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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA LORD OF HELL: A PRÁTICA MUSICAL DA BANDA VOMER NA CENA DO ROCK /METAL EM MONTES CLAROS-MG TIAGO DE QUADROS MAIA CARVALHO Salvador 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

LORD OF HELL: A PRÁTICA MUSICAL DA BANDA VOMER NA CENA DO ROCK /METAL EM MONTES CLAROS-MG

TIAGO DE QUADROS MAIA CARVALHO

Salvador 2010

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TIAGO DE QUADROS MAIA CARVALHO

LORD OF HELL: A PRÁTICA MUSICAL DA BANDA VOMER NA CENA DO ROCK /METAL EM MONTES CLAROS-MG

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Música. Concentração: Etnomusicologia Orientadora: Profª Drª Sonia Maria Chada Garcia

Salvador 2010

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Biblioteca da Escola de Música - UFBA

C3311 Carvalho, Tiago de Quadros Maia

Lord of Hell: a prática musical da Banda Vomer na cena do rock/metal em Montes

Claros - MG. / Tiago de Quadros Maia Carvalho. Salvador: UFBA/Escola de Música,

2011.

xi, 289 f. : il.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Sonia Maria Chada Garcia.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Música, 2011.

1. Etnomusicologia. 2. Prática musical. 3. Thrash metal (Rock/metal). I. Garcia,

Sonia Maria Chada. II. Universidade Federal da Bahia/Escola de Música. III.Título. CDD - 780.89

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Deus é fiel.

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AGRADECIMENTOS

São muitos a quem devo agradecimentos. Primeiramente, devo a Deus a

oportunidade de crescer, de buscar me tornar uma pessoa melhor e mais útil para os outros.

Aos meus pais sou agradecido de coração, por me preparar para esta jornada cheia de

obstáculos que é a vida. Obrigado a Cláudia pela paciência, compreensão e carinho, sem os

quais este trabalho seria muito mais difícil. Agradeço a todos os amigos pelo incentivo, além

de horas de conversas e broncas, nas quais eles me diziam que eu iria conseguir. Em especial

aos amigos e colegas Mário André Wanderley Oliveira e Fábio Henrique Ribeiro. Espero

trabalhar com vocês um dia. Agradeço a Maria Odília, pelo apoio. Aos professores da

graduação: Maria Amélia, Fábio Carvalho, Raquel de Paula, Geraldo Alencar, Luís Ricardo e,

em especial, Jean Joubert, que me concedeu a honra de iniciar meu caminho na pesquisa e

cuja orientação me é dada até hoje. Obrigado de coração. Agradeço também à minha

orientadora, Sonia Chada (Soninha), pela responsabilidade, competência, incentivo, amizade,

amabilidade e pela condução de grande valor que foi oferecida na realização deste trabalho e

por dizer que este pode ser o trabalho da minha vida, nunca vou esquecê-la. Ao professor

Manuel Veiga – cuja titulação o assusta, mas é merecida – meus sinceros agradecimentos, que

nunca poderão compensar a enorme aprendizagem que me proporcionou. Obrigado também à

professora Angela Lühning, por me dar contribuições valiosíssimas nas disciplinas do

mestrado, fornecer, sem nenhuma restrição, todo material que tinha a mão e pelas longas

conversas antes e depois das aulas, todas muito construtivas e esclarecedoras. Obrigado ao

Professor Pablo Sotuyo, pelas conversas pelo pátio da EMUS, Maísa e Selma pela amizade e

presteza, professora Cristina Tourinho por sempre me ouvir com paciência, professora Alda,

pela honra de conhecê-la e pela atenção dispensada. Obrigado ao Programa de Pós-graduação

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em Música da UFBA, pela oportunidade. Agradeço também à FAPESB, por acreditar e

investir em minha formação acadêmica.

Aos colegas, que são muitos, agradeço ao Marcos Di Silva, Alexandre Espinheira,

Guilherme Bertissolo, Matheus Dantas, Simone Fernandes, Valéria, Bernardo, Harue Tanaka,

Cristiano, Malú, Angelita (obrigado mesmo!), Jean Rocha, Luciano Caroso (de inestimável

presteza!), Marco Toledo, Sérgio, Paulo Rios, Pedro Filho. Mas um agradecimento especial

(por me aguentarem por mais tempo) para Aaron Lopes, Flávia Diniz e Bruno Westermann.

Se me esqueci de alguém, por favor, sinta-se abraçado e agradecido. Vocês não foram só

colegas, mas amigos que vou levar para toda a vida, contem comigo sempre que precisarem.

Agora, aos integrantes da cena do rock e do metal em Montes Claros. Em primeiro

lugar, obrigado aos integrantes da Vomer, nas pessoas de Clayton, Léo, Airton, Geraldo e

Thiago. A ampla contribuição e atuação de vocês foi fundamental e inestimável para a

realização deste trabalho. Agradeço também a Fred Sapúlia, Dayan Maciel, Samuel

(Possilga), Khell, Carol, Carol, Alan, Lorena, Tim, Chiquinho, Digão de Paula, Associação do

Rock de Montes Claros e Região, Coletivo Retomada, Instituto Geraes (agradecimento

póstumo), Plug! Manú, Elisângela, Danilão, Alexandre (Fudão), César, Thiago Fonseolli,

Rafael, João Paulo e os integrantes da banda Sofia, AT-4, Quatro de Copas, Lócus, Locked

Side, Gory Stage, Impalement in Mordor, Gritare, Umeazero e todas as pessoas e bandas que

eu não citei aqui, por limitação de espaço ou mesmo porque são tantas as pessoas que nos

perdemos com o tempo. Obrigado de coração, sem vocês não haveria este trabalho.

Enfim, obrigado, mais uma vez a todos aqueles e aquelas que tornaram possível a

realização desta pesquisa. Que Deus abençoe todos vocês e, por favor, recebam meu abraço.

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RESUMO

Montes Claros é uma cidade na qual acontecem diversas manifestações musicais que

são representativas do que seja pertencer a esse meio. Entretanto, cada uma possui maneiras peculiares de lidar com seu contexto, o que remarca produtos musicais e contextuais variantes de comunidade para comunidade. Dessa forma, pode-se dizer que o meio do rock montes-clarense é um agregado de pessoas que tem uma visão cultural comum, o que remete assim a um meio musical específico. Mas, ao contrário do que possa se pensar, o próprio contexto roqueiro é multifacetado em suas estruturas internas, ao mesmo tempo em que possui um discurso que aparenta homogeneidade, unificação. Há diversos discursos que permeiam o universo do rock em Montes Claros e pode-se dizer que o metal é uma das suas comunidades mais prolíficas, apesar de parcialmente segmentada. Surgida no contexto da cidade em meados dos anos 1990 – na cena roqueira que se articula desde finais da década de 1950 – o metal gerou uma cena rica em bandas, públicos e eventos. Considerar, então, uma banda desse meio como foco de estudo é vislumbrar as principais características que permeiam as concepções dessa cena. Este estudo aborda os principais aspectos performáticos, estilísticos e estéticos musicais da banda Vomer, atuante em Montes Claros desde 1995. Acredita-se que suas práticas musicais – que vão além do mero “tocar” – são repletas de elementos que integram o discurso metaleiro da cidade, práticas essas que são formadas por diversos processos. Esses tangem desde o consumo de materiais musicais oriundos do mainstream, ressignificados numa prática underground – o que também implica que o metal em Montes Claros é uma prática mundializada expressa no viés local –, até a sua relação com a cena musical alternativa e independente que se estabelece na cidade, além das relações sociais que afirmam, negam, enfim, negociam as concepções musicais e extramusicais da Vomer, tudo isso expresso no momento da performance. Pode-se dizer que através da performance se estabelece uma crítica cultural que mantém ou transforma a visão musical da banda. Não apenas os shows ao vivo são performances, mas também os ensaios e gravações são momentos dinâmicos de construção e negociação do que seja a Vomer.

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ABSTRACT

Montes Claros is a town where various musical manifestations happen that are representative of what is belong to this environment. However, each one has peculiar ways to deal with its context, which remark varying musical and contextual products from community to community. Thus, it could be said that the montes-clarense’s rock environment is a aggregate of people who have a common cultural vision, which thus refers to a specific musical environment. But, on the contrary of what could be thought, the own rocker context is multifaceted in its inner structures, at the same time in which it has a discourse that appears homogeneity, unification. There’s various discourses that permeates the rock’s universe in Montes Claros and could be said that metal is one of its most prolific communities, although partially segmented. Arouse in town’s context in mid of 1990s – inside of a rocker scene that articulates since ends of 1950 decade – the metal generated a rich scene in bands, publics and events. To considerate, so, a band of this environment as a study focus is to glimpse the main characteristics that permeates the conceptions of this scene. This study concerns to the main performatic, stylistic and music-aesthetical aspects of Vomer band, active in Montes Claros since 1995. It is believed that its musical practices – that go beyond the mere “play” – are full of elements that integrate the town’s metalhead discourse, practice these that are formed by various processes. They touch upon since the consume of musical materials of the mainstream and resignified in a underground practice – which also implies that the metal in Montes Claros is a mundialized practice expressed in the local view –, until its relationship with the alternative and independent musical scene that establish itself in the town, beyond the social relationships that affirms, negates, at last, negotiates the musical and extramusical conceptions of Vomer, everything expressed in the moment of performance. It could be said that trough the performance is established a cultural critique which maintains or transforms the musical view of the band. Not only the live shows are performances, but too the tests and recordings are dynamic moments of construction and negotiation of what is Vomer.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS .................................................................................................. v

RESUMO ....................................................................................................................... vii

ABSTRACT ................................................................................................................. viii

LISTA DE FIGURAS .................................................................................................... x

LISTA DE EXEMPLOS EM ÁUDIO ........................................................................ xi

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 01

1. A VIDA MUSICAL EM MONTES CLAROS ....................................................... 08

1.1. O espaço urbano ............................................................................................. 24

1.2. Música popular ............................................................................................... 35

2. O ROCK EM MONTES CLAROS .......................................................................... 68

2.1. Breve história ................................................................................................. 68

2.2. As instituições e iniciativas de apoio ............................................................. 87

2.3. Rock independente ......................................................................................... 97

2.4. O rock no ciberespaço ................................................................................... 108

2.5. Eventos de rock ............................................................................................. 115

3. O METAL (NO MUNDO, NO BRASIL, EM MONTES CLAROS) .................. 137

4. A BANDA VOMER .................................................................................................. 183

4.1. Formação e trajetória..................................................................................... 184

4.2. Concepções, contexto, música ...................................................................... 201

4.3. O consumo de materiais musicais ................................................................. 221

4.4. A inserção no contexto montes-clarense ....................................................... 227

4.5. A performance da Vomer .............................................................................. 235

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 279

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 283

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LISTA DE FIGURAS

1. Mapa do Norte de Minas Gerais ................................................................................. 08 2. Tabela constando das principais manifestações musicais em Montes Claros ao longo do tempo .............................................................................................................................. 10 3. Crachá do último Rock da Cidade .............................................................................. 72 4. Show de rock na Chernobyl ........................................................................................ 85 5. Logomarca da Associação do Rock de Montes Claros e Região ............................... 88 6. Logomarca do Coletivo Retomada ............................................................................. 90 7. Logomarca do Instituto Geraes .................................................................................. 92 8. Logomarca do Plug! ................................................................................................... 93 9. Logomarca do Espaço Garotas do Rock .................................................................... 94 10. Cartaz de divulgação do Rock das Garotas .............................................................. 96 11. Logomarca do Studio Rock ...................................................................................... 100 12. Banca de produtos vendidos pelo Coletivo Retomada ............................................ 102 13. Banca de CDs do Coletivo Retomada ..................................................................... 103 14. Frente da Casa Fora do Eixo ................................................................................... 122 15. Show da banda Sofia na Noite Fora do Eixo ........................................................... 123 16. Público da Noite Fora do Eixo ................................................................................ 124 17. Palco do Rockmoc e Metalmoc ................................................................................ 125 18. Espaço de realização do Rockmoc e Metalmoc ....................................................... 125 19. Banca do Gambiarra ............................................................................................... 134 20. Riff da música In-A-Gadda-da-Vida, da banda Iron Butterfly ................................ 143 21. Símbolo da banda Vomer ......................................................................................... 197 22. Cartaz do show da banda Animal Core, com abertura da Vomer ............................ 228 23. Show da Vomer, de grande porte ............................................................................. 242 24. Show da Vomer, de pequeno porte........................................................................... 243 25. Público em um show da Vomer ............................................................................... 244 26. Proximidade entre público e banda ......................................................................... 245 27. Público dividindo o palco com a Vomer .................................................................. 246 28. Roupas, cabelos e tatuagens dos membros .............................................................. 248 29. Headbanging ........................................................................................................... 250 30. Clayton, em performance vocal ............................................................................... 252 31. Transcrição de um trecho melódico do vocalista da Vomer .................................... 254 32. Padrões rítmicos (bumbo, caixa, cymbals/condução) da bateria ............................. 255 33. Léo tocando bateria em um show da Vomer ............................................................ 257 34. Geraldo, em performance tocando sua guitarra ....................................................... 260 35. Tiago, executando um solo de guitarra .................................................................... 261 36. Airton, na execução do baixo .................................................................................. 266 37. Ensaio da Vomer ...................................................................................................... 268 38. Ensaio da Vomer ...................................................................................................... 269 39. Frente da capa do CD Lord of Hell ......................................................................... 276 40. Parte de trás da capa do CD Lord of Hell ................................................................ 277

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LISTA DE EXEMPLOS EM ÁUDIO

1. Exemplo de áudio 1 ................................................................................................... 253 2. Exemplo de áudio 2 ................................................................................................... 253 3. Exemplo de áudio 3 ................................................................................................... 254 4. Exemplo de áudio 4 ................................................................................................... 255 5. Exemplo de áudio 5 ................................................................................................... 255 6. Exemplo de áudio 6 ................................................................................................... 257 7. Exemplo de áudio 7 ................................................................................................... 257 8. Exemplo de áudio 8 ................................................................................................... 257 9. Exemplo de áudio 9 ................................................................................................... 257 10. Exemplo de áudio 10 ............................................................................................... 264 11. Exemplo de áudio 11 ............................................................................................... 264 12. Exemplo de áudio 12 ............................................................................................... 264 13. Exemplo de áudio 13 ............................................................................................... 264 14. Exemplo de áudio 14 ............................................................................................... 264 15. Exemplo de áudio 15 ............................................................................................... 264 16. Exemplo de áudio 16 ............................................................................................... 265 17. Exemplo de áudio 17 ............................................................................................... 265 18. Exemplo de áudio 18 ............................................................................................... 265 19. Exemplo de áudio 19 ............................................................................................... 265 20. Lord of Hell (faixa 1 do demo, completa) 21. Puppets (faixa 2 do demo, completa) 22. Temple (faixa 3 do demo, completa) 23. Lies (faixa 4 do demo, completa)

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INTRODUÇÃO

Montes Claros é um polo musical conhecido por uma grande variedade de

manifestações. Em seu espaço físico podem ser encontrados grupos de seresta, ternos de

Catopês, Marujos e Caboclinhos, muitos ternos de folias de Reis, além de... rock. Por

mais que esses grupos, tão caros e importantes para a constituição de um discurso

montes-clarense se mostrem como emblemáticos na construção dessa identidade, não se

pode negar que há muitos outros dizeres nessa cidade. Passando, ao longo do tempo, de

uma característica predominantemente “ruralizada” para um meio urbano, polo

comercial, industrial e estudantil do norte de Minas Gerais, Montes Claros sofreu

mudanças processuais que permitiram o florescimento de diversos outros discursos que

não aqueles já citados acima. Ao longo da história, por mais que a grande imagem da

cidade tenha, a princípio, sido construída sobre os grupos tradicionais que saías às ruas,

faziam cortejos, duplas sertanejas se apresentavam em bares, grupos de pagode estavam

em festivais e, dentre muitos outros, as bandas de rock se articulavam timidamente no

seu começo, em garagens, festas em casas, bailes e pequenos ensaios.

Rock, desde muito antes, em específico do final da década de 1950 é uma

manifestação, ou seja, um discurso musical presente na cidade, professado por montes-

clarenses. Apesar de ter sido hostilizado pela grande maioria, a princípio, aos poucos ele

foi conquistando seu espaço, fazendo parte do escopo musical/cultural da cidade. Mas

ele não surgiu do nada. Rock em Montes Claros é fruto de processos que se deram em

todo o mundo, pela influência do rádio, do cinema, da televisão, da imprensa, da

mobilidade que as pessoas passaram a ter com a evolução e maior acessibilidade aos

transportes, com a possibilidade de aquisição de material musical – por meios lícitos

e/ou ilícitos –, bem como a posterior popularização da internet. Sendo assim, essa

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manifestação surge na cidade por meio de um longo processo de mundialização cultural

(ORTIZ, 2006), bem como do crescente fluxo de informações que tem circulado em escala

global (SLOBIN, 1992; STOKES, 2004).

Tendo então a música popular – no sentido de ser uma música difundida

midiaticamente – que é o rock como um meio de vida de uma comunidade montes-clarense

denota que a cidade foi – e é – afetada por mudanças drásticas em seu modo de vida

cotidiano. A configuração e o discurso “urbano” que Montes Claros tomou ao longo do tempo

tornaram a cidade propícia para outros contextos, outros mundos musicais (FINNENGAN,

2001) que não aqueles tidos como “tradicionais”. Nesse sentido, aumentou consideravelmente

o número de bandas que se formaram, bem como a rede de contatos, instituições de fomento e

apoio, eventos e músicos que se destinam ao propósito do rock e de outros gêneros musicais.

Mas não se pode dizer também que o rock seja em si próprio um discurso unificado.

Se por um lado ele parece homogêneo, por outro é multifacetado em suas estruturas internas.

O rock, como gênero musical, portanto, acaba se mostrando detentor de uma série de

discursos musicais que se agregam enquanto rock, mas são bastante diferentes entre si. O

metal montes-clarense é um desses discursos.

Surgido na cidade, enquanto prática musical, desde meados da década de 1990, o

metal tem se mostrado como um gênero musical dotado de códigos e elementos bastante

distintos. Apesar de integrar a grande gama de manifestações que se definem como rock, esse

grupo headbanger1 também é, de certa forma, segregado nesse meio. Ainda assim, ele se

mostra como uma das mais prolíficas comunidades musicais que na cidade se manifestam.

1 O termo headbanger é usado para definir as pessoas que fazem parte do movimento do metal. A desgniação “metaleiro” foi evitada neste trabalho devido à sua carga pejorativa em alguns casos.

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Considerando a variedade de discursos roqueiros que em Montes Claros se agregam e

entendendo que há distinção entre cada um desses discursos, este trabalho busca compreender

como uma banda de metal se vale dos mais distintos processos pelos quais se pode

experimentar essa música, através do seu consumo, além de compreender sua

formação/articulação musical/cultural no contexto do rock/metal na cidade de Montes Claros-

MG.

A banda Vomer é atuante no contexto da cidade desde meados da década de 1990 –

concomitante com o surgimento da cena headbanger na cidade – e suas articulações tangem

às suas práticas musicais. Em outras palavras, práticas musicais remetem a mais do que o ato

de tocar (CHADA, 2007), englobando também as concepções culturais que norteiam e que

são mediadas por essa prática. Entende-se que a Vomer possui aspectos performáticos,

estilísticos e estético-musicais que são as bases nas quais a banda constrói seu fazer musical

no contexto do rock/metal em Montes Claros. Entretanto, mais do que definir em específico

quais são esses aspectos – visto que eles podem mudar constantemente na dinâmica

sociocultural na qual a Vomer está inserida –, é importante conhecer os principais processos

pelos quais esses aspectos são concebidos.

Portanto, para que se conheçam os principais contextos geradores dos processos que

concebem os principais aspectos performáticos, estilísticos e estético-musicais da Vomer este

trabalho se divide em alguns capítulos. Vida Musical em Montes Claros tange à dinâmica da

cidade, em sua forma mais ampla, tentando vislumbrar a variedade de manifestações que nela

acontecem, bem como essas manifestações tem lidado com o discurso “urbano” que com o

tempo se instaurou. A seção subsequente discute, a partir de uma abordagem teórica, a

mudança que a cidade sofreu de um ambiente “ruralizado” – como discurso – para um meio

urbano (ULHÔA, 2000), além de apontar, a partir de uma revisão de literatura, as causas

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conjunturais que marcam essa mudança. A terceira seção, intitulada Música Popular, discute

as bases conceituais, além das formas de articulação cultural que remetem a essa prática, um

indicativo de que boa parte das comunidades musicais em Montes Claros, nos dias de hoje,

tem uma relação mercadológica com a música, consumindo-a como formadora de seus

ideários culturais, além de que elas se valem da música popular como formas de articulação

local, geralmente resignificada em um discurso próprio.

O capítulo O Rock em Montes Claros apresenta e discute, a partir de bases teóricas e

dados obtidos na pesquisa de campo, a cena do rock na cidade. A seção Breve História conta

a trajetória do rock, como música e como contexto ao longo do tempo em Montes Claros. Não

apenas isso, mas também são discutidas e comparadas as trajetórias de cada década, chegando

até a atual conjuntura da cena, meio no qual a banda Vomer se articula. Em As Instituições e

Iniciativas de Apoio são apresentados os grupos que tem se articulado para fomento da prática

roqueira na cidade, dentre eles a Associação do Rock de Montes Claros e Região, o Coletivo

Retomada, o Instituto Geraes e o Plug!. Esses grupos tem ajudado a manter a cena do rock em

constante atividade, realizando eventos, dando apoio e se prestando à produção e divulgação

de bandas de rock e metal montes-clarenses. Daí também se destacam iniciativas ligadas

diretamente à crítica e à imprensa, geralmente expressa em fanzines e webzines. Nesse

sentido, são citados o UH-HU fanzine, Sertões, Jornalismo Possilga, dentre outros, além do

Espaço Garotas do Rock, questionando a participação das mulheres nos eventos de rock.

Além de expostas e descritas, denota-se também o grande poder de articulação que essas

instituições e iniciativas possuem. Em O Rock Independente segue uma discussão mais

contextualizada daquela feita na seção Música Popular. Em outras palavras, são demonstradas

as ações que denotam um posicionamento mercadológico específico das bandas e instituições

de apoio ao rock em Montes Claros. Toda a estrutura de bandas, eventos, instituições tem

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criado uma cena musical independente, na qual músicas autorais são produzidas, difundidas e

distribuídas. Tudo isso configura um meio underground que é o rock em Montes Claros. A

seção O Rock no Ciberespaço mostra uma forma de articulação cultural bastante comum na

cena, feita pela internet. A rede é vista como uma extensão das relações sociais que

acontecem em meio físico, servindo para desde divulgações e disponibilização de materiais

até discussões on line, que tem, inclusive, o poder de mudar a realidade do próprio contexto

físico. Os eventos de Rock tratam da estrutura e organização de shows e festivais na atual cena

da cidade de Montes Claros. Não apenas isso, mas os eventos se mostram como um reflexo e

meio das concepções musicais e culturais que se estabeleceram no meio roqueiro atual.

O capítulo Metal (no Mundo, no Brasil, em Montes Claros), discute as principais

características, além da trajetória histórica do heavy metal, no sentido de seu surgimento,

difusão mundial, até a sua articulação como metal, dado a enorme variedade de discursos

musicais que decorreram dessa prática. Segue também uma breve história do metal no Brasil,

chegando até o surgimento da cena na cidade de Montes Claros.

Em A Banda Vomer, são tratadas todas as questões relativas especificamente à banda.

São expostos e analisados os dados obtidos na parte da pesquisa ligada diretamente com a

vida das pessoas integrantes da banda, bem como com suas histórias, concepções musicais,

relações com o seu contexto e performance, em meio individual ou conjunto. Sua Formação e

Trajetória trata da história da banda desde o surgimento até a sua configuração atual.

Concepções, Contexto, Música discute, a partir de bases teóricas, a possibilidade, dentro dos

estudos etnomusicológicos, de estudo de manifestações urbanas, o que inclui a música

popular, além de se pensar na ideia de “diferença” como uma condição interna das culturas

(CAMBRIA, 2008; NETTL, 2001), o que marca e é explicitado no contexto da formação dos

membros da Vomer. Também trata do conceito de gênero musical não apenas como sonoro-

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musical, mas definido socialmente, numa constante dinâmica que faz com que suas bases

sejam refeitas constantemente (FABBRI, 1981; WALSER, 1993). Dessa forma é proposta a

visualização dos principais processos pelos quais a Vomer constrói seu gênero musical, sendo

ele voltado para as seções posteriores.

O Consumo de Materiais Musicais retrata a constituição do gosto musical e das bases

da Vomer a partir das bandas mais influentes que, geralmente integram o mainstream. Isso

implica no consumo não apenas de bases sonoras, mas também de visuais, iconografias,

modelos de performance, dentre outros elementos. Essa seção também trata do

posicionamento que a banda toma baseado nessa relação mercadológica que ela tem com os

materiais que consome, ou seja, apesar de estar ligada e montar suas bases por meio do

mainstream, a Vomer integra um discurso underground como forma de articulação e

sobrevivência cultural. Em A Inserção no Contexto Montes-Clarense é exposta a relação que

a banda tem com a cena independente do rock e do metal na cidade e como ela é influenciada

por esse meio, fazendo com que ela se integre e negocie as bases que compõem esse contexto.

A última seção, intitulada A Performance da Vomer trata do conceito de performance como

social (TURNER, 1988), de forma que o que a Vomer faz em seus shows é a exposição e

negociação das bases musicais e extramusicais que compõem o seu ideário cultural. É nos

eventos nos quais ela toca que são compartilhados os elementos fundantes da Vomer, com seu

público, que tende a estabelecer uma crítica cultural, validando – ou não – as posições da

banda. Os elementos sonoro-musicais são aí expostos como parte das performances, ou seja,

não se propõe aqui uma música que seja desvencilhada do todo que é a prática musical, a

performance envolve concepções culturais, ações sociais, iconografias, movimentos, dentre

outros elementos. Ensaios e gravações de materiais musicais são vistos, neste trabalho, como

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performances que antecedem e subsidiam outras performances, no caso, os shows. Entende-se

que é por meio dessas socializações que as bases posteriormente expostas são definidas.

É intenção deste trabalho demonstrar o quão diversificados são os meios pelos quais

atores sociais como os músicos da Vomer constroem suas concepções musicais. Pode-se dizer

que cultura, portanto, é o exercício, o fazer de diversos atores sociais (BERGER, 1999) e que

o caminho de cada um, por mais que leve a bases comuns e que conotem um fazer musical

homogêneo, é na verdade um emaranhado de concepções distintas. Não apenas isso, mas a

definição de elementos comuns que dão a esse grupo o aspecto e o discurso de “comunidade”

são pautados por negociações constantes, repletas de tensão, cujas bases nunca são definidas

por completo.

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1. A VIDA MUSICAL EM MONTES CLAROS

Montes Caros, localizada ao norte do estado Minas Gerais, possui uma população

estimada em 361.9151 habitantes. Cidade considerada de médio porte, localizada em um

importante entroncamento rodoviário que liga boa parte do Brasil ao nordeste através da

rodovia Rio-Bahia, possui diversas manifestações musicais representativas de modos de viver

e ser montes-clarenses.

Figura 1: Mapa do Norte de Minas Gerais (Disponível em: <http://www.minas-gerais.net/diretorio/index.php?cat_id=757>. Acesso em: 16/11/2010)

1 Dados referentes ao Censo demográfico de 2010 realizado pelo IBGE. Disponível em: <

http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em: 15 ago. 2011.

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Como qualquer outra cidade, ela possui o que podemos chamar de uma vida musical

ou vidas musicais, dado a grande variedade de manifestações que nela encontramos. Isso se

resume às práticas, aos seus redutos culturais, nos quais, por sua vez, encontramos música.

Cada manifestação possui um código, uma forma peculiar de se representar e produzir

representações sobre si mesma e sobre as outras com as quais convive. Essa convivência,

muitas vezes pode implicar em processos de aceitação, ou mesmo de negação parcial/total de

um grupo pelo outro, mas, seja qualquer uma das situações, pelo simples fato de se haver

convivência, não se nega a possibilidade de influências. Além disso, alguns processos e locais

pelos quais as músicas são armazenadas, transmitidas, manifestadas e inclusive produzidas

são, em muitos casos, lugar comum para vários grupos musicais. Nisso se incluem os bares,

ruas, praças, casas de festas, igrejas, festas universitárias, galpões e garagens, dentre outros.

