LOSURDO, Domênico. as Lutas Contra-hegemônicas Do Século XX Ou Século XXI.

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As lutas contra-hegemônicas do século XX ao século XXI*  (Domenico Losurdo**) 1. O jogo das analogias e das suas consequências nefastas Em 1938, Trotsky fundava a IV Internacional a partir deste pressuposto: assim como tinha acontecido no decurso do primeiro conflito mundial, também no decurso do segundo conflito mundial, que já se preparava, ter-se-ia verificado a transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária e daí teria derivado uma onda revolucionária ainda mais gigantesca do que aquela que tinha marcado o nascimento da Rússia soviética. De fato, uma onda revolucionária sacudia o planeta inteiro, mas desenvolvia- se segundo modalidades diversas e opostas, a partir de guerras de resistência e libertação nacional contra o imperialismo: isso não era válido só para a União Soviética, empenhada na Grande Guerra patriótica, ou para a China, ou para a Checoslováquia, a Iugoslávia, a Albânia; mas também para países capitalistas mais ou menos avançados como a Grécia, a Itália, a França, a revolução desenvolvia- se como guerra de libertação nacional dirigida pelo partido comunista. Na realidade, contrariamente às previsões de Trotsky, o nascimento da Rússia soviética e o impulso dado por ela ao movimento anticolonialista e, na vertente oposta, o surgir do Terceiro Reich, empenhado em retomar e radicalizar a tradição colonial, tornando-a válida na própria Europa Oriental, em síntese, exatamente as novidades surgidas a partir de Outubro de 1917 tornavam impossível a repetição do cenário da primeira guerra mundial. Em 1952, um ano antes da sua morte, Stalin fazia ele também uma previsão: derrotados em 1945, a Alemanha e o Japão não suportariam para sempre a hegemonia dos Estados Unidos; rebentariam novas e violentas contradições inter-imperialistas e esta teria sido a oportunidade para um novo e talvez decisivo alargamento do campo socialista. Isto é, verificar-se- ia um cenário semelhante ao da Primeira e, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial; esta última, antes de envolver a União Soviética, tinha visto confrontarem- se só países capitalistas. Como é sabido, as coisas encaminharam- se numa direção exatamente oposta: a força do campo socialista e o medo da sua amplitude contribuíram para o compactuamento do imperialismo, ao passo que foi o próprio campo socialista que, não conseguindo resolver seu problema das relações entre países socialistas, conheceu contradições ásperas e até violentas no seu interior e acabou indo ao encontro da sua dissolução. Enfim. Em 1965, Lin Piao fazia de Pequim uma terceira previsão: a dialética que tinha promovido a vitória da revolução na China, isto é, o cerco da cidade a partir do campo, manisfestar- se-ia também a nível planetário. A

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As lutas contra-hegemnicas do sculo XX ao sculo XXI*(Domenico Losurdo**)1. O jogo das analogias e das suas consequncias nefastasEm 1938, Trotsky fundava a IV Internacional a partir deste pressuposto: assim como tinha acontecido no decurso do primeiro conflito mundial, tambm no decurso do segundo conflito mundial, que j se preparava, ter-se-ia verificado a transformao da guerra imperialista em guerra civil revolucionria e da teria derivado uma onda revolucionria ainda mais gigantesca do que aquela que tinha marcado o nascimento da Rssia sovitica. De fato, uma onda revolucionria sacudia o planeta inteiro, mas desenvolvia- se segundo modalidades diversas e opostas, a partir de guerras de resistncia e libertao nacional contra o imperialismo: isso no era vlido s para a Unio Sovitica, empenhada na Grande Guerra patritica, ou para a China, ou para a Checoslovquia, a Iugoslvia, a Albnia; mas tambm para pases capitalistas mais ou menos avanados como a Grcia, a Itlia, a Frana, a revoluo desenvolvia- se como guerra de libertao nacional dirigida pelo partido comunista. Na realidade, contrariamente s previses de Trotsky, o nascimento da Rssia sovitica e o impulso dado por ela ao movimento anticolonialista e, na vertente oposta, o surgir do Terceiro Reich, empenhado em retomar e radicalizar a tradio colonial, tornando-a vlida na prpria Europa Oriental, em sntese, exatamente as novidades surgidas a partir de Outubro de 1917 tornavam impossvel a repetio do cenrio da primeira guerra mundial.

