabou consistindo em um sistema tradicional, com
estrutura em concreto armado e vedação de tijolo e estuque . 16
Em carta à esposa de 1917 (EMA, 2014, nº 391) , Mendelsohn conta que o 17
impulso para o observatório veio a partir do Magnificat (BWV 243) de Bach. A
tonalidade dos doze movimentos da obra foi arranjada de forma simétrica, tendo
como eixo de simetria o 7º movimento . A alternância entre as árias e movimentos 18
16 James (1999, p. 26-37), elenca alguns motivos para isso, entre eles a falta de experiência com o novo material e a dificuldade de obter o cimento em tempos de hiperinflação na década de 1920. 17 A associação foi destacada por Beyer (1967, p. 37) e encontrada no contexto original: "Der Sternwartimpuls kam mir auch im Magnificatkonzert. Du [Luise] kannst diese Gruppe 'Magnificat' überschreiben, obwohl ich aller litterarischen Verdächtigung fern bleiben möchte." (EMA, 2014, nº 391) 18 Os movimentos 1º e 2º são na tônica maior, os 11º e 12º também. Os 3º e 4º, começam na relativa menor, como o 10º. Os movimento 5º e 9º são em tons maiores diferentes da tônica, enquanto os 6º e
18
para o coral provocam um forte contraste. Por um lado há a expressividade dos
solistas nos movimentos lentos das árias, com instrumentação reduzida. Por outro
lado há os movimentos rápidos e contrapontísticos, repletos de instrumentos e vozes
sobrepostas.
Na Torre Einstein o volume parece emergir da terra, "a massa da torre
movimenta o espaço" (EMA, 2014, nº 485) . O gesto forte que a faz surgir se 19
contrapõe à delicadeza das suas curvas e remete a "uma evocação à escultura,
talvez à síntese plástico-dinâmica de Boccioni" (ARGAN, 1992, p. 247), além de
esculturas de Bruno Schmitz (JAMES, 1999) . O expressivo eixo de simetria é 20
evidenciado com as plantas sucessivas de áreas circulares (figura 2). O contraste
principal está entre o bloco horizontal que se apóia no chão e a torre que se eleva
até o alto. O encontro formado pela intersecção dos planos será melhor abordado na
seção 3.2.
Figura 2 - Torre Einstein, plantas (1920)
Fonte: James (1999a, p.30)
8º são em tons menores (RATHEY, 2016). A peça foi escrita incluindo textos natalinos, que foram removidos posteriormente por Bach para que pudesse ser tocada em outros momentos do ano. 19 A passagem segue na nota 47. 20 Ver Völkerschlachtdenkmal (1913) e Torre Bismarck (1900), de Bruno Schmitz.
19
2.1 POTÊNCIA DO DESENHO EXPRESSIONISTA
O começo do século XX é marcado por grandes transformações da cultura e
civilização ocidental, comentadas pelo próprio Mendelsohn em 1942 . Na arte, com 21
uma grande diversidade de movimentos, as vanguardas questionam as tradições até
então constituídas. O expressionismo é uma das vanguardas que, apesar de ser um
termo cunhado pela imprensa e consistir em um movimento heterogêneo, tem
manifestação reconhecida na arquitetura. As estruturas fantásticas desenhadas por
Mendelsohn (figura 3) se assemelham muito à obra de alguns deles, como:
Hermann Finsterlin (figura 4 à esquerda), Bruno Taut (figura 4 à direita), Hugo
Häring, Hans Poelzig, Hans Scharoun, e até mesmo Paul Scheerbart com seu
manifesto poético pela arquitetura em vidro . 22
Figura 3 - Croquis fantásticos: Pavilhão de Jardim (1920) e Cidade Imaginária (1917)
Fonte: Compilação a partir de SMB (c2020, nº 246 e 921)
21 As três aulas dadas por Mendelsohn (1944) em Los Angeles em 1942 são sobre as transformações ocorridas na arquitetura, literatura, música e filosofia, entre outras, na virada do século XIX para o XX, especialmente como consequências da Primeira Guerra Mundial. 22 No seu manifesto poético Glasarchitektur de 1914, Paul Scheerbart (1863-1915) defende que a cultura é produto da nossa arquitetura, por isso precisamos mudar nossa arquitetura para trazer a cultura a um nível mais elevado. Somente com a introdução do vidro na arquitetura poderíamos elevá-la. Não deveríamos receber a luz dos astros celestes apenas por algumas janelas, senão pela maior quantidade possível de paredes, todas de vidro (SCHEERBART, 1914, p.11).
20
Figura 4 - Desenhos expressionistas: Casa Nova de Hermann Finsterlin (1919) e Arquitetura Alpina de Bruno Taut (1919)
Fonte: Compilação a partir de Architekturmuseum der TUM (c2020) e Bund Deutscher Architekten Nordrhein Westfalen (2016)
Esses artistas e/ou arquitetos transitavam entre o orgânico e expressionista,
mas nem sempre conseguiam enfrentar de forma propositiva e material este
confronto entre visão e arquitetura . Segundo Zevi (2002, p. 149), a diferença entre 23
arte e arquitetura estaria justamente nessa urgência da realidade que ele vê até nos
esboços mais abstratos de Mendelsohn: "[...] uma intencionalidade plena da
urgência em traduzir imagens em um fato concreto, num 'intervento'".
Stephan (1999d, p. 152-159) apresenta os relatos de alguns assistentes do
escritório de Mendelsohn em Berlim (1920-1933), um dos maiores da Europa
durante a República de Weimar. O sucesso do escritório se baseou não só nas
habilidades do arquiteto de ganhar comissões, projetar, negociar e persuadir, como
também na capacidade de seus assistentes de construir, detalhar e executar. Ele
acompanhava meticulosamente o processo, controlava rigorosamente qualquer
desperdício de material e a autoria e decisão final eram sempre suas. O fato do
lançamento do projeto ser feito por Mendelsohn e o detalhamento realizado pelos
seus assistentes pode reforçar essa urgência da realidade e valor didático que Zevi
(2002) vê nos esboços mendelsohnianos, que já seriam por si só autoexplicativos.
23 Oposições semelhantes são possíveis na análise da obra de Arnold Schönberg, compositor contemporâneo a Mendelsohn que possibilita paralelos interessantes (seção 2.2).
21
Para Morgenthaler (1999, p. 23), a maior potência dos desenhos
expressionistas está na discussão social e política. A multidimensionalidade dos
projetos resultantes do puro ato do desenho se tornam uma forte manifestação
humana que vai além da planta, corte e fachada. O autor ainda acrescenta: "o
objetivo de Mendelsohn era de apontar uma nova direção para arquitetura que
expressaria o seu tempo [...] formular um estilo arquitetônico adequado ao progresso
industrial do século XX". Veremos adiante que a sua relação estreita com a
propaganda e imagem corporativa da indústria evidencia essa intenção.
Na exaltação da tecnologia e indústria pós Primeira Guerra, diversos
arquitetos buscaram estética da máquina com suas obras além do Mendelsohn: Le
Corbusier, Gropius, Mies van der Rohe e construtivistas russos (como Vladimir
Tatlin, Antoine Pevsner e Naum Gabo). Enquanto a modernidade parece eliminar o
resquício estetizante da arte e arquitetura na Bauhaus, especialmente nos seus
anos finais com a direção de Hannes Meyer e com o uso de detalhes formais de
máquina e produção voltada para a indústria, "Mendelsohn estava mais
impressionado pelo poder de evocar significados simbólicos"
(MORGENTHALER, 1999, p. 23, grifo nosso).
Na figura 5 Mendelsohn desenha uma estrutura fantasiosa que parece aludir
ao formato e à velocidade dos aviões. O ponto de fuga próximo do centro da
imagem dá a impressão de continuidade infinita para o edifício que serviria ao
conserto e armazenagem de aviões. A leve inclinação da linha intermediária que vai
até o ponto de fuga contrasta com as aberturas e elementos verticais, repetidos por
toda a fachada. A fachada menor, à direita, remete à estrutura de uma usina
hidrelétrica. O arquiteto não usa só da forma da máquina para reproduzi-la, mas por
meio da diluição da perspectiva expande a ideia da velocidade, espaço e tempo.
22
Figura 5 - Perspectiva de uma oficina de aviões e hangar (1914)
Fonte: SMB (2020, nº 415)
Na casa Am Rupenhorn (figura 6), construída para Mendelsohn e sua família,
aparece recurso semelhante de perspectiva, na qual se proporciona uma percepção
de aumento da distância e de destaque para a entrada da casa com o alinhamento
da linha de fuga dos elementos (MENDELSOHN, 1932, p. 20). No prefácio da obra
citada de Mendelsohn, Erwin Redslob reconhece na casa o espírito de Bach, que
será retomado na seção 3.1. Há também um atravessamento da ideia de
perspectiva da entrada da Casa Am Rupenhorn com a intentio , termo de Santo
Agostinho trazido por Mammi (1994) que denota a intenção e direcionalidade (ver
seção 3.1).
Figura 6 - Casa Am Rupenhorn, entrada principal (1932)
Fonte: Mendelsohn (1932, p. 20)
23
Mendelsohn conhecia uma série de empresários e comerciantes judeus que
lhe rendiam comissões lucrativas. Um desses foi Salmann Schocken (1877-1959)
que comissionou o projeto de três lojas de departamento, em Nürnberg, Stuttgart e
Chemnitz. A Loja Schocken de Chemnitz é a única das três que ainda não foi
destruída, abrigando hoje um Museu Estatal de Arqueologia de Chemnitz
( Staatliches Museum für Archäologie Chemnitz ). Mendelsohn, diante de um terreno
com o formato de um triângulo isósceles, resolveu a planta de forma simétrica. O
terreno se situa na parte central da cidade, na esquina de duas grandes avenidas
( Brückenstraße e Banhofstraße ), importantes eixos de conexão e cruzamento de
linhas férreas e rodoviárias. O limite sinuoso do edifício é dado exatamente pelo raio
de curva da linha de trem de superfície (figura 7).
Figura 7 - Loja Schocken de Chemnitz, destaque entorno urbano (2020)
Fonte: Elaboração a partir de Google Maps (2020)
Nesse edifício observa-se a exaltação de um significado simbólico da
modernidade, com a velocidade do eixo horizontal. Mendelsohn desenha uma
fachada sem grandes variações marcada pela simetria (figura 8), relativamente
simples quando comparada a outras Lojas Schocken. O gesto breve do arquiteto faz
o edifício se inserir na escala do cruzamento como mais um elemento que reforça a
horizontalidade das linhas de circulação rápida, em um contexto alemão de
consolidação da indústria e propaganda. A parte central da fachada (que contém as
longas faixas de abertura) é ligeiramente deslocada para frente em relação ao
24
restante (térreo comercial e torres laterais de circulação vertical), reforçando a
imponência da fachada. Um recurso semelhante de deslocamento dos planos é
empregado no baldaquino da Loja Schocken de Stuttgart, elemento que Mendelsohn
compara ao baixo de uma fuga (ver seção 3.1).