Ulhôa (2000), em seu artigo Música Romântica in Montes Claros: Inter-Gender

Relations in Brazilian Popular Song, ao descrever a trajetória da música romântica na

sociedade montes-clarense ao longo do tempo, traz um quadro que expõe alguns gêneros

musicais, desde meados do século XIX, enquanto os contrapõem àqueles presentes na história

da música brasileira, num sentido mais amplo. Neste momento, para este trabalho, é

importante apenas observar a relação entre as datas, a vida social em Montes Claros e os

gêneros musicais lá presentes.

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Figura 2: Tabela constando das principais manifestações musicais em Montes Claros ao

longo do tempo

A história de Montes Claros traz consigo um conjunto variado de manifestações

musicais; algumas se pode dizer, extintas – saraus, ou mesmo a grande variedade de clubes,

bem como a mudança na vida litúrgica e musical das igrejas –, outras existentes até hoje e

algumas que só surgiram recentemente, o que implica uma trajetória de constante mudança,

tanto dos espaços e eventos musicais, quanto dos próprios gêneros e práticas que os norteiam:

Os gostos musicais em Montes Claros articulam com o papel mutável da música num contexto social mutável. Como sua população variada experimentou uma mudança de um contexto rural e tradicional para um industrializado e moderno, as vias para as práticas musicais e interação social mudaram de serenatas para saraus, para concertos (sapateado) e bailes, e assim para bares e pizzarias. As preferências musicais mudaram de modinhas e valsas para boleros e samba-canção,

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então para música sertaneja, rock brasileiro e música romântica (ULHÔA, 2000, p. 16)2 (Nossa Tradução).

Dessa forma, as constantes mudanças que marcam a cidade de Montes Claros em

seus âmbitos econômico, social, cultural e sua passagem de um contexto rural para um polo

urbano-industrial trouxeram mudanças para sua trajetória musical. Essa transformação fez,

então, que a vida musical (ou as vidas musicais) em Montes Claros passasse por

transformações, uma vez que o “lugar” no qual as manifestações musicais atuavam já não é

mais o mesmo. Isso pode gerar um quadro de reação, de resistência musical/cultural, além de

permitir novas configurações, visto que o surgimento de novos gêneros musicais na cidade é

um fato constante.

Montes Claros vive um paradoxo musical, pelo qual busca aderir à moda da

modernidade e do que é pós-moderno, do fragmentado, gerando assim novas identidades,

novas comunidades musicais. Isso por um lado, pois, por outro, a busca se dá pela

“manutenção” de valores e costumes, de ideais, ou melhor, de discursos de pertença que

possam (re) valorizar o que seja pertencer a um local, bem como a um grupo que represente

esse local.

Há, juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de “nichos” de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre “o global” e o “local” (HALL, 2006, p 77).

2 Musical tastes in Montes Claros articulate with the changing role of music in a changing social

context. As its varied population experienced a shift from a rural and traditional context to an industrialized and modem one, the venues for musical practices and social interaction changed from serenades and saraus, to promenading (footing) and balls, and then to bars and pizzerias. Musical preferences switched from modinhas and waltzes to boleros and samba-canção, then to musica sertaneja, rock brasileiro and musica romântica.

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Na busca de grandes categorias analíticas, mais generalizadas e pautadas no

paradoxo apresentado acima, pode-se estabelecer pelo menos dois tipos de manifestações

musicais em Montes Claros: as dos grupos que resistem, ou pelo menos se adaptam e

negociam frente à modernidade, na busca de estabelecer vínculos com o passado e com o que

é chamado de “tradição3”; e aquelas que abraçam e consomem os símbolos que lhes são

necessários para o estabelecimento de suas identidades, diretamente envolvidas e engajadas

na mecânica contemporânea. Vale lembrar que essa segunda lógica, mais frenética, mais

fragmentada e mais fugidia não é homogênea, sequer irracional. Ela opera conforme uma

lógica própria, na verdade, uma porção de lógicas distintas.

Dentre as manifestações que até hoje persistem – considerando assim fatos e

momentos que reconfiguram constantemente a vida musical em Montes Claros –, podemos

destacar as modinhas, representadas por cerca de sete grupos de serestas atuantes; as folias de

Reis, com foco nas festas do bairro Santos Reis, no final de dezembro e início de janeiro; o

congado, que conta com três ternos de Catopês, dois ternos de Marujos e um de Caboclinhos,

presença marcante nas festas de agosto. Na busca da manutenção das ditas músicas

“tradicionais”, também há um esforço contínuo de grupos como o Zabelê, pertencente ao

Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandez, o Banzé, ligado à Universidade

Estadual de Montes Claros (Unimontes) e o grupo Fitas. Além disso, encontra-se um número

considerável de grupos de terceira idade, que também são ligados a essas músicas, mas

também aos bailes, forró, baião, boleros, etc.

Considerando então essas manifestações que possuem um discurso mais voltado para

o que seja o “tradicional” em Montes Claros, pode-se detectar uma diferença marcante entre

esses grupos. Sendo assim, a ideia de “folclórico” instaurada em Montes Claros pode ser

3 Hobsbawn (1997) acredita que a tradição seja um discurso inventado, definido culturalmente para

perpetuar e institucionalizar determinadas concepções e práticas.

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vista conforme ângulos diferentes. Por um, há aqueles grupos cuja tradição advém de fato da

memória de um fazer que remeta a outros tempos e cuja manutenção é a prática desses

costumes na contemporaneidade, considerando, é claro, a capacidade que esses grupos tem de

mudar. Outro seria entender que há iniciativas que prezam pelo “resgate” ou mesmo a

“valorização” e manutenção dos costumes em Montes Claros e, nesse movimento,

estabelecem grupos que usam dos elementos das manifestações tradicionais de Montes Claros

para elaborar espetáculos que condizem com a releitura dessas práticas. “Folclórico”,

portanto, em Montes Claros, acaba por ter uma dimensão “resgatável”, que pode ser usada

como elementos chave para a confecção de espetáculos, ao mesmo tempo em que é definição

de tradições vivas e que se transformam ao longo do tempo.

Na verdade, numa percepção êmica, “folclore” é algo deveras complexo de se

definir. Por que pensar nesse termo, num Brasil que tem constantemente rechaçado a ideia de

“folclore”, pelo menos por parte de pesquisadores, que preferem usar outras nomenclaturas?

A resposta é simples, pelo menos no caso deste trabalho: o termo “folclore” e a noção do que

é “folclórico” existem na cidade de Montes Claros, e são expressões usadas para definir e

valorar uma grande quantidade de manifestações que lá se articulam, tanto por parte de

instâncias políticas, quanto pelas pessoas da cidade. Sendo assim, ao se usar esse termo neste

trabalho, não se busca reviver um tema que tem sido evidentemente rediscutido e até

combatido nas ciências sociais, em especial no Brasil. O que se quer na verdade é, a partir da

descrição do que se pensa sobre “folclore” em Montes Claros, construir as bases das

concepções que subsidiam a vida musical na cidade.

É claro que a temática do que seja “folclórico” em Montes Claros é problemática.

Nos colégios, os alunos aprendem que o Boitatá e Saci-Pererê são folclore, que as cantigas de

ninar são folclore e que Catopês, Marujos e Caboclinhos são folclore, da mesma forma. Ou

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seja, a mesma visão de manifestação e produtos culturais estáticos e invariáveis que se aplica

ao folclore nas disciplinas escolares é aplicada às manifestações musicais tradicionais montes-

clarenses. Esses grupos não são, de forma alguma, estáticos. Apresentam-se todos os anos,

como já dito e se transformam constantemente. Um exemplo claro disso foram as festas do

ano de 2007, quando o mestre de um dos ternos de Marujada resolveu trocar o figurino dos

seus integrantes por outro completamente diferente. O mesmo fizeram os integrantes dos

Caboclinhos. A crítica por parte dos moradores da cidade veio de forma ferrenha. No site

Montesclaros.com, em um mural no qual os moradores postam comentários sobre assuntos

relacionados a Montes Claros, chegaram textos indignados de pessoas que reclamavam da

“deturpação” da tradição folclórica montes-clarense. O que essas pessoas não se deram conta

foi que as mudanças ocorrem a todo tempo, com base no que os grupos consideram como

necessário para sua sobrevivência no tempo e no espaço. Em uma conversa com o mestre

Miguel, autor das mudanças no figurino na Marujada, ele alegou que elas só se tratavam de

um retorno a outra tradição, o respeito ao uniforme da marinha, cuja temática é correlacionada

com a do seu grupo.

Os conflitos acerca do uso das visões de “folclore” em Montes Claros se baseiam em

outro parâmetro, e esse poderia ser considerado como um dos mais influentes para a

concepção instaurada na cidade, juntamente com aquela ensinada nas escolas, já descrita

acima. Trata-se do plano da política cultural. Já que as festas de agosto são feitas na

atualidade com o apoio da Prefeitura Municipal de Montes Claros, o dinheiro e a produção do

evento ficam a cargo da mesma. Apesar de algumas pessoas do congado negarem que as

festas de agosto e o Festival Folclórico sejam a mesma coisa, a relação é profunda. A

prefeitura custeia transporte, parte da alimentação, além de liberar uma verba que é distribuída

entre os grupos, todos os anos. Quando não há dinheiro, ou quando ele atrasa, a reclamação é

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constante, dizendo que não há como fazer festa sem a ajuda da prefeitura. Dessa forma, esses

grupos que

(...) podiam considerar-se auto-subsistentes, passam, então, a exigir da prefeitura ajuda na confecção de roupas, dinheiro para a compra de sapatos (...) E o que antes era um apoio público para a “defesa do folclore”, transforma-se em patrocínio, gerando uma relação viciosa, uma vez que os grupos só se apresentam se tiver apoio financeiro (RIBEIRO, 2008, p. 49).

Os ternos são organizados em uma associação que recebe e administra esses repasses

de verbas e patrocínios. O discurso da cidade, em sua esfera política, é sempre o da

valorização e “resgate” das “tradições” da cidade, enquanto, por outro lado, também figuram

a busca pelo desenvolvimento econômico e apelo eleitoral. Não se nega também que é

trabalhada aí uma busca pela identidade, ou seja, o que é ser montes-clarense, através desse

discurso. Assim, numa negociação constante com várias instâncias, os montes-clarenses

constroem sua visão do que venha a ser “folclore”. Na busca de pela sobrevivência como

manifestação, os grupos adotam para si o rótulo de “folclórico”.

A discussão acima levantada mostra que essa definição varia de contexto para

contexto e se mostra presente em um local em que a relação que existe entre “nós” e os

“outros” tem se tornado cada dia mais difícil de ser definida. Assim,

Essa clara visão nós/outros é hoje percebida, cada vez mais, como não tão clara assim. De um lado, aumentou consideravelmente o interesse em “antropologizar o ocidente” (relativizando e questionando essa visão dicotômica) e, portanto, em analisar as práticas musicais ocidentais (urbanas, eruditas, escritas) (CAMBRIA, 2008, p.65).

Um exemplo disso é a abertura que se verifica nos grupos de congado na cidade de

Montes Claros. É possível encontrar, dentro destes, pessoas que em outra época jamais seriam

admitidas. A necessidade de sobrevivência dos grupos na atual conjuntura é o que parece

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fazer com que a entrada de novos membros seja permitida. No ano de 2006, em uma pesquisa

de campo, Carvalho e Mendes (2007) puderam constatar que um dos ternos de Catopês de

Montes Claros, no caso, o do mestre Zé Expedito, passou a aceitar meninas e mulheres para

seu grupo. A justificativa era justamente sobreviver ao desinteresse e a escassez de novos

membros para a manifestação.

Portanto, ao se definir a visão do que seja “folclore” em Montes Claros, busca-se,

antes de tudo, definir qual é a concepção que as pessoas têm das manifestações que se

enquadram nesse rótulo. Como já dito, mesmo que ele seja problemático, ainda é a forma

êmica pela qual os montes-clarenses operam enquanto produção de conceitos sobre as

manifestações “tradicionais” que acontecem na cidade. Entretanto, dos dois ângulos que

anteriormente foram abordados acerca das manifestações folclóricas, apenas um foi

contemplado: aquele que versa sobre as manifestações “tradicionais”. O outro ângulo, por sua

vez, traz ainda mais confusão – em termos analíticos – para a questão do que seja “folclore”

em Montes Claros. Trata-se dos grupos que se formam através de pesquisas, representações e

releituras acerca das manifestações tradicionais que, num sentido ético, aqui são chamados

parafolclóricos (RIBEIRO, 2008). Geralmente são vinculados a alguma instituição, como o

Banzé, que está ligado à Unimontes e o Zabelê que está vinculado ao Conservatório da cidade.

Como já foi dito, a busca, ou melhor, o discurso primeiro desses grupos é ligado à

manutenção de valores, ao uso de elementos regionais na intenção de se “preservar” e resgatar

no imaginário “folclórico” as práticas que compõem a identidade “tradicional” de Montes

Claros. Mas qual seria ela? Não se pode negar o grande poder de divulgação exercido por

esses grupos, já que estão constantemente em festivais folclóricos no Brasil e no exterior. No

entanto, a forma como se montam as ideias de tradição e consciência do que seja folclórico se

mostra na verdade como a construção de uma nova identidade expressa através de uma prática

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específica. Isso porque as formas pelas quais elas acontecem são diferenciadas dos grupos

tradicionais, pelo menos em Montes Claros ainda são. O que esses grupos fazem é na verdade

um espetáculo, em um palco. Não apenas isso, mas eles também executam músicas de

repertórios de outras localidades, como maracatus, cocos, fandangos, etc. “Folclórico”, nesse

caso, mostra uma visão um pouco mais parecida com aquela vista nas escolas. Esses grupos

estão diretamente ligados com a ideia de que se usando elementos específicos pode-se

alcançar o que venha a ser uma manifestação popular, em seu valor artístico.

Mas, mesmo usando os termos “folclórico” e “parafolclórico”, nas práticas as

fronteiras acabam por se misturar. Pensa-se em produção cultural nos dias de hoje. Ou seja,

cultura é um setor economicamente ativo e produzir culturalmente é produzir bens para

consumo cultural. Em Montes Claros – como em muitas outras localidades – isso é uma

concepção recorrente tanto nos grupos “folclóricos” quanto nos parafolclóricos. Da mesma

forma que o Banzé e o Zabelê fazem espetáculos, se apresentam para as pessoas, os ternos de

congado de Montes Claros, de certa forma, também adentram ao festival folclórico da cidade

e sabem que estão lidando com um público que, em grande parte, não está lá pelos mesmos

motivos que as pessoas que tocam nos grupos. Aliás, os motivos entre os membros também

são altamente variáveis, uma vez que a estratificação entre eles é enorme. Em termos de

práticas, portanto, há diferenças entre os grupos aqui definidos enquanto “folclórico” e

parafolclórico? Sim, há. Isso porque os motivos de cada um ainda são distintos. Por outro

lado, eles tem se mostrado parecidos em suas práticas, porque lidam diretamente com a esfera

política da cidade, além de serem grupos que, de uma forma ou de outra, tem se valido do

espetáculo para sobreviver em Montes Claros. No imaginário do montes-clarense, há

diferença de grupos, mas todos estão dentro do grande rótulo: “folclore”.

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Mas Montes Claros é mais do que essa discussão, bem como os grupos que acima

foram listados. Por estar em um grande entroncamento rodoviário, além da constante recepção

de influências e elementos oriundos do rádio, da televisão e da internet, além de receber

constantes fluxos migratórios (pequenos, mas constantes, tanto no sentido rural-urbano quanto

urbano-urbano), podemos dizer que há hoje4 outras manifestações que também lhe são

representativas. Dentre elas, podemos destacar a música sertaneja, que movimenta uma gama

de shows em espaços abertos, bares e boates; a música eletrônica, forte em boates e raves

(geralmente ocorrem em locais mais isolados, como sítios e hotéis-fazenda); o pagode,

representado por uma porção de bandas que atuam em festas universitárias, bares e casas de

shows; o forró, que tem sua movimentação intensificada na época das festas juninas, mas tem

espaço de atuação durante todo o ano; a MPB5, praticada em sua maioria em bares e recepções

de naturezas distintas; músicas religiosas, católicas e protestantes de denominações diversas,

recorrentes em cultos e missas, festivais e encontros religiosos; música erudita, representada

pelo Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandez e a Unimontes, que geralmente

realizam concertos, audições e recitais. Essas músicas também são muito utilizadas em

casamentos. Outra manifestação, objeto de estudo desta pesquisa, é o rock, que tem

apresentado nos dias atuais toda uma configuração de eventos, instituições de fomento e

bandas, atuando abertamente em espaços da cidade, representado por uma multiplicidade de

estilos, que variam de grupo para grupo. Outras categorias poderiam ser definidas, tanto em se

falando das manifestações mais atuais, quanto das tradicionais. Existem grupos de capoeira,

4 Essa representação da vida montes-clarense atual parte de toda uma evolução que vem desde a década

de 1960. Portanto, ao me referir a gêneros como música sertaneja, é admissível pensar que esta já existe na cidade há mais de trinta anos. Grandes marcos para o surgimentos dessas manifestações seriam a chegada do rádio, da televisão e, mais recentemente, a internet.

5 A definição de MPB aqui usada faz referência à concepção usada pelos montes-clarenses. Portanto, falar em MPB nesse contexto implica em entendê-la como uma porção variada de músicas que são praticadas nos contextos acima descritos e não apenas ao movimento que se consolidou com o nome de “música popular brasileira”.

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terreiros de candomblé, umbanda, músicos de rua, grupos de rap e hip-hop, artistas da terra6.

É provável que uma pesquisa mais acurada encontre uma variedade ainda maior de grupos

musicais na cidade de Montes Claros. Contudo, a exemplificação aqui apontada foi feita

apenas revelar a diversidade musical da cidade.

Cada manifestação musical citada representa um microcontexto específico, dentro de

uma realidade multifacetada e macrocósmica que é Montes Claros. Dessa forma, entende-se

que mesmo a cidade sendo lugar comum para todos os montes-clarenses, esses se organizam

conforme as representações, convicções e obrigações que são inerentes às suas identidades.

Nesse sentido, pode-se entender que as músicas pelas quais essas comunidades se manifestam

são marcantes enquanto representantes e meios de atuação cultural/social das pessoas que

nessas esferas atuam. Configuram-se a partir daí modos de pertença distintos, o que podemos

chamar de “mundos musicais”.

A idéia de um “mundo” musical surge parcialmente das descrições dos próprios locais. Envolvimento com a banda de Metais era “um mundo por si só”, e música erudita vista como um “mundo bastante diferente” do rock. O termo tem também sido usado por antropólogos e outros para se referir à “visão de mundo” das pessoas ou para diferentes “mundos sociais”, enfatizando as diferentes e complexas culturas das idéias e práticas com que as pessoas variadamente vivem (FINNENGAN, 2007, p. 31) (Nossa tradução). 7

Mundos musicais, portanto, não são apenas espaços, mas concepções compartilhadas

por grupos de pessoas que possuem consensos do que seja pertencer à determinada

manifestação musical. Pertencer ao mundo do rock, por exemplo, é conhecer as músicas que

6 “Artistas da terra” é um termo êmico, ou seja, é uma definição usada dentro do contexto de Montes Claros para definir os artistas que cantam temáticas próprias da região de Montes Claros, com extensão ao norte de Minas, ao cerrado, ao sertão, à vida rural.

7 The Idea of a musical “world” partly arises from local participants’ (sic) own descriptions. Brass band involvement was “a world on its own”, and classical art music seen as a “quite different world” from that of rock music. The term has also been used by anthropologists and others to refer to people’s “world view” or to different “social worlds”, emphasizing the differing and complex cultures of ideas and practice within which people variously live.

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nesse ambiente circulam bem como os códigos e valores que signifiquem o que é ser roqueiro

e as iconografias e símbolos que definam o que é pertencer a essa manifestação. Além disso,

pertencer a um mundo musical garante, através da detenção e do domínio de códigos

específicos, a possibilidade de se intervir e modificar determinado contexto, fazendo com que

os mundos musicais sejam multifacetados por natureza.

Tomando então Montes Claros como um meio dotado de uma grande variedade de

mundos musicais, pode-se entender que cada mundo musical montes-clarense traz consigo

uma carga de valores peculiares, expressos em seus costumes, ideais e música. Entretanto,

isso não significa um isolamento completo, sequer uma ausência de valores compartilhados

entre grupos diferentes, por mais que isso possa ser afirmado. Sendo assim, dada a variedade

de manifestações musicais presentes na cidade de Montes Claros e buscando certa recorrência

de valores que possa agregá-las em categorias distintas, poderíamos dizer que alguns grupos –

sobretudo o congado, as folias e as serestas – buscam representar uma Montes Claros de

outros tempos, voltados para uma nostalgia que outrora fora realidade dominante na cidade,

mas voltada para a questão da ruralidade, ou de um momento em que a Montes Claros urbana

ainda não havia se tornado o polo comercial, industrial e rodoviário que é hoje, bem como as

músicas que desse sentimento era reflexo. Da mesma forma, os grupos de manifestações

religiosas remetem a festas que eram práticas frequentes e quase que hegemônicas. Isso não

significa que as atuais manifestações da seresta, do congado e das folias sejam algo “morto”

ou “ultrapassado”, mesmo porque elas continuam em constante resignificação, como qualquer

outra música que é praticada por grupos culturais na atualidade. Entretanto, elas possuem sua

gênese em um contexto diferente, mesmo considerando sua configuração frente à conjuntura

atual das cenas musicais da cidade de Montes Claros. Sendo assim,

As músicas de domínio público vêm, durante os anos, granhando (sic) forma nas recriações dos seus personagens e executantes, de forma

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que vão ganhando novos ornamentos com o intuito de demonstrar sua historicidade, geralmente de forma saudosista, ou sua atualidade, capaz de falar ao presente. São tentativas de manutenção de um outro tempo em diálogo com o tempo presente (CARVALHO; MENDES, 2007, s.p.).

No contexto atual da cidade de Montes Claros é possível perceber a atuação desses

grupos como formas de resistência cultural. Contudo, sua recriação constante, bem como as

adaptações musicais/culturais que são feitas ao longo do tempo se mostram enquanto faces da

negociação entre os grupos “tradicionais” e a cidade em sua configuração contemporânea.

Além disso, não se pode dizer que a mecânica da globalização não se aplica a esses grupos.

Suas formas de resistência à fragmentação e à perda de sentido representam artifícios de

negociação com uma realidade que tem passado por um momento de transição. Dessa forma,

a concepção do que é ser um músico, ou membro de um grupo tradicional, expresso em suas

ações (musicais ou extramusicais) é fruto de um embate constante entre o discurso da tradição

enquanto pilar firme e representação da coerência local com a realidade fugidia, muitas vezes

comercial, de mudanças rápidas e mais fugazes que é a vida moderna. Sendo assim, dizer que

as manifestações musicais mais tradicionais de Montes Claros são alienadas da atual

conjuntura, como algo antigo, sem sentido ou mesmo “passado” é uma concepção deveras

equivocada, uma vez que todo e qualquer grupo ou pessoa que viva na atualidade está sujeito

a lidar com a dinâmica que entre as pessoas se estabeleceu. Dessa forma,

(...) as sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais e, agora, mais do que nunca. A idéia de que esses são lugares “fechados” – etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados até ontem pelas rupturas da modernidade – é uma fantasia ocidental sobre a “alteridade”: uma fantasia colonial sobre a periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como “puros” e de seus lugares exóticos apenas como “intocados”. Entretanto, as evidências sugerem que a globalização está tendo efeitos em toda parte, incluindo o Ocidente, e a “periferia” também está vivendo o seu efeito pluralizador, embora num ritmo mais lento e desigual (HALL, 2006, p. 80).

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Apesar de se referir muitas vezes a grupos étnicos diversos e, provavelmente às

novas configurações desses grupos nos grandes centros urbanos, essas afirmações são úteis

para que se possa entender que até mesmo a mais arrojada concepção do que possa ser o

“tradicional” não deixa de estar sujeita à necessidade de sobrevivência mediante sua

adaptação ao mundo contemporâneo. No caso de Montes Claros, isso se reflete em ações de

grupos de serestas que gravam e comercializam CDs, cantam em shoppings, grupos de

congado que fazem visitações além daquelas previstas nas festas das quais fazem parte, bem

como procuram estabelecer vínculos com a mídia, ao mesmo tempo em que cumprem com

suas obrigações religiosas. Os Caboclinhos, nos intervalos de suas performances, durante as

festas de agosto, se juntam para cantar músicas sertanejas, bem como a Marujada do mestre

Miguel que, enquanto estava dentro do ônibus que levaria o grupo para uma visitação,

entoava em uníssono a música “De quem é esse jegue”, de Genival Lacerda, parte do

repertório que provavelmente foi adquirido através do rádio, ou mesmo da internet... Ainda

assim, o discurso considerado como “tradicional” não se perde, sequer a necessidade e função

das manifestações, visto que sua presença é marcante na cidade e sua imagem ainda é aquela

que remete a Montes Claros de outros tempos. A manutenção dessa ideia de “tradicional” e

representante dos costumes da cidade, aliada à devoção religiosa em alguns casos parece se

mostrar como o mote para que esses grupos persistam.

Já as manifestações musicais mais atuais, sobretudo aquelas que chegam com as

influências da televisão, rádio e até mesmo da internet, as incursões da indústria fonográfica

sobre esses meios e a contrapartida underground desse movimento, advindas a partir de por

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volta da década de 19508, se configuram com valores bastante diferentes das manifestações

“tradicionais” de Montes Claros.

O próprio surgimento e preocupação desses grupos está ligado à questão da

urbanidade, bem como se atualiza conforme as novidades e tendências que surgem através da

mídia, seja ela de ampla divulgação ou segmentada (JANOTTI JUNIOR, 2004). Os anseios,

as preocupações e o imaginário dessas manifestações são expressos no âmago do sentimento

do que é pertencer a um contexto urbano. A grande exceção poderia ser a música sertaneja,

que também possui ligação com as questões da ruralidade – ruralidade enquanto discurso, é

claro –, mas ainda sim, sua temática não remete ao ambiente rural ou “tradicional” de Montes

Caros. Esse discurso se estabelece de forma genérica, além de estar ligado com as incursões

da indústria fonográfica. Sendo assim, essas manifestações atuam conforme os espaços e

concepções que se criam em torno do que é urbano – mais uma vez, como discurso do que é

pertencer ao que é urbano, ou ser urbanizado, sem esquecer que esse discurso possui uma

grande quantidade de variantes –, fazendo com que os anseios e as formas de expressão se

deem de forma diferenciada das manifestações mais “tradicionais”.

Música em Montes Claros, portanto, como em qualquer sociedade, possui estreita

relação com cultura (MERRIAM, 1964), ou melhor, música em Montes Claros é cultura.

Entretanto, não se pode falar de uma única, mas de culturas e, por conseguinte, não de uma

música montes-clarense, mas de músicas. Cada grupo possui, dentro da grande esfera de

convivência que é Montes Claros, sua própria ideologia, seu universo de valores e concepções

distintas. Os mundos musicais (FINNENGAN, 2007) de Montes Claros seriam, portanto,

esferas culturais peculiares que convivem dividindo o mesmo espaço pelas pessoas possuírem

8 Aqui é indicada a chegada de influências musicais diversas na cidade de Montes Claros a partir da

década de 1950, isso não quer dizer que todas chegam e se estabelecem ao mesmo tempo, mas o movimento começa nessa época.

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atividades devotadas a seus grupos, mas também atividades com as quais todos convivem

(trabalho, família, escola, etc.). Ainda assim, cada mundo possui sua vida musical própria,

bem como concepções que definem o ideário das pessoas que o compõem. Música, por sua

vez, seria o resultado de padrões de comportamento e fazeres sociais diversos, um “sistema

modeladamente primário do pensamento humano e uma parte da infraestrutura da vida

humana9” (BLACKING, 1995, p. 223) (Nossa tradução) e o fazer musical “um tipo especial

de ação social que pode ter importantes consequências para outros tipos de ações sociais10”

(BLACKING, 1995, p. 223) (Nossa tradução). Sem seu contexto – ou melhor, seus

contextos– não haveria música – ou músicas – em Montes Claros. Isso se aplica a qualquer

música que é praticada na cidade, sejam aquelas cuja origem esteja associada aos seus

primórdios, ou mesmo aquelas mais contemporâneas, que chegaram por meios diversos e

cujas origens enquanto sonoridade e elementos foram absorvidos e reconfigurados conforme

óticas culturais montes-clarenses, ou mesmo reproduzidos conforme o gosto musical dos

grupos que as consomem e a usam como elemento de expressão.