Em 1952, um ano antes da sua morte, Stalin fazia ele tambm uma previso: derrotados em 1945, a Alemanha e o Japo no suportariam para sempre a hegemonia dos Estados Unidos; rebentariam novas e violentas contradies inter-imperialistas e esta teria sido a oportunidade para um novo e talvez decisivo alargamento do campo socialista. Isto , verificar-se- ia um cenrio semelhante ao da Primeira e, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial; esta ltima, antes de envolver a Unio Sovitica, tinha visto confrontarem- se s pases capitalistas. Como sabido, as coisas encaminharam- se numa direo exatamente oposta: a fora do campo socialista e o medo da sua amplitude contriburam para o compactuamento do imperialismo, ao passo que foi o prprio campo socialista que, no conseguindo resolver seu problema das relaes entre pases socialistas, conheceu contradies speras e at violentas no seu interior e acabou indo ao encontro da sua dissoluo.Enfim. Em 1965, Lin Piao fazia de Pequim uma terceira previso: a dialtica que tinha promovido a vitria da revoluo na China, isto , o cerco da cidade a partir do campo, manisfestar- se-ia tambm a nvel planetrio. A vitria na sia, na frica, na Amrica Latina das revolues anticoloniais dirigidas por partidos comunistas cercariam a metrpole capitalista e imperialista, at que esta acabasse por desabar. Na realidade, em 1928, Mao tinha esclarecido que o que tinha tornado possvel a construo do poder vermelho nos campos chineses tinham sido as contradies e a luta entre os estados imperialistas . A prpria vitria da revoluo chinesa e de outras revolues anticoloniais levava os pases capitalista a pr de parte em certa medida as usas rivalidades e a juntarem-se sob a gide dos Estados Unidos. Na realidade, entre 1989 e 1991 no era o campo socialista que cercava a metrpole capitalista e imperialista, era pelo contrrio a metrpole capitalista e imperialista a cercar pases como Cuba, o Vietn e a China.

Em concluso, de todas as vezes que se abandonou ao jogo das analogias, o movimento revolucionrio sofreu amargas decepes ou verdadeiras catstrofes. necessrio, pelo contrrio, citando Lenin, proceder a uma anlise concreta da situao concreta. preciso inspirarmo-nos nesta lio quando nos interrogamos acerca das perspectivas da revoluo no sculo XXI.

A situao mudou radicalmente em comparao com o passado. Na esteira do fracasso do projeto hitleriano de retomar e radicalizar a tradio colonial, identificando na Europa Oriental o Far West a colonizar e germanizar; na esteira de Stalingrado e da derrota inflingida ao nazifascismo, imediatamente a seguir 2 Guerra Mundial desenvolvia- se uma revoluo anticolonialista de dimenses planetrias. No eram s as colnias propriamente ditas que eram sacudidas. Em pases como os Estados Unidos e a frica do Sul, os povos de origem colonial revoltavam-se contra o estado racial e o regime de White supremacy. Ainda antes de encontrar uma expresso consciente nos partidos e nas foras de esquerda, o internacionalismo existia nos fatos: ele abrangia os povos coloniais e de origem colonial, os pases socialistas que apoiavam a revoluo anticolonialista e antirracista, as massas populares do Ocidente que se tinham libertado do jugo do fascismo e que por vezes, por exemplo na Itlia, tinham conseguido introduzir na prpria Constituio a recusa da guerra e da poltica da guerra e da hegemonia.2. A revoluo anticolonial ontem e hojePois bem, a primeira pergunta que temos que nos fazer esta: que feito hoje da gigantesca revoluo anticolonial estimulada pela revoluo de Outubro e acelerada por Stalingrado? No, essa revoluo no desapareceu. Numa realidade como a palestina, o colonialismo continua a existir na sua forma clssica, como demonstram a ininterrupta expanso das colnias israelitas nos territrios ocupados, a consequente expropriao, deportao e marginalizao do povo palestino e a difuso de um regime de apartheid. E, contudo, apesar da hiperpotncia e do uso brbaro da mquina de guerra israelita, apoiada, alis, pelos Estados Unidos e pela prpria Unio Europia, apesar de tudo isto, o povo palestino resiste heroicamente.