Figura 8 - Loja Schocken de Chemnitz, elevação (1928)
Fonte: Stephan (1999, p. 105)
A fachada tem uma articulação interessante das partes, com um contraste de
toda a parte central com suas aberturas em proporção de um para um, com as torres
de circulação nas extremidades em vidro marcadas por uma frequência de quatro
esquadrias por pavimento. Tais proporções, não por acaso, são exatamente as
mesmas do eixo vertical da Loja Schocken de Stuttgart (veremos na seção 3.2). O
escalonamento dos últimos três pavimentos diminui o impacto do edifício sobre os
pedestres (não se sabe se é devido às restrições da legislação da época).
O destaque de Mendelsohn para a circulação vertical – por uma torre de vidro
iluminada, escada circular suntuosa ou marcação na fachada – é corrente na sua
obra e pode aludir ao movimento. Tal característica é perceptível não só na Loja
Schocken de Chemnitz, como na de Stuttgart (seção 3.2) ou no Sindicato dos
Trabalhadores Metalúrgicos de 1930 (figura 9 à esq.). Na mesma figura (9 à dir.),
Mendelsohn parece faz uma exploração da forma de uma escada circular, muito
utilizada nos seus projetos.
25
Figura 9 - Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Berlim (1930) e Croqui musical (1915)
Fonte: Compilação a partir de Stephan (1999c, p. 127, digitalizado pelo autor) e SMB (c2020, nº 879)
A variação rítmica e ondulada da fachada associada à modernidade e ao
tráfico de veículos também ocorre no edifício residencial do complexo Wohnhaus
Grundstücksverwertungs Aktiengesellschaft - WOGA (1925-1931). Na figura 10
percebemos tal recurso com as sacadas dos apartamentos, assim como novamente
o destaque arredondado da circulação vertical na planta.
26
Figura 10 - Complexo WOGA, fachada do edifício residencial: planta baixa e fachada (1931)
Fonte: Compilação a partir de James (1999b, p. 112-113, digitalizado pelo autor)
O Complexo WOGA e cinema Universum (1925-1931) foram "o maior projeto
urbano de Berlim da República de Weimar" (COBBERS, 2007, p. 49), formado por 24
um cinema, cabaré (palco aberto), lojas, hotel (sendo readaptado para moradia na
construção) e apartamentos.
24 O projeto inclui um grande cinema, um cabaré (palco aberto), lojas, edifícios residenciais e um hotel. Segundo Cobbers (2007), outros projetos urbanos da época que eram maiores, como o Conjunto habitacional da ferradura (Hufeisensiedlung ), Onkel Toms Hütte ou Weiße Stadt, foram construídos na periferia de Berlim.
27
Figura 11 - Cinema Universum e Complexo WOGA (1931)
Fonte: Compilação a partir de Stephan (1999, p. 117 e p. 110, digitalizado pelo autor)
O arquiteto discursa para a inauguração do complexo em 1928: [...] Fachadas de palácio? Entradas com colunas para o profano? Cúpulas de catedral? Para quê! Telhados de tartaruga [turtle roof], arcos protegendo a inclinação do telhado, inclinado na direção da tela projetada. [...] Nada de palácio barroco para Buster Keaton, nada de bolo de casamento em gesso para Potemkin. Mas não tenham medo! Nada de objetividade seca, não a claustrofobia de acrobatas mentais suicidas [suicidal mental acrobats]. Fantasia! Fantasia - mas não confusão - dominada pelo espaço, cor e luz. [...] (COBBERS, 2007, p. 50) 25
Mendelsohn se posiciona contra a reprodução de elementos arquitetônicos
pregressos ao mesmo tempo que se diferencia dos seus contemporâneos, nesse
caso os racionalistas, da "objetividade seca". Tal discurso demonstra o seu
entusiasmo pela modernidade e pelo movimento do cinema, criando "fantasia - mas
não confusão - dominada pelo espaço, cor e luz." (COBBERS, 2007, p. 50, tradução
25 "Palace façades? Columned entrances for the worldly? Cathedral domes? For what! Turtle roof, protective arches of the slanted roof, slanted in the direction of the projection screen. [...] No rococo place for Buster Keaton, no wedding cake in plaster for Potemkin. But no need to fear! Not dry objectivity, not the claustrophobia of suicidal mental acrobats. Fantasy! Fantasy - but not bedlam - dominated by space, colour and light [...]" (COBBERS, 2007, p. 50) Buster Keaton (1895-1966) foi um ator, dublê e diretor de cinema americano, muito reconhecido pelos seus filmes mudos da década de 1920. Imagina-se que por Potemkin, Mendelsohn se refira ao nobre russo do século XVIII.
28
nossa). O Zeitgeist aqui é o entusiasmo pela modernidade, nesse momento pela
criação da nova cultura de massa, o cinema.
Mendelsohn projeta dois grandes salões, um para o Cinema Universum
(figura 12) e outro para o Cabaré dos comediantes ( Kabarett der Komiker ). A escala,
formato redondo e suntuosidade dos auditórios parece uma releitura do Grosses
Schauspielhaus (figura 13), de Hans Poelzig, apontado por Frampton (2008, p. 143)
como "quem veio a concretizar a imagem quintessencial da 'coroa da cidade' [de
Bruno Taut] em vidro." O complexo foi destruído por bombardeios no final da
segunda guerra, abrigando hoje o Schaubühne am Lehniner Platz.
Figura 12 - Cinema Universum (1928)
Fonte: James (1999, p. 116, digitalizado pelo autor)
29
Figura 13 - Grosses Schauspielhaus de Hans Poelzig (1919)
Fonte: Frampton (2008, p. 142, digitalizado pelo autor)
Um projeto significativo de Mendelsohn para a indústria foi a fábrica de
chapéus Steinberg, Herrmann & Co, construída em 1921 no distrito industrial de
Luckenwalde (figuras 14 e 15). Stephan (1999a, p. 41) justifica a horizontalidade nos
croquis da fábrica pelo peso das máquinas de produção. Mendelsohn elevou o pé
direito dos galpões de tinturaria de modo a melhorar consideravelmente a circulação
de ar no edifício e a proteger os trabalhadores da poluição química. Por tal decisão
de projeto e elegância incomum para um edifício industrial, Mendelsohn criou um
símbolo de modernidade para a companhia, valorizado pela imprensa da época
(STEPHAN, 1999a, p. 42)
O desenho ortogonal e geometrizado da fábrica se diferencia muito da Torre
Einstein, projeto realizado na mesma época, e "com a sua forma retangular definida
pelo esqueleto metálico, largas janelas com estrutura de aço [...], assemelha-se a
Fábrica Fagus de 1911, de Gropius e Meyer" (STEPHAN, 1999a, p. 43).
30
Figura 14 - Fábrica de Chapéus Steinberg, Herrmann & Co., croqui da fábrica (1921)
Fonte: SMB (c2020, nº 321)
Figura 15 - Fábrica de Chapéus Steinberg, Herrmann & Co., elevações (1921)
Fonte: STEPHAN, 1999, p. 42 (digitalizado pelo autor)
No tempo que Mendelsohn esteve na Alemanha, procurou manter um
equilíbrio entre a representação prática da indústria moderna e a tecnologia como
expressão de vitalidade, "que ele acreditava ser inerente a estes aspectos da vida
31
moderna, assim como os materiais modernos os quais eram usados para
construção" (JAMES, 1997, p. 3). 26
"Não foi a fábrica, mas a criação e circulação de marketing o verdadeiro
movimento à modernidade" (SMITH apud JAMES, 1997, p. 3). Com essa afirmação,
o autor destaca o papel da propaganda e incentivo ao consumo como responsável
pelo espírito moderno. A formação de uma identidade corporativa por meio dos
projetos de Mendelsohn (fábrica de chapéus em Luckenwalde, Lojas Schocken e
projetos para a editora Rudolf Mosse) são evidências da sua crença na produção em
massa que acreditava garantir uma sociedade mais democrática. Ele falava de
maneira tão apaixonada sobre as indústrias quanto aquela expressa nos sonhos de
Taut sobre centros comunitários cristalinos e realização de milhares de
apartamentos. (JAMES, 1997, p. 4)
Segundo Cobbers (2007), Mendelsohn se orgulha em manter uma relação
intuitiva com a arquitetura, linguagem que desenvolve por meio da observação
particular do seu tempo, procurando entender o contexto e o sítio para encontrar a
solução mais adequada. Ao invés de negar o que existe e repetir padrões sintéticos,
ele privilegia os próprios sentidos na apreensão do mundo e proposição no espaço.
Mantém o processo de projeto no campo subjetivo, da leitura e proposição no
espaço por meio de seus croquis. "A arquitetura de Mendelsohn é radicalmente
subjetiva, enquanto a vanguarda do seu tempo procurava soluções cientificamente
objetivas" (COBBERS, 2007, p. 7). Depois dessa situação de Mendelsohn entre os
arquitetos expressionistas, buscaremos ampliá-la ao campo da música.
26 A autora chama essa abordagem de funcionalismo dinâmico, que integra experimentação estilística, inovações construtivas e influências da cultura ao redor. A autora se dedica è exploração do assunto e sua relação com outros aspectos da cultura da República de Weimar em "Erich Mendelsohn and the architecture of german modernism" (JAMES, 1997).
32
2.2 MENDELSOHN E SCHÖNBERG ENTRE RAZÃO E EXPRESSÃO
Mendelsohn compartilha diversas semelhanças com o compositor Arnold
Schönberg. Uma delas é o distanciamento dos métodos tradicionais para a criação
de outras formas, apontado por Zevi (1982, p. 9) como o abandono da simetria, ritmo
estável e noção de tônica ou repouso da música tonal . No pequeno trecho que Zevi 27
intitula Schönberg e Mendelsohn, ele comenta que o próprio Mendelsohn se
considerava o Schönberg da arquitetura (ZEVI, 1982, p. 8). A "revolta aberta contra
a ordem estabelecida e as formas aceitas" (GROUT, 1996, p. 732) é presente na
trajetória de Mendelsohn, porém não exclusiva. Iniciou seus estudos de arquitetura
em Berlim, mas por considerar o ensino antiquado e historicista, transferiu-se para
Munique, onde efervesciam as vanguardas artísticas de grupos como o Blauer
Reiter e Die Brücke . Como vimos na seção 2.1, o expressionismo é um termo que vem das artes
visuais e não é definido com exatidão na arquitetura. A definição do expressionismo
na música parece ainda mais controversa. Segundo Fanning (2001, tradução
nossa): Tentativas de definir o expressionismo na música tem sido mais sobre levantar questões do que respondê-las. Mas essa sua indeterminação pode ser positiva se nos lembrar que os termos de estética musical são necessariamente fluidos e mal definidos. Ao menos o expressionismo é um termo que nunca deve ser usado com confiança demais. 28
O autor ainda acrescenta a relação que o termo tem com o "mundo do
inconsciente" e que a palavra surge como uma necessidade para expressar "a nova
liberdade artística e espiritual tão ardentemente aclamada por artistas e críticos da
virada do século". Por ser um termo emprestado das artes visuais que não constitui
27 Há outras semelhanças entre Mendelsohn e Schönberg apontadas por Zevi (1983, p. 9), como a formação de linguagem artística própria (sem mestres claros), arrogância e intransigência, perseguição e sucessivos exílios por serem judeus. Enquanto Mendelsohn faz seu caminho de Berlim a Londres, Jerusalém e São Francisco, Schönberg vai de Viena a Berlim, Paris e Los Angeles. 28 "Attempts to define Expressionism in music have always thrown up more questions than answers. But this slipperiness may be salutary if it reminds us that the terms of musical aesthetics are necessarily fluid and ill-defined. At least Expressionism is a term never likely to be used over-confidently. [...] Practically every early discussion of Expressionism has stressed its provenance in the world of the unconscious, and the word seems to have met the need for a neat epithet for the new spiritual and artistic freedom so ardently acclaimed by artists and critics from the turn of the century on." (FANNING, 2001)
33
qualquer corrente sólida na música, o termo costuma ser associado a esse campo
temático subjetivo e do mundo inconsciente presente na sociedade alemã e
austríaca nos anos próximos à Primeira Guerra.
