Louise michel

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Page 1: Louise michel

LOUISE­MICHEL1

Filme da dupla Delépine­Kervern é uma comédia  dramática com um fundo ideológico anarquista, uma sátira simultaneamente incrível e muito plausível.

Agora que sabemosQue os ricos são gatunos

Se o nosso pai, a nossa mãeNão conseguiram varrê­los da terra

Nós, quando crescermos,Faremos deles carne picada.

1 Lousie­Michel, nascida em Vroncourt­la­Côte a 29 de Maio de 1830, professora, militante anarquista de ideais feministas e uma das figuras mais importantes da Comuna de Paris, participou tanto na linha de frente nas barricadas, como em funções de apoio até ser capturada e deportada para a Nova Caledônia.Foi a primeira a empunhar a bandeira preta popularizando­a no seio do movimento anarquista. Morreu em Marselha, a 9 de Janeiro de 1905 com 74 anos.

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LOUISE-MICHEL

Uma história aparentemente

simples de um grupo de trabalhadoras que

decidem matar o patrão depois da falência

da fábrica sem aviso prévio, torna-se uma

autêntica epopeia que nos leva muito acima

na cadeia de comando.

Apesar do seu lado surreal,

povoado de cenas absurdas, ainda assim

podemos colocar o filme nos contornos da

nossa realidade. E se muitas vezes as cenas

cómicas de uma hiper-realidade gelada e

cínica nos fazem duvidar do nosso próprio

riso, esse lado cómico do filme é bem

compensado com a sua lentidão, que

acentua toda a gravidade da situação. A

questão é, aliás, central na sociedade – o

que fazer com o desespero e quem culpar?

O humor negro do filme aplica-se a

todas as personagens sem exceção mas

consegue vestir de diferentes roupagens os

miseráveis e os impiedosos – ao mesmo

tempo que torna ainda mais analfabeta

Louise, sensibilizando-nos para o seu

desespero, torna ainda mais supérfluo o

lugar do grande empresário no mundo,

isolado na sua mansão, indiferente a

qualquer resquício de humanidade e

destinado a correr na passadeira do seu

ginásio negociando ações na bolsa.

Aquilo que aproxima a realidade e

o filme é que cada personagem é uma

caricatura e a caricatura é sempre feita

sobre um fundo real – um exagero daquilo

que realmente é. Assim Louise poderia

existir como no filme, uma senhora

analfabeta de meia-idade, que perde o seu

trabalho com uma indeminização ridícula,

e que provavelmente não conseguirá

qualquer outro emprego. É uma inapta da

sociedade, uma marginal. Mas no fundo

somos todos humanos, e cada um tem

direito ao seu lugar no mundo. Neste

sentido, a desumanização do grande

empresário funciona perfeitamente – o seu

egoísmo espelho do negócio, como se fosse

o lugar da sua personalidade, como se o

capital o invadisse não deixando lugar para

qualquer relação afetiva humana.

Mas a questão é também uma

afirmação – a de que o problema não reside

apenas no pequeno patrão mas numa

cadeia muito maior – de que vai muito

mais fundo do que nós imaginamos mas

não tão fundo que seja intocável – afinal de

contas, o grande empresário na sua mansão

divina isolada acaba por ser morto como

humano que é.

O filme acaba por ser uma

constatação revoltada da situação social a

que o capitalismo globalizado nos reduz.

Uma espécie de chamada de atenção que

diz que o sistema (que não funciona) nos

entala na miséria mas não é por isso que

devemos deixar que goze com a nossa cara.

E no fundo a solução parece-nos

viável. Matar o patrão… Eu própria

levantaria a mão aquando da pequena

assembleia.

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Para além de um retrato da sociedade, o filme mostra-nos

bem o que é um filme: uma sucessão de cenas aparentemente

desligadas mas que fazem sentido no seu conjunto.

É deste modo que apresenta cenas e personagens

aparentemente dispensáveis ou redundantes - digo aparentemente

porque estes elementos fazem mais do que enriquecer o universo

fictício do filme: alargam a sátira para a sociedade inteira através

de personagens-tipo e alargam a compreensão quando

percebemos o sentido de uma cena através de uma que lhe

sucede, colocando a questão num âmbito mais alargado do que

aquela que toca aos dois protagonistas.