Noutras partes do mundo, a luta entre colonialismo e anticolonialismo manifesta-se de modo diferente.No cotiete americano, o sculo XX comeava com uma declarao significativa de Theodore Roosevelt: sociedade civilizada no seu todo ele afirmava pertencia um poder de polcia internacional , e esse poder os Estados Unidos iriam exerc-lo na Amrica Latina. A partir desta retomada e radicalizao da doutrina Monroe, no se contam as intervenes militares levadas a cabo pela repblica norteamericana em prejuzo dos seus vizinhos, considerados estranhos ao mundo civil e comparados a brbaros necessitados de tutela imperial.Contudo, a doutrina Monroe caiu radicalmente em crise a partir de uma revoluo da qual h alguns meses se celebrou o 50 aniversrio. Durante o meio sculo decorrido, entretanto, recorreu-se a todo e qualquer meio para isolar, difamar, sufocar, liquidar a Revoluo Cubana, mas hoje a sua fora e o seu significado internacional so confirmados pelas mudanas em curso em pases como a Venezuela, a Bolvia, o Equador, o Brasil, a Nicargua, o Paraguai. Com modalidades sempre muito diferentes, a revoluo anticolonialista e anti-imperialista est em marcha na Amrica Latina.

No decorrer do sculo XX, a revoluo anticolonialista espalhou-se tambm pela sia e na frica. E hoje? Para no situarmos na questo, preciso partir de uma observao de Frantz Fanon, o grande terico da revoluo argelina. Quando se sentem foradas a capitular escreve Fanon em 1961 as potncias coloniais parecem dizer aos revolucionrios: J que querem a independncia, aqui tm e morram; desta forma a apoteose da independncia transforma-se na maldio da independncia . a este novo desafio, de carter j no militar, que preciso responder: So precisos capitais, tcnicos, engenheiros, mecnicos, etc. Do outro lado, j em 1949, ainda antes da conquista do poder, Mao tinha insistidos na importncia da edificao econmica: Washington deseja que a China se reduza a viver da farinha americana, acabando assim por tornar-se uma colnia americana. E, portanto, sem a vitria na luta pela produo, agrcola e industrial, a vitria militar estava destinada a revelar-se frgil e inconclusiva. Noutra palavras, Mao e Fanon tinham previsto de qualquer modo, por um lado, o entrave de muitos pases africanos que no conseguiram passar da fase militar fase econmica da revoluo; por outro, a reviravolta verificada em revolues anticoloniais como a chinesa e a vietnamita.3. O nascimento do Terceiro MundoEste um ponto crucial sobre o qual temos que nos debruar. Perguntemo-nos de que modo se formou o Terceiro Mundo, o espao tradicionalmente oprimido e saqueado pelo Ocidente colonialista e imperialista. Com uma longa histria s costas, que a tinha visto durante sculos e milnios em posio eminente no desenvolvimento da civilizao humana, ainda em 1820 a China exibia um PIB que constitua 32,4% do Produto Interno Bruto mundial; em 1949, no momento da sua fundao, a Repblica Popular da China tinha-se tornado o pas mais pobre, ou entre os mais pobres do globo. No muito diferente a histria da ndia que em 1820 contribua com 15,7% do PIB mundial, antes de cair tambm ela numa assustadora misria. Isto , no podemos compreender o processo de formao do Terceiro Mundo abstraindo-nos da poltica de saque e de desindustrializa o conduzida pelas potncias colonialistas e imperialistas.