Diversos desses elementos são encontrados na música de Arnold Schönberg
(1874-1951), especialmente na sua fase atonal (ou politonal, como ele preferia ) em 29
peças como o Segundo Quarteto para Cordas (1908), Erwartung (1909) e Pierrot
Lunaire (1912). Fanning (2001) reconhece o expressionismo na obra de Schönberg 30
pelo "evitamento da repetição e negação da estabilidade em todos os parâmetros,
incluindo o tempo." O autor ainda adiciona a textura identificada na música de 31
Schönberg por Adorno (1949 apud FANNING, 2001) que "polariza entre a paralisia e
a hiperatividade ansiosa". Nessa leitura, a fase dodecafonista de Schönberg já se 32
afasta da temática expressionista e consistiria num modo mais racional de reação à
angústia expressionista.
Menezes (2013, p. 145), por outro lado, reconhece o gesto expressionista na
obra de Schönberg como um rasgo no tempo e no espaço que faz emergir novos
elementos expressivos, dados pela alta densidade de formulações, contraste
absoluto entre as partes, andamento e o tempo dilacerado. O rasgo evidencia as
rupturas e o caráter abruptos dos contrastes, "potencializa a dor da escritura,
submetida ao cálculo e à análise ao mesmo tempo que defrontada com a angústia
da dilaceração de seus gestos" (MENEZES, 2013, p. 153). Segundo o autor, o
29 Utiliza-se geralmente o termo atonal para denominar essa fase de Schönberg. Optamos por politonalidade por opção do próprio compositor (SCHÖNBERG, 1999, p. 558-560), que criticava o uso do atonal por não negar a música tonal. Outra alternativa apontada pelo compositor é o pantonal. 30 Pierrot Lunaire, de Arnold Schönberg, é uma canção com o texto de sete poemas de Albert Giraud musicados. Os dois últimos movimentos (20º e 21º) são Viagem para Casa e Velho cheiro. Dois recursos marcantes da composição são o uso da Sprechstimme (voz falada) - uma voz quase declamada sem alturas definidas precisamente -, e um ostinato onipresente que ilustra a obsessão de Pierrot: os morcegos gigantes que o perseguem (GROUT, 1996, p. 732). 31 "The musical language is quintessentially expressionist in its avoidance of repetition and denial of stability in all parameters, including tempo. [...] By contrast, more immediately active elements are to be found in the texture, which is polarized between paralysis and anxious hyperactivity (Adorno, 1949)." (FANNING, 2001) 32 Dodecafonismo é "um método de composição no qual as 12 notas da escala cromática temperada igualmente, apresentada em uma ordem fixa (série) determinada pelo compositor, forma a base estrutural para a música. Surgiu no começo do século XX, quando a dissolução das funções tonais tradicionais fez surgir diversas tentativas sistemáticas de derivar uma estrutura musical total de um complexo de alturas que não são funcionalmente diferenciadas". (HEADLAM et al ., 2001, tradução nossa).
34
escancarar do dilema entre racionalidade e expressão que define o expressionismo
na música tem Schönberg como um de seus maiores expoentes . 33
Schönberg reage à angústia expressionista pela razão com a criação do
sistema dodecafônico. O dodecafonismo é um sistema lógico, com o qual Schönberg
buscava a emancipação da dissonância e isso "significa que sua compreensibilidade
é equivalente a da consonância" (apud ZEVI, 1982, p. 86). Por consonância,
destacamos o significado psicológico de Palisca e Moore (2001, tradução nossa) 34
pela "ausência de aspereza" ou "repouso de tensão tonal". Segundo os autores a
interpretação é subjetiva e depende da "familiaridade com a linguagem da harmonia
tonal ocidental", gerando diferentes discussões sobre a apreensibilidade dessas
composições dodecafônicas.
No que diz respeito à recepção da música dodecafônica pelo público, Anton
Webern (discípulo de Schönberg) defendia que:
A composição com doze sons atingiu em coerência um grau de perfeição jamais verificado anteriormente. É claro que, quando existem relações e coerência em todos os níveis, a apreensibilidade está garantida [...] é uma arte estritamente probabilística e rigorosa. (WEBERN, 2020, p. 39)
A música, segundo Nietzsche (2007) uma arte primordialmente dionisíaca e
coletiva, explora aqui a experiência do prazer por meio de um processo matemático,
de restrição e simetria, um processo individual e racional de apreensão que a leva
ao campo de Apolo . Ainda segundo Nietzsche (2007), o diálogo e discórdia abertos 35
entre as pulsões apolínea e dionisíaca incitam a novas criações e ao nascimento da
tragédia grega. A pulsão apolínea representa a arte idealizada e racional, individual,
33 Menezes (2013) parece sugerir que o dodecafonismo possa ser visto também como uma manifestação expressionista. É uma questão controversa que demandaria um estudo mais aprofundado. 34 Ver verbete do Dicionário Grove sobre a consonância: "Acoustically, the sympathetic vibration of sound waves of different frequencies related as the ratios of small whole numbers [...] ‘absence of roughness’, ‘relief of tonal tension’ [...] however, implies a psychoacoustic judgment, [...] depends upon a familiarity with the ‘language’ of Western tonal harmony." (PALISCA; MOORE, 2001) 35 Mendelsohn descreve o Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche para Luise nas cartas nº 42, 43 e 44, respectivamente de 22, 25 e 28 de julho de 1911. (EMA, 2014) Um desdobramento das pulsões de Nietzsche é presente na escrita do compositor Robert Schumann, que por meio dos pseudônimos Eusébio e Florestan manifestava respectivamente personalidades apolínea e dionisíaca.
35
inspirada no universo onírico, e encontra prazer por meio da ordem, simetria e
restrição. Já a pulsão dionisíaca consiste primordialmente na arte musical, análoga a
embriaguez e que se encontra na experiência coletiva em que o homem se liberta do
seu indivíduo, esquece de si mesmo.
Sobre o dodecafonismo, Menezes (2013, p. 158) reconhece que "foram
atitudes individuais e altamente personalizadas, um afunilamento que tocou a
poucos". Tal descolamento da realidade não é novidade do século XX e está em
diversos momentos da história ocidental, como na assimilação latina da prosódia
grega (MAMMI, 1994), no Renascimento e no Iluminismo. Com a crença na
hegemonia do pensamento alemão na cultura ocidental, Schönberg acreditava que,
quando a moda reacionária da música tonal se exaurisse, o dodecafonismo seria a
direção cultural da humanidade. A composição para ele se ampara no pensamento
sobre sons e ritmos . 36
Para além do seu papel de destaque na teoria musical do século XX,
Schönberg foi fiel aos procedimentos de Bach no que diz respeito ao
desenvolvimento sistemático e analítico de um tema sempre de maneira diferente
(como na Arte da Fuga , que será trazida no capítulo seguinte). Predomina a
racionalidade sobre a intuição no ato de concepção artístico, mas não é por isso que
não se proporcione elementos aos ouvintes que podem reverberar como
sentimentos. 37
Mendelsohn é expressionista na negação da tradição e formas relativamente
subjetivas, mas não deixa de reproduzir conceitos de simetria, proporção e contraste
que absorve particularmente da música barroca e clássica, que se manifesta em
projetos como a Torre Einstein (figura 3), o projeto da Loja Schocken de Chemnitz
(figura 8), a Sede do Berliner Tageblatt (figura 16) e a Fábrica de Chapéus (figura 38
15).
36 "Komponieren ist: denken in Tönen und Rhythmen " (SCHÖNBERG apud MENEZES, 2013, p. 145) 37 Há uma teoria de significado musical proposta por Meyer (apud MADEIRA, 2017, p. 45) que se divide entre a referencialista e absolutista, sendo a sub-vertente que se aproxima da obra de Schönberg a absolutista expressionista. A música nesse caso é definida por Fonterrada (apud MADEIRA, 2017, p. 46) como portadora de uma forma simbólica que tem "estreitas similaridades com os sentimentos humanos", e provoca tais sentimentos nos ouvintes por meio da empatia. 38 A Sede do Berliner Tageblatt será melhor abordada na seção 3.2.
36
Figura 16 - Sede do Berliner Tageblatt, planta (1921-1923)
Fonte: Zevi (1982, p. 57, digitalizado pelo autor)
Acreditamos que tanto Mendelsohn quanto Schönberg operam na articulação
dos elementos com novos parâmetros que pode ser vista como inovadora, mas não
podem ser considerados omissos em relação ao acúmulo da tradição de
compositores antigos, como Bach, Ludwig van Beethoven e Richard Wagner.
Mendelsohn (EMA, 2014, nº 117) reconhece acordes familiares nos últimos 39
movimentos de Pierrot Lunaire e acredita que a obra "deveria ser o todo um sonho
grotesco, grotesco até a perturbação". Ainda assim o arquiteto confessa que os
acordes o comovem e que Schönberg "ficaria bravo diante de tamanha
sentimentalidade". Ele parece queixar-se do repouso anacrônico no final da peça
apenas para a aceitação do público, como se fossem resolvidos de forma tonal
todos os mistérios do Pierrot expressionista.
39 Carta de EM a LM, em 05/11/1912 (EMA, 2014, nº 117): "[...] Wenn es so sein sollte, wenn Schönberg wirklich so weit - oder zurück, also so vorwärts ist, wie muß er leiden, wenn er sein Werk dem Hohnlachen der Welt um ihn preisgeben muß. - Das Ende seines 'Pierrot Lunaire ' - Heimfahrt zum alten Duft aus Märchenzeit - bringt uns gewohnte Akkorde. Sollte das Ganze ein grotesker Traum, grotesk bis zur Verwirrung sein und er sich bemühen, ihn in seiner Kunst auszusprechen, zu zeigen, daß es Kunst ist? Ich glaube nicht daran, aber die letzten Akkorde brachten mich drauf. Ich glaube, er würde wütend vor solcher Sentimentalität.Wer vermag alle Rätsel zu lösen? [...]"