Assim, mais para além da situação

em que se encontram os protagonistas,

existem pistas que apontam noutros

sentidos. Temos o vizinho de Michel,

maníaco das conspirações, com um

magnífico plano filmado de cima que nos

mostra uma troca de chapéu-de-chuva uma

camuflagem para a câmara e para o céu,

antes de o ouvirmos gritar para cima “Boa

tentativa! Nunca me apanharás! Nunca!”

sem sabermos se é para Deus ou para uns

quaisquer satélites que ele fala. Também o

casal pseudoecológico retrata tão bem o

cinismo e a falta de informação, a forma

como somos tão bem enganados com a

subversão das palavras, e a forma como o

mercado nos manipula com estratégias de

consumo, impingindo termos que não

significam absolutamente nada “café com

ómega 3… adoçante biológico”. Temos

também a forma como Michel põe os

moribundos a assassinar no seu lugar,

presenteando-os assim com uma maneira

de morrer com sentido – que não é tanto o

de matar alguém por um prazer mórbido

mas a de morrer sabendo que se participou

de alguma maneira na mudança e na

justiça. Até o discurso de Michel sobre a

segurança faz sentido se tomarmos em

conta o panorama atual, toda a

monitorização e vigilância a que somos

sujeitos quer tenhamos ou não

conhecimento disso. Isto rematado pelo

alarme instalado por Michel em casa dos

pais, completamente inútil naquele

condomínio virado para o interior, que toca

com qualquer movimento da vida

quotidiana. “Ah, é o gato. (…) É uma

mosca.”

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FEMININO-MASCULINO

“O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA

PREJUDICA O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIC DELICIOSO À DIVERSIDADE DA

ESPÉCIE. MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS

DIFERENCIAR-SE, FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES

COMO ESTA FAMOSA "CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL" SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI

DESAPARECER EM BREVE.

PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR AS DISTÂNCIAS E

NUNCA PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA,

AVIAÇÃO, CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC. ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR

LIBERTADORES DIZEM-NA "ESCRAVA DO HOMEM" E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É

UM HOMEM.”

(…)

“O regresso de Ulisses”

in Pena Capital de Mário Cesariny

Existe uma confusão crescente dos

géneros ao longo do filme que, mais para

além daquilo que traz ao universo fictício

do filme, toca também na questão humana.

Somos para o sistema bens

materiais, mão-de-obra, ferramentas de

lucro, antes de sermos humanos ou mesmo

antes de sermos homens ou mulheres.

É assim que o subdiretor se dá ao

luxo de identificar a bata de Louise com

um nome masculino. É essa confusão,

propositadamente banalizada no filme, que

transforma Louise em Jean-Pierre e Michel

em Cathy para nos mostrar que a nossa

humanidade partilhada, aquela pela qual

devemos lutar, transcende o nosso género.

E afinal de contas, Louise-Michel é

Louise que é uma mulher que é um homem

e Michel que é um homem que é uma

mulher.

E Louise-Michel é uma mulher e é

Homem para mostrar que a luta é de todos.

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DA MORTE AO NASCIMENTO

O filme explora a inversão de conceitos fixados no

tempo, mas que podem ser subvertidos - o homem é mulher,

a mulher é homem e o próprio ciclo da vida está invertido:

começa com uma morte e acaba com um nascimento.

De pé, ó vítimas da fome!

De pé, famélicos da terra!

Da ideia a chama já consome

A crosta bruta que a soterra.

Mas cortai o mal bem pelo fundo!

De pé, de pé, não mais senhores!

Se nada somos neste mundo,

Sejamos tudo, oh produtores!

Bem unidos façamos,

Nesta luta final,

Duma Terra sem amos

A Internacional.

Tudo começa com uma cremação.

Percebemos logo que vai ser um filme

cómico através de toda a incompetência do

serviço (“Alguém tem… lume?”) mas não

conseguimos bem perceber a relevância da

cena para a intriga principal.

Esta sequência consegue tomar, no

entanto, um sentido gigantesco com a

Internacional que passa no rádio e com o

paralelismo que podemos estabelecer com

a sequência do nascimento final. Morre um

homem que deseja uma mudança, e, na sua

luta final ele deseja a terra sem amos.

E no final nasce alguém – uma

criança sem género: os patrões decidir-lhe-

ão o sexo porque ainda têm poder para

isso.

Mas «Agora que sabemos que os

ricos são gatunos, se o nosso pai, a nossa

mãe não conseguiram varrê-los da terra,

nós, quando crescermos, faremos deles

carne picada. ». A mensagem é límpida e

constitui uma boa forma de dizer que a luta

é contínua, é transgeracional e renasce.

Morreu um homem e o seu lema era

uma luta, uma guerra única e final onde a

terra se une na luta contra os patrões – o

seu lema era acordar as pessoas para a

injustiça. Mas o ser humano novo que

nasce já conhece a injustiça, como nós as

vamos conhecendo cada vez melhor, e o

culminar é assumir a luta e continuar,

conseguindo efetivamente aquilo que antes

não se conseguiu.

Ana da Palma Kennerly