Mas ao processo de formao do Terceiro Mundo contribuiu tambm uma outra circunstncia. Para compreend-la temos de referir uma revoluo que no final do sculo XVIII surgiu num pas que hoje se chama Haiti, mas que ento tinha o nome de santo Domingo. uma revoluo dos escravos negros que partia ao mesmo tempo as correntes do domnio colonial e da instituio da escravido: nascia assim no continente americano o primeiro pas liberto do flagelo da escravido. A dirigir este processo de emancipao estava um jacobino negro, Toussaint Louvertura, uma grande personalidade histrica geralmente ignorada nos nossos livros de histria, mas que numa sociedade democrtica deveria figurar obrigatoriamente at nos livros de educao cvica. Pois bem, depois da vitria militar, Toussaint Louvertura colocava o problema da edificao econmica: com essa finalidade queria recorrer tambm aos tcnicos e aos especialistas brancos provenientes das filas do inimigo derrotado; por este motivo foi acusado de querer restaurar o domnio branco e de trair assim a revoluo. Surgia da uma tragdia que ainda hoje nos deve fazer refletir. Santo Domingo era uma ilha muito rica, graas ao acar produzido em plantaes de grandes dimenses e de notvel eficincia e largamente exportado. Claro, a riqueza produzida pelos escravos era metida ao bolso pelos seus patres. Era possvel para os antigos escravos fazer funcionar a seu proveito a economia desenvolvida por eles e herdada graas revoluo? Desgraadamente, a seguir derrota da linha de Toussaint Louvertura, em Santo Domingo/Haiti manteve-se uma retrgrada agricultura de subsistncia. A ilha conhecia assim a misria generalizada e ainda agora um dos pases mais pobres do globo. Concluindo, a formar o Terceiro Mundo esto tambm os pases que no conseguem passar da fase militar econmica da revoluo, os pases nos quais por uma razo ou por outra a revoluo anticolonial conhece a derrota e o fracasso.4. O imperialismo e a condenao inanio dos povos rebeldesNo se compreenderia nada da luta entre colonialismo e anticolonialismo, entre imperialismo e anti-imperialismo, se no se tivesse em considerao que esta travada tambm no plano econmico. Logo depois da revoluo conduzida por Toussaint Louvertura, Thomas Jefferson declarava querer reduzir inanio o pas que tinha tido o descaramento de abolir a escravatura. Esta mesma situao aconteceu no sculo XX. J logo a seguir a Outubro de 1917, Hebert Hoover, naquela altura alto expoente da administrao Wilson e mais tarde presidente dos USA, propagava de forma explcita a ameaa da fome absoluta e da morte por inanio no s contra a Rssia sovitica, mas tambm contra todos os povos inclinados a deixar-se contagiar pela revoluo bolchevique. uma poltica que continua ainda hoje: como sabido, o imperialismo procura asfixiar economicamente Cuba, reduzindo-a possivelmente condio de Gaza, onde opressores podem exercitar o seu poder de vida e de morte, mais do que com os bombardeamentos terroristas, com o controle dos recursos vitais. No que diz respeito Repblica popular da China, no princpio da dcada de 1960, um colaborador da administrao Kennedy, Walt W. Rostow, gabava-se do fato de os Estados Unidos terem conseguido adiar por dezenas de anos o desenvolvimento econmico do grande pas asitico! E contra este, ainda hoje Washington conduz uma poltica de embargo tecnolgico, poltica essa que at o ltimo momento foi posta em ao em prejuzo da Unio Sovitica.

Por isso, a solidariedade internacionalista deve dirigir-se tambm aos pases que conseguiram passar da fase militar fase mais propriamente econmica da revoluo anticolonialista e anti-imperialista. Os lderes latino-americanos esto ao par da importncia desta passagem de ordem muito significativa: Industrializa o ou morte!. Trata-se, aos olhos de lvaro Garcia Linera, de concretizar o desmoronamento progressivo da dependncia econmica colonial. Nesta perspectiva torna-se importante a crescente troca comercial e tecnolgica com um pas como a China: isto torna menos grave a ameaa de asfixia econmica alardeada pelo imperialismo, tornando assim mais gil a luta conta a doutrina Monroe tambm no plano econmico.