37
Schönberg afirma recorrer à tonalidade como forma de fazer contrastar com a
sua música dodecafônica. O compositor escreve com o rigor do sistema
dodecafônico e tem fé de que o sistema substituirá os procedimentos da música
tonal. No entanto não deixa de estar muito bem escorado na música tonal, com o
uso de formas tradicionais eternizadas da música clássica (por exemplo a forma
sonata) e a escrita de importantes tratados de composição e de harmonia. Em 1948,
Schönberg escreve (apud ZEVI, 1982, p. 9): "Minha intenção não era escrever
música dissonante, porém usar a dissonância a partir de critérios lógicos, sem
retornar aos conceitos clássicos de harmonia, que agora são inutilizáveis." 40
Em uma palestra dada em 1942 em Los Angeles, o arquiteto reconhece a
importância de Schönberg:
No reino da música Arnold Schönberg elimina as bases e princípios clássicos pela concentração de linearidade melódica, simetria e ritmo contínuo. No seu reconhecimento do material musical - som e suas ordens estruturantes - como os elementos básicos da música, Schönberg partiu da tonalidade - a escala maior-menor-, e construiu um novo sistema harmônico através do atonal - o abandono de uma tônica fixa. Ele representa a partida mais consequente da ideia musical corrente e, ao mesmo tempo, o retorno mais importante à realidade musical. (MENDELSOHN, 1944, p. 8) 41
Pela transtextualidade, referencialidade histórica a grandes compositores,
Schönberg largava o rigor do seu método dodecafônico. O compositor "tem na sua
obra o apogeu da racionalidade na música, sem que se abdique da expressão"
(MENEZES, 2013, p. 153-55). Acredita-se que mediante esse gesto o compositor,
assim como Mendelsohn, se opõe ao construtivismo e à fuga pela abstração que
pode acabar sendo desvinculada da história. Ainda que busquem negar a tradição e
questioná-la, constroem as suas obras fundados na tradição da música tonal.
40 "Meine Absicht war nicht, dissonante Musik zu schreiben, sondern die Dissonanz nach logischen Kriterien zu verwenden, ohne auf das klassische Harmoniekonzept zurückzugreifen, das jetzt unbrauchbar ist " (Arnold Schönberg apud ZEVI, 1983, p. 9). 41 "In the realm of music Arnold Schönberg eliminated the classic principles bases upon the concentration of melodic rectilinearity, symmetry, and continuous rhythm. In his clear recognition of musical material - sound and its structural orders - as the basic elements of music, Schoenberg parted from tonality - the major-minor scale-, and constructed a new harmonic system through atonaly - the abandonment of a fixed keynote. He represents the most consequential departure from the current musical ideal and, at the same time, the most important return to musical reality" (MENDELSOHN, 1944, p. 8, tradução nossa)
38
Mendelsohn menciona em 1938, quando vivia na Palestina, que "Toca-se
Bach, Wagner e Mozart a janelas abertas e deixa-se de fazer música sobre a
atualidade" . A frase sugere que o arquiteto não reconhece no seu tempo uma 42
música legítima, que talvez não tenha encontrado, como mostra sua arquitetura,
uma música na qual se explorasse a potência fantástica e expressiva da
modernidade.
Por fim, Mendelsohn e Schönberg têm uma série de semelhanças na vida e
obra, e a aproximação dos dois parece ajudar a entendê-los no contexto
expressionista, ou entre a racionalidade e a expressão. Apesar dessas relações, não
é a música de Schönberg que influencia o arquiteto, senão fundamentalmente a de
compositores como Bach e Beethoven. Por meio dos seus croquis são registradas
as delicadas transformações das estruturas temporais em estruturas espaciais,
processo de composição abrangente que será investigado nas seções seguintes.
42 "Man spielt Bach , Wagner u. Mozart - bei offenen Fenstern und musiziert sich über die Gegenwart hinweg ." Carta nº 1219 de EM a LM, 28/04/1938. (EMA, 2014)
39
2.3 CROQUIS: ENTRE O METAFÍSICO E O REAL
Os croquis analisados de Mendelsohn não continham detalhes de atmosfera,
como árvores, pessoas e nuvens . É curioso que ele não represente as pessoas 43
nos croquis, mas isso não quer dizer que não considere a escala humana nos seus
projetos. A maioria dos croquis é do espaço externo dos edifícios ou simplesmente
de volumes, como se vê na figura 17. Por meio das fantasias arquitetônicas,
Mendelsohn explora a arquitetura de dunas, na qual as massas se articulam umas
com as outras. Estes croquis reforçam a busca do arquiteto pela forma . 44
Figura 17 - Fantasias arquitetônicas, croquis de uma arquitetura de dunas (1920)
Fonte: Compilação a partir de SMB (c2020, nº 643 e 256)
43 Na nossa busca não foi encontrado nenhum croqui com figura humana. Segundo Stephan (1999, p. 153) os croquis não tinham detalhes atmosféricos e pessoas até 1933, mas não discute o porquê. Esse foi o ano que Mendelsohn teve que se submeter a exílios sucessivos e teve uma interrupção brusca da sua atividade arquitetônica. 44 A preocupação de Mendelsohn pela forma não o exime de uma preocupação funcional, evidente em diversos projetos. (STEPHAN, 1999, p. 153) A Torre Einstein (2.1) é um exemplo no qual o arquiteto usa as funções para compor os planos vertical e horizontal.
41
que se arrastam e deslocam em um piscar de olhos, de tal forma que é praticamente
impossível para a mão anotá-las. Para Mendelsohn as massas vão sendo
trabalhadas com a experiência no processo de projeto. (COBBERS, 2007) Ele
lamenta "que a mão e a visão não sejam conectadas mecanicamente". Essa
afirmação demonstra a sua inquietação inicial que viria a se tornar o seu método de
propor arquitetura.
O termo Masse é usado pelo arquiteto para se referir às visões arquitetônicas
que tem, assim como ao volume construído (Baumasse ). Ao construir a Torre
Einstein e tentar traduzir a teoria da relatividade de Einstein para a arquitetura,
Mendelsohn afirma (EMA, 2014, nº 437): "Massa precisa de luz, luz movimenta a
massa [Masse braucht Licht, Licht bewegt die Masse ]" . A busca pela articulação 48
das massas potencializada com a luz será constante na sua obra, por exemplo nas
suas lojas comerciais da década de 1920 (seção 3.2).
O transitar entre esboços fantasiosos e a experiência da materialidade, entre
a pirâmide e o labirinto, é o que Bernard Tschumi (1998, p. 26-51) mais tarde chama
de "o paradoxo da arquitetura". O paradoxo, segundo o autor, está na
impossibilidade de se questionar a natureza do espaço e ao mesmo tempo
experienciá-la, na relação oposta entre o espaço ideal (processo mental) e o real
(prática social). Tschumi parece se apoiar no conceito trazido por Nietzsche (2007),
do diálogo aberto entre as pulsões apolínea e dionisíaca como geradora da arte
(trazido na seção anterior).
Tschumi (1998) vê de um lado o espaço como uma disciplina conceitual e
desmaterializada, na qual a ideia se sobrepõe à matéria. O espaço tem importância
ideológica e filosófica em conceitos, teorias e manifestos, e é formado por conexões
abstratas e de não tão fácil compreensão, alheias à realidade. Por mais fantasiosas
48 Na carta de Mendelsohn, ele prossegue: "O equilíbrio de movimento - na massa e luz - a massa precisa de luz, a luz move a massa - é recíproco, paralelo, complementar. A massa é claramente construída, quando a luz a movimenta em equilíbrio. Agindo sobre o contorno! A luz é corretamente distribuída, quando ela equilibra a massa deslocada. Agindo sobre a apresentação! Essa é a lei geral da arte da expressão." "Der Bewegungsausgleich - in Masse und Licht - Masse braucht Licht, Licht bewegt die Masse - ist gegenseitig, parallel, sich ergänzend. Die Masse ist klar aufgebaut, wenn das Licht sie ausgleichend bewegt. Rückschluß auf die Kontur! Das Licht ist richtig verteilt, wenn es die bewegte Masse ausgleicht. Rückschluß auf die Darstellung! Das ist allgemeines Gesetz der Ausdruckskunst." Carta de EM a LM em 17 de jun. de 1917 (EMA, 2014, nº 437).
42
que sejam as utopias expressionistas com os sonhos de cidades e estruturas
imaginárias (como os próprios croquis de Mendelsohn), a arquitetura racionalista
geométrica que segue sistemas e fórmulas de projeto combina muito com a ideia de
arquitetura desmaterializada (ou até descorporificada). Mendelsohn mesmo critica tal
recurso na obra de Mies van der Rohe em 1950: "ele encontrou sua fórmula e
aparentemente pretende permanecer leal a ela até o fim" (COBBERS, 2007, p. 16).
Ele questiona justamente o rígido sistema de princípios dessa arquitetura acadêmica
que extingue a liberdade humana e não leva a lugar nenhum . 49
Oposto à arquitetura conceitual e desmaterializada, Tschumi coloca o espaço
real ou prática social como a experiência do corpo no espaço. Enquanto a
experiência para Tschumi está nos estudos fenomenológicos e empíricos focados
nos sentidos, anacrônicos à obra do arquiteto, o conceito de experiência para
Mendelsohn está mais ligado à maturidade ou prática arquitetônica. Para ele (apud
COBBERS, 2007, p. 12), a experiência é uma visão que condensa a realidade,
projeto e construção em um organismo arquitetônico. O processo de projeto é
alimentado pela experiência, essa sempre re-examinada pelo intelecto. É a beleza
ou experiência estética que proporciona, como uma ordem superior do intelecto,
essa "passagem do plano da experiência ao plano das ideias, porque é uma
atividade ao mesmo tempo contemplativa (portanto intelectual) e sensível (portanto
mundana)" (MAMMI, 1994, p. 49).
Mendelsohn situa-se no meio do paradoxo. Não porque tudo que faz carrega
ao mesmo tempo fantasia e materialidade, em um equilíbrio perfeito entre as
pulsões apolínea e dionisíaca, senão na sua capacidade de transitar pelos extremos
do paradoxo e conciliá-los na sua arquitetura. Da mesma forma que as suas
fantasias arquitetônicas podem germinar em edifícios funcionais, os edifícios
também podem evocar fantasias. "Esse fluxo entre a esfera do real ao metafísico, e
do metafísico ao real, é uma característica pela qual se pode reconhecer a
habilidade de Erich Mendelsohn" (REDSLOB apud JAMES, 1997, p. 5).
49 "After visiting Mies van der Rohe in Chicago, 1950: 'He has found his formula and apparently intends to remain loyal to it up until the end. Block-like and academic, a canon of details, a rigid system of principles that will snuff out our emerging hope for human freedom swiftly and painlessly [...] dead end, one that leads nowhere.'" (COBBERS, 2007, p. 16)
43
3 DA MÚSICA DE J. S. BACH AO PROJETO ARQUITETÔNICO
3.1 O PROCESSO DE REPRESAMENTO
Os croquis de Mendelsohn eram comumente embalados por música.
Segundo sua esposa Luise , ele gostava de trabalhar à noite e "se incomodava com 50
qualquer som [noise ] exceto com a música", que servia "como uma cortina entre ele
e o mundo de fora" e lhe fazia mais inspirado a desenhar. A afirmação de Luise
parece diminuir o valor que o arquiteto atribuía à música, que, ao que tudo indica,
não é somente uma "cortina" ou inspiração subjetiva.
O fato de Mendelsohn admirar a obra de Bach e desenhar a partir de sua
música nos traz indícios de que a mesma foi um forte estímulo e referência para a
sua arquitetura. Schönberger (2018) defende que a música para Mendelsohn não
era somente um fundo de inspiração inconsciente ( keine im Hintergrund laufende
Berieselung ) , especialmente pelo rigor com o qual descrevia os movimentos das 51
obras. A música teria uma conexão interior com o desenho que vai além da
representação de uma imagem ou emoção superficial.