1.1. O ESPAÇO URBANO

Pensar em uma Montes Claros urbana, portanto, é falar do discurso da urbanidade

que se desenrola nesse contexto. Isso implica em perceber as diversas facetas pelas quais a

cidade se articula culturalmente. Sejam as manifestações aqui definidas enquanto tradicionais

e as músicas populares, bem como as “eruditas”, todas fazem frente à atual conjuntura do

9 (...) “primary modeling system of human thought and a part of the infrastructure of human life”. 10 (...) “a special kind of social action which can have important consequences for other kinds of social

action”.

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espaço urbano que é Montes Claros. A convivência entre tantos grupos, tantas manifestações

são reflexos do crescimento das cidades, nos dias atuais. Entretanto, desconsidera-se, ao

menos neste momento do trabalho, se esse crescimento é ou não bom, se as aglomerações

urbanas representam ou não algo que seja benéfico. É necessário, até o presente momento,

compreender o quão importante é o espaço urbano, no caso, as cidades, sejam elas, pequenas,

de médio porte, grandes metrópoles ou megalópoles na configuração de grupamentos sociais

que estabelecem pensamentos musicais ligados à experiência urbana.

Esse crescimento, como já foi dito, não é recente. O crescimento das cidades, ao que

parece, geralmente se processa a partir de necessidades econômicas, ao menos em se falando

do mundo a partir da revolução industrial, cujo acontecimento é, no mínimo precursor da

atual conjuntura mundial. Grout e Paliska (2007), ao abordarem algumas características sobre

o período romântico (se referindo à história da música, apesar de amparados pela história

geral), apontam o crescimento demográfico ocorrido em cidades europeias na época da

revolução industrial:

Devido, em parte, à revolução industrial, a população da Europa cresceu extraordinariamente ao londo (sic) do século XIX. Este crescimento verificou-se principalmente nas cidades: as populações de Londres e de Paris quadruplicaram entre 1800 e 1880. A maioria das pessoas, incluindo a maioria dos músicos, deixou de viver em uma comunidade, cidade ou corte, onde toda gente conhecia toda a gente e onde o campo aberto nunca estava muito longe; as pessoas viam-se, em vez disso, perdidas na grande multidão anónima (sic) das cidades modernas (GROUT; PALISKA, 2007, p.577).

Além disso, o século XX, desde seu início, mostra em seu âmago a necessidade de

obtenção de mão de obra por um lado, mais a suposta promessa de “uma vida melhor” nos

centros urbanos. A consequência de tudo isso é um constante remodelamento das cidades,

bem como do surgimento de novas manifestações musicais:

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O crescimento demográfico das cidades tem por si só remodelado as sociedades. Estatísticas contam histórias familiares a redor do mundo. O caso do México é típico: a população da Cidade do México cresceu de 470.000 em 1920 para mais de quinze milhões em 1986, e uma nação uma vez predominantemente agrária é agora dois terços urbana em residência. (...) O surgimento das músicas populares urbanas é assim um reflexo e um produto da emergência de novas e vastas sociedades urbanas que existiam apenas a um século atrás (MANUEL, 1988, p. 16) (Nossa tradução).11

A recorrência mundial do crescimento das cidades, portanto, indica a necessidade de

obtenção de novas formas de socialização, mas, em primeira instância, uma demanda que vise

atender a uma questão de ordem econômica, no caso, o bom funcionamento do capitalismo.

Para que isso ocorra, principalmente em espaços urbano-industriais, é necessária a formação

de um corpo de profissionais capacitados para produzir, vender, divulgar, bem como para

consumir, manter, sustentar a conjuntura econômica que reflete diretamente no modo de vida

das pessoas.

Como já foi dito, a cidade de Montes Claros, tendo se tornado o polo comercial,

industrial e rodoviário que é atualmente, é palco de uma infinidade de mudanças, bem como

passa a atrair novos moradores, num crescimento desordenado, antes de tudo. O êxodo rural

seria um dos principais movimentos pelos quais esse espaço urbano, em específico, se

constitui. Seja através de movimentos sazonais (nos quais os trabalhadores rurais vão para a

cidade, mas residem no campo e vice-versa) ou mesmo da migração de pessoas, Montes

Claros vai adquirindo assim várias faces, sejam elas voltadas para o sentimento rural ou

11 The demographic growth of cities has in itself reshaped societies. Statistics tell familiar stories

throughout the world. The case of Mexico is typical: the population of Mexico City grew from 470,000 in 1920 to over fifteen million in 1986, and a once predominantly agrarian nation is now two-thirds urban in residence. (…) The rise of urban popular musics is thus a reflection and a product of the emergence of vast new urban societies that scarcely existed a century ago.

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urbano, bem como da interseção desses dois vieses12. A migração de pessoas de grandes

centros e de outros países também é comum. Com a chegada de grandes empresas, indústrias

e novas possibilidades para o comércio, além da presença de um polo universitário13 bastante

dinâmico e desenvolvido, a necessidade de mão de obra especializada e a demanda para

atender uma grande quantidade de estudantes, mais a promessa de uma vida melhor na cidade

grande, face às dificuldades enfrentadas no campo faz com que pessoas oriundas de capitais

brasileiras, cidades menores e vilarejos, além de cidades de outros países se instalem em

Montes Claros. Em muitos casos, não apenas indivíduos se mudam, mas famílias inteiras.

Não apenas pessoas ou grupos de pessoas, mas homens, mulheres e crianças que, a princípio,

vêm de contextos culturais distintos, com costumes, hábitos e significados peculiares, alguns

provavelmente recorrentes no espaço da cidade, outros não.

Dessa forma, uma grande quantidade de pessoas de origens distintas acaba por

encontrar nos espaços urbanos dos grandes centros oportunidades de trabalho, de crescimento

econômico e pessoal, novas formas de entretenimento, dentre outros. Podem também não

encontrar o que buscavam, gerando verdadeiros quadros de pobreza e miséria, além de

constituírem espaços que condizem com essas condições. Nesse movimento, bem como nessa

miscigenação, acontecem convivências musicais, que também são culturais, uma vez que

música está atrelada às relações que se dão entre as pessoas. Conforme afirma Oliven (1996),

as cidades têm mostrado, em seu suposto estrato homogeneizado e bem definido (relativo a

classes sociais, ricos, pobres, classe média...) diferenças subjacentes, relacionadas a escolhas,

12 Sentimento “rural” e “urbano”, neste caso, pode significar muitas coisas diferentes. Vale dizer que

esses “sentimentos”, esses “discursos” são multifacetados por natureza, pois nem um espaço, nem o outro apresentam um único modo de vida, bem como se encontram em uma variedade enorme de locais.

13 Montes Claros, na atualidade, possui uma universidade estadual, uma extensão de uma universidade federal e mais de cinco faculdades particulares, em modalidade presencial. Além disso, uma grande quantidade de institutos e faculdades que operam na modalidade a distância (EaD) complementam o atendimento à demanda universitária que se dá principalmente no norte de Minas Gerais e sul da Bahia.

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agregações sociais que surgem de contextos específicos, ligados a condições culturais e

sociais peculiares. A recorrência de elementos nos espaços urbanos, que os tornam

reconhecíveis em várias partes do mundo, sugere uma planificação não só dos espaços, mas

também dos comportamentos, bem como dos enquadramentos sociais que se desenrolam

nesses locais. Sobre isso, Renato Ortiz descreve uma história que se passa em um espaço

urbano:

Enzensberger conta a história de um executivo alemão que foi mandado à China para projetar uma grande instalação industrial. Durante algumas semanas, devido às exigências de sua profissão, ele se vê obrigado a viver uma experiência amarga. Não fala chinês, desconhece os costumes locais, ressente-se da falta dos automóveis, encontra-se na contingência de partilhar um modesto quarto de hotel com outro viajante qualquer. De retorno a Hong Kong, sua conexão para voltar à Europa, respira aliviado. A paisagem que o cerca é sua velha conhecida. Mas por que um alemão “sente-se em casa” em Hong Kong? O que lhe é tão familiar neste lugar longínquo (ORTIZ, 2006, p. 105)?

Para que alguém se sinta “em casa” em um local tão distante, há a necessidade de

haver elementos com os quais essa pessoa se identifique. A recorrência de signos e de

funcionalidades em diversas cidades ao longo do mundo torna recorrente o fato de que

determinados processos, bem como conceitos, espaços e produtos são de fato mundializados.

O que acontece, a partir daí, é o que Ortiz chama de uma desterritorialização de processos e

de elementos. Sendo assim, os espaços urbanos acabam dotados de ““não-lugares”, locais

anônimos, serializados, capazes de acolher qualquer transeunte, independentemente de sua

idiossincrasia” (ORTIZ, 2006, p. 106). Trata-se, portanto, de um “espaço impessoal, no qual o

indivíduo se transforma em usuário, isto é, em alguém capaz de decodificar a inteligibilidade

funcional da malha que o envolve (fazer compras, passear, tomar um avião, ir ao trabalho,

etc.) (idem). Entretanto, para Ortiz, não são apenas os espaços que são recorrentes nessa

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cultura mundializada. Acontece que os símbolos que orientam esses locais também são parte

de um discurso mundializado a princípio. Em quantos lugares do mundo pode-se achar uma

lanchonete do McDonald’s (Montes Claros teve uma)? Seria difícil comprar uma coca-cola

em um lugar que não fosse uma capital? Como fazer para ouvir rock, para onde se deve ir?

Elementos como esses, carregados de valor simbólico, estão presentes na vida das pessoas,

nos mais diversos espaços.

Não se trata apenas de uma difusão de marcas, pensamentos e estilos, mas sim de

concepções que tem raízes no que Harvey (2006) chama de acumulação flexível do capital.

Não mais se produz em um único local, mas sim em diversos. Como exemplifica Ortiz, “um

carro esporte Madza é desenhado na Califórnia, financiado por Tóquio, o protótipo é criado

em Worthing (Inglaterra) e a montagem é feita nos Estados Unidos e México, usando

componentes eletrônicos inventados em Nova Jérsei, fabricados no Japão” (ORTIZ, 2006, p.

108). Os processos e produtos são praticados e vendidos no mundo inteiro. Isso faz com que

as estruturas da modernidade se internalizem em vários locais, criando os “lugares-comum” e

os “não-lugares” característicos da modernidade tardia. O mesmo pode ser dito da música, ou

melhor, da produção musical.

Assim, não é forçoso considerar que as mudanças na organização da produção fonográfica, que estão em pleno curso, são uma consequência direta do movimento de globalização que, ao impor um processo de rearranjo de todo o processo produtivo, promove fenômenos como a fragmentação da produção (DIAS, 2000, p. 116).

Junto com a exemplificação trazida por Ortiz, essa citação mostra que processos de

produção – inclusive musicais – foram difundidos ao redor do mundo. Isso caracteriza novos

contextos. Dessa forma, produtos e processos tão comuns nas cidades ao redor do mundo não

são conhecidos apenas porque são vendidos ao longo do globo, ou porque as pessoas os

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conhecem pela internet, ou pela televisão via satélite, sequer precisam viajar para tanto. Tudo

é próximo. Os chineses conhecem os tênis Nike porque há fábricas que trabalham para a

empresa na China. Há montadoras de carros europeus por toda a América Latina e há

gravadoras multinacionais também. Como pensar em espaços urbanos sem pensar nos

processos de mundialização pelos quais os elementos do mundo ocidental pós-moderno se

enraízam nas concepções de cada local?

O mundo parece homogeneizado, não só o mundo, como também as práticas

culturais. Hall (2006) afirma que, mais do que isso, tem havido certa “ocidentalização”, de

forma que as lógicas de consumo, de trabalho e de concepção artística se tornam embasadas

no pensamento ocidental. Entretanto, mais do que simples homogeneização, há sim a

constante negociação do que é “ser” no espaço urbano, a que pertencer, como se manifestar.

Não apenas isso, mas as resultantes da modernização são diferentes nos mais diversos espaços

nos quais ela se aplica. Nesse sentido, Canclini, citado por Leme (2003) mostra que, no

projeto de modernização dos meios produtivos na América Latina, há uma grande diferença

em relação ao que aconteceu nos países desenvolvidos:

As oligarquias liberais do final do século XIX e início do século XX teriam feito de conta que constituam estados, mas apenas organizaram algumas áreas da sociedade para promover um desenvolvimento subordinado e inconsistente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e mal construíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações indígenas e camponesas que evidenciam sua exclusão em mil revoltas e na migração que “transtorna” as cidades. Os populismos fizeram de conta que incorporavam esses setores excluídos, mas sua política igualitária na economia e na cultura, sem mudanças estruturais, foi revertida em poucos anos ou se diluiu em clientelismos demagógicos (CANCLINI apud LEME, 2003, p. 44).

A compreensão de Leme acerca do pensamento de Canclini se mostra bastante útil

para este trabalho. Admite-se aqui a variedade de contextos que se formam a partir da ideia de

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modernização da América Latina, mesmo que numa postura que evidencia as diferenças de

poder e exercício da dominação de países desenvolvidos sobre os periféricos. Parece óbvio

que a intenção nunca foi “igualar” o mundo. Porém, não se pode negar que, a partir dessa

“ocidentalização” (HALL, 2006) das coisas, dos conceitos e das práticas, muitas são as

resultantes. Isso porque cada local que recebe o projeto da modernização o faz de uma forma

diferente. Na ótica de Canclini, portanto,

A modernidade é pensada através de quatro projetos básicos: um projeto emancipador (secularização dos campos culturais e desenvolvimento de mercados autônomos), um projeto expansionista (incremento do lucro, desenvolvimento industrial), um projeto renovador (reformular várias vezes os signos de distinção que o consumo massificado desgasta) e um projeto democratizador (ampliar a educação, difundir a arte e os saberes especializados) (LEME, 2003, p. 44).

Como é mostrado pela própria autora, esse projeto de construção da modernidade é

conflituoso por si só e, segundo Canclini, se mostra basicamente inconclusivo, sobretudo na

realidade dos países periféricos, em específico na América Latina, que é o foco de sua análise.

A realidade fragmentada e segmentada observada na tessitura urbana na atualidade, por sua

vez, aparece como parte dos resultados desse mundo capitalista, moderno, “ocidentalizado” e

desigual.

A música, por sua vez, é um reflexo dessas constantes negociações e reconfigurações

sociais que se processam nas cidades. Para tanto, bem como entendendo a cidade como um

discurso (BARTHES apud HARVEY, 2006, p.69), pode-se perceber que ela traz consigo, em

seu próprio espaço, uma gama de relações sociais que se processam graças a sua arquitetura

(como argumenta o próprio Harvey), dinâmica social, bem como estratificação – que, nos

tempos atuais, vai além das relações de classes por si só.

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Sendo assim, música acaba por ser uma linguagem que não apenas reflete, mas é

meio de expressão das formas urbanas de ser e agir. Ela parece chegar por imposição, através

de diversos meios, na propaganda, no rádio, na televisão, dentre outros. Mas também é fruto

de escolhas individuais e coletivas, na necessidade de consumo de símbolos e artefatos

musicais/culturais, bem como na associação com manifestações tradicionais remanescentes

(mesmo que influenciadas e/ou ameaçadas pela dinâmica urbana) ou mesmo através de

qualquer outra adesão musical. Não se descarta também a possibilidade de uma pessoa se

integrar a diversas manifestações.

Nos dias atuais, graças a já citada possibilidade de mobilidade das populações ao

redor do mundo, pode-se receber uma quantidade imensa de pessoas de várias origens

diferentes, refazendo assim as relações étnicas, de classe, de gênero, bem como criando novas

formas de socialização como os grupamentos produzidos pela urbanização – seja como

representação de sua conformidade ou reação:

Quando acompanhado por fortes ondas de migração (não somente do trabalho como do capital), isso produz uma pletora de “pequenas” Itálias, Havanas, Tóquios, Coréias, Kingstons e Karachis, bem como Chinatowns, barrios Latinos, quarteirões árabes, zonas turcas, etc. Mas o efeito, mesmo numa cidade como São Francisco, onde as minorias, juntas, são a maioria, é estender um véu sobre a geografia real através da construção de imagens e reconstruções, dramas de costumes, festivais étnicos e assim por diante (HARVEY, 2006, p. 87).

Apesar de o autor falar de uma megalópole, no caso a cidade de San Francisco

(Califórnia, Estados Unidos), algumas afirmações feitas são úteis para se entender dinâmicas

de cidades menores, como é Montes Claros. Uma primeira diferença é que Montes Claros não

recebeu quantidades massivas de pessoas de outras nacionalidades, sequer estabeleceu

pequenos centros como bairros latinos, italianos, etc. Ao contrário, as diferentes combinações

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de pessoas que povoam Montes Claros geralmente são da mesma nacionalidade, ou mesmo a

quantidade de estrangeiros é pequena, o que acaba por compor minorias que não são

suficientes para configurar um “bairro” inteiro. As separações se dão mais por “gostos

culturais” diferenciados, bem como as aglomerações (leia-se como a formação de bairros,

principalmente) acontecem mais por uma divisão de poder econômico, além das práticas de

cada comunidade. Contudo, a variedade de concepções que se encontram dentro de uma única

classe é enorme, sendo que, por exemplo, num bairro pobre, as pessoas se diferenciam não

por não serem ricas, mas sim pelas concepções, gostos e escolhas que fazem, criando assim

uma estratificação que vai além da ideia de classe, o que possibilita inclusive constantes

encontros e formações de grupos e comunidades de estratos diferentes (fato que realmente

acontece na cidade, em especial na cena do rock).

A informação que Harvey traz e que é de fato importante é que os grupos, as pessoas

que migram para as cidades, não importando a sua procedência, trazem consigo ideais que se

sobrepõem àquelas que já estão estabelecidas. Os resultados podem ser muitos, como

estruturas arquitetônicas diferenciadas, impactos econômicos, sociais, culturais e musicais,

por conseguinte.

Visto a variedade de pessoas, de concepções e origens diferentes que podemos

encontrar nas cidades na atualidade, música, nesse caso e como descreve Manuel (1988), pode

funcionar como o que ele chama de uma “língua franca” pela qual as pessoas passam a se

reconhecer, bem como se comunicar, numa nova forma de sociabilidade. O contrário também

pode acontecer, uma vez que a música assim como agrega, pode segregar, na representação ou

mesmo na forma de afirmação de determinados grupos.

Wheeler (2007), ao falar do rock na cidade de Brasília-DF, traça a relação entre o

rock, o lugar e a identidade daí decorrente. Seu argumento surge da ideia de que Brasília é

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uma cidade planejada, capaz de agregar uma variedade peculiar de pessoas (dado que se trata

de uma capital política, sendo ela visada nacional e internacionalmente), cuja formação de sua

identidade musical se dá conforme as relações das pessoas com a cidade. Considerando assim

que Brasília, em seus primórdios, trazia poucas possibilidades de lazer, as pessoas passaram a

se organizar em grupos, comunidades pelas quais buscavam estabelecer relações sociais, nas

quais a música estava presente. O rock, por exemplo, foi um dos gêneros musicais que foi

capaz de agregar uma quantidade considerável de pessoas, dando à cena de Brasília uma

variedade de bandas e de gêneros distintos de rock, fazendo com que estes conquistassem,

inclusive, o cenário nacional. É o caso de bandas como Legião Urbana, Plebe Rude, Capital

Inicial, Raimundos, entre outras.

Considerando então o pensamento de Wheeler (2007), de que a relação que as

pessoas tem com o lugar e que, a partir dessa relação, estabelecem sua identidade, inclusive a

musical, bem como a ideia de Manuel (1988) de que a música, nos meios urbanos, pode

funcionar (e funciona) como elemento formador de comunidades musicais, sejam elas

pautadas na cultura do gosto (HARVEY, 2006) ou na necessidade de composição de grupos

distintos, entendendo ainda que, a cidade, conforme a ótica de Barthes, citado por Harvey se

mostra enquanto um discurso e indo além, conclui-se que a cidade é uma grande quantidade

de óticas, linguagens e discursos. Assim, o espaço urbano (ou os espaços urbanos) traz em seu

âmago novas possibilidades de socialização, bem como de formação de novas comunidades e

discursos musicais. Tudo isso se pauta principalmente na viabilidade (ou inviabilidade)

econômica das cidades, uma vez que suas configurações, sejam elas polos comerciais, de

prestação de serviços ou mesmo industriais torna possível a sustentação de ideais capitalistas,

na obtenção de mão de obra ou na formação de mercados consumidores. Esse meio

“mercantilizado” dos centros urbanos, aliado ao desenvolvimento tecnológico e a conjuntura

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atual das cidades enquanto grandes aglomerados de pessoas com identidades (leia-se

discursos) variadas permitem o surgimento de manifestações musicais dos mais diversos

formatos e concepções. Portanto, é nesse meio, amparado pela incursão midiática, juntamente

com as formas e manifestações musicais que remetem tanto aos grupos tradicionais bem como

aqueles da música erudita, é que se configura a chamada “música popular”, ou, como afirmam

Janotti Junior e Cardoso Filho (2006), “música popular massiva”.

1.2. MÚSICA POPULAR

Parte das manifestações que acontecem em Montes Claros, na atualidade, se valem

de processos e concepções que compõem um meio e prática musical que é denominado,

confusamente – mas de forma útil para este trabalho – de música popular. Entende-se que o

rock, bem como as práticas recorrentes nessa cena são fruto uma articulação por intermédio

dessa música. No entanto, vale estabelecer um conceito antes de discutir sobre música

popular, que é o de “cena”, que acabou de ser utilizado. Por cena musical, utiliza-se aqui o

conceito de Straw, citado por Stokes, que é “aquele espaço cultural em que uma série de

práticas musicais coexistem, interagindo umas com as outras com uma variedade de processos

de diferenciação e de acordo com as trajetórias muito diferentes de mudança e fertilização

cruzada14” (STRAW apud STOKES, 2003, p. 223) (Nossa tradução). Sendo assim, “a noção

de cena musical almeja justamente proporcionar uma imagem mais nítida desta relação entre

o local e a música [ou as músicas] que se produz nele” (FERNADES; FILHO, 2006, p. 30). É

14 that cultural space within which a range of musical practices co-exist, interacting with each other

within a variety of processes of differentiation and according to the widely varying trajectories of change and cross-fertilization.

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nessa conjuntura que se dão os processos pelos quais a música popular é articulada.

Considerando ainda a cena numa perspectiva analítica:

Como ferramenta interpretativa, o conceito de cena deve encorajar, portanto, o exame da interconectividade entre os atores sociais e os espaços culturais das cidades – suas indústrias, suas instituições e a mídia. Aplicado empiricamente deste modo, pode ajudar a compreender a dinâmica de forças – sociais, econômicas e institucionais – que afetam a expressão cultural coletiva, por meio da investigação da mecânica social associada à produção musical (FERNANDES; FILHO, 2006, p. 30).

E o que seria a música popular? Defini-la é uma tarefa no mínimo complicada, uma

vez que suas fronteiras são altamente flexíveis e suas influências transcendem os limites de

sua existência. Em outras palavras, ao que parece, música popular não seria um gênero

musical, mas sim uma postura, um modo de concepção musical que engloba uma grande

variedade de gêneros, bem como uma grande quantidade de práticas relativas à sua

conceituação, função e difusão. Sendo assim, pode-se dizer que música “erudita”, por

exemplo, não engloba apenas um gênero musical, uma forma, mas sim uma gama de músicas

que trazem concepções estéticas, comportamentais e estilísticas diversas, além de ideais

culturais que delimitam o que seria essa música. Valsa pode ser enquadrada como música

“erudita”, da mesma forma que a fuga. Na verdade, rótulos como “música popular”, “música

tradicional” e “música erudita” representam mais categorias analíticas, a princípio, do que

definições concebidas no âmago das manifestações que recebem esses nomes. Até mesmo os

nomes dados aos gêneros musicais são problemáticos, em muitos casos. Sendo assim, a

música popular se mostra muito mais como um meio que possui processos específicos de

concepção e prática musical do que um gênero musical. Numa tentativa de delimitar o que

seria essa música, Nettl (apud Manuel, 1988) afirma:

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uma definição de música popular na sociedade ocidental parece ter vários ingredientes: 1) é primariamente urbana em proveniência e em orientação de sua audiência; 2) é performada por profissionais mas não por músicos altamente treinados que usualmente não tomam uma visão intelectual de seu trabalho; 3) ela possui uma relação estilística com a música erudita de sua cultura, mas num grau mais baixo de sofisticação; 4) no século XX, pelo menos, sua difusão tem sido primariamente a mídia de massa de ampla difusão e gravação. É normalmente assumido que a música popular existia antes que a mídia de massa tenha chegado a existir, mas é difícil, no período antes do século XX, na Europa e América [do Norte], distinguir entre três estilos (p.e., clássica, folk, e música popular) (p. 2) (Nossa tradução)15.

Vale dizer que algumas das definições trazidas por Nettl merecem uma revisão,

levando em consideração a conjuntura atual da música popular, bem como a visão política e

acadêmica que tem se construído em seu entorno. Sem dúvida, a música popular surge e se

estabelece como uma das consequências culturais do crescimento das cidades e das

aglomerações urbanas (como foi discutido na seção anterior). Entretanto, nos dias atuais,

principalmente em se falando do Brasil, parece difícil definir o que é música “urbana” e

música “rural”, já que música popular permeia os dois espaços, graças aos meios de difusão

(que serão definidos adiante). Além disso, é complicado definir quem são os músicos

profissionais ou amadores e não seria prudente dizer que a música popular não tem tanta

“sofisticação” quanto a música erudita de um povo. Por exemplo, como afirma Manuel

(1988), há características na música de James Brown que não podem ser encontradas na

música de Mozart (e vice-versa). Além do mais, “a imensa distância social e cultural que é

15 (...) a working definition of popular music in Western society appears to have several ingredients: 1)

it is a primary urban in provenience and audience orientation; 2) it is performed by professional but not very highly trained musicians who usually do not take an intellectual view of their work; 3) it bears a stylistic relationship to the art music of its culture, but a lower degree of sophistication; 4) in the twentieth century, at least, its diffusion has been primarily the mass media of broadcasting and recording. It is normally assumed that popular music existed before these mass media came into existence, but it is difficult, in the period before the twentieth century in Europe and America, to distinguish between the three styles (i.e., classical, folk, and popular music).

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normalmente assumida para separar música clássica e heavy metal [leia-se música popular]

não é de fato uma diferença de musicalidade16” (WALSER, 1993, p. 102) (Nossa tradução).

Nesse sentido, pensando em formas musicais executadas nos dias atuais e, abordando os

músicos que usam o teclado como playback para seus shows em festas e churrascarias,

citando-os como meros reprodutores de música – e não intérpretes –, Carvalho indaga:

O mais significativo (e problemático, teoricamente, para os que crêem no poder transformador da música) dessa execução sem aura é justamente sua possibilidade mesma de existência: como podem as pessoas admitir essa despersonalização, essa mecanização da música em primeiro lugar. Um grupo de apreciadores de música clássica sai de um fino recital de piano, com toda a exigência interpretativa e receptiva de peças de Schumann, Beethoven ou Ravel, e vai a algum bar ou restaurante para continuar a noitada de prazer. Ali não se incomoda de escutar, estranhamente, que um profissional toque num teclado eletrônico, de um modo inteiramente mecânico, sem nenhuma inflexão ou pathos, num tempo soporífero, digamos, "La Cucaracha” (CARVALHO, 1999, p. 10).

A crítica que José Jorge de Carvalho estabelece é clara. Entretanto, ele reconhece que

as pessoas tem uma relação diferenciada inerente à música que é praticada por pessoas como

as citadas acima. Por mais que não se queira discutir aqui questões de “complexidade”

musical, deve-se pensar que ambas as manifestações citadas envolvem características e

complexidades (musicais e extramusicais) distintas, mesmo que sejam executadas em um

teclado eletrônico. Além do mais, a vida das pessoas, na atualidade, tem apontado para a

pluralidade de vivências, de gostos e de formações musicais (não apenas do músico). Essa

possibilidade de vivências musicais diversas e a consequente fragmentação das identidades

culturais (HALL, 2006; HARVEY, 2006) tem feito com que cada vez mais situações como

essa aconteçam. A multiplicidade de identidades musicais e de manifestações que integram o

16 The immense social and cultural distance that is normally assumed to separate classical music and

heavy metal is in fact not a gap of musicality.

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cotidiano das pessoas tem mostrado que cada acontecimento musical possui seu próprio valor,

bem como seu escopo de elementos que a tornam única.

Ainda considerando os “ingredientes” da música popular trazidos por Nettl, pode-se

considerar que a maior contribuição trazida por ele se refere a sua relação com a mídia. Os

processos midiáticos que Janotti Junior e Cardoso Filho (2006) definem como os de produção,

armazenamento e distribuição são cruciais para que se estabeleça a dinâmica da música

popular. No entanto, as coisas nem sempre são tão simples. Isso porque nem sempre a música

popular é gerada no interior de um estúdio, ou mesmo planejada por uma gravadora ou

produtora. Em muitos casos, essa origem é de fato apartada dos conglomerados midiáticos,

por não ser “interessante”, ou “vendável”, ou por não ter sido ainda descoberta e explorada.