J se verifica, portanto, uma substancial convergncia entre os pases e os povos protagonistas da revoluo anticolonialista e anti-imperialista. uma frente intercolonialista que tende a crescer. Depois da vitria conseguida na Guerra Fria, servindo-se tambm da cumplicidade da Unio Europia, os Estados Unidos transformaram em semicolnias pases como a Albnia e territrios como o Kossovo. a configurao de tese por mim enunciada, segundo a qual a formar o Terceiro Mundo e o espao colonial ou semicolonial de que o capitalismo necessita, esto por um lado a iniciativa direta do imperialismo e por outro o fracasso ou a derrota de determinadas revolues, seja por causas internas, seja mais uma vez por uma interveno do imperialismo. No se deve esquecer que a prpria Rssia, depois da restaurao do capitalismo, estava a tronar-se ou corria o risco de se tornar uma semicolnia. Um colossal brain drain, uma colossal fuga de crebros e um processo de desindustrializa o em larga escala atingiam o grande pas, cujas matrias-primas e recursos energticos estavam a cair sob o controle de potncias estrangeiras. Ento se compreende que a Rssia mostra uma resistncia ao louco projeto de Washington de impor o seu domnio a nvel mundial.

Infelizmente, a esta frente anticolonialista e anti-imperialista, que se podia constituir, falta ainda um componente essencial: no conta ainda com a plena solidariedade dos movimentos de oposio que, contudo, se manifestam no mbito dos pases capitalistas avanados. Como se explica isso? No se trata de um problema novo. Na Segunda Internacional, no faltavam certamente na Europa vozes que justificavam o expansionismo colonial em nome da exportao da civilizao. Hoje a ideologia dominante prefere falar de direitos humanos e de luta contra o autoritarismo, o totalitarismo, o fundamentalismo, mas a essncia colonialista ou neocolonialista deste comportamento no muda.5. O imperialismo como principal inimigo dos direitos humanosPara percebermos isso, no preciso invocar Marx ou Lenin. Quero aqui partir do discurso proferido em 6 de janeiro de 1941 por Franklin Roosevelt. Ao convidar a nunca perder de vista a supremacia dos direitos humanos, junto com as tradicionais liberdades da tradio liberal (liberdade de palavra e de expresso, bem como religiosa) o presidente estadunidense teoriza tambm a libertao da necessidade (freedom from want) e a libertao do medo (freedom from fear). Concentremo- nos inicialmente nestas duas ltimas. Pois bem, no s uma parte consistente da populao dos Estados Unidos privada at de assistncia sanitria, como as administraes que foram sucedendo nos ltimos tempos em Washington se emprenharam numa espcie de cruzada planetria para anular o estado social tambm naqueles pases em que em maior ou menos medida est ainda presente. No momento em que teoriza a libertao do medo, Rooselvelt tem como alvo a Alemanha nazista, que ameaava invadir pases fronteirios e vizinhos. Hoje os Estados Unidos esto em primeiro lugar a fazer pesar em cada canto do Mundo o medo e a angstia dos bombardeamentos, das destruies em larga escala e at da aniquilao nuclear. Com a finalidade de comear a concretizar a libertao do medo, em polmica indireta com o Terceiro Reich, Roosevelt invocava a reduo do armamento. Hoje, os Estados Unidos sozinhos gastam em armamentos tanto quanto o resto do Mundo inteiro. Isto , ao menos no que diz respeito a estes fundamentais direitos humanos que so a libertao da necessidade e a libertao do medo, o inimigo principal o prprio pas que se ergue como juiz inquestionvel da causa dos direitos humanos.