Na figura 18 consta um croqui da Toccata em Ré Maior (BWV 912), obra de 52
Bach para teclado (Klavier , qualquer instrumento de teclas). A toccata é uma das
sete que ele compôs por volta de 1710, quando ainda era jovem e vivia em Weimar.
Elas são concebidas com a alternância de movimentos rápidos e lentos, geralmente
com caráter improvisatório e liberdade rítmica (dado pela não indicação de
andamento). Nas extremidades as partes são empilhadas como uma escada,
simétricas. A função não fica clara pois, especialmente nos croquis musicais, o que
figura é a articulação das partes com o todo.
50 Ver nota 9 para a transcrição do trecho da carta de EM para LM. 51 O termo alemão Berieselung tem o significado literal de irrigação artificial de uma superfície, mas é usado de forma coloquial para expressar a exposição inconsciente à influência de algo, como à televisão ou ao rádio. (BERIESELN, 1967) 52 "Uma toccata é uma peça que tem a intenção primária de mostrar a destreza manual, geralmente livre em forma e quase sempre para um instrumento de teclado solo." (CALDWELL, 2001)
44
Figura 18 - Fantasia arquitetônica Toccata em Ré Maior (1919-1920)
Fonte: SMB (2020, nº 780)
Mendelsohn encontra na música de Bach uma composição ordenada por
valores universais, como unidade, contraste e relação entre planos. Esses valores
são alguns dos colocados por Robertson (1963), citados por Colquhoun (2004) como
uma visão do século XIX que será negada pelas vanguardas arquitetônicas
racionalistas do século XX. Mendelsohn não se inspira somente subjetivamente em
Bach, ele constrói um todo a partir dos seus parâmetros de composição. Beyer
(2004, p. 59) reforça a relevância da construção musical quando, ao analisar croquis
de Mendelsohn estimulados pela obra bachiana, afirma que "toda composição
musical significativa é um organismo temporal altamente complexo interiormente,
que se condensa em impressão [Eindruck ] na escuta recordativa [erinnernden
Hören ] [...]". O uso da impressão é conveniente pois carrega a duplicidade de se referir
literalmente ao traço ou à tinta que deixa em um corpo, assim como à percepção ou
sentimento de um evento ou obra. Ainda que a impressão de cada ouvinte seja
subjetiva e nem sempre tenha relação direta com as intenções do compositor e/ou
intérprete, a música, como um conjunto de elementos sonoros e de expressão,
permite múltiplas leituras concretas e/ou abstratas por parte de quem a escuta. É a 53
escuta atenta que atribui sentido (e forma) a partir do movimento das massas
53 A discussão da recepção e expressão musical não está no escopo desse trabalho, mas é discutida em "Fenomenologia da Expressão Musical", de Alberto Heller (2006).
45
musicais na sua fluência temporal. Diante da tamanha complexidade desse
organismo e incapacidade dos ouvidos o captarem por completo, o sentido de uma
peça musical se torna fortemente subjetivo e pessoal.
Mendelsohn (2000, p. 54) reconhece a importância da busca por essa
coerência orgânica ( organischer Zusammenhang ) numa composição arquitetônica, e
guiado por termos musicais considera que há dois caminhos: a condução harmônica
e a contrapontística. A concepção de organismo para os arquitetos do século XX
parece se originar no caráter de sinédoque que Viollet-le-Duc atribuía aos edifícios
(COLQUHOUN, 2004), como uma essência que reproduz o Zeitgeist (espírito da
época). Mendelsohn se nutre desse espírito ao mesmo tempo que intervêm
conscientemente com a sua composição. Ele cria um organismo por meio da
condução harmônica, uma unidade e ordem nos planos, exemplificada por ele
mesmo na figura 19 (à esq.) de forma horizontal nos tanques elevados da fábrica de
gás.
Figura 19 - Fábrica da Companhia de Gás de Peter Behrens (1911-1912) e Igreja da cidade velha Königsberg 54
Fonte: Compilação a partir de Gieseler (2009) e Wikimedia (2008)
Essa unidade horizontal, chamada de condução harmônica por Mendelsohn,
é encontrada na sua casa geminada em Karolingerplatz (1922) na figura 20. O
contraste se dá por meio do uso de diferentes revestimentos, tendo a parte superior
54 A descrição de Mendelsohn não foi muito precisa: "Kirche von Königsberg i. M., einer kleinen deutschen Stadt". Supõe-se que a cidade seja Königsberg, da então Prússia (região da qual vem a família do arquiteto), hoje Kaliningrado, Rússia. A igreja encontrada foi a Altstädtische Kirche, destruída completamente durante um bombardeio na Segunda Guerra Mundial. (WIKIMEDIA, 2008)
46
um aspecto mais pesado pelo uso de tijolo escuro. A casa desenha a esquina com
os três encontros de suas arestas. A planta simétrica (por um eixo transversal que
aponta para a esquina) intercepta os dois quartos do meio que se alternam por
andar, nos quatro meio pavimentos.
Figura 20 - Casa geminada em Karolingerplatz: fotografia e planta térrea (1922)
Fonte: Cobbers (2007, p. 23, digitalizado pelo autor)
Por condução contrapontística entende-se uma construção na qual o jogo de
melodias (horizontal) cria acordes (vertical). O estímulo musical surge a partir da
fuga e Mendelsohn exemplifica na arquitetura da "Igreja de Königsberg i.M. [Kirche
von Königbsberg i. M.]", que acreditamos ser a Figura 19 (à dir.). Parece denotar um
certo equilíbrio entre os elementos vertical e horizontal, demonstrado a seguir:
Horizontal é a nave e a cumeeira, enquanto vertical, é o contraforte e a torre. A nave é o movimento longitudinal, e a torre o movimento transversal. A nave é a calma da superfície, enquanto a Torre é o agito [Bewegtheit] do espaço. (MENDELSOHN, 2000, p. 54)
A condução harmônica contrapontística de Mendelsohn (2000) é
exemplificada pela Arte da Fuga (BWV 1080), de J. S. Bach, na qual melodias
contrastantes constróem simultaneamente no plano vertical e horizontal, melodia e
harmonia. Em algumas cartas, o arquiteto comenta sobre a inacabada obra com
47
suas 14 fugas e 4 cânones, tendo uma adoração especial por ela . A obra 55
antológica consiste na exploração exaustiva de um tema simples no qual o que se
destaca é a articulação engenhosa das vozes. O tema é invertido, retrógrado,
oposto, antagonizado entre as três ou quatro vozes nos mais diversos intervalos.
Consiste em um processo extremamente racional e cerebral que tem a intenção de
ser um manual de construção de fugas. Ao trazer novamente a ideia de polaridade
entre racionalidade e expressividade (trazido na seção 2.2 na obra de Schönberg),
notamos que a música de Bach pode ser lida de maneira semelhante. Por um lado a
Arte da Fuga como um processo sistemático e racional, por outro as peças de
caráter improvisatório e subjetivo, como a Toccata em Ré Maior (BMV 912). 56
Quando se refere a influência de Bach na obra de Mendelsohn, um dos
projetos de maior destaque é a casa Am Rupenhorn (1930), projetada por
Mendelsohn para uso da própria família. A residência foi documentada em um livro
de fotos por Mendelsohn (1932) logo depois de ficar pronta. O prefácio de Redslob 57
nos chama a atenção pela maneira com que reconhece no edifício o espírito de
Bach, em uma análise que reforça nossa percepção de sua influência por meio do
contraste e coerência orgânica: O que nos faz sentir o espírito de Bach nessa causa em Rupenhorn [...] é o efeito aumentado causado pelo contraste, que faz uma visita à casa uma experiência real, lembrando ao hóspede da música contrapontística. [...] A relação entre a casa e o terreno, entre a parte e o todo. [...] O mundo todo em uma casa: nós podemos chamar essa impressão que obtemos aqui, como uma impressão que chama o espírito do mestre que é honrado acima de todos, Johann Sebastian Bach, o espírito da música. (REDSLOB, 1932, p. 13)
A casa é localizada em um terreno de 4000 metros quadrados na periferia de
Berlim, e pode ser acessada por terra pela rua Am Rupenhorn ou por água pelo
55 Em uma carta para LM em 15/07/1936 (EMA, 2014), EM expõe o seu fascínio pela obra que acentua a sua devoção a Deus. "Ich bin ganz in der Kunst der Fuge. Je mehr ich höre, je andächtiger werde ich. Bin tageüber voll mit seinen Seelenvariationen." 56 Schönberger (2018, p. 5-7) reconhece em Bach a síntese entre opostos que o aproxima de Mendelsohn, entre: homofonia (uma voz principal que guia) e polifonia (como um sistema sem hierarquia entre as vozes), música do mundo e música espiritual [weltlicher und geistiger Musik] e expressão textual e conteúdo musical.. 57 Erwin Redslob (1884-1973) foi um historiador e crítico de arte e arquitetura e escreveu o prefácio do livro de EM sobre a casa, intitulado Neues Haus Neue Welt (Nova casa novo mundo) e publicado em 1932.
48
Stößensee (figura 21). O edifício tem três pavimentos: o porão com academia,
sistema de calefação, despensa e acomodação para dos funcionários, o térreo com
a sala de música, duas salas de estar, de jantar e cozinha, o superior com os
quartos e escritório. A casa toda é compartimentada de tal maneira que há um
quarto específico para cada atividade sem muita possibilidade de movimentação de
móveis. "O pavimento dos quartos é como um pequeno hotel. Escala mínima. Para
cada um seu próprio, cada quarto com um banheiro, telefone e orientado para as
necessidades individuais." (MENDELSOHN, 1932, p 57) 58
Figura 21 - Casa Am Rupenhorn: Situação (a), Fotografia de cima (b), entrada dos fundos pelo Stößensee (c) (1932)
Fonte: Comp. a partir de Mendelsohn (1932, p. 5, 74, 29, digitalizado pelo autor)
O maior cômodo da casa é a sala de música, com um piano pequeno de
cauda e armário com o tamanho exato para guardar dois violoncelos e dois violinos
58 "Das Wohngeschoss ist ein kleines Hotel. Geringste Abmessungen. Jedes für sich, jedes Zimmer mit Bad, Telefon und den individuellen Wünsch." (MENDELSOHN, 1932, p. 57, tradução nossa)
49
ou violas, onde provavelmente se realizavam as Bachabende . Mendelsohn
desenhou todo o mobiliário que compõe com peças do ourives Emil Lettré e do
pintor Amédée Ozenfant. A casa toda tem espaços planejados para tudo que se
pode fazer, a cozinha conta com armários que servem perfeitamente à quantidade
de louças, assim como as gavetas da penteadeira da sua esposa tem os espaços
para cada acessório de beleza.
Figura 22 - Casa Am Rupenhorn: armário para instrumentos (a), sala de música (b) e armário da cozinha (c) (1932)
Fonte: Compilação a partir de Mendelsohn (1932, p. 36, 37 e 48)
O arquiteto projeta uma hierarquia clara de circulação, criando contrastes em
diferentes nos mais variados aspectos. A composição das varandas externas
encaixa com o volume construído, formando um todo que se diferencia do espaço
natural ao entorno. As plantas apresentam forte legibilidade com espaços largos
para a circulação que se diferenciam dos espaços de permanência (figura 23). O
organismo se dá pelo encaixe entre os cômodos, cada qual com sua função
50
pré-estabelecida. A condução contrapontística se efetua nessa articulação dos
cômodos, na relação do espaço interno com o externo e em um certo equilíbrio entre
as dimensões do volume construído.