Como foi dito, apesar de sua característica midiática, não se pode negar que as

origens da música popular nem sempre se dão nesse meio. Muito do que se difunde através da

mídia é fruto de relações contextuais que estão afastadas do olhar das gravadoras e

produtoras, pelo menos a princípio:

Uma das características mais marcantes da evolução da música popular é sua associação, em numerosas culturas ao redor do mundo, com uma classe não assimilada, excluída, empobrecida, socialmente marginalizada. Essa plebe proletariada comprime uma mistura heterogênea de vadios, cafetões, prostitutas, vagabundos, vendedores de calçada, viciados em drogas, músicos, diversos “povos da rua”, e sortidos imigrantes desempregados. Eles compartilham um status comum na ou além da periferia dos estáveis, sociedade “respeitável” – a classe trabalhadora e média econômica e socialmente assimilada. É paradoxal que esses desajustes marginais em seu meio de bares e bordéis poderiam ser tão cruciais no desenvolvimento de novas formas musicais, especialmente desde que os gêneros que eles criam são frequentemente destinados depois para se tornarem celebrados como expressões nacionais. Todavia, foram exatamente tais grupos, mais do que as classes trabalhadora ou média, que deram nascimento para formas tão diversas e tão vitais como rebetika, kroncong

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moderno, reggae, steel band, o tango, e, por último, mas não menos importante, o jazz (MANUEL, 1988, p. 18) (Nossa tradução). 17

Portanto, pode-se dizer que a música popular se origina das bases sociais de espaços

diversos que vão além dos já citados acima. Muito do que se conceitua como música popular

surgiu em redutos que sequer tinham a intenção de se integrar à mídia. O samba carioca é um

exemplo disso. Entretanto, com a chegada da casa Edison, o rádio e o crescente sucesso desse

gênero e a possibilidade de exploração comercial do mesmo, sua midiatização acabou sendo

inevitável.

Vale dizer também que não apenas as “classes” menos favorecidas são “celeiros” da

música popular. Na verdade, a própria noção de “classe” tem se diluído nos dias atuais. Em

Montes Claros, por exemplo, há bandas de rock compostas por pessoas de classe média e alta,

além de haver pobres (em termos de renda familiar) que atuam na mesma cena. Isso é cada

vez mais comum, pois o que tem formatado esses grupos, na verdade, é o discurso de pertença

e gosto musical/cultural estabelecido conforme a relação das pessoas com a música popular.

Outro exemplo que se tem atribuído nos dias atuais e que tem estado na mídia constantemente

é o que tem se chamado de “novo sertanejo”. A rede Record, no mês de março de 2010,

exibiu uma série de reportagens intitulada “Novo Sertanejo, a paixão do Brasil”. Nela, pode-

se perceber que há hoje uma leva de artistas que fazem sucesso no gênero sertanejo, no Brasil.

O que muda é que o perfil dessas pessoas mais a configuração musical quebram com

elementos mais “tradicionais” da música sertaneja. Não que a música sertaneja possua uma

17 One of the most remarkable features of the evolution of popular music is its association, in numerous

cultures worldwide, with a unassimilated, disenfranchised, impoverished, socially marginalized class. This lumpen proletariat comprises a heterogeneous mixture of hoodlums, pimps, prostitutes, vagrants, sidewalk vendors, drug addicts, musicians, miscellaneous “street people”, and assorted unemployed migrants. They share a common status on or beyond the periphery of stable, “respectable” society – the economically and socially assimilated working and middle classes. It is paradoxical that this marginal misfits in their milieu of bars and brothels should be so crucial in the development of new musical forms, especially since the genres are often destined later to become celebrated as national expressions.

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forma definida e homogênea, há muito não se pode mais afirmar isso. Entretanto, o mais

importante é ressaltar que não necessariamente existem duplas sertanejas e que a origem das

pessoas que praticam e vendem essa música não é necessariamente a mesma de antes. Luan

Santana, por exemplo, é um jovem de dezoito anos que já faz sucesso e circula pelo Brasil

fazendo shows. Diferente das duplas sertanejas mais antigas, ele não é de origem “humilde”,

muito menos formou uma “dupla”. O rapaz segue em carreira solo. Trata-se de um jovem de

classe média, que frequentou bons colégios e que seguiu a carreira artística. Percebe-se então

que o originário da música popular na atualidade não é mais o mesmo. Na verdade ele se

agrega a outras vozes que compartilham do mesmo meio, do mesmo mercado.

Mesmo considerando as origens pelas quais se configuram a música popular, não se

pode negar que, a partir da relação midiática que ela possui, as formas pelas quais as pessoas

tomam conhecimento e passam a apreciá-la são diferenciadas. Dessa forma, a música popular

geralmente é difundida e mantém sua conjuntura atual através de processos pautados no

consumo musical. Sendo assim, dentro da lógica capitalista, a música veiculada através dos

aparatos midiáticos é basicamente “consumida” na forma de artefatos culturais, quando se

compram CDs, DVDs, se baixam músicas na internet, entre outros. Além disso, antes mesmo

de se proporcionar o produto ao consumidor, estabelece-se outro processo, que pode ser

chamado de difusão. Antes de tudo, a difusão da música popular midiatizada consiste em

um espaço de mercado, o início da ligação direta entre o produtor e o seu consumidor em potencial. Por seu intermédio, ocorre uma espécie de antecipação do ato de comprar, um consumo aleatório ou, muitas vezes, compulsório, efetuado no momento em que se escuta uma canção, que não é o produto direto da escolha e/ou da participação autônoma no processo (DIAS, 2000, p. 157).

Dessa forma, o rádio, a televisão, o cinema, a internet, a propaganda (incluindo

cartazes, outdoors, pôsteres, etc.) são estratégias de difusão que servem para ambientar o

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consumidor nas tendências musicais que são prescritas através da mídia. A partir daí, percebe-

se que há uma forte desigualdade de poderes entre a instância produtora e a consumidora. Isso

porque, através de estratégias de marketing torna-se possível “vender” boas ideias, boas – ou

más, mas quem define isso? – músicas para as pessoas.

O que acontece, segundo Carvalho (1999), além de discutido por Dias (2000), é que

graças aos meios de difusão acontece uma espécie de “democratização” ao acesso à música

popular. Dessa forma, ela acaba acessível para quase que qualquer pessoa através de meios

como o rádio, a televisão, a internet, entre outros. Por um lado o consumidor passou a ter um

acesso amplo às músicas populares do mundo. Qualquer pessoa que tenha ligação com um

objeto que faça a mediação de artefatos culturais pode tomar conhecimento das músicas do

U2, por exemplo. Se possuir conexão com a internet, televisão, telefone, rádio, entre outros,

pode baixar músicas, conhecer a história da banda, pedir suas canções no rádio, esperar que

seu clipe seja exibido na MTV e, quem sabe, ir a um show enquanto ela estiver em turnê pelo

mundo.

O acesso às músicas do mundo (sobretudo as pop) é um aspecto. Entretanto, outro

seria a desigualdade e as estratégias embutidas nesse processo. Na verdade, a indústria

cultural “seleciona” o que vende mais e melhor, escolhe quem ela quer que esteja entre os

famosos, veicula as tendências que ela acredita serem as mais rentáveis. Isso – obviamente –

sem deixar que o consumidor perceba:

A atual reestruturação dos meios de produção da indústria fonográfica, como particularidade de um movimento global, ao flexibilizar (ofuscar?) determinadas relações sociais e de produção, fragmentar (dispersar?) espaços, antes verticalizados e indivisíveis, multiplicar (dividir?) as opções de escolha, leva alguns analistas a festejar a quebra dos monopólios, o advento da democracia e o fim da opressão. A adesão dos espaços resistentes ao processo seria uma simples questão de tempo. Assim, não precisamos mais nos preocupar (refletir?) e sim, desfrutar (consumir?) (DIAS, 2000, p. 171).

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O que por um lado parece o direito de escolha das pessoas sendo exercido de forma

democrática, na verdade pode ser o “dever” de consumir sendo estimulado pelo apelo do

mercado. Um exemplo disso é o jabá, amplamente citado e discutido em obras que falam a

respeito da música popular. Trata-se de uma política de grandes gravadoras, que pagam para

que as músicas de seus artistas sejam tocadas e tratadas como grandes sucessos, como as mais

pedidas, ou como Top 10 das rádios. Dessa forma, o consumidor é levado a pensar que a

música que é tocada incessantemente no rádio obteve aprovação do público e, portanto, é uma

música que vale a pena. O que parece haver aqui é uma manipulação do que Blacking (1995)

trata como a aprovação do que seria música ideal dentro de uma cultura. Sem a devida

aprovação das pessoas que integram determinado grupo, uma música não segue como

funcional, sucesso ou mesmo dotada de valor estético aceitável. Entretanto, se acontece a

manipulação de valores de aprovação e negação como é o caso do jabá, a aceitação acaba por

acontecer – mas nem sempre dá certo – sem que, a princípio, as pessoas tenham sido levadas a

avaliar certo conteúdo musical.

Contudo, não se deve pensar na difusão como um aspecto decisivo, sequer como

certeza de sucesso. Ao contrário do que se possa pensar a primeira vista, nem sempre as

estratégias de marketing funcionam. Por mais que as formas pelas quais as pessoas

experimentam música tenham se modificado, passado a uma tendência consumista,

fragmentada e supostamente “individualizada”, elas ainda possuem gostos, se organizam

conforme o que tem em comum e mantêm determinados gêneros musicais (economicamente,

ideologicamente e culturalmente). Robert Walser descreve uma situação característica:

Fronteiras rígidas de gênero são mais úteis para a indústria da música do que para os fãs, e a estratégia comercial de promover os gêneros culturais enquanto está se esforçando para obliterar as diferenças que fazem as escolhas individuais significativas frequentemente funcionam muito efetivamente para mobilizar o consumo eficiente (em nenhum lugar mais do que na música clássica). Mas nem sempre.

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As consequências de tal visão grosseira do heavy metal podem ser vistas na falha da maior turnê de concertos de metal de 1988. Rotulado como o evento de heavy metal da década, a turnê Monsters of Rock durante o verão de 1988 foi uma gigantesca frustração tanto para fãs e promotores. No momento da maior popularidade dos heavy metals, muitas das bandas de heavy metal mais famosas do mundo foram agregadas para uma turnê nos Estados Unidos: Van Halen, Scorpions, Metallica, Dokken, e Kingdom Come. Esses foram alguns dos maiores nomes no metal, e ainda o comparecimento em toda a turnê foi surpreendentemente leve, e se tornou claro que os promotores que tinham montado a turnê sofreram perdas substanciais porque eles não tinham compreendido o gênero do heavy metal: eles o viram como monolítico, falhando em perceber que heavy metal e sua audiência não são homogêneos, que as alianças de fãs são complexas e específicas. Muitos fãs foram para os concertos do Monsters of Rock apenas para ouvir uma ou duas bandas; muitos fãs do Metallica, por exemplo, desprezam bandas como Scorpions e Kingdom Come. Ondas de chegadas e partidas frenéticas no concerto ajudaram a desarmar a excitação normalmente gerada em arenas lotadas, e o comparecimento seletivo dos fãs mina as vendas de concessões e souvenirs que são tão importantes subscrever os custos da turnê e os lucros18 (WALSER, 1993, p. 5) (Nossa tradução).

Sendo assim, a partir da situação descrita acima, pode-se entender que nem sempre

as concepções que a mídia tem sobre algo são semelhantes àquelas do público, das pessoas

que consomem. O resultado de tudo isso é o fracasso de vendas, a partir da não consolidação

das práticas que são inerentes às vidas das pessoas. Não se tratava apenas de se criar um

rótulo de heavy metal, agregar bandas que supostamente caberiam nesse rótulo e depois

18 Rigid genre boundaries are more useful to the music industry than to fans, and the commercial

strategy of hyping cultural genres while striving to obliterate the differences that make individual choices meaningful often works very effectively to mobilize efficient consumption (nowhere more so than in classical music). But not always. The consequences of such a coarse view of heavy metal can be seen in the failure of the biggest metal concert tour of 1988. Touted as the heavy metal event of the decade, the Monsters of Rock tour during the summer of 1988 was a mammoth disappointment for fans and promoters alike. At the moment of heavy metals greatest popularity ever, several of the world's most successful heavy metal bands were assembled for a U.S. tour: Van Halen, Scorpions, Metallica, Dokken, and Kingdom Come. These were some of the biggest names in metal, yet attendance throughout the tour was surprisingly light, and it became clear that the promoters who had assembled the tour suffered substantial losses because they had misunderstood the genre of heavy metal: they saw it as monolithic, failing to realize that heavy metal and its audience are not homogeneous, that fans' allegiances are complex and specific. Many fans came to the Monsters of Rock concerts just to hear one or two bands; many Metallica fans, for example, despise bands like Scorpions and Kingdom Come. Waves of partisan arrivals and departures at the concert helped defuse the excitement normally generated in full arenas, and the fans' selective attendance undercut the concession and souvenir sales that are so important to underwriting tour expenses and profits.

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disponibilizar isso para o público. Sendo assim, as estratégias de difusão se mostram como

tentativas pelas quais se busca incentivar o consumo, emplacar sucessos. Contudo, o consumo

não deixa de ter um aspecto cultural (ROCHA; PEREIRA, 2009) e perceber as nuances de tal

ação (o consumo) pode ser definidor de um processo de difusão eficaz.

Ruud (2007), ao argumentar que a música faz parte da vida das pessoas como jamais

fora visto, diz que essas músicas são condicionantes na formação das suas identidades nos

dias de hoje. A música popular midiatizada é cada vez mais frequente no cotidiano das

pessoas, através de ações muitas vezes individualizadas, graças às evoluções tecnológicas19.

Carvalho (1999) alerta para a individualização da escuta. O uso de walkmans, MP3 players,

entre outros faz com que a pessoa tenha experiências de escuta individual. As identidades

culturais, por sua vez, nesse período pós-moderno, estão fragmentadas, em constante

construção e, dessa forma, a busca pela identidade musical também se apresenta fragmentada,

consumista e mutante. Sendo assim, a relação de consumo que as pessoas estabelecem com a

música popular gera a sensação de passividade, de destruição do poder de raciocínio, de

alienação dos processos de concepção musical em troca de uma vida musical vazia.

De certa forma, as teorias mais “pessimistas” acerca da indústria cultural tendem a

tratar essa dinâmica justamente a partir das consequências citadas acima. Para Adorno, por

exemplo, as artes e neste caso, a música que é feita para as massas se diferencia e muito da

música “artística”, “erudita”, na verdade, música “erudita” da Segunda Escola de Viena. Peter

Manuel discute as teorias de Adorno – na verdade, as teorias desenvolvidas pela escola de

Frankfurt, o que também engloba Marcuse e Horkheimer – e, a partir delas, fala a respeito de

19 A presença do walkman, do discman, do Ipod, do Mp3 player, dentre outros tem possibilitado atitudes

de escuta cada vez mais isoladas, fazendo com que gostos musicais, a princípio, se constituam em processos individuais de escolha e escuta. Isso não quer dizer que as pessoas não se encontrem mais e que não constituam mais comunidades musicais. Ao contrário, essas comunidades se formam de maneiras cada vez mais inovadoras e diferenciadas dos antigos critérios de aglomeração de pessoas em prol de uma causa comum.

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seu pensamento, compreendendo a indústria cultural como forma de dominação das massas,

fazendo com que as pessoas simplesmente e mecanicamente reproduzam modos prontos e

pré-mastigados (MANUEL, 1988, p. 9), inclusive musicais. Música popular, para ele, nada

mais é do que uma forma banal e pré-pronta, que serve para a dominação e manutenção do

sistema capitalista. A música, portanto, como elemento que faz parte da cultura, acaba por

tomar novos rumos, uma vez que os pressupostos capitalistas, baseados no consumo, na

produção em série e na administração e controle das pessoas, inclusive as formadoras de

opinião, se estabelecem:

É nesse contexto que surge o conceito de indústria cultural. As manifestações culturais, outrora produzidas socialmente em espaços qualitativamente diferenciados e portadores de subjetividade, perdem sua dimensão de especificidade ao serem submetidas à lógica da economia e da administração. O exercício do lúdico e do descanso é prejudicado e em seu lugar são propostos hábitos de consumo de produtos que, na verdade, são reproduções do processo de trabalho (DIAS, 2000, p. 26).

Dessa forma, para Adorno e Horkheimer, nesse movimento de administração das

pessoas (DIAS, 2000) feito pela indústria cultural, além da produção e consumo em série de

fórmulas prontas estabelece-se um quadro de homogeneização:

Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea fornece a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos os são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113).

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Sendo assim, na opinião dos pensadores da escola de Frankfurt, a indústria cultural

desenvolveu tal sistema homogeneizante que tem a função de dominar e fazer com que as

pessoas sigam o seu papel de consumir, sempre insatisfeitas, sempre incompletas, no que seria

então a extensão e a reprodução dos meios do trabalho.

Nisso, os indivíduos acabam privados de pensar, refletir e assim, desenvolver sua

criticidade. Entretanto, Manuel questiona a validade desse pensamento, dizendo que em

determinados momentos a reflexão de Adorno falha por não conseguir explicar os levantes

contra as hegemonias (principalmente estados-nação) por meio de manifestações que são

definidas por utilizar fórmulas da indústria cultural. As canções de protesto que no Brasil

foram entoadas na época da ditadura militar se mostram como um bom exemplo. Isso por um

lado, pois por outro, essas músicas são gravadas e reaproveitadas, além de comercializadas.

Em outras palavras, muito do que representava a oposição ao Estado, por exemplo, acabou

por ser usado como veículo de comunicação e divulgação das ideias do próprio Estado. Um

exemplo disso seria a música “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. A

música que fora usada como forma de resistência e protesto à opressão instaurada pelo

Governo militar no Brasil recentemente foi usada pelo próprio governo – claro que já não

mais regido pelos militares –, com um arranjo novo, atrelada a uma nova imagem: a

propaganda do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O sentido da letra muda, a forma

de pensamento dos produtores musicais que a refizeram faz com que mesmo que a letra

indique altruísmo, seu sentido seja subvertido e resignificado. Entretanto, isso não muda o

fato de que a música – música popular – tenha sido fonte de representação de uma

comunidade que lutava contra uma “ordem” estabelecida pelo Estado.

Esse caso apresenta uma característica interessante do pós-modernismo, que é o

rompimento com o passado, na verdade, com o sentido convencional de historicidade. Nessa

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ótica fragmentada, muitos elementos de eventos, momentos e locais anteriores na história

compõem as produções contemporâneas, sem qualquer referência histórica em si que não seja

o próprio símbolo utilizado. Dessa forma, “o pós-modernismo abandona todo sentido de

continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a

história e absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente” (HARVEY, 2006, p.

58). Portanto, “não há uma visão nostálgica. O clássico não é recuperado enquanto tal, mas

como forma produzida em algum tempo e lugar” (ORTIZ, 2006, p. 110). Novamente, Walser

traz contribuições importantes quando analisa as construções musicais das músicas da banda

Iron Maiden.

O Iron Maiden baseia-se numa variedade de tradições religiosas e filosóficas a fim de explorar e interrogar moralidades. Algumas vezes suas letras apresentam críticas explícitas; por exemplo, “Run for the Hills” evoca o horror do genocídio dos americanos nativos, e “Flight of Icarus” reconta a lenda grega com uma torção paranoica: o pai do garoto tem incentivado ele a voar alto, deliberadamente colocando-o para o desastre. Mais frequentemente, entretanto, as letras do Iron Maiden ponderam o significado e a natureza da existência, frequentemente por investigar as atrações do misticismo. Muitas canções também consideram o significado contraditório da batalha, que costumam reratar tão emocionante tornou-se de sua intensidade, eles usualmente retratam como excitante se tornou de sua intensidade, mas em última análise fútil glamourosa e horrível.20 (WALSER, 1993, p. 152) (Nossa tradução).

Para desmistificar as visões superficiais de críticos acerca de uma suposta abordagem

“satanista” em suas canções, o autor sugere que a banda se vale de uma infinidade de

elementos, retirados da mitologia, da bíblia, de lendas, etc. Assim, ele acredita que a criação

20 Iron Maiden draws upon a variety of religious and philosophical traditions in order to explore and

interrogate moralities. Sometimes their lyrics present explicit critique; for example, "Run for the Hills" evokes the horror of the genocide of Native Americans, and "Flight of Icarus" retells the Greek legend with a paranoid twist: the boy's father has encouraged him to fly high, deliberately setting him up for disaster.54 More often, though, Iron Maiden's lyrics ponder the meaning and nature of existence, frequently by investigating the attractions of mysticism. Many songs also consider the contradictory significance of battle, which they usually portray as exciting became of its intensity but ultimately futile both glamorous and horrible.

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musical do Iron Maiden segue tendências pós-modernistas, pelas quais não necessariamente

importa a continuidade histórica, mas sim a produção atual, baseada na situação fragmentária

das coisas.

Considerando então as incursões da indústria cultural, fica notório o esforço e o

sucesso das tentativas da indústria fonográfica em relação à conquista de mercados de

consumo de materiais fonográficos e audiovisuais. A diferença de poder e a forte influência

que a mídia tem na vida das pessoas também são óbvias. Entretanto, pensar que as músicas,

mercados e consumidores musicais tenham se tornado necessariamente “alienados musicais”,

ou uma massa homogênea de consumidores talvez soe como exagero. Nettl (2005), ao falar da

formatação musical que se processa na atualidade, considerando assim processos como o da

“globalização”, evolução tecnológica e dominação cultural do ocidente sobre os “outros”,

comenta:

Mas dessa vez, por volta de 2000, dizer que nós estamos em uma nova era soa particularmente verdadeiro, em todos os aspectos das nossas vidas, como a tecnologia do computador fornece acesso instantâneo para todas as partes do mundo, tudo pode ser eletronicamente sintetizado [inclusive o som], e o telefone celular permite alguém chamar qualquer um sem mesmo saber onde ele ou ela está. E a vida da música, transmissível por redes de computadores, ouvida em sua maioria de forma gravada, e raramente tocada ao vivo sem técnicos de som, tem uma existência diferente sem precedentes. E nós somos tentados a pensar, como um resultado dessa unificação aparente do mundo, que o medo de muitos amantes da música e das primeiras gerações de etnomusicólogos tem sido percebido, como os principais elementos da música ocidental – harmonia, hegemonia do instrumento, e métrica simples – tem penetrado as culturas do mundo e tem sido adaptadas por elas em suas próprias tradições, enquanto os povos do mundo tem desenvolvido suas versões individuais das músicas populares que surgiram das combinações de principalmente elementos europeus e africanos, com a entrada do Oriente Médio e sul da Ásia. Tem o “greyout cultural” previsto por tantos que amaram a

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diversidade musical do mundo vindo à tona21 (NETTL, 2005, p. 432) (Nossa Tradução)?

Teria então a “ocidentalização” dos processos de formação de identidade no mundo

prejudicado a diversidade musical? A resposta de Nettl não parece corroborar com essa

hipótese. Para ele, homogeneização cultural tem acontecido desde muito antes, através de

processos de aculturação, como no caso da expansão da cultura chinesa, no Século XIV.

Como ele afirma: “bem, depende de como você olha para isso22” (NETTL, 2005, p. 432)

(Nossa tradução), mostra que é necessário relativizar quando o assunto em questão é a perda

da identidade cultural dos povos, além da homogeneização musical e cultural.

A crítica de Adorno, que estabelece uma ótica homogeneizante por um lado, pautada

na busca pela manutenção de um pensamento e prática capitalistas, frente à atual conjuntura

das coisas, vai de encontro com teorias que veem certa autonomia no exercício da música

popular, ou seja, pessoas que agem, escolhem, pensam, criticam e resistem, dentro da lógica

capitalista de cultura e de prática musical. Nesse sentido, Guilbault (2006) reconhece que com

a globalização, bem como na conjuntura pós-moderna, há um reposicionamento das

hegemonias. Ou seja, o local passa a ser um discurso manifesto, que faz frente à perda de

sentido da globalização. Assim, gêneros musicais acabam “etnicizados” – considerando a

ótica expressa no texto da autora –, numa busca de afirmação do local. Produtoras

independentes acabam por se contrapor às grandes gravadoras. Carvalho (1999) fala sobre a

21 But this time, about 2000, to say that we are in a new era rings particularly true, in all aspects o four

lives, as computer technology provides instant access to all parts of the world, everything can be electronically synthesized, and the cell phone permits one to call anyone without even knowing where he or she is. And the life of music, too, transmittable by computer networks, heard mostly in recorded form, and rarely performed live without sound technicians, has an unprecedently existence. And we’re tempted to think, as a result of this seeming technical unification of the world, that the fears of many music lovers and of the first generations of ethnomusicologists have been realized, as the principal elements of the Western music – harmony, instrument hegemony, and simple meters – have penetrated the world’s cultures and have been adapted by them into their own traditions, while the world’s peoples have developed their individual versions of the popular musics that grew out of combinations of ultimately European and African elements, with input from the Middle East and South Asia. Has the “cultural greyout” foreseen by so many who loved the world’s musical diversity actually come about?

22 Well, depends on how you look at it.

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escolha do rock pelos aborígenes para representação de suas práticas culturais. Além disso,

bandas latino-americanas como o Aterciopelados e o Café Tacuba praticam punk rock numa

perspectiva latino-americana, sob um levante denominado rock en tu idioma, como afirmam

Esterrich e Murilo (2000). Segundo Guilbault, acontece então, graças a essa “cultura global”,

nesse reposicionamento de visões musicais, uma negociação constante entre hegemonias e

contra-hegemonias:

A etnização das formas de músicas do mainstream que tinham se tornado quase que sinônimos com a tão chamada “cultura global” pode ser vista tanto como um sinal e reconhecimento de que sua posição historicamente privilegiada está sendo desafiada pela emergência de muitas outras músicas bem como redes de produção e distribuição. A preocupação corrente nas culturas tradicionalmente dominantes com a definição do local pode portanto ser interpretada como uma manifestação da crise ocasionada pelo reposicionamento das culturas dominantes entre si bem como com os “outros”23 (GUILBAULT, 2006, p. 138) (Nossa tradução).

Já para Ruud (2007), deve-se sim reconhecer a desigualdade que se estabelece

entre a indústria cultural e as pessoas que consomem nesse mercado musical. No entanto, não

se deve esquecer que, apesar de seguir fórmulas, roteiros pop, a variedade de sonoridades e

estilos da música popular é grande, além de que a diversidade de bens simbólicos que através

dela são veiculados é marcante. Nesse sentido, as pessoas cooptam os elementos que melhor

se adaptam às suas concepções musicais/culturais em constante formação. Ao que parece, o

papel da indústria cultural, a princípio, é fornecer os símbolos pelos quais as pessoas, através

de processos de absorção, releitura, recombinação e remixagem irão formatar seus vieses

culturais (RUUD, 2007). Portanto, “de uma perspectiva etnográfica, é óbvio que as pessoas

23 The ethnicization of the mainstream forms of musics that had become almost synonymous with the so-

called “global culture” can be viewed as both as a sign and recognition that their historically privileged position is being challenged by the emergence of many other musics as well as networks of production and distribution. The current preoccupation in the traditionally dominant cultures with defining the local can therefore be interpreted as a manifestation of the crisis occasioned by the repositioning of dominant cultures among themselves as well as with the “others”.

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não consomem símbolos passivamente, mas escolhem ativamente materiais simbólicos

disponíveis e os usam para construir suas próprias identidades24” (RUUD, 2007, p. 37) (Nossa

tradução). Além disso, há de se convir que “a mídia agenda o público, mas o público também

agenda a mídia, um tipo de mídia agenda o outro, os grupos organizados agendam a mídia”

(COLLING, 2005, p.121). O que consumir; que banda vai fazer parte do ideário e do gosto

das pessoas, estando submetidas ou não aos sabores do mercado musical, é escolha das

pessoas. Além do mais, por mais que essa constante recombinação de elementos remeta a uma

perda de referencial, a uma fragmentação, e não a uma alienação (HARVEY, 2006), as

comunidades musicais não deixam de se estabelecer. Música não deixa de ser o que Blacking

chama de “som humanamente organizado25” (BLACKING, 2000, p. 10) (Nossa tradução) e

as pessoas não deixam de fazer escolhas que remetam a resultados musicais compartilhados

culturalmente.