Se nos concentrarmos tambm nos direitos clssicos da tradio liberal, o resultado no muito diferente. Quem, na Primavera de 1999, assassinou, bombardeando- os do alto, os jornalistas televisivos jugoslavos culpados de no terem a opinio dos vrtices e dos idelogos da NATO e de teimar em condenar a agresso ao pas? E quantos so os jornalistas acidentalmente mortos pelo fogo das foras de ocupao no Iraque ou na Palestina? Gozam dos direitos universais de palavra e de associao os habitantes de Gaza que, depois de terem votado no Hamas no decurso de eleies livres, se viram condenados primeiro asfixia econmica e ao bloqueio e sucessivamente a bombardeamentos selvagens e invaso? E gozaram de todos estes direitos os detidos de Abu Ghraib e Guantnamo? O que feito da rule of Law, do governo da lei, para as pessoas mortas pelas execues extrajudiciais (com amplos danos colaterais) soberanamente decidida pelo governo de Washington na regio paquistanesa fronteiria com o Afeganisto, ou pelo governo de Tel Aviv (apoiado pelo de Washington) na Palestina? Por fim: os rabes e os islmicos que nos USA ousam contribuir para uma subscrio a favor da populao de Gaza e de Hamas correm o risco de ser perseguidos e condenados enquanto terroristas. Para citar Marx, a profunda hipocrisia, a intrnseca barbrie da civilizao burguesa esto nossa frente, logo que viramos os olhos das grandes metrpoles, onde tomam formas respeitveis, para as colnias ou para os povos de origem colonial colocados nessa mesma metrpole. Neste caso, a hipocrisia e a barbrie burguesa andam por a a descoberto. Como nos confirmou a sorte reservada a Gaza.

Isto no significa negar que existem problemas acerca do respeito dos direitos humanos nos pases e povos empenhados na revoluo anticolonialista e anti-imperialista e nos prprios pases que se identificam com o socialismo. Todavia, basta ler autores como Madison ou Hamilton, para saber que o governo da lei, a rule of Law, no pode florescer onde est presente ma ameaa segurana nacional. Gritar escandalizado pela ausncia de democracia nos pases submetidos a um cerco mais ou menos premente no plano diplomtico, econmico e militar expresso de loucura ou de cinismo poltico. Por outras palavras, no existe verdadeira democracia sem democracia nas relaes internacionais e o principal inimigo da democracia nas relaes internacionais o constitudo por um pas que, pela boca de Clinton ou de Bush snior e jnior e de tantos outros presidentes, pretende ser a nao eleita por Deus com a misso de guiar e de dominar o mundo pela eternidade. isto que procurei explicar no meu livro A linguagem do Inprio. Lxico da ideologia americana.

Tambm no atual imperialismo dos direitos humanos, como justamente foi definido, no algo totalmente novo. No momento em que, depois de uma herica revoluo, nos princpios do sculo XX, Cuba conquista a independncia da Espanha, Washington obriga o pas formalmente a introduzir na sua constituio a chamada Emenda Platt, em que reconhece aos Estados Unidos o direito de intervir militarmente na ilha, de cada vez que nela considerassem ameaado o pleno gozo da propriedade e da liberdade. como se hoje os aspirantes a donos do mundo pretendessem fazer valer a Emenda Platt a nvel planetrio! o imperialismo dos direitos humanos a enfraquecer a esquerda nos pases capitalistas avanados. 6. Um novo bloco histrico a nvel internacionalOutros fatores tambm contribuem para enfraquecer a esquerda. Na Europa e nos Estados Unidos vivem ncleos importantes de imigrantes provenientes do Mdio Oriente e do mundo rabe e islmico. Estes, que muitas vezes deixaram a sua famlia para trs, sofrem com uma intensidade particular a tragdia que continua a pesar mais do que nunca no povo palestino. Estes esto na linha da frente a manifestar-se contra o colonialismo e imperialismo, contra Israel e os Estados Unidos, e tambm por isto, mais do que pela lgica interna do capitalismo, que estes imigrantes so explorados de forma peculiar, marginalizados e frequentemente de qualquer forma nos anos da administrao Bush presos arbitrariamente para serem torturados nas prises secretas da CIA. Empenha-se suficientemente a esquerda ocidental para procurar estabelecer um lao forte e permanente com estas comunidades? Querer negligenci-las seria como se, nos Estados Unidos de supremacia branca, o partido comunista tivesse conduzido a sua agitao abstraindo-se dos negros. No foi assim. Mesmo tendo sido gravemente enfraquecidos antes pelo terror do macartista e depois pela crise do campo socialista, durante muito tempo os comunistas americanos souberam lutar, arriscando a liberdade e tambm a vida, contra as discriminaes, as humilhaes, a opresso, os linchamentos provocados pelo regime da White supremacy.