Figura 23 - Casa Am Rupenhorn: Planta baixa porão (a), Planta baixa térreo (b) e Planta baixa superior (c) (1932)
Fonte: Compilação a partir de Mendelsohn (1932, p. 7, 9, 11, digitalizado pelo autor)
Figura 24 - Pavilhão da Rudolf Mosse (1928)
Fonte: Cobbers (2007, p. 53, digitalizado pelo autor)
51
Pode-se reconhecer a condução contrapontística também no Pavilhão Rudolf
Mosse (1928), construído para uma exposição internacional da imprensa em Colônia
(figura 24). O arquiteto articula o volume assentado no eixo horizontal estabelecendo
contraste com o elemento esbelto na vertical, o que não por acaso destaca o letreiro
da editora Rudolf Mosse e serve como torre de transmissão. De maneira semelhante
se articulam os planos na Torre Einstein (figura 1).
Para Mendelsohn (2000, p. 54), na interseção entre os eixos vertical e
horizontal "se origina - também como na música - a pausa solitária, a inesperada
mudança de direção [unerwartete Richtungsänderung ]" . O arquiteto não esclarece 59
de forma muito contundente o significado do termo, mas o conceito de intenção
( intentio ) de Santo Agostinho pode nos ajudar a entendê-lo. Agostinho, buscando
entender a forma do tempo, reconhece uma tensão interior gerada por um ato de
vontade, que dá a direção. O próprio Mendelsohn transpõe o conceito à música, na
qual encontra seu paralelo na "pausa solitária" (MENDELSOHN, 2000, p. 54).
Acredita-se que ele vislumbre, nessa mudança de direção ou ausência de som, a
potência da intentio desencadear incontáveis outros fluxos.
Ainda segundo a interpretação agostiniana de tempo, o mesmo não pode ser
tão facilmente apreendido como o espaço, e se caracteriza justamente pelo
"contínuo emergir e afundar na não existência" (MAMMI, 1994, p.52). O
entendimento se relaciona com a transposição [übertragen ] mendelsohniana da 60
impressão musical para outra forma de expressão artística, aqui o projeto
arquitetônico. Também sobre este processo, Beyer (2004, p.59) acrescenta:
[...] nosso foco não deve ser a imagem imaginária [imaginäres Bild ] da composição musical, senão o fluxo de tempo [Zeitstrom] e a força que sentimos imediatamente ao ouvir uma peça musical, e o ato de desenhar leva esse movimento ao mesmo tempo a um represamento [Stauung ].
59 A "inesperada mudança de direção" (MENDELSOHN, 2000) pode ser interpretada através do rasgo no tempo de Menezes (2013) nesse vazio deixado pelo estiramento do gesto que conteria a potência de incontáveis novas direções (seção 2.2). 60 Como forma de aproximar do campo da música, traduzimos o termo übertragen (Übertragung) como transposição. Ele poderia ser entendido também como transmissão, tradução ou emissão.
52
O represamento (Stauung ), também traduzido como congestão ou
estancamento , consiste na tentativa de materialização da massa musical. É como 61
se Mendelsohn, diante do fluxo de tempo (Zeitstrom) no qual a música se
desenvolve, estancasse determinados elementos buscando trazê-los ao plano
material. Para Beyer (2004, p. 59) o sentimento profundo do processo represado se
manifesta nos croquis de Mendelsohn, "o desenho em si é a expressão dessa
mudança interna de direção".
Há diversos croquis em folhetos de livros, concertos ou de missa, como os
desenhados sobre o texto da Cantata BWV 78 e da Paixão segundo São Mateus
BWV 244, ambas compostas por Bach (figura 25). Há dois croquis (do meio e à dir.)
que têm referências na sede do Berliner Tageblatt , projeto de reforma e expansão 62
que Mendelsohn realizou entre 1921 e 1923.
Figura 25 - Croquis musicais em textos de cantatas de Bach (1920)
Fonte: Comp. a partir de SMB (c2020, nº 876, 880 e 877)
Mendelsohn fez um primeiro croqui que não foi aprovado pelo cliente Hans
Lackmann-Mosse (SMB, c2020, nº 36), que queria uma renovação que não fosse
61 O conceito de represamento de Beyer (2004) assemelha-se à arquitetura como música congelada [gefrorene Musik ], metáfora atribuída a Friedrich Joseph Schelling (1775-1854) e utilizada por vários outros teóricos como Johann Wolfgang Goethe e Arthur Schopenhauer (PASCHA, 2004). Com a tese intitulada "'Gefrorene Musik': Das Verhältnis von Architektur und Musik in der ästhetischen Theorie " Pascha (2004) investiga a criação e o uso da metáfora. 62 O jornal da editora Rudolf Mosse foi um dos maiores da República de Weimar e importante formador de opinião de um espectro liberal de esquerda (STEPHAN, 1999, p. 48).
53
uma continuação historicista do edifício antigo, senão "um design completamente
novo que também pudesse ser usado para o marketing" (STEPHAN, 1999a, p. 49).
Mendelsohn se queixa da dificuldade de trabalhar em três pessoas no mesmo
projeto - ele, o assistente Richard Neutra e o escultor Paul Rudolf Henning -, com
especial dificuldade para resolver a esquina da fachada (figura 26).
Figura 26 - Sede do Berliner Tageblatt, fotografia da inauguração (1923)
Fonte: STEPHAN (1999a, p. 52, digitalizado pelo autor)
Com o relato de Stephan, notamos que o texto das cantatas não serviu
somente como rascunho, mas teve influência sobre as decisões projetuais de
Mendelsohn: Logo depois [da rejeição do primeiro croqui de Mendelsohn], de alguma forma, ele achou uma boa solução durante a performance da Paixão segundo São Mateus de Bach, um desenho com uma estrita separação entre a antiga edificação articulada verticalmente e a nova articulada horizontalmente, um baldaquino em balanço rodeando o canto, janelas em fita, e a adição de pavimentos dinamicamente inclinados. A música de Bach teve papel significativo também no planejamento subsequente do edifício Mosse. (STEPHAN, 1999a, p. 50) 63
63 "Shortly thereafter [the first sketch that wasn't the client wanted], however, he found a fitting solution during a performance of Bach's St. Matthew Passion, a design involving strict separation between the vertically articulated old building and the horizontally articulated new one, a strongly cantilevered baldachin rounding the corner, ribbon windows, and the addition of dynamically inclined stories.
54
Com o exemplo importância do contraste entre o antigo e o novo, entre as
janelas tradicionais verticais e as em fita. O baldaquino projetado em balanço
desenha a esquina, justificado pelo próprio Mendelsohn: "o baldaquino precisa ser
empurrado para fora, senão o baixo da fuga estará faltando" (EMA, 2014, nº 867) . 64
Notamos uma composição elaborada na fachada, na qual todos os elementos se
relacionam de forma rítmica, inclusive os letreiros (figura 27). Tal ferramenta
compositiva é utilizada em outros projetos de Mendelsohn, que veremos a seguir na
seção 3.2.
Figura 27 - Sede do Berliner Tageblatt, elevação e corte (1922)
Fonte: Stephan (1999, p. 50, digitalizado pelo autor)
Por fim, os aspectos que abordamos do processo de transposição musical de
Mendelsohn - direcionalidade, dupla dimensão (horizontal e vertical) e tensão interna
- são os mesmos que Mammi (1994) aponta como característicos da música tonal
ocidental e fundamentais para o conceito agostiniano da forma do tempo. Eles nos
ajudam e entender o processo de composição no qual se ampara a obra de Erich
Mendelsohn.
Bach's music played a significant role in the subsequent planning of the Mosse building as well." (STEPHAN, 1999, p. 50) 64 Carta de EM a LM em 06/08/1922: " Der Baldachin muß durchgesetzt werden, sonst fehlt der Fuge der Baß." (MENDELSOHN, 2014, nº 867)
55
3.2 FORMA, CONTRAPONTO E RITMO
O compositor que mais aparece nos croquis e cartas de Mendelsohn é J. S.
Bach, este responsável por explorar territórios e estruturar algumas regras da
música tonal (LÉVI-STRAUSS apud WISNIK, 2017). Ao se apropriar do caráter
discursivo e progressivo da música tonal, o compositor conduz de forma engenhosa
os caminhos melódicos contrapontísticos, criando planos harmônicos que conduzem
o ouvinte. É quase obsessiva a relação de admiração e representação de
Mendelsohn das suas obras, especialmente nas suítes para violoncelo solo. O
arquiteto parece associar a monumentalidade à religiosidade, como na figura 28, na
qual desenha um hall majestoso para um crematório inspirado na Suíte para
Violoncelo nº 4, de Bach (BWV 1010).
Figura 28 - Variações sobre um tema de hall e outros, croqui para um crematório (1914)
Fonte: Comp. a partir de SMB (c2020, nº 486 e 485)
No aniversário de Mendelsohn (21 de março, o mesmo dia de Bach), eram
promovidas noites dedicadas exclusivamente ao compositor, as Bachabende , nas
quais participavam celebridades como Lili Krauss e Albert Einstein. Luise conta que
seu marido ouvia a música por um tempo e logo começava a desenhar (STEPHAN,
1999, p.152), o que verificamos com a recorrência do tema nas cartas e croquis. Há
um exemplo no croqui abaixo (figura 29), intitulado ou endereçado a "Oskar Beyer,
56
Bachabend", no qual Mendelsohn desenha possibilidades de um edifício escalonado
de esquina.
Figura 29 - Croqui musical "Oskar Beyer, Bachabend" (1926) 65
Fonte: SMB (c2020, nº 708)
Segundo Beyer (2004, p. 63), o filho de Oskar Beyer citado acima , 66
Mendelsohn valoriza a obra de Bach por dois motivos: a potência criativa inesgotável
contida em uma obra [Werdeprozess ] e "a certeza que o fazer criativo estava em
consonância com uma realidade espiritual". A potência criativa está na habilidade do
compositor em explorar um tema incansavelmente e conceber a peça como um
organismo, característica que o arquiteto procura realizar especialmente com os
projetos comerciais. 67
Mendelsohn constrói aqui a sua própria "Arte da Fuga" com as Lojas
Schocken em Nürnberg (1925-1926), Stuttgart (1926-1928) e Chemnitz (1928-1929)
. Em Nürnberg, ainda que não construído na sua totalidade, o edifício despertou 68
uma reação positiva unânime dos críticos da época (figura 30). Stephan (1999b, p.
82) destaca por exemplo a fala de Justus Bier pela "superação magnífica do
65 O croqui foi recortado e invertido pelo autor para melhor visualização. 66 Sobre Frank Michael Beyer, ver nota 10. 67 O segundo motivo que Beyer (2004, p. 66) para o reconhecimento de Mendelsohn pela obra de Bach, "a certeza que o fazer criativo estava em consonância com uma realidade espiritual". O assunto é retomado brevemente a seguir, e traz muitos desdobramentos para outros trabalhos. 68 Mendelsohn já mostrava o desenvolvimento da sua linguagem arquitetônica nos projetos comerciais da Editora Rudolf Mosse (Berlim, 1921-1923), Loja de seda Weichmann (Gleiwitz, 1922-1923) e C. A. Herpich & Sons (Berlim, 1923-1925).