Por mais que as escolhas estético-musicais estejam ligadas a padrões de consumo e

que esse consumo pareça desenfreado e fragmentador, as reações são diversas. Na concepção

de Hall (2006), mais do que homogeneização há certo fascínio pela diferença – diferença

mercantilizada – e, dessa forma, a variedade cultural ou pelo menos de elementos culturais se

estabelece. Além disso, mais do que, como já foi dito, um consumo e perda de identidade

cultural passivo, alienante e homogeneizante, há sim reações à fragmentação pós-moderna. A

partir dessa reação surgem novas formas de se posicionar nessa tendência que é, antes de

tudo, estética. Nesse sentido, música não deixa de ser parte do ideário de uma comunidade,

sequer as comunidades musicais deixam de se formar. O que acontece é que as formas pelas

quais as comunidades musicais se estabelecem não são mais como antes, pautadas em

24 From an ethnographic perspective, it is obvious do not passively consume symbols, but actively

choose from available symbolic materials and use them to construct their own identities. 25 (...) humanly organized sound.

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hereditariedade e pertença a determinado território, ou criação26. A partir das relações de

consumo as pessoas se identificam conforme gostos musicais, principalmente, além da

necessidade de encontrar formas de identificação em meio à sociedade homogeneizante e aos

processos fragmentários. Nesse sentido, as manifestações musicais parecem se fixar com base

no que Walser (1993), citando Bordieu, acredita serem as delimitações culturais e históricas

da música. Dessa forma, uma comunidade musical, pautada nas questões contemporâneas

para a delimitação de uma cultura se organiza frente ao turbilhão de informações e tendências

que se estabelece na atualidade, através de meios que garantam limites de práticas culturais e

sociais, além de certo discurso de “tradição” e pertença. Um grupo de pessoas que gosta de

heavy metal, por exemplo, apesar de construir suas bases musicais quase que individualmente

– a princípio – ao se agregar com outras pessoas, há de delimitar, socialmente, convenções do

que seja pertencer a essa comunidade. Da mesma forma, certo discurso de “tradição” também

pode surgir, na busca de se institucionalizar esta prática (HOBSBAWN, 1997) além de situá-

la no tempo, garantindo assim, certa noção de historicidade para o grupo.

Ao pensar no mercado musical, portanto, não se deve tomar uma visão unilateral

como princípio analítico de sua dinâmica. Ao contrário, como afirma Manuel (1988) – citando

Stuart Hall e Richard Middleton –, música popular não pode ser vista nem como um veículo

de dominação e manipulação, nem como uma forma de resistência aos meios midiáticos, mas

sim como um jogo, em que há a constante negociação entre essas instâncias. Dessa forma,

mais do que um mercado musical amplo e homogeneizante, o que há, muitas vezes, é um

mercado segmentado, voltado para atender parcelas específicas dos consumidores musicais,

fruto dessas negociações.

26 Por outro lado, não se nega aqui que esses processos hereditários, de criação e transmissão

intracultural cessaram, eles ainda acontecem. O que se discute aqui são as formas recentes de construção da identidade cultural do sujeito.

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54

Parte dos motivos pelo qual se constitui o mercado musical na atualidade está ligada

no já citado fascínio pela diferença. A indústria cultural não deixa de agir nessa perspectiva,

pois, além do que se chama de mídia de amplo acesso, no intuito de alcançar o máximo de

pessoas possível, estabelece a mídia segmentada. Nesse segundo caso, entende-se que esses

podem ser mais do que constituídos para atender as demandas locais, alocadas em espaços

físicos bem definidos. Nem sempre é assim. Como afirma Ortiz, existem nos dias de hoje

“processos globais que transcendem os grupos, as classes sociais e as nações” (2006, p. 7).

Pensa-se que há, a partir daí, “a emergência de uma sociedade global” (idem). Dessa forma,

pensar em música midiatizada ou, como afirma Janotti Junior (2006), em música popular

massiva, é compreender que ela se vale de processos midiáticos e que, em sua maioria, fazem

parte de um pensamento mundializado, o que, por sua vez, gera mercados consumidores

mundializados. Além disso, surgem culturas mundializadas e até mesmo músicas

mundializadas. Por culturas mundializadas, não se deve tratar como redutos ou bens culturais

partilhados por todas as pessoas do mundo, mas sim, como afirma Ortiz logo acima, como

aquelas que em seu escopo trazem processos que transcendam a articulação local:

Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de “identidades partilhadas” – como “consumidores” para os mesmo bens, “clientes” para os mesmos serviços, “públicos” para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo. À medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural (HALL, 2006, p. 74).

Há, portanto, uma diferença entre o que chamamos de mundializado ou globalizado e

translocal, transregional, etc. Dessa forma, Ortiz (2006) fala que há, em se falando de

economia – o que com certeza se estende à música –, os projetos pautados no que se chama de

“internacionalização”, que não são mais do que uma ação decorrente e ainda dependente das

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55

fronteiras nacionais, ou seja, não são mais do que uma extensão ou afirmação dos processos

que ocorrem pela mão do estado-nação. Para Baumman (2000), as relações internacionais –

inclusive musicais – que passaram a acontecer desde a época da Revolução Industrial, apesar

de transregionais, translocais ou mesmo internacionalizadas, não passavam de formas de se

afirmar a hegemonia ou superioridade de determinada nação. Ao contrário, as estratégias

mundializadas se dão conforme a instauração de um plano global, voltado para uma estratégia

de atendimento ao mercado mundial.

Sendo assim, as estratégias de difusão usadas pela indústria cultural aliada à atual

possibilidade de se alcançar os mais diversos mercados ao longo do mundo, bem como na

possibilidade que os consumidores têm de chegar a esses materiais (não apenas comprando

originais, mas através da pirataria, da possibilidade de se baixar músicas pela internet em sites

gratuitos) e se interligarem conforme seus gostos e práticas (graças às telecomunicações) têm

criado processos de vivência musical que vão além da concepção mais “fechada” de cultura,

além de que a ideia de aculturação parece ser ampliada e a velocidade desse processo parece

ter sido aumentada infinitas vezes. Em outras palavras, as culturas (ou grupos culturais), na

atual conjuntura, têm apresentado uma dinâmica mais acelerada, fragmentada, cuja identidade

tem se alterado de forma drasticamente rápida, ao sabor das influências que recebe a todo

tempo, graças, principalmente, aos processos globalizantes, cujo efeito primeiro é – falando

de forma resumida – uma compressão espaço-temporal (HALL, 2006) real.

O que acontece é que eventos ocorridos em uma parte do mundo tem efeito quase

que instantâneo em outra. A bolsa de valores seria um bom exemplo disso. Problemas

políticos em um país podem fazer com que seus investidores – geralmente multinacionais e

consórcios de empresas – passem a aplicar seus recursos em outro país cuja melhor

possibilidade de lucro seja atraente. Os impactos são imediatos, basta acompanhar o noticiário

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56

e verificar o quão intempérie é esse meio dotado de vida e humor, chamado de “mercado”. Na

música não acontece diferente. O lançamento de um álbum de uma banda que está em uma

parte do mundo rapidamente alcança outro. Os clipes são veiculados na internet, na MTV, no

rádio e o álbum provavelmente poderá ser comprado on line. Em menos de uma semana CDs

e DVDs estarão nas lojas. E esse é o verdadeiro interesse das gravadoras e das pessoas que

lucram com esses processos, galgar novos mercados, além do local.

Então, considerando o foco deste trabalho – o rock, sobretudo o metal – será que esse

pode ser definido dentro do escopo do que seja música popular? Se a música tem sido

influenciada por esses processos globalizantes, pelos quais gêneros musicais – em sua maioria

os dispostos através da mídia de amplo acesso – têm atravessado o mundo e se alimentado

conforme elementos musicais e extramusicais que circulam em escala mundial (SLOBIN,

1992; STOKES, 2004), pensar em rock (em sua acepção contemporânea) é pensar em

culturas, ou grupos culturais que trazem consigo aspectos de uma cultura que apresenta

parâmetros mundializados e midiatizados:

Por mais que suas raízes ideológicas representem ruptura, autenticidade e liberdade, o rock é um produto da indústria cultural que adquire notoriedade e é difundido pelo mercado. Nesse ponto, as regras do jogo são definidas e o destino de músicos, bandas e sonhos é decidido. Dessa forma, o sonho romântico-rebelde do rock torna-se um pesadelo de números e cifras. Ainda que as tecnologias de produção e a globalização tenham possibilitado ao mercado o acesso a linguagens musicais alternativas, a produção comercial do rock nos anos 90 levou aos oligopólios e à concentração do mercado fonográfico (BRANDINI, 2004, p.62).

Por mais que a acepção esteja diretamente ligada aos movimentos contraculturais da

década de 1960, o rock não escapou de se tornar parte dos grandes conglomerados midiáticos.

Sua diáspora através do mundo se deu, em muitos aspectos, por conta da possibilidade de

difusão musical oferecida pelas grandes gravadoras.

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No caso de Montes Claros, muito do que influencia as bandas da cidade vêm de

outros países. Sendo assim, a recepção de elementos oriundos da difusão de músicas e valores

advindos dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Noruega, dentre outros países, acabou

por gerar e manter toda uma cena musical (em específico a roqueira) local, pelo fato de seus

membros terem acesso a essas músicas, gostarem delas, estabelecerem vínculos com pessoas

e elementos de outras partes do mundo numa velocidade nunca vista, expressando ainda o

resultado dessas escolhas nos vieses local e translocal. Dessa forma:

As identidades culturais ligadas ao mundo da música se confirmam nas negociações efetivadas entre afirmações cosmopolitas (conexões com gêneros musicais consumidos em distintos lugares do planeta e socializados através da internet) e a forma como essas mesmas expressões musicais (mesmo em versões locais ou gêneros regionalizados) se afirmam através de apropriações culturais em diferentes espaços urbanos (JANOTTI JUNIOR; PIRES, 2011, p. 10).

Como já foi dito, a música popular ou, para se ter uma distinção ainda mais acurada,

a música popular massiva possui, em seu âmago, ampla ligação com processos midiáticos de

produção, armazenamento, difusão e distribuição musical. Considerando assim esses

processos, que, graças à atual conjuntura política, social e econômica, se processam em escala

mundializada, têm-se as grandes gravadoras (majors) como dominantes dos principais

processos que colocam a música no mercado. Sem elas, sem seu grande poder de intervenção,

produção e formatação do produto musical de forma que seja aceitável e “vendável”,

dificilmente se consegue sucesso em escala global. Sendo assim,

A performance musical, gravada e reproduzida como um “objeto sonoro”, foi alienada de seu performer, quem frequentemente não tinha controle sobre sua disseminação. Como as performances musicais se tornaram mercadorias que podiam ser compradas e vendidas em uma escala massiva, um novo reino de considerações financeiras entrou na prática do fazer-musical. A natureza da dialética entre economia e estética mudou dramaticamente. Uma classe socioeconômica – a burguesia corporativa – estabeleceu um grau sem

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58

precedentes de controle financeiro sobre a música do mundo, para a extensão que quase a metade dos discos vendidos hoje [em 1988] são produzidas por meras cinco companhias multinacionais (CBS, EMI, Polygram, WEA, e RCA) (MANUEL, 1988, p. 4) (Nossa tradução)27.

Tendo quase que monopolizado o mercado musical mundial, a busca pela

sobrevivência por meio da música popular massiva (JANOTTI JUNIOR, 2006), por parte dos

artistas, sempre esteve ligado à busca do “estrelato”, por meio do envolvimento com grandes

gravadoras. Esse processo pode ser benéfico por um lado (para o músico), pois permite a ele

que experimente a expansão de sua atuação, o aumento do lucro bem como uma difusão mais

efetiva de seu trabalho. Por outro, como já dito por Manuel acima, o produto musical se torna

sujeito a diversos processos de reelaboração, por conta de produtores, técnicos, tanto no caso

da produção do artefato musical, quanto na elaboração da performance. O que acontece

muitas vezes é de fato certa alienação do músico em relação à sua música.

Fazer parte de uma major não é necessariamente fácil, uma vez que para isso é

preciso ser “vendável”, possuir a influência necessária para se alcançar o mercado

fonográfico, bem como chegar à possibilidade de se ter um contrato, processos que

geralmente são mediados por empresários. Como já foi dito, esse processo tem um preço, que

é o de uma suposta perda de autonomia por parte do músico, tanto no tocante à produção de

sua música, quanto na distribuição difusão e distribuição do material musical.

Considerando então os aspectos acima abordados sobre a indústria fonográfica, bem

como as implicações sociais que dela decorrem, pode-se considerar que a música popular

27 The musical performance, recorded and reproduced as a “sound object”, was alienated from its

performer, who frequently had no control over its dissemination. As musical performances became commodities that could be bought and sold on a mass scale, a new realm of financial considerations entered the practice of making music. The nature of the dialectic between economics and aesthetics changed dramatically. One socio-economic class – the corporate bourgeoisie – established an unprecedented degree of financial control of world music, t the extent that roughly half of the records sold today are produced by a mere five multinational companies (CBS, EMI, Poligram, WEA, and RCA).

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massiva que se difunde por intermédio das grandes gravadoras tem sido indiscriminadamente

prescrita às pessoas que consomem esses produtos culturais. Dessa forma, através da

mundialização de processos culturais (o que inclui música), as pessoas passam a ter acesso a

uma grande quantidade de material musical, oriundo de diversas partes do mundo,

comercializado conforme os gostos do mercado, utilizando assim processos midiáticos que

tendem a ser do que se chama de amplo acesso ou mesmo segmentado, buscando alcançar a

maior quantidade de nichos de mercado possível. Além disso, sabendo que a concepção

musical não necessariamente fica entre as definições dos músicos, mas sim de técnicos e

produtores, além dos processos de gravação que denotam formas de performance diferentes,

tende-se a ter um resultado mais “pasteurizado”, equalizado e pronto para ser vendido, na

forma do que pode-se chamar de artefato cultural (CDs, DVDs, etc). O processo de difusão

também é importante para que a vendagem seja significativa, uma vez que através de

estratégias de marketing a indústria fonográfica geralmente consegue fazer com que

determinado artista ou material musical seja aceito/consumido. Isso implica na enorme

diferença de poderes que se pode encontrar entre as grandes corporações midiáticas e as

pessoas que dela estão à mercê. Por outro lado, como já foi discutido, a indústria fonográfica

nem sempre é capaz de exercer um papel de dominação e manipulação sobre o consumidor,

pelo menos não da forma que gostaria. Diferente do que possa parecer, o mercado busca

fornecer elementos para a formação das identidades das pessoas, dispostos em símbolos,

elementos que são abertamente cooptados. Fica evidente sim um padrão consumista e, muitas

vezes se estabelecem padrões de manipulação através dos bens midiáticos. No entanto, não se

pode negar que há reações por parte das pessoas que consomem tais artefatos

musicais/culturais. Mais do que isso, esse consumo é paradoxal, pois, em muitos casos, por

um lado se tem o discurso de entrega ao mundo midiatizado pelas majors e por outro, a

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60

“resistência” a esse meio através da utilização de recursos também predicados às grandes

gravadoras.

Estabelecem-se, portanto, duas esferas de concepção da música popular que, ao

menos em discurso, se contrapõem. Trata-se do mainstream e do underground. Por

mainstream, entendem-se as articulações que se dão através das majors, das grandes

gravadoras e do domínio dos processos de difusão na “grande mídia” (televisão, rádio,

internet, entre outros). Vale dizer, como afirma Janotti Junior (2006), que há certo

distanciamento entre público e artista, bem como, em alguns casos, do artista e dos meios de

produção musical. O músico se torna não mais do que um entre muitos agentes

(CARVALHO, 1999). Dessa forma, a música se formata conforme padrões pop, que aqui é

definido também com base nas concepções de Janotti Junior, ou seja, como estratégias

consagradas de produção, sucesso e vendagem.

Já o underground parece seguir estratégias diferentes, além de incentivar o consumo

segmentado. A palavra “consumo” realmente se aplica a esse caso. Isso porque, apesar do

discurso de resistência, o meio underground não mais faz do que usar padrões de produção e

distribuição recorrentes no mainstream, só que em escala e com discurso diferenciado. A

tônica desse movimento é, antes de tudo, buscar formas de produção musical alternativa à sua

contraparte. Ao invés de vender discos para o mercado que é alcançado pela mídia de amplo

acesso, os grupos underground atendem pequenos mercados, pequenos nichos pelos quais se

encontra um público específico para determinadas demandas. Sendo assim, os selos, as

gravadoras independentes, como já dito, não necessariamente buscam se libertar dos padrões

de consumo, sequer da mercantilização da música pois, afinal, em maior ou menor escala,

para muitos ou poucos ouvintes, a contraposição entre mainstream e underground não é uma

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questão de “arte versus comércio, mas grandes negócios versus pequenos negócios” (FRITH

apud BRANDINI, 2004, p.62).

Além do mais, segundo Dias (2000), a música independente, em muito, no caso da

história da indústria fonográfica no Brasil, buscou galgar lugares do mercado da venda de

discos. Isso se confirma no fato que, segundo a autora, a música independente da década de

1980 (referindo-se ao Lira Paulistana e ao selo baratos e afins, principalmente) dominava

sim os processos de produção e gravação, mas não os de produção de fonogramas,

armazenamento e distribuição. Dessa forma, na visão dela, a música independente dessa

época deveria ser vista mais como música autônoma, uma vez que não eram todos os

processos que eram dominados por esse meio. Para que determinado disco pudesse ser

lançado, a distribuição do material se dava por meio de contratos com majors ou pelo correio

e acordos com lojas de discos.

Música independente, portanto, como afirma Vaz (1988) não significa “liberdade”

total de alguma coisa, ou do que quer que seja. Significa estar atrelado a meios específicos de

produção musical e dependência de seus processos para o alcance do mercado, mesmo que

numa proposta diferenciada. Sendo assim, a lógica do que seja música independente se aplica

muito mais a uma suposta liberdade estética, geralmente livre para criar fora das amarras do

que seria o pop, considerado como receitas de produção musical que dão certo, que são

vendáveis e que melhor se enquadram para o consumo.

A proposta de se produzir música fora das tendências vigentes no “grande” mercado,

portanto, permitiu que músicos desenvolvessem propostas musicais baseadas em estéticas

alternativas. Como já afirmado, muitos movimentos musicais, buscando ser “diferentes” das

propostas musicais consolidadas pelo mainstream desenvolveram estéticas próprias, que

ganharam notoriedade e, posteriormente, até conseguiram se integrar às grandes gravadoras.

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62

Isso abre precedentes para outra questão: a de que mainstream e underground, que meios

alternativos e independentes e majors se articulam, de uma forma ou de outra. Isso se

manifesta principalmente através dos selos28, que, além de fazerem acordos com gravadoras

independentes ou mesmo majors para distribuição dos fonogramas dos artistas que

representam, também servem como intermediários em contratos de músicos e grandes

gravadoras. Um exemplo disso é a banda Sepultura que desde a década de 1980 era ligada ao

selo Cogumelo Discos. Aos poucos, a banda foi alcançando sucesso, galgando públicos,

chegando até seu contrato com a gravadora holandesa Roadrunner. Para Dias (2000) os selos

independentes muitas vezes serviam como “olheiros” para produtores de majors, um caminho

primário para um objetivo secundário. Além disso, muitas majors mantinham selos,

juntamente com a própria gravadora. Sendo assim, a articulação entre mainstream e

underground parece inegável, desde os primórdios da música independente no Brasil e no

mundo.

É lógico, contudo, que alguns selos fazem real resistência às majors e ao meio

mainstream. A banda Macaco Bong tem recebido constantemente propostas de grandes

gravadoras29, já que sua música, veiculada através da rede de coletivos denominada Fora do

Eixo tem alcançado sucesso. Originária no Espaço Cubo, em Cuiabá, ela tem negado as

propostas que tem recebido. Afirma, através da ideologia dos coletivos, que pode se manter,

com liberdade de criação inclusive, através do exercício do discurso underground. Vale dizer

que aqui a proposta da banda é diferente de algumas de rock (em especial as de metal), cuja

28 “Conhecidos como “indies” ou “independent labels”, os selos não possuem sempre o porte de

pequenas empresas, mas sempre dependem do escoamento da produção fonográfica. O selo comporta todas as etapas do processo de produção da música e manufatura dos discos: da descoberta do artista, da gravação em estúdio, da mixagem até a produção gráfica da capa e encarte. Todavia, não possui distribuição própria, terceirizando-a por meio de acordos com majors ou gravadoras independentes. Em raros casos, os selos realizam a distribuição pelo correio” (BRANDINI, 2004, p. 63).

29 Vale lembrar a data de confecção e publicação desta dissertação para que se considere a informação acima citada, no caso, o ano de 2010.

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busca é realmente se distanciar da ampla visibilidade. A banda e os coletivos acreditam que

podem alcançar amplo sucesso através de propostas alternativas de produção, difusão e

distribuição musical.

A maioria das afirmações já feitas não leva em consideração uma mudança de grande

valor ocorrente na música independente nos dias de hoje. Os custos de produção reduziram e

a possibilidade de se produzir materiais fonográficos de forma independente cresceu. Além

disso, o advento de outros formatos, como o Mp3 e a sua veiculação através da internet tem

permitido que os músicos difundam seu material de forma realmente “independente30”. Ao

que parece, músicos e bandas parecem finalmente ter alcançado sua autonomia. Mas não é

bem assim. Que há maior autonomia, mais espaço para divulgação de materiais e de contato

com pessoas que venham inclusive a transcender os limites físicos do que seja a cultura (numa

perspectiva “territorial”) não se nega, mas ainda sim permanecem as atividades que não

passam de discursos ou formas de se lidar com o mercado musical. Em outras palavras,

encontrar um selo, uma gravadora, bem como apoio de pessoas e agentes que possam inserir

músicos, bandas e grupos no mercado fonográfico ainda são uma constante. Alcançar

reconhecimento, sucesso, além de vender e, no mínimo sobreviver de música é uma busca que

é feita de forma independente ou não.

Não apenas a dependência de selos e gravadoras (apesar do músico ter a

possibilidade de gravar um CD em sua casa nos dias de hoje), mas a dependência de materiais

consumidos pela divulgação do mainstream é evidente. Músicos e públicos que se utilizam da

estética underground muitas vezes se valem de elementos que são veiculados pela indústria

30 Não se pode esquecer que independência sempre foi e sempre será um termo relativo. O próprio fato

de se difundir músicas na internet implica um status de dependência. Sem sites especializados e que forneçam plataformas para esse processo, além de que, sem provedores de conexão com a internet, sem bases de dados também não há veiculação em rede. E isso tudo depende de empresas, pequenas ou grandes, além de ser uma fatia do mercado, implicando assim em relações econômicas.

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cultural. Por exemplo, é comum ver fãs de heavy metal, ou mais, bandas underground de

heavy metal se mostrando fãs e influenciados pelo Iron Maiden, banda que é veiculada por

uma grande gravadora, no caso a EMI. Isso não impede que essa banda seja influente no meio

underground, sequer que os elementos musicais e extramusicais que são perpetuados por eles

sejam consumidos e reestruturados em bandas com discurso diferente. Dessa forma, pode-se

entender que mainstream e underground podem ter sim propostas diferentes – e têm –, mas

um meio possui estreita ligação com o outro. O discurso das bandas e pessoas que participam

do meio underground se torna paradoxal na maioria das vezes, pois enquanto criticam a

indústria cultural e suas formas de veicular material musical, os consomem e resignificam em

estéticas e padrões próprios de entendimento. Assim, “de forma contraditória, essa ‘cultura

adolescente-juvenil’ (...) vivenciada por esses grupos de rock underground surgiu no próprio

interior da cultura de massas, apesar de criticá-la com veemência” (ROSA, 2007, p. 50). O

mesmo pensa Janotti Junior (2006), quando afirma que apesar de homogeneizante, uma das

características que melhor distingue o meio mainstream do underground é a questão da

circulação musical, o que faz com que a relação do músico com o mercado seja transformada,

conforme o discurso que é adotado. Ele exemplifica com bandas como o Metallica, que esteve

no meio underground por muito tempo, mas que ingressou no mainstream e passou a ter um

reconhecimento diferenciado de seus antigos fãs. Com certeza a banda não foi mais a mesma

depois que teve contato com produtores musicais e passou a ser comercializada em larga

escala. Mas também não se pode dizer que o estilo do Metallica foi destruído, pois sua

influência gerou uma nova tendência no mercado fonográfico.

Dessa forma, por mais que uma música tenha sua origem e difusão através de

aparatos midiáticos não se pode dizer que as manifestações musicais que nos locais se

processam são iguais. Com as divergências de concepções entre bandas e instituições acerca

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da prática da música independente (que será exposta adiante) isso pode ser percebido. Isso

denota que há undergrounds, antes de qualquer coisa. Quando se fala de consumo

segmentado, os grupos, as comunidades são, por natureza, segmentadas, tanto interna quanto

externamente.

Pelo fato dos gêneros musicais e os meios de produção musical se tornarem

mundializados encontra-se a recorrência de sonoridades, de covers, de cópias, ou mesmo de

composições que remetam a músicas que não tem sua origem nos espaços onde são

executadas. A questão da resignificação de elementos difundidos através da indústria cultural

já foi discutida. Essa resignificação implica em configurações musicais que se tornam

recorrentes em várias partes do mundo. Entretanto, alguns autores afirmam que essas cenas

não são iguais. Por mais que haja recorrências sonoras, nos aparatos de produção e difusão, a

forma com que as pessoas pensam música e os motivos pelos quais se escolhem determinados

elementos provavelmente são condicionantes advindos da escolha cultural local. Dessa forma,

O rock underground aparece como um modelo cultural supostamente único entre as diferentes tribos urbanas das Américas. Entretanto, a própria diferenciação entre as regiões das Américas e suas diferentes realidades acabam particularizando as compreensões do rock underground dessas tribos, no sentido de que essas procuram adaptar as suas realidades àquele modelo/sistema cultural que possuem como referência, particularizando-o de acordo com as suas formas de compreensão do que seria este rock underground (ROSA, 2007, p. 54).

As escolhas, ou melhor, as adaptações locais feitas pelas pessoas que integram essas

manifestações, portanto, indicam relações com os lugares nos quais as pessoas estão. Já foi

apresentado – na seção “espaço urbano” – a fala de Wheeler (2007) acerca da relação que as

pessoas estabelecem com o local no qual exercem suas funções culturais e musicais. Não se

pode dizer que a cena musical de Brasília-DF seja homogênea. O mesmo se pode dizer de

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outros espaços nos quais se pode encontrar música. Se ela é um produto, ou resultado, ou

meio de articulações culturais diversas (BLACKING, 1995; MERRIAM, 1964), não se pode

dizer que esse meio é unificado, ou mesmo homogeneizado, já que ele traz consigo uma

história específica, pautada sim em relações de poder, dominação cultural e recorrência de

elementos com base no consumo musical, mas ainda sim idiossincrática.

Além disso, O’Connor (2002), discordante das ideias de Canclini e Appadurai acerca

da hibridização cultural que se manifesta ao redor do mundo, ressalta a importância do olhar

mais cuidadoso sobre as cenas musicais, sem deixar de lado as trocas e os contatos culturais

dessa comunidade em específico. Em seu trabalho, ele exemplifica quatro cenas punk e

mostra que cada uma teve seus próprios motivos, bem como processos históricos de

construção de cada um desses espaços. Dessa forma, abordar o rock em Montes Claros não é

apenas pensar em aparatos midiáticos mundializados postos em prática em um local qualquer

do mundo, mas sim numa manifestação musical multifacetada, ligada às questões da indústria

cultural. Contudo, as relações que nela acontecem não deixam de ter motivos culturais

específicos, que são produtos de escolhas feitas e negociadas dentro das cenas, seja nos

processos individuais de consumo simbólico ou nas socializações desses elementos.

Sendo assim, pode-se dizer que cenas como a roqueira montes-clarense são únicas,

apesar de que os produtos musicais decorrentes de suas articulações denotem padrões

recorrentes em outras cenas que têm o rock como meio de expressão. Não apenas na música

haverá recorrências, mas também nos comportamentos, ideais, iconografias e formas de

articulação. É por conta desses processos e elementos difundidos mundialmente que as bandas

de Montes Claros podem tocar em outras cenas e serem reconhecidas enquanto familiares aos

locais que se apresentam. Enfim, a proposta de música independente na cidade é fruto de

escolhas culturais, articuladas, aceitas e negadas a todo o momento no exercício cultural da

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cena. Uma atitude musical supostamente “homogênea”, na verdade, é fruto de uma

articulação (velada ou não) de uma grande quantidade de microconcepções que estão sempre

em choque, elementos que são peculiares no campo conflituoso desse conceito chamado

“música popular”.