Os niggers, dos quais falavam com desprezo os racistas estadunidenses, so hoje representados no Ocidente pelos imigrantes rabes e islmicos; e estes no se limitam a reivindicar a libertao da necessidade; no querem por serem pobres apelar a uma compaixo paternalista. Em primeiro lugar, eles reivindicam para usar a linguagem filosfica (hegeliana) o reconhecimento; eles exigem ser reconhecidos na sua dignidade humana, na sua cultura, nas suas reivindicaes nacionais, comeando pela reivindicao nacional do povo palestino, o povo mrtir por excelncia dos nossos dias!

S abolindo completamente a influncia do imperialismo dos direitos humanos e da islamofobia (que nos nossos dias tomou lugar do tradicional flagelo racista), s agindo desta forma que o movimento de oposio presente nos pases capitalistas avanados poder dar uma contribuio real luta contra a reao.Encontramo-nos hoje numa situao que, por um lado, tem perspectivas positivas e encorajadoras: 1. Na luta anti-imperialista reaparecem povos e civilizaes que tinham sido aniquiladas pelo colonialismo: pensemos no papel crescente dos ndios na Amrica Latina. 2. O prodigioso desenvolvimento de um pas como a China quebra o monoplio tecnolgico pertencente ao imperialismo. Aquela que os historiadores chama de a grande abertura, pela qual num dado momento se abriu um abismo entre pases capitalistas avanados e Terceiro Mundo, esta great divergence tende a reduzir-se. 3. A tomada de conscincia da crise do capitalismo volta a dar balano perspectiva do socialismo para alm do Terceiro Mundo, tambm nos pases capitalistas avanados. Por outro lado, vemos o pas modelo do capitalismo submerso numa profunda crise econmica e cada vez mais desacreditado a nvel internacional. Mas ao mesmo tempo ele continua a agarrar-se pretenso de ser o povo escolhido por Deus e a aumentar freneticamente o seu monstruoso aparato de guerra e a espalhar a sua rede de bases militares em cada canto do mundo. Isto tudo no promete nada de bom.

Para compreender a gravidade do perigo e dar um novo impulso luta contra o militarismo e a corrida armamentista preciso pr fim de uma vez para sempre ao jogo das analogias. Apesar disso tudo, ele no desapareceu. Num autor importante como Antonio Negri podemos ler a tese segundo a qual, no mundo de hoje, com uma burguesia substancialmente unificada em nvel planetrio, se ope uma multido, ela mesma unificada pelo desaparecimento das barreiras estatais e nacionais. Pois bem, quando lemos isso, no podemos deixar de pensar no esquema ao qual, nos primeiros anos da sua existncia, se ateve a Terceira Internacional: quem lutava contra o sistema mundial de explorao e da opresso era o partido bolchevique mundial. Se substituirmos o partido bolchevique mundial pela multido unificada no plano planetrio de que fala Negri, permanecemos para sempre no mbito da viso cuja base o conflito poltico-social v, de um lado, a frente unida dos opressores, do outro, a frente unida dos oprimidos: os Estados e as naes no desempenhariam mais nenhuma papel, e o alinhamento das foras em luta ter-se-ia simplificado de tal maneira que no haveria necessidade da cansativa anlise dos diversos tipos de contradio e da identificao da contradio principal. Este esquema foi refutado e ridicularizado pelo desenvolvimento histrico do sculo XX, que viu o sistema imperialista e colonialista sofrer duros golpes por ao dos movimentos de libertao nacional. Na variante dos negros, este esquema ainda mais estril e enganoso: (a) ele no est em condies de explicar a persistncia, no mundo atual, dos movimentos de libertao acional e sua passagem, em muitos casos, da fase militar para a fase econmica da luta; (b) no tem presente que, uma realidade como a latinoamericana, exatamente a exigncia de defender e reforar a independncia nacional e de subtrair-se ao controle do imperialismo leva certos pases a promover um desenvolvimento que, s vezes, coloca em discusso as prprias relaes capitalistas de produo; (c) passa em silncio os perigos de guerra, tambm em larga escala, que as ambies de domnio planetrio do imperialismo estadunidense fazem pesar sobre o mundo inteiro. Se as analogias analisadas no incio desta minha interveno cometeram o erro de querer reproduzir esquematicamente, numa situao histrica diferente, experincias revolucionrias reais e vitoriosas, a analogia reproduzidas pelo esquema dos negros pretende duplicar um projeto que j em seu tempo se revelou fracassado.