57
antigo… [das] leis de apoio e cargas, [...] simplicidade e firmeza da impressão do
todo", tendo o projeto adquirido significância arquitetônica no entorno em um
"simples golpe" . 69
Figura 30 - Loja Schocken em Nürnberg: croqui e fotografia (1926)
Fonte: Comp. a partir de SMB (c2020, nº 121) e STEPHAN (1999, p. 82)
A Loja Schocken de Stuttgart foi construída entre 1926 e 1928. Na figura 31
há um croqui desenhado por Mendelsohn que serve como guia para a inauguração
do edifício. No esquema ele parece dissolver os planos em linhas horizontais, usa-se
a cor vermelha para as partes opacas e a azul para as aberturas. Nota-se a
importância dada ao letreiro "SCHOCKEN" por estar inserido no projeto e na escala
do edifício, e não apenas como um elemento de propaganda adicionado
posteriormente . 70
69 "Justus Bier, for example, spoke of the 'magnificent overcoming of the old… laws of support and load,' of the 'simplicity and sureness of the overall expression,' and testified that with this building, the site had attained 'architectural significance … in a single stroke.'" (STEPHAN, 1999, p. 82) A autora também aponta o uso estratégico dos croquis de Mendelsohn para a publicidade da empresa (Schocken). 70 A criação de identidade corporativa e industrial de Mendelsohn é corrente em seus projetos (Lojas Schocken, Editora Rudolf Mosse, Fábrica de chapéus Hermann & Co. e etc.), é trazida por James (1997) e Stephan (1999, p. 38-55)
58
Figura 31 - Loja Schocken de Stuttgart, guia para a inauguração (1928)
Fonte: Stephan (1999b, p. 91, digitalizada pelo autor)
A "brevidade" na obra de Mendelsohn, denominada por Schönberg como a
"característica mais notável" das obras dodecafônicas (apud ZEVI, 1982, p. 86), se
confirma por meio dos seus croquis e projetos na síntese eficaz de suas ideias em
poucos traços. O método dos esboços resume relações espaciais complexas e
destaca o processo de composição.
Zevi (1982) ainda identifica na Loja Schocken de Stuttgart (figura 32) "a
natureza excepcional" de coordenar diferentes elementos formalmente distintos em
uma dimensão urbana complexa e completa: "É claro que se trata de um discurso
muito rápido, baseado no movimento visual e na dinâmica da fruição. Isso é evidente
nos espaços interiores dissonantes, fluidos e sempre diferentes." O próprio 71
Mendelsohn reconheceu o projeto da Loja Schocken de Stuttgart com um "motivo
71 "L'eccezionalità di Stoccarda dipende dal saper adottare la stessa "brevitá" di parole e di snodi sintattici in una dimensione urbana estremamente complessa. [...] È chiaro che si tratta di un discorso rapidissimo, impostato sul movimento visivo e sulla dinamica della fruizione. Ciò è evidente nei dissonanti spazi interni, fluidi e sempre diversi." (ZEVI, 1982, p. 90)
59
condutor [Leitmotiv ] arquitetônico harmonioso e contrapontístico", sendo que a 72
ideia decisiva veio durante um concerto de Bach (COBBERS, 2007, p. 39). O
contraste entre os planos é reforçado pelos materiais: tijolo escuro ao longo das
fachadas e escada envidraçada na esquina. A modulação das janelas laterais
também contrasta com a torre de vidro da circulação principal. Mendelsohn (2000)
retoma os termos do seu texto de 1925 consolidando na Loja Schocken de Stuttgart
a condução contrapontística.
Figura 32 - Loja Schocken de Stuttgart, fotografia da esquina (1928)
Fonte: Stephan (1999, p. 87, digitalizado pelo autor)
Zevi (1982, p. 86) reconhece nesse edifício o triunfo da dissonância. Segundo
ele, é por meio do contraste entre a horizontalidade das faixas de janelas repetidas
com os eixos verticais cilíndricos, que se pode ver o que se considera inflexão e
72 Leitmotiv, "No seu sentido principal, um tema, ou outra ideia musical coerente, claramente definida para reter sua identidade se modificada em aparições subsequentes, com o propósito de representar ou simbolizar uma pessoa, objeto, lugar, ideia, estado de espírito, força sobrenatural ou qualquer outro ingrediente de uma obra dramática [In its primary sense, a theme, or other coherent musical idea, clearly defined so as to retain its identity if modified on subsequent appearances, whose purpose is to represent or symbolize a person, object, place, idea, state of mind, supernatural force or any other ingredient in a dramatic work ]." (WHITTAL, c2020)
60
contraponto na técnica musical . A ideia de dissonância na música de Bach é 73
substancial para a construção de uma narrativa possível. Por meio de acordes
dominantes (ou de tensão, por conterem o trítono) o compositor cria contraste e
relaciona os campos harmônicos de diferentes tonalidades.
É por meio do ritmo que Mendelsohn encontra a dissonância na arquitetura.
Na primeira carta enviada à Luise em agosto de 1910, o arquiteto estabelece a
importância do ritmo na sua percepção:
Você [Luise] deve saber que cada obra de arte é uma expressão do senso rítmico de uma pessoa. [...] O ritmo sozinho cria o valor artístico. E por valor artístico não me refiro à quantidade de habilidade técnica que foi utilizada, senão ao abundante reconhecimento na personalidade dos artistas, em nobres percepções rítmicas. [...] É a quantidade do ritmo englobante [umfassenden Rhythmus] - isto é, o modo como cada elemento individual, como um som diante de outro, uma linha, uma mancha de tinta se articula com o todo - que nos persuade à alta noção, à empatia silenciosa e sagrada [dies stillheilige Mitempfinden ablockt]. (EMA, 2014, nº 1) 74
O arquiteto busca articular ritmicamente as suas massas, especialmente nas
fachadas dos projetos comerciais. Na figura 32, a intenção contrapontual é
evidenciada pelo ritmo vertical das três massas, sendo elas: a fachada da
Eberhardstraße, rua à direita (com o letreiro iluminado Schocken), a torre de
circulação vertical iluminada no centro e a fachada da Hirschstraße (rua que desce à
esquerda). Na fachada da Eberhardstraße as aberturas compõem com o
revestimento uma relação aproximada de um para um no plano vertical, inclusive
mantém a mesma proporção no andar térreo e nas letras iluminadas. Na torre de
circulação, destacada pela iluminação interna, há quatro linhas de elementos de
73 "Qui la dissonanza trionfa: da un lato, il blocco del magazzino che esalta la sua orizzontalità nelle bande piene e vuote, nella pensilina e nella scritta su di essa posata; dall'altro, i due perni dei semicilindri, uno tonante e prolungato sulla strada inclinata, e l'atro che gli fa eco, sopra il tetto, sul fianco opposto. Molti critici hanno parlato di tecnica musicale, giocata tra 'inflessione e contrappunto'". (ZEVI, 1982, p.86) 74 Carta nº 1 de EM a LM, enviada de Allenstein em 16 de ago. de 1910. "Sie [Luise] werden sich bewußt sein, daß jede Kunstleistung der Ausfluß des persönlichen rythmischen Gefühls ist. [...] Der Rhythmus aber allein ist es, der den Kunstwert schafft. Denn unter Kunstwert verstehe ich nicht das Hochmaß verwendeter technischer Fähigkeiten, sondern die Menge des Wiedererkennens der von edel rhythmischen Empfindungen begeisterten Persönlichkeit des Künstlers. [...] allein die Menge des umfassenden Rhythmus, d. h. die Art, wie jedes einzelne Glied, wie ein Ton sich dem anderen, eine Linie, ein Farbfleck sich dem Ganzen beiund unterordnet, uns diese hohe Vorstellung, dies stillheilige Mitempfinden ablockt." (EMA, 2014, nº 1) A tradução para o inglês que consta em Beyer (1967, p. 23) nos ajudou a localizá-la e a traduzi-la mais adequadamente.
61
proteção para cada pavimento. Na fachada da Hirschstraße a modulação de
aberturas e revestimentos é decrescente na medida em que sobe: começa com três
linhas de esquadrias no primeiro andar, duas no segundo e apenas uma no terceiro.
A pouca variação da fachada da Eberhardstraße pode aludir à velocidade e
ideia de modernidade, sendo essa a rua mais larga pela qual passavam veículos e
trens de superfície (semelhante à fachada da Loja Schocken de Chemnitz, seção
2.1). Destoa do tratamento da fachada da Hirschstraße , na qual o escalonamento
das aberturas serve para diminuir a impressão de altura do edifício em relação à rua
estreita. O arquiteto trabalha a escala dos volumes em cada fachada de acordo com
a hierarquia das ruas. Portanto, o ritmo é trabalhado reforçando cada uma dessas
partes, como em uma peça musical com movimentos rápidos e lentos alternados. A
dissonância que costuma ser relacionada à frequência no campo da música,
encontra aqui uma aplicação rítmica. 75
Banham (apud Frampton, 2008, p. 145) reconhece que, a partir das Lojas
Schocken, Mendelsohn passou a pensar "em termos de conjuntos estruturais de
unidades geométricas simples que se apresentavam ao olhar como orlas
nitidamente perfiladas". Esses conjuntos de unidades geométricas se organizam
também pela ideia de ritmo. Na música, o ritmo regular garante uma constância ou
segurança a qual a melodia (ou o olhar) pode escorrer levemente ou passear. É ele
que faz a melodia parecer tão sinuosa, essa relatividade da narrativa direcional em
relação ao espaço, à forma.
A iluminação interna das fachadas também acentua as suas intenções
rítmicas. Com a eletrificação das cidades do início do século XX há uma grande
mudança na paisagem noturna berlinense. Ela não se dá somente nas ruas como
também na arquitetura, que se transforma em possibilidade de anúncios luminosos e
escritos. Nas Lojas Schocken, Mendelsohn usa a iluminação interna de forma 76
dramática, instigando os transeuntes no período noturno. Na figura 33, as duas
75 José Miguel Wisnik (2017) coloca lado a lado o desenvolvimento das proporções e dissonância nas alturas na música européia e a rítmica na África e Indonésia. Há áudios na trilha do livro que sobrepõem proporções idênticas nas alturas e ritmos, como por exemplo a relação de 1 para 2, que corresponde ao intervalo de oitava e a polirritmia entre 1 e 2 toques. 76 Förster (2006) se dedica à questão e faz um estudo mais aprofundado da luz e fotografia na obra de Erich Mendelsohn, com destaque para o fotógrafo Arthur Kösters.
62
figuras da Loja Schocken de Chemnitz evidenciam o contraste que se inverte com o
passar do dia.
Figura 33 - Loja Schocken Chemnitz, dia e noite (1930)
Fonte: STEPHAN(1999b, p.107, digitalizada pelo autor)
A repetição de elementos verticais na fachada aparece também em um croqui
de Mendelsohn (figura 34) e reforça a grandiosidade e o caráter fúnebre do Requiem
em Ré menor (K626), de Wolfgang Amadeus Mozart. 77
Figura 34 - Croqui musical Requiem de Mozart (1920)
Fonte: SMB (c2020, nº 612)
77 Também encontramos a repetição de elementos perfilados associados ao caráter fúnebre no Monumento aos Judeus Mortos da Europa (2003-2005), de Peter Eisenman, em Berlim.