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2. O ROCK EM MONTES CLAROS

2.1. BREVE HISTÓRIA

Como já foi dito, Montes Claros, com a chegada de alguns recursos tecnológicos

como o rádio, a televisão, o cinema, o desenvolvimento da malha rodoviária e ferroviária que

a atravessam e, em se falando de fatos mais recentes, com a chegada da aviação comercial e o

advento da internet, passou a experimentar novas influências, novas informações, numa

velocidade ainda maior do que antes. A maioria dessas influências trouxe experiências e

vivências ligadas à pertença do que se diz urbano. A cidade, por sua vez, passou a

desenvolver novas práticas culturais que estavam ligadas a esses aspectos, criando assim certa

contraposição – ou mesmo uma sobreposição – à vida “rural”, à concepção de ruralidade que

na cidade era instaurada. Com novas concepções, novas práticas musicais acabam por achar

terreno e é justamente nesse fervilhar de novas informações, nesse desenvolvimento de novas

compreensões culturais e, por conseguinte, musicais, que surge o rock na cidade de Montes

Claros.

Pensar no surgimento do rock em Montes Claros não é falar dele como tocar rock,

sequer é ligar sua chegada (ou seu surgimento) à formação imediata de bandas, de grupos que

executassem músicas desse gênero. As primeiras experiências de montes-clarenses com o

rock, na verdade, se devem ao rock and roll1, que foi difundido principalmente através de

discos de vinil, por volta do final da década de 1950, sob a influência de pessoas que

moravam em outras cidades – geralmente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – e ao

1 O surgimento do termo rock and roll está ligado ao DJ norte americano Allan Freed, que promovia

programas de rádio e bailes denominados rock and roll parties, isso desde 1952 (MUGNANI JR, 2007).

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visitar Montes Claros traziam esses materiais. Esse movimento também se devia aos montes-

clarenses que visitavam outras localidades e traziam fonogramas.

Não só os discos foram responsáveis por essa nova concepção musical que se

formava. O cinema, assim como fez em outras localidades e em várias partes do mundo

também foi responsável por introduzir o rock na vida musical de alguns montes-clarenses, em

especial os mais jovens. O filme Blackboard Jungle, difusor e um dos elementos que ajudou

a causar o sucesso do rock and roll nos Estados Unidos e em outras partes do mundo também

chegou a Montes Claros. Nesse filme, a música Rock around the clock, de Bill Halley and His

Comets marcou o início da busca de jovens montes-clarenses por tais músicas que, com o

tempo, passaram a figurar nos repertórios de algumas bandas de baile da cidade. Esse foi o

caso da banda Les Cherries2 que, além de executar boleros, tão presentes em bailes dançantes,

também passou a incluir o rock and roll, bem como o twist em suas apresentações. Outra

banda de baile que se preocupava em incluir o rock and roll no seu repertório era a banda

Lords3.

Todo esse movimento abrange o final da década de 1950 e segue durante a década de

1960. Nesse momento, algo inédito acaba por acontecer na cidade: surge uma banda de rock

em específico. A banda Os Brucutus, integrada por Beto Guedes (baixo), Cabaré (bateria),

Patão (guitarra) e Tiupas (guitarra solo) é formada por volta de 1965 e passa a se apresentar

principalmente em bailes dançantes da cidade, ou mesmo em clubes, como foi o caso do Max-

Min e Automóvel Clube..4

2 Les Cherries era uma banda de baile montes-clarense e é considerada por alguns como o pai do rock

na cidade. 3 Lords seguia a mesma tendência da Les Cherries, atuando em bailes e incluindo o rock em seus

repertórios dançantes. 4 Max-Min e Automóvel Clube são clubes sociais em Montes Claros que, desde as suas fundações,

realizavam bailes dançantes para a sociedade montes-clarense. As bandas de bailes e algumas de rock tinham espaço nessas festas. Os dois clubes existem até os dias de hoje.

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Pode-se dizer que o pai do rock montes-clarino foi o Les Cherries. Tudo aconteceu numa tarde de domingo, quando o grupo tocava no recém-inaugurado Automóvel Clube de Montes Claros. Vicente Alves sugeriu à rapaziada que enchia o salão que, quem quisesse tocar, que fosse ao palco e utilizasse os seus instrumentos. Foi quando Hélio Guedes entoou Escândalo em Família (versão de Renato e seus Blue Caps). Dali nascia o Brucutus. (...) o Brucutus trouxe o rock britânico para a cabeça da rapaziada. Passou a cantar no Max-Min e nos clubes desse grande sertão (...) (NOVAES, 10/11 ago. 2008).

A coluna escrita pelo jornalista Luís Carlos Novaes traz o Les Cherries como o “pai

do rock” em Montes Claros. Entretanto, por motivos já citados, não se podia considerar a

banda como um grupo de rock, uma vez que toda a sua concepção musical, bem como sua

prática era voltada para a performance em bailes. Exemplo disso é a variedade de gêneros

musicais em seu repertório. Dessa forma, a intenção da Les Cherries era possuir músicas que

agradassem ao público dançante. O rock and roll foi um elemento agregador ao repertório da

banda. Isso marca sim a presença e o incentivo necessário para a formação de outros grupos,

mas não faz com que a Les Cherries seja uma banda de rock, sequer que ela incluísse em seu

ideário elementos extramusicais que remetessem a uma prática roqueira específica.

Entretanto, pode-se dizer que as bandas de baile que traziam o rock em seu repertório foram,

no mínimo, precursoras desse movimento em Montes Claros.

Os Brucutus já não mais estavam ligados ao rock and roll – pelo menos não

totalmente –, mas a uma nova tendência, no caso, os Beatles (formados em 1960) e a Jovem-

Guarda5. As bandas dos anos 1960, num sentido geral, já não se caracterizavam como rock

and roll, mas sim como rock, termo que passou a ser usado para diferenciar a tendência

mercadológica, ou seja, de produção e difusão a partir da indústria cultural dos primórdios

5 A jovem-guarda foi um movimento musical que tem precedência desde a década de 1950, formado

por uma geração que havia sido influenciada pelo rock and roll. Seu expoente em atuação seria o programa de nome homônimo que era apresentado desde 1963 até o fim dessa prática, por volta de 1969, ano em que o programa saiu do ar.

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dessa música6. Sendo considerada, então, uma banda de rock, Os Brucutus não só

reproduziam músicas de outras bandas, mas introduziu na sua forma de se praticar música

toda uma gama de códigos, de ideias que permeavam seus gostos e concepções musicais

anteriores, roupas, formas de falar, etc. Isso não contagiou apenas os músicos, mas também o

público, bem como as pessoas que participavam desse movimento e que não necessariamente

exerciam a função de músicos.

As iconografias, a linguagem, bem como os códigos de valoração inerentes ao rock

passaram a permear a vivência cultural e musical de uma parcela da população montes-

clarense. A prática musical, portanto, esteve diretamente ligada a uma experiência mais ampla

do que a mera execução de sons musicais (CHADA, 2007). Nesse sentido, Bob Marcílio7, ao

comentar acerca da cena musical em Montes Claros na época dos Brucutus, corrobora com a

ideia de que a mudança de comportamento trazida pelo rock não foi apenas de cunho sonoro-

musical:

A banda mais famosa de Beattles que teve em Montes Claros foi Brucutus. Foi a banda de Beto, Beto era o baixista da banda. E o povo ficava: pô, Beattles, o povo não sabia tocar Beattles, aliás, o povo não sabia nem cantar Beattles, os caras escreviam o que eles ouviam nas músicas. Eu ouvi eles tocando, eu fiquei louco na época. Desse grupo tem Beto, Patão, Tiupas, Aroldo Tourinho (Cabaré). Os Brucutus, eles são a essência do rock. Tinha uma outra banda aqui, chamava Le Cherries. Essa banda era uma das mais famosas daqui, mas pra mim, o que teve de mais famoso aqui foi os Brucutus. Os caras tinham um pique, todos novinhos, bonitinhos, eles ouviam os discos e copiavam as músicas, e eles vestiam igual aos Beattles (BOB MARCÍLIO, 12/08/2008).

6 O termo rock também passou a ser usado por movimentos musicais contraculturais do final da década

de 1960, marcando assim o que Middleton (2009) define como um paradoxo dos movimentos encabeçados por esse gênero musical.

7 Bob Marcílio é músico atuante no movimento roqueiro de Montes Claros desde a década de 1970, mas passou sua infância e adolescência convivendo com o surgimento da cena, sendo que acompanha as bandas da cidade desde a época de Os Brucutus. Como músicos ele atuou em bandas de rock e blues, mas nos dias atuais toca em bares e festas. O nome Bob Marcílio foi baseado no músico Bob Dylan.

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Já na década de 1970, outras influências passam a se configurar na cidade de Montes

Claros. É sob o sucesso de bandas como o Creedance Clearwater Revival que o artista Tino

Gomes criou a banda The Wilds, geralmente focada em tocar músicas dessa banda. Na mesma

década outro grupo se destaca, formado por Aroldo Pereira, denominado Ataq Cardíaco. Essa

banda já estaria ligada a elementos advindos do mundo do punk britânico.

A década de 1980 é marcada pela chegada de Eltomar Santoro8 à cidade. Através

dele, não só foi formada a banda Língua Solta, como também foi realizado o primeiro Rock

da Cidade9.

Figura 3: Crachá do último Rock da Cidade

8 Eltomar Santoro chega à cidade de Montes Claros por volta do ano de 1986, trazendo a influência

punk através da qual ele se formou musicalmente. Sua incursão na vida roqueira montesclarense faz com que o gênero musical passasse a ter mais notoriedade, bem como a se articular de forma mais aberta e ordenada. Seu engajamento na cena musical de Montes Claros proporcionou a possibilidade de mobilização para a realização de eventos de rock. Além disso, esses eventos possibilitaram que o público roqueiro, bem como as bandas, que estavam dispersas pela cidade se agregassem, fazendo com que os eventos tivessem ainda mais força.

9 O Rock da Cidade foi um evento específico da prática roqueira em Montes Claros, realizado na década de 1980, com início no ano de 1987, em cerca de seis versões. As primeiras, pelo que se tem notícia, foram realizadas no Cine Fátima, enquanto a última na quadra do SESC de Montes Claros. A realização de tal evento está relacionada com o primeiro grande agregamento de bandas de rock de Montes Claros em um único evento, permitindo assim a articulação e formação de um público maior e mais especificamente orientado para a prática do rock.

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Para compreender a importância desse momento em Montes Claros, faz-se

necessário entender um pouco acerca da vida musical roqueira na década de 1980. Uma

quantidade considerável de bandas já se articulava, não só as de rock, mas também algumas

de blues, como o caso da Urublues, que mantinha toda uma ligação com o movimento

roqueiro montes-clarense. Apesar da concentração de bandas de rock, era complicado se

manter um local onde os grupos pudessem se apresentar, uma vez que o movimento do rock

era hostilizado por muitos, o que marcava uma tensão constante e obrigava os roqueiros a

atuarem de forma mais segmentada. Bob Marcílio, mais uma vez, fala da dificuldade de

realização dos eventos de rock na cidade, além da precariedade dos mesmos:

Tinham shows improvisados, a gente montava a aparelhagem, e fazia no fundo de uma casa. Rock não tinha espaço, não era uma coisa aceita. (...) Então os espaços que tinham eram garagens, meus avós não gostavam quando a gente ensaiava lá em casa. Num momentinho que saiam os pais a gente tocava. A gente ia às vezes pro mato, nem tinha parque do Sapucaia ainda, tocar acústico. Improvisava, qualquer lugar servia, inclusive a praça da matriz serviu de palco durante muitos anos, lá a gente encontrava, aí começou o povo fumar demais, tomar droga demais, aí barrerou (BOB MARCÍLIO, 12/08/2008).

Ele fala ainda da visão que a cidade, ou seja, que as pessoas que não gostavam do

movimento roqueiro tinham dessa manifestação, além de sua inquietação em relação a essa

situação:

O rock era muito careta e o povo achava que ser roqueiro era ser sujo, cabeludo, andar com roupas rasgadas. Quase não tinha bandas de rock, Montes Claros nunca foi uma cidade de rock, mas sempre teve, mas não se tem relato de bandas que faziam rock pesado ou aquele rock tradicional. Montes Claros poderia ter criado um rock próprio, a cara de Montes Claros, então ficava pra gente, antes da minha geração teve outra geração, mas que não fazia rock, sempre foi da roça, seresta, eu tinha bronca disso, tinha que ter guitarra distorcida, nem que ficasse só no mizão maior. As pessoas estavam preocupadas em montar grupos igual a banda de pau e corda, de viola, pois a própria influência da cidade é pacata, Montes Claros não era uma cidade de roqueiro (idem).

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Essa segmentação, provocada tanto por uma cidade que, por influências que não

eram a do rock, aliadas ao estranhamento a esse gênero mais a dificuldade de se possuir

equipamentos e locais adequados para shows impedia a articulação direta entre músicos e

públicos das bandas de Montes Claros. Dessa forma, por muito tempo, os eventos de rock,

apesar de possuírem um público cativo – ou melhor, vários públicos –, não conseguiam se

organizar.

O Rock da Cidade foi um evento que marcou a história do rock na cidade de Montes

Claros. Graças a essa movimentação, as bandas tiveram uma oportunidade de se reunir,

dividir influências, gostos, códigos, espaços e públicos, denotando assim o surgimento de um

grupo maior do que antes, devidamente articulado dessa vez. Através dessa articulação o rock

acabou por se mostrar de vez em Montes Claros. As pessoas começaram a se movimentar em

prol dos eventos, pois se viam agora cartazes afixados em muros e postes, pessoas se

manifestando mais abertamente que eram roqueiras, tanto nos gostos musicais quanto nas

atitudes. Havia uma quantidade considerável de bandas na cidade, em específico na época em

que eram realizados os Rock da Cidade. Seriam algumas delas: Clamídia, Ian, Estrutura

Metálica, Capiroto, Anestesia Geral, Língua Solta, Zona Proibida, Novo Estado.

Dessa forma, o rock montes-clarense na década de 1980 acabou por ser responsável

por toda uma “popularização” dessa prática na cidade. Isso tem reflexo direto nos anos 1990.

Na verdade, podem ser evidenciados dois reflexos: o primeiro se relaciona à sobrevida das

bandas da década de 1980, que posteriormente acabaram encerrando suas atividades. O

segundo tem a ver com a formação de novas bandas no contexto roqueiro montes-clarense.

Essa nova “leva” de grupos de rock poderia ser uma continuidade advinda diretamente da

influência da época de Eltomar Santoro. Entretanto, como afirma Fred Sapúlia (presidente da

Associação do Rock de Montes Claros e Região, que será descrita posteriormente) em uma

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conversa informal, parece haver uma ruptura, ou seja, parece haver pouco contato entre as

bandas que atuavam no Rock da Cidade e as bandas que acabam por se formar após essa

época. Essa ruptura, contudo, não significa que a cena do rock em Montes Claros recomeçou,

ou que em nada ela tem a ver com a cena anterior. Não se nega a importante contribuição e

abertura ao rock em Montes Claros advinda das incursões das bandas mais antigas. Inclusive,

o rock da década de 1990 só teve a repercussão que teve por causa das primeiras bandas. O

que não parece evidente é uma ligação explícita entre as bandas mais antigas e as mais

recentes. Raramente se encontram os músicos dessas bandas tocando ou frequentando shows

dos grupos atuais. Os eventos nos quais os músicos das bandas anteriores participam não se

ligam a qualquer incursão das bandas mais recentes. Um dos poucos exemplos de músico do

rock montes-clarense mais antigo que permanece até os dias atuais, sendo inclusive parte dos

eventos promovidos pela cena atual é Wagner Black. Desde a década de 1980, ao lado da

banda Fúria (que juntamente com Wagner tem o nome de Despertadoidos), que também

retomou suas atividades recentemente, ele tem sido convidado para diversos shows de rock,

sejam festivais, rocks de garagem ou espaços como a Feira de Artesanato da cidade. No ano

de 2009, ele foi convidado para o Rockmoc, promovido pela Associação do Rock de Montes

Claros e Região. Não só ele, pois a banda Fúria encerrou a noite. Além disso, Wagner Black

já gravou dois CDs, sendo que o último foi produzido juntamente com um DVD (lançado em

2009).

Apesar de merecer uma investigação mais aprofundada visando entender quais

seriam os fatores que tanto afastaram as bandas da década de 1980 das da década de 1990 e

adiante, podem ser levantadas algumas hipóteses. Uma primeira talvez esteja ligada à grande

diferença de faixa etária entre as pessoas que praticavam rock na década de 1980 e na década

de 1990. Os músicos que iniciaram suas atividades na década 1990 ainda eram muito novos.

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Entretanto, a diferença que aparentemente se liga à contagem dos anos vividos pelas pessoas,

que as enquadra em faixas etárias, parece dar lugar a um discurso que vê essas diferenciações

de idade mais como formas distintas de juventude e de vida adulta. Sendo assim, mesmo que

a faixa etária não se mostre tão marcante, a sensação, ou o discurso dos que se dizem mais

experientes remete a certo afastamento. Em entrevista, Bob Marcílio afirma:

Acho que passou um caminhão no rock de Montes Claros. Mas pelo que eu acompanho não se vê compositores, música na rádio tocando, bandas de rock mesmo resolvendo investir, gravando. Eu acredito que a cena pode voltar. Mas até no Brasil a cena não ta muito boa, não vi produção nenhuma (BOB MARCÍLIO, 12/08/2008).

Vale dizer que o movimento de música autoral é uma constante em Montes Claros

nos dias de hoje. Além disso, as formas de divulgação do rock produzido na cidade variam

desde cartazes e panfletos até conteúdo disponibilizado na internet, o que tem dado à cena

certa visibilidade, dentro e fora da cidade. O discurso acima citado, portanto, se pauta mais

numa forma de afastamento das práticas surgidas mais recentemente do que em uma crítica de

quem acompanha a cena de perto.

O mesmo afirma Eltomar Santoro:

Qualquer gênero musical pra você fazer uma música boa é difícil. Se dentro do seu repertório tiver uma música boa, tá beleza, e eu vejo que esse pessoal não acerta uma, estão muito mais preocupados em mostrar o do outro do que o próprio umbigo. Mas o pessoal que saiu do Rock da cidade [se refere ao evento Rock da cidade, organizado por ele] é uma galera fera. O pessoal largou as bandas e disse: Peraí, eu sei fazer a coisa sozinho (ELTOMAR SANTORO, 15/10/2008).

A diferença de discursos ligados à diferença de idades e, consequentemente, de fases

da vida humana então tem se mostrado como um divisor nas experiências e concepções das

pessoas do que seja rock, como praticá-lo, o que confere autenticidade a essa prática. Dessa

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77

forma, a faixa etária define mais do que uma mera contagem de tempo vivido, mas sim

determina a demarcação de momentos na vida das pessoas que são marcadas por códigos e

discursos de pertença diversos. Isso pode ser dito a respeito da juventude, uma fase construída

culturalmente:

Quando se fala em juventude, parece óbvio se tratar de uma categoria social presente na cultura ocidental que tem sido designada como um intervalo de tempo entre a infância e a vida adulta, entre a dependência dos pais e a autonomia, entre a imaturidade e a maturidade sexual, entre a falta de autoridade e a aquisição de poder para tomar suas próprias decisões, além de ser compreendida como uma fase de desenvolvimento e formação plena das faculdades mentais. Sendo assim, devemos compreendê-la como uma construção social e cultural, a qual se atribui um caráter de limite intrínseco, e, também, como um importante período de experimentações (ROSA, 2007, p. 25).

Além de sua circunscrição cultural, a juventude – ou as juventudes – se define

conforme seu caráter histórico. “Assim, cada geração pode ser considerada como pertencente

a uma cultura diferente, uma vez que incorporam em sua socialização novos códigos,

linguagens, formas de perceber, apreciar e classificar o mundo (ROSA, 2007, p. 26)”. Rock

em Montes Claros na década de 1980 é diferente do rock na década de 1990 pelo fato de que

o que as pessoas da década de 1980 não são as mesmas da década de 1990, sobretudo a

juventude. Entretanto, o rock da década de 1980 não acaba na década de 1990. Além do mais,

conforme as observações até agora empreendidas, não se pode mais dizer, necessariamente,

que o rock é uma prática exclusiva da juventude, sequer que seja transitória. Conforme

exemplos como o de Wagner Black, Eltomar Santoro e Bob Marcílio, pode-se perceber que o

rock, para eles, deixou de ser uma prática da juventude, desse período de passagem, para se

tornar parte fundamental da vida adulta. Juventude acaba por se manter como um discurso que

justifica a prática roqueira, como um “espírito” que dá o aval para as pessoas que se dedicam

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a essa manifestação. Forma-se aí, a partir da perspectiva e influência da juventude, o discurso

da “juventilidade”:

Na contramão das opiniões deterministas que reificam suas mudanças físicas e minimizam seu caráter social, e enfatizando valores que lhes são peculiares, a juventude é aqui expandida para diferentes esferas culturais e sociais, o que se exprime na forma como ela é representada na mídia e no imaginário coletivo. O jovem é jovem na concepção de sua existência na modernidade tardia, assim como o adulto se juveniliza, dentro dessa mesma perspectiva (ROCHA, PEREIRA, 2009, p. 100).

A idade parece não importar, numa visão ética, mas sim a delimitação do “espírito”,

do discurso da juventude. Portanto, como afirma Finnengan (2007), entender determinado

mundo musical é compreender que ele apresenta diversidades implícitas que transcendem as

aparências e as generalizações das categorias analíticas. Ao abordar o mundo musical do rock

na cidade de Milton Keynes, ela mostra que as práticas que nele se configuram variam

enormemente conforme faixa etária, intenção musical – se querem ou não se tornar músicos

profissionais, relação com a indústria fonográfica, estilo dos músicos dentre outros –,

mostrando assim que um mundo musical, ou um determinado contexto não é fim em si só,

mas sim um emaranhado de concepções diferentes que articulam entre si. Em Montes Claros

não foi – e não é – diferente. É na prática musical que se contemplam as delimitações de estilo

– compreendendo como prática musical toda e qualquer ação que se envolva com música, não

apenas tocar. Se o contexto dá à música características e/ou funções que a tornam reflexo ou

meio de expressão de um povo, de um grupo, é óbvio dizer que as características específicas

dessa esfera hão de se ser contempladas em sua prática musical, compreendendo-a como um

fazer social (BLACKING, 1995).

Se o momento na vida das pessoas é tão importante na formação da concepção

musical delas, entendendo que as juventudes que viveram – e vivem – o rock em Montes

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Claros, por pertencerem a gerações diferentes viveram rocks diferentes, há de se considerar

que, como já dito, as concepções musicais variam conforme a situação histórica vai se

modificando. Concepções musicais diferentes, por sua vez, pode também ser um fator que

marca essa ruptura acima descrita. Não que o rock atual na cidade de Montes Claros não seja

multifacetado, mas, como afirma Walser (1993), um gênero musical se define conforme um

discurso, que é fundamentado em bases sociais e históricas de determinado grupo, fazendo

parte de um enredo de conflitos de interesse e do embate de vieses diferentes. Sendo assim,

por mais que seja multifacetado o discurso do rock em Montes Claros, não se pode esquecer

que ele possui uma gama de influências, de pequenos discursos que se fundem ao grande

gênero que seria esse rock. Assim, quais seriam as influências musicais que marcaram o rock

da década de 1980? Que concepções musicais eram vigentes na época? Será que a década de

1990 trazia as mesmas concepções ou adquiriu novas formas de se praticar e significar rock?

Que valor as influências passadas passaram a ter no presente, tanto para os roqueiros “novos”

quanto para os mais antigos?

É provável que na década de 1980, bandas como Pink Floyd, Ramones, Sex Pistols,

entre outras tinham um valor, um significado específico para as pessoas que nessa época

ouviam e tocavam rock, mesmo porque se tratavam de bandas atuais para aqueles

indivíduos10. Na década de 1990, o Nirvana, Pearl Jam, ainda o Gun’s Roses, etc., foram,

sem dúvida, a influência direta dos jovens que se envolveram com o rock nessa época. Para os

grupos de 1990, ver as bandas mais antigas também confere um valor específico, importante,

clássico e vital para a manutenção das práticas atuais. Por exemplo, para a Vomer, influências

do Led Zeppelin são vitais para a atual compreensão que eles têm de música. Entretanto, sua

10 Mesmo que algumas bandas já tivessem cessado suas atividades na década de 1980. Sex Pistols foi

uma grande inspiração para Eltomar Santoro. Contudo, suas experiências com os materiais que julgava pertinentes para a formação de sua concepção musical foram “atuais”, já que era a chegada dessas influências em seu contexto que demarcam essa sensação do que seja a “atualidade”.

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prática é diretamente alimentada pelas bandas atuais das quais ela cria suas bases musicais.

Sendo assim, a influência e valoração musical que as bandas da década de 1980 e de 1990

possuem sobre a música que praticam, por mais que sejam amplamente definidas como rock,

não são as mesmas. Isso também pode ser um indício dessa ruptura, desse desligamento atual

entre uma geração e outra. Além disso, não se deve pensar que esse suposto “desligamento”

entre as cenas aconteceu apenas entre essas duas gerações. Quando questionado se havia rock

em Montes Claros antes de sua chegada, Eltomar Santoro afirma: “(...) antes de mim tinha era

Beatles, era Beto Guedes, era os Brucutus, era uma porrada de banda cover dos Beatles”

(ELTOMAR SANTORO, 15/10/2008). Fora o não reconhecimento do Eltomar pelas bandas

anteriores – e que neste trabalho são sim definidas como bandas de rock –, na entrevista, a

ironia usada ao proferir essa fala mostra outra ruptura, dessa vez, a de um músico de um

período posterior com o passado.

Na segunda metade da década de 1990, prevaleceram as bandas com composições

próprias e de orientação punk hardcore11. São comuns nessa época a Fúria, Animal core,

Vomer, dentre outras. Por volta do final da década de 1990, começam a (re) surgir as bandas

cover12.

Até o momento da exposição dessa breve história do rock em Montes Claros já se

pode traçar um jogo de concepções que se estabelece ao longo do tempo. As primeiras bandas

se pautaram na prática cover, ou seja, trabalhavam com releituras das músicas de bandas que

elas consideravam importantes e cujos materiais mereciam estar integrados em seus

repertórios. Essa tendência segue forte – mas não hegemônica – até a década de 1980. Como

11 O punk hardcore tem seu início na década de 1980, nos Estados Unidos, ligado a filosofias de

renovação (the punk is not dead) e de produção distintas, tornando mais evidente a questão da cultura underground através do FVM (faça você mesmo).

12 Por bandas cover, em Montes Claros,entende-se como aquelas que usam em seus repertórios músicas de outras bandas, geralmente as que lhes são mais influentes. Na cena montes-clarense, especificamente falando, elas podem reproduzir da forma mais “fiel” possível essas músicas ou rearranjá-las.

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afirma Eltomar Santoro, em entrevista, as bandas da época do Rock da Cidade se

preocupavam especificamente com a composição de músicas autorais. Na verdade, faziam

releituras, mas, com o tempo, partiram para a realização de trabalhos próprios, de músicas

autorais. Dessa forma, se estabeleceu um movimento contrário à estética primeira do

movimento roqueiro montes-clarense. Entretanto, logo após essa fase, já na década de 1990,

as bandas que nesse período se formam se dedicam novamente à prática da música cover.

Fica a seguinte questão: como, em tão pouco tempo, surgem bandas cover, mais

voltadas ao pop rock brasileiro, ao hard rock, grunge, punk, fazendo com que as antigas

bandas autorais quase que desaparecessem, ou pelo menos se tornasse uma prática relegada às

bandas da época do Rock da Cidade? Em uma entrevista, Clayton, o vocalista da atual banda

Vomer, que, no seu início, utilizava o nome de Septecemia, tocava músicas próprias e depois

entrou na ideia do cover, afirma que, antigamente, as bandas montes-clarenses tocavam

músicas próprias por não terem condições de tocar músicas de outros grupos famosos, seus

ídolos e inspiradores de fato, por questões técnicas, de domínio dos instrumentos na maioria

das vezes. Ele acaba por considerar a possibilidade e o consequente início de atividades de

bandas cover em Montes Claros como uma evolução, uma vez que as bandas passaram a

poder tocar músicas de seus ídolos e assim agregar mais público, pois, segundo ele, música

cover “é que chamava a galera” (CLAYTON, 30/03/2010).