a presena simultnea hoje de perspectivas prometedoras e de ameaas terrveis a tornar urgente a construo a nvel internacional de um novo bloco histrico, para ultilizar a linguagem de Gramsci. No uma tarefa fcil porque se trata de soldar entre si foras colocadas em contextos histricos-culturais e situaes polticas e geopolticas muito diferentes. E este novo bloco histrico, o nico que pode dar um novo balano ao internacionalismo, s poder ser constitudo se os partidos comunistas, tambm os dos pases capitalistas avanados, por um lado recuperarem o orgulho da sua prpria histria, por outro reforarem a sua capacidade de anlise concreta da situao concreta.Traduo: Joana Longobardi e Jaime ClassenReferncias bibliogrficasFrantz Fanon, Les damns de La terre (1961), TR. It., di Carlo Cignetti, I dannati della terra, pref. Di Jean-Paul Sartre, Einaudi, Torino, 2 Ed., 1967, p. 55-8.C.L.R. James, The Black Jacobins: Toussaint LOuverture and the san Domingo Revolution. Nova Iorque, Random House, 1989. [ed. Bras.: Os jacobinos negros: Toussaint LOuverture e a revoluo de So Domingos (trad. Afosno Teixeira Filho, So Paulo, Boitempo, 200).]Alvaro Garcia Linera, entrevista a Pablo Stefanoni, em il manifesto de 22 de julho de 2006, p.3.Mao Tsetung, Perch pu esistere in Cina Il potere rosso? (5 de outubro de 1928), em Opere scelte, Edies em lnguas estranegiras, Pequim, 1969-75, vol. 1, p. 61.Mao Tsetung, Il fallimento della concezione idealstica dlla storia (16 de setembro de 1949) em Opere scelte, Edies em lnguas estrangeiras, Pequim, 1969-75, vol. 4, p.467.Karl Marx Friedrich Engels, Werke, Dietz, Berlin 1955-89, vol. 9, p. 225 (Die knftigen Ergebnisse der britischen Herrschaft in Indien).Para Jefferson, Hoover e Rostow cf. Domenico Losurdo. Stalin. Storia e critica di uma leggenda nera, Carocci, Roma, 2008, p. 196 e 288 [trad. Brs. Revan, no prelo].Franklin Delano Roosevelt, Four Freedoms Speech (6 de janeiro de 1941), em Richard Hofstadter-Beatrice Hofstadter, Great Issues in American History, Vintage books, New York, 1982, p. 386-91.*Palestra proferida na atividade Tpicos Utpicos em Fortaleza/CE no dia 12 de maio de 2010.** Professor de Histria da Filosofia na Universidade de Urbino, na Itlia, Domenico Losurdo nasceu em 1941 e doutorou-se com uma tese sobre Karl Rosenkranz. Tem publicadas, em portugus, as seguintes obras: *Hegel, Marx e a tradio Liberal. Liberdade, Igualdade e Estado*. Editora Unesp, 1998; *Democracia e Bonapartismo*. Editora UNESP, 2004; *Fuga da histria? A Revoluo Russa e a Revoluo Chinesa Vistas de Hoje*. Editora Revan, 2004; *Contra-Histria do Liberalismo*. Idias & Letras, 2006. Tem ainda oito livros no traduzidos para portugus, que versam sobre autores como Kant, Nietszche, Hegel, Heidegger e seu compatriota Antonio Gramsci e temas como o comunismo crtico e o revisionismo histrico.