63
O arquiteto judeu tem uma relação peculiar com a sacralidade e
monumentalidade buscada por meio da música. Ele encontra na música de Ludwig
van Beethoven (1770-1827) uma forma de aproximar-se de Deus. Mendelsohn
contempla a imagem do compositor em seu templo, e se inspira para escrever
depois de ouvir o 5º movimento intitulado Cavatina - Adagio molto espressivo , do
Quarteto de cordas nº 13 em Si Bemol Maior . O movimento é lento, expressivo e 78
cantábile , característico de uma cavatina, e foi descrito pelo próprio Beethoven como
a coroa de todo o quarteto, o seu preferido. No desenho da figura 35 está a entrada
de um templo, com colunas perfiladas sustentadas por pessoas amontoadas.
Percebe-se o caráter de monumentalidade que Mendelsohn atribui ao terceiro
movimento da nona sinfonia, mais uma vez um lento (Adagio molto cantábile e
Andante moderato ). O movimento lembra a Sinfonia nº 6 (Pastoral) pelo uso
extensivo de solo no naipe das madeiras.
Figura 35 - Croqui para um espaço sagrado, perspectiva interna (1914)
Fonte: SMB (c2020, nº 317)
78 "[...] Im Tempel meines Hauses Steht Beethovens Bild. - Hier knie ich nieder. Meine Hände schmücken Dich, meine Augen umfassen Dich, meine Seele rankt sich an Dir empor, Du großer, Herrlicher. Nach op. 130. B-dur schrieb ich das für Sie. Adagio molto espressivo Wie kenne ich alle. Wie muß ich Ihnen dankbar sein, daß Sie mir dazu den Weg wiesen. Nehmen Sie es bitte als Ihnen zugeeignet an. [...]". Carta nº16 de EM a LM, 13/01/1911 (EMA, 2014).
64
O termo ritmo é mal aplicado tanto na arquitetura quanto na música, utilizado
de forma rasa para se referir a repetição regular de determinados elementos. Mammi
(1994) levanta a hipótese que a associação à repetição e regularidade vem de uma
tentativa dos gregos para a compreensão do tempo, em uma busca por
regularidades e proporções que o aproximem da ideia de perpétuo . "A teoria 79
rítmica dos gregos será portanto um esforço contínuo para a regularização e a
matematização das durações." (MAMMI, 1994, p. 46) O termo grego ritmos surge a
partir de reo e representa originalmente a "maneira com que um evento flui no
tempo". O significado ainda por cima foi exacerbado por um erro de interpretação na
tradução para o latim, que o entenderam como uma deformação de aritmos e gerou
por consequência a seguinte mudança de perspectiva:
[...] para os gregos, os valores numéricos eram algo que podia e devia ser extraído do fluir dos ventos, mas não era dado de antemão; para os latinos, ao contrário, são rítmicas apenas aquelas durações que já se apresentam como quantidades regulares, numéricas. Todos os movimentos irregulares ficam fora do campo do conhecimento (MAMMI, 1994, p. 47)
Uma outra palavra que pode ampliar o nosso conceito de ritmo é a euritmia,
como a qualidade de um bom ritmo. Na arquitetura, para Vitrúvio (2007, p.75) é "a
forma exterior elegante e o aspecto agradável na adequação de diferentes porções."
. O termo, atualizado por Bastos (2014, p. 67), assemelha-se à "disposição 80
proporcionada pelo conjunto da obra", exemplificado pelo corpo humano como um
"modelo natural de conveniência e beleza". A euritmia pode pode ser entendida
como essa beleza aparente visual ou auditiva de partes bem dispostas e se
relaciona muito mais à forma como uma articulação de diferentes partes que
proporcionam contrastes, neste caso polirritmias.
79 Perpétuo aqui tem o sentido do reflexo imediato da eternidade, sua imitação perfeita no mundo sensível. (MAMMI, 1994, p. 46) 80 Vitrúvio (2007, p. 75) segue com a definição de euritmia: "[...] Tal verifica-se quando as partes da obra são proporcionais na altura em relação à largura, nesta em relação ao comprimento, em suma, quanto todas as partes correspondem às respectivas comensurabilidades [Symmetria ]." Apesar de tratarmos a simetria nesse trabalho como a especular, ela é entendida por Vitrúvio (2007, p. 76) como uma "comensurabilidade" ou "conveniente equilíbrio dos membros da própria obra e na correspondência de uma determinada parte, dentre as partes separadas, com a harmonia do conjunto da figura". Tal ideia é utilizada nossa pesquisa com a euritmia, forma e pensamento como um todo.
65
4 CONCLUSÃO
Reconhecemos a relevância de Erich Mendelsohn para a arquitetura do
século XX, destacando nessa análise algumas de suas características distintas,
como a conciliação entre oposições, em especial entre o material e o metafísico; a
busca por referências musicais, ilustrado no uso da dissonância e ritmo como
ferramentas compositivas; o represamento do fluxo de tempo por meio dos croquis,
dando direção ao seu processo de projeto.
Diante de tais reflexões, acreditamos que a relação de Mendelsohn com a
música é proveitosa para compreender suas decisões arquitetônicas e
contextualizá-lo na arquitetura do século XX. Sua obra heterogênea não é redutível
a títulos como expressionista, racionalista, orgânico ou mesmo funcionalismo
dinâmico, no entanto o expressionismo nos ajuda a compreender a sua postura
frente à arte com a ideia de conciliação. O arquiteto trabalha entre oposições como
função e dinâmica, orgânico e geométrico, apolíneo e dionisíaco, individual e
coletivo.
Mendelsohn, assim como outros arquitetos da mesma época na Alemanha,
busca representar com a arquitetura os ideais da modernidade alemã pós-guerra e
recém-industrializada. Encontramos essa procura na velocidade ou uniformidade
com que desenha as fachadas (como a Loja Schocken de Chemnitz), de forma que
o nível de detalhe é proporcional à hierarquia da rua no meio da cidade.
No campo da música, temos o rasgo expressionista em Schönberg que,
definido como o dilema entre racionalidade e expressão, o aproxima de Mendelsohn.
Ambos são reconhecidos pela proposição de novos parâmetros, o que não exclui a
transtextualidade e referência a grandes compositores. Além disso, a predominância
da racionalidade não impede que uma música provoque sentimentos dos mais
diversos nos ouvintes. Nesse sentido, acreditamos que há pesquisas a serem
desenvolvidas comparando a apreensibilidade e legibilidade das composições
arquitetônicas e musicais em função das suas relações lógicas (incluindo o
serialismo musical de forma mais ampla).
66
Mendelsohn, ainda que semelhante a Schönberg na proposição de novos
parâmetros, não deixa de reproduzir valores universais como simetria e contraste
nos seus projetos, o que torna adequado usar o termo composição para analisar sua
obra arquitetônica. A dissonância ocupa um lugar central na forma de sua obra e
aparece entre os planos vertical e horizontal, entre o opaco e translúcido ou entre
volumes na fachada. Nossa análise é de certa forma limitada por trazermos na
maioria apenas o exterior dos edifícios, bastante conveniente por Mendelsohn, de
fato, nos croquis empenhar-se no equilíbrio das massas e forma exterior.
Acreditamos que um estudo dos interiores dos edifícios reais forneceria uma análise
mais aprofundada, dificultada pela maioria ter sido destruída ou modificada . 81
O ritmo é um parâmetro muito utilizado pelo arquiteto e é evidente nas suas
fachadas. O termo, que vem do fluir dos eventos (do grego reo ), foi tomado na
história ocidental desde os gregos como proporções regulares, o que reverbera até
hoje na nossa música com o uso extensivo de metrônomo. Na arquitetura, a
matematização se manifesta pelo pensamento funcional e formalista na repetição
exaustiva e literal de elementos perfilados. O uso da palavra euritmia parece mais
adequado para analisarmos a obra de Mendelsohn por aproximar o ritmo do
conceito de forma, como a articulação ou disposição entre as partes em um
organismo (evidente nos seus projetos comerciais da década de 1920).
Compreendemos que a música para Mendelsohn não é somente uma cortina
e que o seu entendimento como um fluxo no tempo possibilita inúmeras
interpretações, entre elas o represamento que o arquiteto efetua. Mendelsohn atribui
significado de forma subjetiva como qualquer outro ouvinte, porém já reinterpreta e
devolve em uma versão espacial. Esse ato, que pode ser comparado à performance,
surge primeiro nos seus croquis como um contato com as massas que amadurecem
ou como ideias a serem lapidadas, que depois se refletirão nos seus edifícios.
Mendelsohn parece encontrar na música de Bach uma Gestalt que ainda não
havia chegado ao campo da arquitetura. Ele não transpõe literalmente as obras, mas
81 Há um balanço das obras remanescentes em: Das Erbe von Erich Mendelsohn – ein gemeinsames Erbe. In: Das Architektonische Erbe der Avantgarde. Berlin 2010 (encontrado em: ICOMOS. Hefte des deutschen Nationalkommitees XLVIII, p. 22-55).
67
sim os procedimentos de criação musical, articulando os espaços com conceitos
musicais de forma, contraponto e ritmo. Uma explicação possível para o fato de
Mendelsohn não tomar como referência musical a obra dos seus contemporâneos, é
que a música e a arquitetura, ainda que sejam reflexo do contexto em que estão
inseridas, têm particularidades que as fazem se desenvolver de maneiras muito
diferentes. A maior semelhança entre os fluxos arquitetônico e musical se efetiva no
processo da composição, nas decisões formais e na ideia do todo. Entretanto o fluxo
temporal da música pode ser visto de maneira ainda mais subjetiva, pois consiste
em informações que desvanecem para dar lugar a outras, tornando uma perspectiva
ou ideia do todo extremamente abstratas. O fluxo espacial arquitetônico depois de
construído, para além da demanda funcional, se caracteriza pela materialidade e
solidez em uma dimensão mais desenvolvida e sistematizada cientificamente.
Na arquitetura, ainda que a sua representação seja limitada a desenhos
técnicos, perspectivas e maquetes que não proporcionam a experiência espacial
completa, a transmissão de uma obra detalhada devidamente parece mais fiel aos
desejos do compositor arquiteto do que ao músico. Na música há a figura do
intérprete entre o criador e o público, sujeito a uma notação que não logra descrever
com perfeição o que será apresentado e que lhe fornece relativa liberdade
interpretativa. Parece-nos um campo interessante e talvez não tão explorado o
atravessamento entre a expressão e atribuição de significado por parte dos
arquitetos/compositores com a dos usuários/ouvintes.
Essa pesquisa nos proporcionou muitas reflexões sobre a atuação do
arquiteto e urbanista, formação que tange diversas áreas. Hoje tenho a percepção
que, mais do que construir, aprende-se a pensar (n)o espaço-tempo, sendo a
pesquisa acadêmica um campo fecundo para essas investigações. Percebemos a
multiplicidade de caminhos possíveis a partir das relações que experimentamos
entre arquitetura e música, em especial na obra de Erich Mendelsohn, destacada
pelo seu ineditismo no Brasil. Reforçamos a importância do vasto material disponível
do arquiteto (EMA, 2014; SMB, 2020), terreno fértil para que sejam realizados outros
trabalhos.