Dessa forma, o retorno ao cover, até este momento descrito, se mostrou como sinal

de “evolução” das bandas de rock em Montes Claros, uma vez que o desenvolvimento técnico

dos músicos, a possibilidade de se adquirir instrumentos melhores e o maior incentivo à

formação de bandas foram cruciais para que os músicos – numa perspectiva êmica –

pudessem se associar ainda mais com as bandas e músicos dos quais eram fãs. Não apenas

isso, mas bandas cover tinham o poder de atrair o público que fosse fã das músicas que

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compunham seu repertório. Dessa forma, uma banda que fizesse cover das músicas do

Nirvana provavelmente atrairia um público considerável, desde que houvesse uma quantidade

considerável de fãs do Nirvana na cidade. Mais do que isso, uma das preocupações da época

era de se frequentar eventos de rock, bem como de organizá-los e promovê-los. O gosto, o que

seria rock, bem como as músicas que mais seriam significativas para a prática cover faziam

parte de uma gama de bandas que compunham o ideário das pessoas que faziam parte dessa

cena roqueira. Apesar de ligeiramente segregada, a escassez dos eventos de rock, a ênfase no

BRock (termo que define o rock nacional a partir da década de 1980) bem como de bandas

emergentes do grunge, punk, heavy metal, entre outras, todas oriundas do cenário

internacional fizeram que o público dos shows fosse atraído por um conjunto de músicas que

fossem representativas do que era ser roqueiro em Montes Claros.

O cover, portanto, se mostrou essencial para o que se pode chamar de

“desenvolvimento” do rock em Montes Claros, na perspectiva de seus praticantes. Praticar

cover, por sua vez, parece indicar o compartilhamento de concepções, de gostos musicais e

culturais parecidos. Sendo assim, os eventos de rock podem representar tanto a busca de

pessoas por shows de bandas montes-clarenses quanto a busca de fãs por “degustar” versões

locais das músicas das bandas das quais eles admiram.

Posteriormente, pode-se dizer que as bandas cover de rock ganharam ainda mais a

simpatia de outros mundos musicais montes-clarenses. O fato de se ligarem a temáticas mais

aceitáveis, no caso, da execução de músicas que estavam mais difundidas no gosto local

(mesmo em se falando de rock) proporcionou oportunidades outrora complicadas. Isso

implica na conquista de espaços mais abertos a outros gostos e práticas musicais que não o

rock. Nesse caso, a Feira de Artesanato da cidade e a Festa do Pequi também se tornaram

espaços onde bandas montes-clarenses passaram a ter espaço cativo. Algumas foram bastante

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lembradas e recorrentes não apenas em festivais abertos da cidade, como também em

pequenas festas de amigos, concursos de bandas de colégio, rocks de garagem, entre outros

espaços. São elas a Novos Ares, Down Jones, Aristides, Anilha 25, Sapo Joe, Fulanos,

Anônimos, Proud, Mãe Geralda, S.O.S Dissidentes, Leg-Leg, Bloqueio, entre outras, que

talvez nem tenham chegado ao conhecimento de muitas pessoas, uma vez que a possibilidade

de formação de uma banda em Montes Claros era muito maior do que antigamente. A

formação de bandas estava ligada a espaços de convivência específicos, como escolas e

círculos de amigos, ou mesmo convivência entre colegas de trabalho. A partir daí,

estabelecia-se o vínculo, o gosto pelo que é parecido, a busca pela identificação e formação de

um coletivo diferenciado em contrapartida à realidade supostamente homogeneizante, por

conta do trabalho, da escola e outros meios. Ao que parece, o lazer acabou sendo a forma que

as pessoas encontraram de se identificar.

Essa fase citada acima, referindo-se em específico a segunda metade da década de

1990 e início dos anos 2000 se mostrou de fato prolífica, no quesito do surgimento de tantas

bandas de rock, bem como na sua maior inserção nos eventos da cidade. Isso, é claro, implica

num maior reconhecimento dos montes-clarenses em relação ao rock, que por muitas vezes o

hostilizaram. O Rock da Cidade, quando realizado no Cine Fátima (nas suas primeiras

versões), causou reações de pessoas horrorizadas, sendo que muitos rumores que se ouvem

atualmente, por parte de pessoas que não acompanham a cena roqueira, foi de que aconteceu

um grande “quebra quebra” no evento.

É óbvio dizer que as reações contrárias nunca fizeram de fato com que a prática

roqueira em Montes Claros cessasse. Mas conseguiram, por sua vez e, por muitas vezes, que

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ela ficasse mais “marginalizada13” do que antes. As reações que se configuraram pouco antes

do surgimento da cena atual (que será descrita a seguir) em muito contribuíram para esse fato.

Com o tempo e principalmente por causa da manifestação mais aberta das pessoas que eram

fãs de metal, os Capa-pretas, as pessoas que não necessariamente eram fãs – mas apenas

ouvintes ou não – de rock começaram a hostilizar as práticas roqueiras, pelo menos todas

aquelas cuja presença dos metaleiros fosse verificada. Isso fez com que bandas de rock

fossem aos poucos deixando de ocupar espaços abertos e voltados para práticas diversas,

como a já citada feira de artesanato. Também era comum, todos os anos, na Festa do Pequi14,

uma tarde do rock, só com bandas montes-clarenses. Essa também foi extinta.

O cessar de alguns eventos que contemplavam o rock em suas programações não faz

com que ele seja extinto de Montes Claros. Para tal, serão expostos dois motivos considerados

cruciais. O primeiro é que, apesar da hostilização constante das bandas e das pessoas que

compõem a cena do rock em Montes Claros, os eventos não deixaram de acontecer. Como já

dito, de forma mais “marginalizada”, eles ficaram basicamente confinados em bares e boates,

além das garagens e estacionamentos privados. No caso das boates, uma se destaca como um

espaço específico para as bandas de rock. Trata-se da Chernobyl, que era definida por seus

administradores como um pub cultural.

13 Por “marginalizada” não se cria aqui uma conotação de errado, ou mesmo de nocivo, mas sim de “a

margem”, por estar em um meio mais segmentado de atuação, voltado para um grupo pequeno de pessoas. 14 A Festa do Pequi é um evento de cunho regional, cujo objetivo é a celebração da época de colheita de

um fruto do cerrado, muito utilizado na culinária do norte de Minas.

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Figura 4: Show de rock na Chernobyl (Fotografia de Thiago Fonseolli)

Essa pequena casa de shows abrigava, em sua maioria, eventos de bandas de rock. A

política da casa é que se mostrava mais interessante, acima de tudo. Apesar de possuir um

administrador, era sempre feito um acordo com a banda. Geralmente cobrava-se uma taxa de

entrada, mais um valor obrigatório de consumação. O valor da portaria era o cachê da banda,

que também se responsabilizava pela mesma. Já a consumação era revertida para o bar, que

era do proprietário. Dessa forma, as bandas sempre tinham cachê, mesmo que pequeno, ao

contrário das tardes do rock na Festa do Pequi, que apenas contavam com a participação

voluntária dos grupos. Muitas bandas que acabaram compondo a cena atual de Montes Claros

se formaram para tocar em espaços como a Chernobyl. Foi o caso da Feeble, Ruído Jack,

além da Calm Scream, cujo nome atual é Gritare. Dessa forma,

A Chernobyl foi um marco. A Chernobyl de certa forma foi uma semente aí dessa parada que tá rolando hoje. Foi a época em que foi testado mesmo o lance da música autoral. Tocar lá dava trezentas pessoas. A Calm Scream já tocou lá, que é a a Gritare hoje, a Umeazero já tocou lá, a Vomer, teve show de metal lá. Lá existia um

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circuito das bandas, mesmo não existindo o circuito mas a gente já tinha o circuito das bandas. Tinha uma movimentação (CHIQUINHO DO INSTITUTO GERAES, 20/07/2009).

Como dito, há um segundo motivo pelo qual se manteve a prática musical do rock

em Montes Claros, além dos eventos. Trata-se de uma questão simples e relacionada às

pessoas que na cena se mantém. Assim como já foi comentado no começo da história do rock

em Montes Claros, sua chegada não está relacionada com a formação imediata de bandas. Da

mesma forma, a diminuição dos eventos em Montes Claros, ou pelo menos sua “guetização”

não necessariamente extingue sua prática. Isso porque não é apenas nos eventos que a cena se

configura. Mesmo que não mais se tocasse rock em Montes Claros, que não houvesse mais

bandas, as pessoas que gostam do gênero não parariam de comprar CDs, baixar clipes e

músicas na internet, sequer de assistir a MTV e de frequentar shows fora da cidade. Muito

menos deixariam de se relacionar com base no que gostam. Sendo assim, a prática musical do

rock em Montes Claros não se limita aos eventos e às bandas, mas se expande no horizonte da

formação individual do público que compõe a cena. O que se ouve, o que se compra e se usa

como representação também compõe o ideário musical das pessoas. Os eventos são uma

consequência dos gostos, das afinidades e da necessidade de convivência e troca de

experiências dessas pessoas. Sendo assim, o rock não se torna ausente em Montes Claros após

sua fase de inserção nos grandes eventos da cidade, por volta do final dos anos 1990 e início

dos anos 2000. O que acontece é que sua prática muda drasticamente de foco e de espaço.

Com o tempo, a Chernobyl finda suas atividades, mas outras iniciativas já

começavam a se configurar, o que acaba gerando a cena atual do rock em Montes Claros.

Trata-se das instituições e iniciativas que começaram a fomentar o rock, seja como prática

exclusiva ou como um de seus focos centrais. Essa cena marca uma nova visão acerca do que

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seja rock, do que seja praticá-lo, bem como inicia certa reconquista de espaços e manutenção

dos locais underground, ao mesmo tempo. Tudo isso se inicia por volta do ano de 2006.

2.2. AS INSTITUIÇÕES E INICIATIVAS DE APOIO

O ano de 2006, aproximadamente, marca o início de novas formas de se vivenciar e

praticar o rock em Montes Claros. Dessa forma, pode-se considerar o surgimento das

associações e coletivos como um marco para a consolidação de sua prática. Não se nega que

concepções oriundas de outras gerações do rock em Montes Claros permaneçam ainda nas

pessoas de Eltomar Santoro ou Wagner Black, que ainda tocam, mesmo que esporadicamente.

No entanto, o foco deste trabalho é trazer à luz a cena que se configura com base nas

concepções surgidas pela reação que se deu a partir dessa “marginalização” do rock na cidade,

por volta da década de 1990. Sendo assim, o surgimento da Associação do Rock de Montes

Claros e Região, do Coletivo Retomada, do Instituto Geraes e do Plug! se mostraram cruciais

para que a prática que aqui é definida como “atual” se mantenha.

Em 2006, surge a Associação do Rock de Montes Claros e Região (A.R.M.C.R). Essa

instituição se presta à produção de bandas de rock em Montes Claros, bem como à realização

de eventos, criando assim uma demanda específica para a cultura roqueira em Montes Claros.

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Figura 5: Logomarca da Associação do Rock de Montes Claros e Região

Isso faz com que as bandas de rock na cidade acabem por ter um maior apoio e

estrutura, que consequentemente gera uma cena mais ativa, capaz de se articular melhor. A

associação tem, nos dias de hoje, cerca de 40 bandas associadas, bem como conseguiu uma

articulação com a política local, o que permitiu a realização de muitos eventos de rock em

Montes Claros, especialmente na época da Casa da Juventude (fechada em 2009 por uma

ação judicial).

O reconhecimento da associação como instituição legalizada – constituída por meio

de contrato, pagando impostos, bem como possuindo um CNPJ15 – permite a ela receber

repasses de verbas, mesmo que tímidos, para investimento na cena do rock, bem como na

manutenção das suas atividades, além de obrigá-la a pagar impostos. De acordo com uma

reportagem publicada no Jornal de Notícias, na data de 26 de fevereiro de 2008, a A.R.M.C.R

recebeu um repasse de três mil reais da prefeitura da cidade (de um projeto que repassou

oitenta mil para algumas associações culturais de Montes Claros) para expediente interno.

Com essa verba, que deve durar um ano inteiro, seus membros mantém a sede da associação

15 Cadastro nacional de pessoa jurídica.

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(na casa do presidente), pagam contas de telefone e conexão com a internet, além de servirem

para produção dos eventos que eles realizam. Outros apoios estruturais e financeiros também

vêm de acordos com a prefeitura, além de patrocínio. Outra forma – porém tímida – de

captação de recursos seria a taxa que se cobra das pessoas que aderem a associação. Para

participar de um evento produzido por ela, os músicos devem estar associados. Dessa forma,

no momento da fidelização, arrecada-se uma pequena quantidade de recursos, que também

são destinados para as atividades diversas realizadas pela associação. A necessidade de adesão

de músicos e bandas fez com que a A.R.M.C.R chegasse a ter mais de quarenta bandas

associadas, não apenas da cidade de Montes Claros, mas também de cidades próximas (porém

menores), como Brasília de Minas, Francisco Sá, entre outras.

No tocante a produção e divulgação, a associação também se mostra atuante. As

bandas que participam dos eventos de rock produzidos por ela, ou mesmo aquelas que são

associadas ganham certa notoriedade por meio de ações publicitárias. Isso acontece

principalmente através do seu blog oficial, que faz cobertura dos eventos de rock na cidade,

expõe releases de bandas locais, ou mesmo de bandas de outras cidades que tenham algum

vínculo com a cena montes-clarense (como é o caso de algumas bandas de Salvador-BA).

Todas as coberturas de eventos, além de expostas em matérias escritas no blog, geralmente

são cobertas também em vídeo, através de uma Web TV16 produzida pelos próprios membros

da associação. A intenção da associação, como afirma Fred Sapúlia – presidente da mesma – é

garantir ao rock de Montes Claros o caráter de uma manifestação montes-clarense –

reconhecida como montes-clarense –, bem como visibilidade nacional ao que é produzido na

cidade. Isso se concretiza em ações como parcerias com outras instituições da cidade ou

16 Web TV e um canal audiovisual no qual são registrados programas em formatos parecidos com

aqueles veiculados na televisão tradicional. A diferença se encontra no fato de que essas produções são armazenadas na internet, geralmente em sites como o You Tube.

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mesmo de outras localidades, como é o caso da parceria da Associação cultural clube do rock,

de Salvador-BA. Esse contato, por exemplo, possibilitou à banda Soprones, sob o apoio da

associação, tocar no Palco do Rock, em Salvador, bem como possibilita um fluxo constante de

bandas, serviços e informações entre as cenas roqueiras das duas cidades. Outras ligações

também são comuns, como no caso de Montes Claros e Belo Horizonte, Uberlândia, Uberaba,

etc.

A necessidade da realização de eventos de rock em Montes Claros, bem como a

possibilidade de suporte às bandas também possibilitou o surgimento de outras instituições,

além da Associação do Rock de Montes Claros e Região. Esse foi o caso dos coletivos em

Montes Claros. O primeiro a surgir foi o Retomada.

Figura 6: Logomarca do Coletivo Retomada

O Retomada traz uma articulação ainda maior das bandas montes-clarenses com

outras localidades que não sua própria cidade. Isso acontece porque ele está em rede com

outros coletivos pelo Brasil. Toda essa rede, de mais de 20 coletivos ao redor do país, forma o

que se chama de Circuito Fora do Eixo. Ele foi criado pelo primeiro coletivo, de Cuiabá, onde

se encontra o Espaço Cubo que, realizando oficinas de formação de coletivos em várias

localidades propiciou o surgimento de coletivos em outras cidades. Foi nesse contato que se

originou o Retomada. Estando em rede, como já foi dito, uma banda que tem relação com o

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Retomada tem a oportunidade de tocar não apenas em Montes Claros, mas em qualquer

cidade que possua um coletivo pertencente ao Circuito Fora do Eixo. O mesmo vale para

bandas que são de outras cidades. Os eventos produzidos pelo Retomada geralmente trazem

bandas de “fora” para dividir o palco – e o público – com as bandas montes-clarenses. A troca

de informações, influências, bem como de contatos é evidente a partir desse constante

encontro.

Outra atividade comum realizada pelo Retomada tem a ver com o comércio. Como a

maioria das bandas que se ligam aos coletivos do Circuito Fora do Eixo possui materiais

gravados, os coletivos se prontificam a trocar entre si CDs, DVDs, camisetas, bem como

fanzines de bandas de várias localidades. Isso faz com que materiais produzidos por bandas

circulem ao redor do país, por intermédio dos coletivos. As formas de divulgação utilizadas

pelo coletivo Retomada são muito parecidas com aquelas usadas pela Associação do Rock de

Montes Claros e Região. O Retomada possui um blog, uma Rádio Web, uma Web TV, bem

como publica fanzines sobre música independente constantemente, além de, em muitos casos,

transmitir os eventos que realiza on line e em tempo real.

Vale ressaltar aqui que a grande preocupação do coletivo Retomada, bem como a dos

outros coletivos ligados ao Circuito Fora do Eixo é dar suporte às manifestações artísticas

independentes. Sendo assim, nesse circuito, não só as bandas de rock são favorecidas, mas

também qualquer outra banda ou manifestação que não seja especificamente musical, desde

que opte por ser “independente” dos meios mainstream. Entretanto, o grande foco de atuação

do Retomada – em Montes Claros – está ligado às bandas de rock, uma vez que elas são

maioria na cena underground montes-clarense.

Outra instituição que se formou quase que juntamente com a Associação do Rock de

Montes Claros e Região foi o Instituto Geraes.

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Figura 7: Logomarca do Instituto Geraes

O instituto não chegou a se constituir por meio de contrato, pois representa mais um

grupo de amigos (músicos em sua maioria) que promove a divulgação e realização de eventos

de rock. Sua dinâmica se baseia na realização de eventos através de empenho coletivo. Essa

movimentação se dava da seguinte forma: diversas bandas eram chamadas para participar dos

eventos de rock produzidos pelo Instituto Geraes. Entretanto, as bandas convidadas eram

obrigadas a colaborar com os eventos: vendendo ingressos, emprestando instrumentos e

materiais para sonorização, ajudando a organizar os espaços nos quais se realizariam os

eventos, etc. Só no ano de 2009, foram realizados mais de cinco shows de rock através dessa

colaboração de bandas. O principal meio de divulgação do Instituto Geraes também está

relacionado à internet. Este grupo, por diversos motivos, entre eles a entrada de alguns de seus

membros no coletivo Retomada, acabou findando suas atividades no início de 2010.

Mais recentemente foi formado o coletivo Plug!, voltado também para a música

independente. Primeiramente, o Plug! estava relacionado mais à produção jornalística de

eventos, com Web TV, blogs e Webzines.

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Figura 8: Logomarca do Plug!

Posteriormente, eles começaram a realizar eventos. Até o presente momento, a

maioria desses eventos não esteve diretamente ligado ao rock, mas sim à outras manifestações

independentes em geral, principalmente música eletrônica. Entretanto, o trabalho de

divulgação contemplou principalmente bandas e eventos de rock.

Há ainda outras iniciativas – a maioria de caráter jornalístico – voltadas para o apoio

à cena rock de Montes Claros, bem como à articulação dessa cena com outras ao redor do

país. É o caso do Jornalismo Possilga, um blog comandado por Samuel Fagundes, jornalista

que desde a adolescência participa da cena rock de Montes Claros. No seu blog, Samuel se

dedica à crítica musical, apresentação de bandas independentes (não apenas montes-

clarenses), bem como cobertura jornalística (escrita e em vídeo) dos eventos de rock na

cidade. Como um jornalista que publica suas matérias geralmente através das redes sociais

(internet), ele sempre aparece em fóruns de discussão, defendendo a cena roqueira de Montes

Claros. Além de jornalista, também integra a equipe de publicidade da Associação do Rock de

Montes Claros e Região.

O fanzine UH-HU é outra iniciativa que faz cobertura e crítica musical de eventos

musicais montes-clarenses, em sua maioria os de rock. Manu, a principal responsável pelo

fanzine, frequenta os eventos (assim como qualquer pessoa que esteja ligado às associações

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descritas acima) e geralmente produz fotografias que são publicadas on line e em uma versão

impressa do fanzine. A publicação também se presta à apresentação de bandas e à divulgação

de eventos. Ligados ao UH-HU também estão o Sertões e o Solte o Som. Estes se prestam às

mesmas atividades. Entretanto, são organizados por outras pessoas, juntamente com a Manu.

Um diferencial entre eles poderia ser apontado: os organizadores do Solte o Som, na estreia de

seu blog, realizou alguns eventos de rock na cidade.

Existe também, na cidade de Montes Claros, outro grupo que se propõe a discutir e

criticar uma questão cada vez mais recorrente: a presença e o papel da mulher na cena do rock

montes-clarense. Trata-se do espaço Garotas do Rock.

Figura 9: Logomarca do Espaço Garotas do Rock

Composto por três mulheres, Kell, Carol e Carol, esta iniciativa se manifesta

geralmente propondo discussões sobre a participação da mulher em cenas roqueiras, em

especial a montes-clarense. Frequentemente se questiona a “passividade” das mulheres no

rock, bem como a possibilidade da existência de mulheres no papel de músicos.

As atividades mais comuns do espaço Garotas do Rock consistem em fazer

coberturas de eventos, dar apoio direto na organização desses, atuando juntamente com as

instituições citadas acima, bem como propor questionamentos diversos em redes sociais,

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principalmente em seu blog oficial e, em especial, relacionados a questões de gênero

(masculino X feminino) na cena do rock em Montes Claros. Uma discussão que se mostrou

recorrente em sua comunidade no Orkut, recentemente, levantava o seguinte questionamento:

se os homens poderiam ou não participar do perfil do espaço Garotas do Rock. A enquete se

intitulava: “O perfil no Orkut do espaço Garotas do Rock deve ser aberto aos cuecas?”. Ao

que parece, a maioria apontou para que os homens participassem. Isso mostra que a posição

feminina em relação ao rock em Montes Claros é mais aberta, voltada para a inserção das

mulheres – ou das garotas – na cena roqueira.

Apesar de possuir como sua temática principal a discussão acerca das questões de

gênero que se desenrolam na cena do rock em Montes Claros, o espaço não apresenta

qualquer envolvimento com as temáticas feministas, no sentido de sua afirmação e militância:

Eu creio que não tenha nenhum feminismo implícito não. É porque realmente, a gente não vê uma participação feminina nesses lugares. E, poxa! Mulher também gosta de rock! Mulher curte, mulher realmente entende, sabe? E a gente vê que é difícil mesmo, que muitas têm até vergonha de chegar: ah! Vamo (sic) ali e tal... chega lá e só tem homem, homem, homem... não tem um espaço propriamente de mulheres assim. Eu creio que é que não seja necessariamente bem aceito, mas que não é comum, né? Uma frequência maior de mulheres em eventos desse tipo. Mas tá mudando... (CAROL, 19/02/2010).

Como foi dito por Kell e Carol, em entrevista, não há uma ligação, ou mesmo

nenhum discurso que se ligue a um movimento militante ou similar. A grande preocupação do

espaço Garotas do Rock é na verdade fazer com que as garotas – assim chamadas por elas –

percam o medo e hostilizem menos o rock que acontece na cidade de Montes Claros. Segundo

elas, após as divulgações e incursões feitas pelo espaço durante os eventos, sugerindo shows

no blog, divulgando fotos, emitindo opiniões, fazendo convites, as garotas passaram a

frequentar com mais tranquilidade aos eventos de rock.

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Um bom exemplo do resultado das incursões do espaço foi a realização de um evento

com a temática feminina, no dia 10/07/2010, chamado de Rock das Garotas.

Figura 10: Cartaz de divulgação do Rock das Garotas

O evento consistiu em três apresentações numa única noite, sendo que uma das

bandas era montes-clarense e as outras duas de Brasília-DF. Um “problema” do rock na

cidade de Montes Claros é a falta de mulheres no exercício da função de músico. Sendo

assim, a única banda da cidade trazia apenas uma mulher nos vocais. Das duas bandas de

Brasília, apenas uma era totalmente formada por mulheres, a outra tinha uma formação mista,

mas bem distribuída, já que as mulheres iam além do vocal, chegando a instrumentos como a

bateria.

Apesar da temática feminina – e não feminista –, o evento foi aberto a todos.

Entretanto, a ênfase era afirmar e manifestar o papel ativo das mulheres na cena do rock, não

apenas tocando, mas organizando, frequentando os shows sem medo, corroborando com as

intenções da Associação do Rock de Montes Claros e Região e do coletivo Retomada, na

tentativa de “popularizar” o rock na cidade.

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Vale ressaltar a grande possibilidade de integração que as instituições de fomento ao

rock em Montes Claros possuem. Sempre na realização de eventos, é comum que os grupos se

ajudem. Um bom exemplo é o próprio evento Rock das Garotas. Ele não foi realizado

unicamente pelo espaço, mas através de uma parceria com o coletivo Retomada. Graças a essa

parceria, o espaço conseguiu se articular com as bandas de Brasília – uma vez que elas são

ligadas ao circuito Fora do Eixo – e, além disso, toda a estrutura física ficou disponível

através da Casa Fora do Eixo, que tem sido mantida pelo Retomada. Sendo assim, através de

ações conjuntas, a cena do rock em Montes Claros se articula, sejam através das relações entre

as bandas, públicos ou instituições.

2.3. ROCK INDEPENDENTE

O surgimento de tantas instituições em apoio ao rock em Montes Claros não acontece

do nada. Uma gama de situações pelas quais ele passou forçou a cena a buscar alternativas.

Até meados de 2006, como já foi dito, a escassez de eventos fez com que as atividades

roqueiras diminuíssem – mas não cessassem. Toda essa cena que se desenvolve a partir de

meados de 2006, estruturada por essas iniciativas e instituições, faz com que surjam novas

bandas na cidade. É o caso da Soprones, At-4, Feeble, Umeazero, Sofia, Lócus, Locked Side,

Quatro de Copas, Ruído Jack, Gritare, Gory Stage, Panzerfaust, Impalement in Mordor,

Exorcista, entre muitas outras. Além disso, outras bandas que já existiam em cenas anteriores

acabam por achar apoio na nova cena também, como é o caso da banda Vomer, Wagner

Black, Fúria HC, etc. Uma vez que a possibilidade de eventos, divulgação e produção de

materiais se tornou propícia, os músicos tiveram a oportunidade de se organizar novamente,

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dessa vez, ainda mais apoiados por pessoas que se dedicam diretamente à produção de bandas

e eventos.

Entretanto, se por um lado a cena atual da cidade de Montes Claros permitiu uma

movimentação ainda maior de bandas, de eventos e de músicos, por outro ela acabou por

exigir a mudança de postura desses. Como já foi discutido, num primeiro momento, em se

falando das primeiras bandas de rock de Montes Claros, os grupos se preocupavam com

músicas cover. Na década de 1980, a busca por músicas próprias surgiu na cidade, por meio

das iniciativas que nessa época se configuraram. Em meados da década de 1990, as bandas

retomaram a busca por repertórios cover. Agora, nessa configuração mais recente da cena

roqueira montes-clarense, o ideal independente, ou seja, a busca pela composição de músicas

próprias retorna para as bandas da cidade. O retorno dessa concepção com certeza não está

ligado com a década de 1980, com o ideal dessa época, mas sim com as novas ideias trazidas

pelas instituições que passaram a produzir e dar suporte para as bandas. Elas, sobretudo a

Associação do Rock de Montes Claros e Região e o Coletivo Retomada, começaram a dar

preferência às bandas que possuíam músicas próprias em seu repertório. Isso teve um reflexo

quase que imediato sobre as bandas, que passaram a compor, bem como gravar. Sendo assim,

boa parte dos grupos atuantes na cena do rock em Montes Claros na atualidade está ligada a

uma ou mais de uma dessas instituições e, por conseguinte, trabalha com músicas de autoria

própria em seu repertório. Essas bandas não abandonaram o cover, mesmo porque muitos

desses grupos não possuem mais do que de quatro a oito músicas próprias. Os repertórios,

portanto, são geralmente ligados ao cover, juntamente com a música autoral. Uma exceção

seria a banda Umeazero, cujo repertório é 100% autoral. Seu primeiro CD será lançado neste

ano (2010).

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Todo esse movimento teve impacto direto sobre as bandas que praticavam cover,

única e exclusivamente. Assim declara Elisângela, integrante de uma banda cover de Montes

Claros:

O que aconteceu foi que a galera criou a associação e passou a organizar eventos só pra quem tinha musica autoral e ao mesmo tempo, começou a ficar mais difícil (sic) conseguir lugares para fazer shows sempre, como era antigamente. O pessoal começou a falar que as bandas covers não precisavam de espaço pq (sic) jah (sic) tinham nas festas e a associação ainda colocava o problema de pagar direitos autorais (era estranho pq (sic) todas as bandas que tocavam, fazia metade do repertorio autoral e metade cover, ou as (sic) vezes a maioria do repertorio era cover mesmo, o que era normal, pois estavam todos começando, eu acho que era mesmo um lance de mostrar bandas novas sabe?). Várias bandas começaram a fazer algumas músicas autorais, dividindo o repertorio entre autoral e cover e as bandas novas que foram surgindo jah (sic) vieram com a ideia de autoral mesmo. Ao mesmo tempo, a galera mais antiga foi ficando mais velha e parando de tocar por causa de trabalho e estudos e as bandas foram acabando mesmo, a galerona (sic) que ia (sic) antes pra curtir mesmo tb (sic) começou a sumir pelo mesmo motivo e ai (sic) foi mudando o cenário (sic) de moc... (ELISÂNGELA, 20/04/2010)

Isso não implica o fim das bandas cover, mas diminui consideravelmente suas

atividades. A Sabotage, cover de Black Sabbath e Led Zeppelin, banda da qual a Elisângela,

entrevistada acima, faz parte, reduziu seu itinerário de shows, sendo que ela era uma das

bandas cover mais conhecidas em Montes Claros.

Sendo assim, novas concepções se instauram na cidade de Montes Claros, no tocante

à produção musical. Se num primeiro momento a produção musical independente era tímida e

praticada por bandas da década de 1980, a partir do surgimento da associação e dos coletivos

a produção musical se mostrou o norte, o mote para a atuação musical das bandas que são

envolvidas com essa prática. Considerando a possibilidade de produção, gravação (produção

de CDs e DVDs, clipes, etc.) e difusão dos materiais produzidos pelas bandas em Montes

Claros, instaura-se uma filosofia de produção musical independente, apoiada nessas

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100

instituições. A necessidade de um posicionamento mercadológico explícito, imposto por essas

instâncias de fomento a prática roqueira fez com que a rotina das bandas de rock mudasse

drasticamente.

Considerando assim as discussões empreendidas acerca da produção musical

independente e de sua fundamentação e relação com o mercado fonográfico, pode-se afirmar

que a filosofia da música independente, ou música autoral instaurada na cena do rock em

Montes Claros, bem como a adesão das bandas a esse pensamento fomentou a constante

produção de materiais fonográficos e audiovisuais. Isso inclui CDs, DVDs, clipes para

publicação na internet, etc. No tocante a gravação de CDs, essa demanda acabou por gerar

uma iniciativa que viabilizou ainda mais esse processo. A criação do Studio Rock possibilitou

um espaço voltado para ensaios e gravação de CDs das bandas de rock em Montes Claros.

Figura 11: Logomarca do Studio Rock

Apesar de não atender apenas a bandas de rock, o estúdio dá toda uma ênfase e

privilégio a elas. Essa preferência se deve ao espírito colaborativo que se instaurou através do

Instituto Geraes, em especial na pessoa de Danilo, ex-membro do Instituto e ex-dono do

estúdio (que ainda funciona, agora com o nome de Miralonge). De acordo com ele, o estúdio

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foi criado justamente para ajudar a cena e sua satisfação está ligada com o sucesso dessas

bandas, bem como o do rock em Montes Claros, num sentido mais amplo. Em uma conversa

informal, no ano de 2009, ele dizia que se a receita gerada pelo estabelecimento pudesse

quitar as contas (luz, água, telefone, manutenção, salário dos técnicos), sua satisfação estaria

garantida. Vale dizer que muitas das bandas da cidade gravaram no Studio Rock. O serviço

não era, nem é gratuito, são cobrados valores a preços relativamente acessíveis aos músicos.

Devido a amizade que havia entre a maioria dos músicos e Danilo, que entendia o quanto é

difícil ganhar dinheiro com música, em especial em Montes Claros, sempre eram negociados

prazos. Provavelmente a proximidade e a confiança de ambos os lados fez com que o estúdio

não tivesse prejuízos com essa prática.

O Studio Rock não se limita apenas às gravações e ensaios que se dão em seu espaço

físico. Outra prática também comum e colaborativa é a captação de áudio dos eventos de rock

em Montes Claros, bem como o empréstimo de caixas de som, microfones e apoio na

sonorização desses eventos. Esta prática, não exclusiva de Danilo do Studio Rock, possibilitou

que DVDs pudessem ser gravados nos eventos considerados mais importantes, ou mesmo

áudio, para a confecção de CDs ao vivo, bem como o uso do áudio e vídeo captados para

transmissão via web ou montagem de clipes e materiais promocionais de caráter audiovisual.

A captação da parte visual dos eventos geralmente está ligada à contratação de equipes de

filmagem, ou mesmo a iniciativa do coletivo Retomada, que oferece esse apoio às bandas e

eventos diversos, além daqueles que a própria instituição realiza.

Apesar do apoio do Studio Rock, não há selos ou gravadoras independentes em

Montes Claros. O único caso no qual se teve notícia da montagem de um selo em Montes

Claros foi o de Eltomar Santoro, o Manga Rosa. Entretanto, apenas dizer que se possui um

selo não faz da organização um selo propriamente dito. São necessárias formas de

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constituição e de práticas que o identifiquem como tal. No caso de Eltomar, o Manga Rosa

veio como valor agregado ao CD que ele lançou no ano de 2008, intitulado Os Bonecos do

Ventríloquo.

Se não há selos ou gravadoras, pode-se dizer que as bandas se agregam muito mais

como práticas isoladas que se convergem. Por outro lado, a distribuição dos materiais

fonográficos produzidos por elas é feito pelas mesmas, seja nos shows, através de contatos

com o público ou pela internet, onde, geralmente, as músicas se encontram disponíveis para

download gratuito. Outra forma de distribuição desses materiais é o já comentado comércio

entre os coletivos do circuito Fora do Eixo, representado pelo Retomada em Montes Claros.

Os coletivos trocam CDs entre si, fazendo com que materiais de uma banda montes-clarense

cheguem até outras localidades e vice-versa. Além disso, os discos de bandas da cidade

também ficam disponíveis nas bancas dos eventos realizados pelo Retomada. Os preços são

simbólicos, na maioria das vezes, variando entre R$ 5,00 e R$ 10,00.

Figura 12: Banca de produtos vendidos pelo Coletivo Retomada

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Figura 13: Banca de CDs do Coletivo Retomada

De qualquer forma, mesmo que não se tenha um selo montes-clarense, as bandas

acabam por se agregar e constituir formas de difusão e distribuição de material musical em

rede. O auxílio vem das instituições de fomento à prática roqueira na cidade. Dessa forma,

prevalece a estética underground, bem como o consumo musical segmentado. Como já dito, a

influência das bandas do mainstream é inegável. Ainda assim, o que realmente diferencia um

discurso do outro, como afirma Janotti Junior (2006), são as formas de veiculação midiática.

Por um lado as grandes gravadoras e formas de difusão musical que garantem ampla

divulgação e conhecimento. Por outro, um meio mais segmentado em que a busca é por

públicos que estejam de fato ligados à estética desse movimento. Consumir heavy metal

underground, por exemplo, não é apenas comprar CDs de bandas que tocam o gênero, mas

sim compartilhar códigos, valores, iconografias, discursos e gostos musicais. Como afirma

Fabbri (2009), o gênero musical é composto por códigos que são partilhados

comunitariamente e são refletidos no fazer musical. Sustentar uma determinada banda no

meio independente, em especial se falando do underground, portanto, é sustentá-la

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ideologicamente, além de financeiramente. Isso traz ao meio uma filosofia de fortalecimento,

difundida, no caso de Montes Claros, principalmente pelo Coletivo Retomada. Quando seus

membros se posicionam a favor do desenvolvimento de uma cena independente, na verdade,

discutem questões acerca de sua ideologia, o que é ou não partilhado pelas pessoas que fazem

parte da cena e que, inclusive, participam dos eventos. De qualquer forma, a influência do

pensamento dos coletivos e da associação do rock é marcante, uma vez que o maior meio de

apoio, na atualidade, se concentra por intermédio dessas instituições:

Na realidade a gente é um pouco contra a música cover. Apesar de não excluir ninguém por conta disso, a gente reconhece, mas a gente tenta não excluir ninguém porque a gente entende que cada um tem seu tempo e que não tem como pedir pra uma banda que nasceu agora, que ela tenha um repertório com dez músicas próprias. A gente entende também que a gente tá acompanhando o processo todo. Agora no Pequi Rock mesmo, é um festival que a gente apresenta só música própria e realmente não abre espaço pra cover. Um dos critérios de seleção é ter o show completamente próprio (ALAN, 11/08/2009).

O mesmo pensam os integrantes do Instituto Geraes, que consideram o trabalho

autoral como foco de suas ações:

É basicamente trabalho autoral. A ideia é a divulgação do trabalho autoral. Todo mundo acaba tocando um cover ou outro, mas o foco do trabalho do instituto é com a banda que tenha material próprio. Nós temos grandes amigos que tem trabalho cover. Mas o principal é que muitas vezes, assim, esse assunto de falar assim: ô cara, pra fazer o evento aqui cê tem que ir lá, cê tem que limpar o lugar, tem que comprometer, talvez até contribuir pra pagar alguma coisa, isso às vezes acaba que a galera que toca o cover mesmo e não desenvolve seu próprio trabalho, a galera talvez muita vezes não interessa. Porque aberto é. Porque se uma banda cover chegar e propor: vamos tocar, com certeza rola, só que, não tem saca (TIM DO INSTITUTO GERAES, 20/07/2009)?

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Além disso, o Retomada acredita que exigindo a música autoral em seus eventos

estará fazendo com que as bandas da cidade passem a se preocupar e praticar tal discurso. A

música autoral é vista, portanto, como uma mudança de postura necessária:

É, mas acaba que exclui, mas eu acho que também meio que faz com que a galera se preocupe mais. Porque tem que ter um estímulo, porque se ficar todo mundo, continua né? E é massa sô (sic), a banda, é muito conveniente e cômodo às vezes, ficar nesse lance do cover. Mas o meio da produção, da criação, é muito bacana. É tanto que o primeiro Pequi Rock já tinha isso como critério, o show ser todo autoral. Depois a gente abriu um pouco, tinham que ser três músicas autorais. Mesmo assim limitou para quatro, cinco inscrições na época. Depois do Pequi Rock que começou a fortalecer essa cena e no último Pequi Rock já teve mais de dez inscrições. Tudo com música própria (LORENA, 11/08/2009).

Como visto, a prática dos eventos tem uma profunda relação com a configuração das

bandas de rock em Montes Claros, com suas práticas. Sendo assim, o “estímulo”

proporcionado pelas instituições de apoio à música independente na cidade, que acabam por

privilegiar as bandas de rock, em maior número, tem feito com que elas se adaptem às

exigências e se preparem para a demanda que lhes é proposta. Caso não se adequem, a

exclusão parece iminente, não por afirmações diretas de membros das instituições, seus

discursos são sempre inclusivos, mas por serem inadequadas para os eventos que têm se

configurado como parte da cena atual. Para as instituições, música independente parece ser a

forma mais viável de se sobreviver e ganhar notoriedade. O underground é o discurso

libertador da falta de cuidado das grandes gravadoras, que não tem qualquer interesse inicial

nas bandas que se articulam na cidade.

Apesar desse discurso libertador e prática consolidada através dos coletivos, há

instituições que endossam esse discurso, mas, ao mesmo tempo, não veem problema em fazer

com que uma banda underground seja cooptada para o mainstream. Em entrevista com Fred

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Sapúlia, presidente da Associação do Rock de Montes Claros e Região, ele afirma que não

haveria grandes problemas caso uma banda de Montes Claros alcançasse uma major:

Esse é o objetivo de toda banda. Acho que não chega a ter uma ganância muito grande, mas o objetivo de toda banda é ter o seu trabalho reconhecido, tocar fora. Igual muitas bandas aqui já tocaram fora, bem como bandas de fora já tocaram aqui, já é uma vitória que a gente tem conquistado e a gente tá tentando isso. A gente tá tentando profissionalizar as bandas, tentando ajudá-las pra que elas se profissionalizem. E a gente espera que uma aí um dia dê um boom (sic) e estoure profissionalmente e puxe as outras, como já aconteceu em outros casos na história como foi o caso de Seattle (FRED SAPÚLIA, 04/08/2009).

Para Sapúlia, a prática underground sistematizada, organizada e, enfim,

“profissionalizada” pode gerar um contexto de bandas montes-clarenses que encontrem

espaço no mainstream. Em parte, isso vai de encontro com a filosofia do coletivo Retomada.

Entretanto, em se falando de práticas atuais, do que é feito na atualidade por essas

instituições, pode-se dizer que as concepções e práticas acerca do que seja música

independente e meio underground são muito parecidas. Isso permite que ambas trabalhem

juntas, como acontece em diversos casos.

Mais contundente é a ideia professada pelas bandas. Há uma grande discrepância

entre o que elas pensam ser seu objetivo e a ideologia do coletivo Retomada. Entre as bandas

que foram entrevistadas (AT-4, Feeble, Umeazero, Gritare, Soprones, Vomer, Quatro de

Copas, Sofia, Wagner Black e os Despertadoidos) apenas uma traz consigo o discurso da

música independente, no caso, a Gritare. Suas ideias e discursos são muito afinados com as

propostas difundidas pelo Coletivo Retomada. As outras, quando perguntadas se desejariam

se tornar parte de majors, responderam prontamente que é a vontade de todos se tornarem

famosos, viver do próprio trabalho – uma vez que nenhuma das bandas da cena montes-

clarense, ao que se tem notícia, ganha dinheiro com música. Isso mostra que há certa

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disparidade de discursos quando se busca definir qual é a tônica do movimento underground

em Montes Claros. Pode-se dizer que todas as bandas de rock que integram essa cena

partilham da estética underground que é difundida e praticada, não apenas nos eventos, mas

nas formas de articulação que se dão através das bandas, públicos e instituições. Contudo, por

mais que as práticas sejam parecidas, reina uma grande disparidade de concepções internas,

em suas microestruturas. Sendo assim, apesar de produzir um discurso agregador de valores e

costumes (mesmo que “tradicionais” apenas há pouco tempo), o rock é “babélico, também é o

nome de uma série prodigiosa de diferenças, cada uma delas assinalando distinções no estilo

musical, na auto-imagem, nas posturas corporais, no vestuário, no vocabulário, nas opções

políticas e morais e no ethos de seus fãs e criadores” (ROSA, 2007, p. 16) (Nosso grifo).

Apesar das práticas indicarem concordância, a diferença é evidente quando se

visualiza o objetivo de cada instância. Ao mesmo tempo em que se encontram pessoas que

difundem e praticam a concepção de música independente, no sentido de se evitar a entrada

no mainstream, são encontradas pessoas e bandas que atuam no underground como forma de

crescimento, de profissionalização, como busca de objetivos que, para eles, podem ser

oportunidades para adentrar em meios de amplo acesso, no caso, o estrelato, a fama. A cena

musical independente em Montes Claros é assim reconhecida como forma legítima de prática

musical, além de ser a recorrência e a forma pela qual todas as pessoas envolvidas se

manifestam. Entretanto, por mais que as práticas sejam a grande opção e realização das

bandas de Montes Claros, as buscas podem inclusive transcender a ideia de que a música

underground pertence ao underground, isso validado pelas práticas, discursos e objetivos que,

por mais que neguem, utilizam de elementos do mainstream, além de que muitas o veem

como objetivo a ser alcançado. Toda essa busca começa, é claro, nas práticas que se dão na

cena atual da cidade, uma vez que reina, como Fred Sapúlia declarou acima, a necessidade de

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profissionalização das bandas. No caso de Montes Claros, em específico, tal

profissionalização consiste em possuir músicas próprias, material gravado e veiculado tanto

na internet quanto através de shows e do comércio feito pelas instituições que apoiam o rock

na cidade, além de se entregar à proposta da música independente que é praticada nesse meio.

2.4. O ROCK NO CIBERESPAÇO

Como dito anteriormente, os processos de difusão musical, em especial aqueles

voltados para a propagação de materiais do underground tem se tornado mais acessíveis. Isso

tem permitido novas formas de contato, inclusive de propagação das manifestações do rock e

do metal radicadas em diversos espaços, o que inclui – obviamente – a cidade de Montes

Claros. Considerando assim esses meios que têm favorecido a expansão do discurso

underground, pode-se dizer que uma das formas mais usadas na atualidade – sobretudo pelas

formas alternativas de rock – é a internet. Por ela, as pessoas que integram o movimento

roqueiro têm alternativas de articulação, bem como de difusão de seus materiais. Dessa forma,

associado com a possibilidade de troca de informações, bem como de discussão e definição de

coisas importantes de cunho cultural, graças ao surgimento de formatos de armazenamento

musical que não necessariamente se fixa em fonogramas, no caso, o MP3, WMA, OGG, entre

outros, é possível veicular músicas na rede. O mesmo pode ser dito acerca dos vídeos. Não se

nega que o contato “boca-a-boca” recorrente no meio underground ainda tenha um importante

papel nas relações que se estabelecem. No entanto, para esta seção, ressalta-se a importância

do ciberespaço na articulação da cena do rock em Montes Claros.

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Sendo assim, a internet – o ciberespaço – acaba por se tornar um meio de articulação

e divulgação cultural, seja de forma síncrona ou assíncrona. Da mesma forma, pode-se pensar

em duas situações de articulação cultural que se dão no ciberespaço: aquelas que ocorrem

única e exclusivamente por conta de sua existência, ou seja, operam sobre a plataforma

oferecida pela rede; e aquelas que se processam como extensão de determinada comunidade.

Isso denota que a internet, mais do que um meio de propagação de informações e materiais é,

antes de tudo, um espaço de intensa movimentação cultural:

Desta forma, a cibercultura não é um mundo acabado e ideal nem é naturalmente a configuração resultante do estágio do capitalismo contemporâneo; é antes o conjunto do emaranhado de códigos múltiplos e plurais, fruto de um constante apropriar e refazer social mediante as redes digitais (...) (SÁ, 2005, p. 24).

É claro que nem sempre se pode dizer que a internet tem a acessibilidade e a

possibilidade de articulação que ela apresenta. São momentos marcantes na história da mesma

que delimitam a possibilidade de utilização do ciberespaço pelas pessoas como forma de

convivência cultural. Nesse caso, entende-se como essenciais para compreensão desse

contexto o surgimento do que se chama de Web 2.0. Nesse contexto aparecem várias

filosofias, práticas e plataformas para a formação do que se chamam de comunidades virtuais.

Não apenas isso, mas a Web 2.0 – como conceito de navegação e comportamento na internet –

traz a possibilidade de se fazer quase que qualquer coisa em rede. A ideia da Web 2.0 é a de

que a pessoa passa a ter a possibilidade de interagir com a rede. Isso varia desde formar

comunidades, interação entre pessoas, bem como da pessoa com a própria rede, além da

possibilidade da criação coletiva e armazenamento e compartilhamento de informações on

line. Esse novo conceito – que, em termos de tecnologia, já não é tão novo assim, pois já se

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fala em Web 3.0 – tem tornado a internet um espaço específico e holístico para a formação,

performance e articulação cultural.

Entendendo a internet como um palco ou mesmo local virtual de realizações de

natureza cultural e, por conseguinte, musical, pode-se considerar a cena do rock em Montes

Claros como aquela que tem o ciberespaço como uma forma de aumentar o alcance de suas

articulações sociais, o que faz com que ela também defina aspectos culturais por meio das tele

e ciber17 relações.

Nesse sentido, Caroso (2008) chama a atenção para a necessidade de se pensar numa

etnomusicologia no e do ciberespaço. Segundo ele, amparado por pesquisadores como Lysloff

(2003), a tecnologia deve ser considerada como resultante e meio de experiências humanas

que se dão individualmente e socialmente o que leva à formação de concepções culturais

específicas. Mesmo estudando relações que não necessariamente se aplicam diretamente à

cena do rock em Montes Claros – uma vez que seu foco está diretamente em meios de

articulação que existem única e exclusivamente pela internet –, o autor chama a atenção para

o fato de que a utilização de tecnologias como mediadora de articulações culturais, na

verdade, se mostra como parte das concepções pelas quais se deve enxergar a(s) cultura(s) na

atual conjuntura das coisas. Tudo isso visto tanto numa perspectiva êmica, já que as pessoas

se valem dos aparatos tecnológicos para a vida social, quanto numa ética, compreendendo que

é hora das mais diversas áreas de pesquisa que contemplam o fazer cultural – e musical,

compreendendo assim a etnomusicologia – atentarem para o importante papel que essas

tecnologias e possibilidades de mediação possuem:

Como afirma Lysloff, os aspectos relacionados ao que ele chama de “fenômeno cultural” estão atualmente associados ao homem na grande maioria de seus comportamentos culturais. Reflexos da sua referida “tecnocultura” podem ser vistos em qualquer direção que se olhe. A

17 “Tele” é um prefixo que indica a distância e “ciber” implica estar amparado por um meio tecnológico.

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etnomusicologia estuda os sistemas culturais através da música que praticam. Uma etnomusicologia do ciberespaço precisa então estar atenta às práticas musicais vigentes neste contexto, na investigação, não só dos aspectos que lhe são idiossincráticos, mas, principalmente, percebendo o homem atual como um ciborgue. Este ciborgue comporta-se não como máquina, é um ser cujo comportamento não faria sentido sem ela (CAROSO, 2008, s.p).

Como dito, especificando agora o caso da cena do rock em Montes Claros, não

necessariamente essa comunidade tem o ciberespaço como plataforma de sua articulação e ela

não existe exclusivamente por causa dele. Isso se comprova pelo fato de que rock e

articulação roqueira existem em Montes Claros mesmo antes da chegada da internet. No

entanto, as proporções tomadas por essa cena são, em grande parte, associadas à possibilidade

de articulação cultural por meio das redes, da internet.

Sendo assim, os caminhos pelo quais se estabelece a comunicação entre as pessoas

acabam por se modificar. Não necessariamente pelo fato de que as NTIC (novas tecnologias

da informação e comunicação) têm possibilitado novas formas de comunicação, mas não se

pode negar que elas tornaram esses processos mais evidentes. Far-se-á o uso de dois conceitos

de comunicação para melhor explicar o que acontece. São, portanto, a interação e a

interatividade. Por interação, entende-se que são processos nos quais se preserva a estrutura

clássica da comunicação, a figura do emissor e receptor como polos bem definidos. A

televisão, em seu esquema clássico, pode muito bem ilustrar esse caso. A pessoa que assiste à

TV não tem o poder de interferir na programação, sequer nos rumos ou no enredo do que se

assiste, portanto, estabelece-se aí um processo de interação.

Já a interatividade é marcada justamente pela quebra desse esquema clássico de

comunicação. O que acontece é que há uma liberação do polo emissor (GUERREIRO, 2005),

fazendo com que essa figura se desloque. Dessa forma, as pessoas passam a ter ampla

possibilidade de intervir nas situações às quais lhes são colocadas (SILVA, 2009). Um bom

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modelo e exemplo para isso seriam os wikis, que são textos construídos de forma

colaborativa. Geralmente hospedados na internet, as pessoas têm a liberdade de escrever o que

quiserem sobre assuntos variados. Sendo assim, o que uma pessoa escreve, outra pode apagar,

ou mesmo alterar o que foi dito, sem que haja prejuízos para a propriedade intelectual de

ninguém. A interferência é real, sendo assim, todos são responsáveis tanto pela emissão e

recepção das mensagens. Existem também espaços virtuais exclusivos para a criação artística

coletiva e pautada na interatividade, como é o caso do site Overmundo, que permite a criação

coletiva de músicas, poemas, entre outros. Tudo isso fica publicado na rede.

Considerando esses dois fenômenos em comunicação e sua aplicação ao ciberespaço,

pode-se dizer que há, no escopo da manifestação do rock underground em Montes Claros e

sua articulação na rede, espaços de interação e de interatividade. Como espaços de interação

estariam envolvidos os blogs, sites, murais de divulgação, entre outros. São considerados

assim como espaços de interação pelo fato de funcionarem como formas de divulgação de

elementos diversos, de materiais – musicais ou não – para seu público. Como dito, aí

prevalece o esquema clássico de emissor e receptor. Não é importante, nesses casos, ser

aberto à colaboração do público, ou das pessoas que não representem as instâncias que

comunicam. Como espaços de interatividade podem ser considerados os chats e fóruns, bem

como as comunidades virtuais que surgem a partir daí. Em outras palavras, entendem-se as

comunidades virtuais como meios pelos quais se demarcam territórios no próprio ciberespaço

(RHEINGOLD apud CAROSO, 2008). Espaços como esses permitem que haja a constante

articulação, negociação e redefinição do que se entende como importante e válido dentro da

cena do rock. Concepções que, mesmo via ciberespaço, são constituídas coletivamente. Por

mais que as discussões, na maioria das vezes, sejam propostas por pessoas, ou grupos de

pessoas, o andamento das negociações parece desrespeitar hierarquias ou modelos. Apenas

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parece, uma vez que a diferença de poderes é evidente. Há pessoas que se sobressaem, bem

como possuem maior influência. Entretanto, esse “desnivelamento” de poderes não muda a

situação de interatividade que se estabelece. A função de emissor passa a se deslocar para

quem acha que pode opinar e definir algo em discussão.

Como identificar, então, os aspectos da iteração e interatividade nos meios pelos

quais as bandas, públicos e instituições ligadas ao rock em Montes Claros convivem? Para

tanto, serão descritos alguns espaços virtuais pelos quais a cena do rock se articula,

considerando esses dois conceitos como mote para compreender as negociações

musicais/culturais que se processam nesse contexto.

No tocante à produção de materiais para a internet, muitas vezes são as próprias

bandas que realizam essa tarefa. É bastante comum encontrar clipes, bem como músicas para

download, todos colocados à disposição pelas próprias bandas. Os sites aos quais os músicos

submetem seus materiais são geralmente de caráter gratuito, sendo eles redes sociais, sites que

hospedam vídeos, como o You Tube, ou mesmo espaços virtuais onde seus álbuns, demos ou

Eps estão disponíveis, inclusive para gravadoras ou produtores que possam apreciar sua

produção. Segue uma breve descrição dos principais meios virtuais pelos quais as bandas de

rock/metal de Montes Claros se articulam e disponibilizam materiais.

Ao que parece, o principal meio de divulgação das bandas de Montes Claros, ou seja,

seu “sítio oficial” está ligado aos blogs. Por ser um serviço gratuito, bastante completo na

atualidade, permitindo assim o uso de funções que remetem a mesma função de um site, as

pessoas tem optado por esse serviço. Nele, em se falando das bandas, geralmente são

encontrados informações básicas, como formação, discografia, release, bem como a

divulgação de eventos e de outros link’s, ou para outros endereços de espaços virtuais onde

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haja mais informações sobre a banda, ou mesmo de informações que sejam consideradas

importantes.

Outra forma bastante difundida, provavelmente por ser uma rede muito utilizada no

Brasil, seria o Orkut. Nessa rede social, os músicos (individualmente) e as bandas

(coletivamente), criam perfis, que são espaços onde são expostas as informações básicas, seja

sobre suas histórias e caminhos no âmbito individual ou como grupo, juntamente com

imagens e link’s para outros endereços importantes. Além disso, os diversos perfis podem ser

agrupados em comunidades, que são grupos de interesse on line. Nessas comunidades,

geralmente são criados fóruns de discussão que concernem à divulgação ou discussão de

temas diversos relacionados à cena do rock. Vale lembrar que não apenas as bandas possuem

perfis e comunidades no Orkut, mas todas as instituições e iniciativas já citadas, bem como

outras comunidades de fãs e pessoas que buscam discutir e divulgar algo acerca da cena

roqueira montes-clarense.

Outra forma de divulgação parecida, entretanto mais específica para a divulgação de

bandas seria o Myspace. Este site permite a disponibilização do perfil da banda, com todo tipo

de informação a respeito delas, e, além disso, permite também que se disponibilizem músicas,

que podem ser ouvidas por qualquer pessoa que acesse a rede.

O Palco Mp3 e o Trama Virtual também são muito recorrentes como meios de

divulgação e disponibilização de material na rede pelas bandas de rock em Montes Claros.

Nesses espaços, é possível disponibilizar um pequeno release da banda e, como principal

atração, permite-se o download gratuito de CD’s inteiros, oferecidos pelas pessoas que

mandam suas músicas. Essa iniciativa existe com o intuito de permitir que bandas

independentes se divulguem através da internet, bem como fiquem à vista para um possível

contato com um produtor musical, ou mesmo uma gravadora. No caso do Trama Virtual, este

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está ligado à gravadora Trama, que já produziu algumas bandas que disponibilizam materiais

em seu site.

Como pode ser visto acima, interatividade e interação não são ações exclusivas de

um site ou outro. São, na verdade, formas pelas quais assuntos de interesse para a cena do

rock em Montes Claros são tratados. Em muitos casos, o Orkut, por exemplo, pode servir

como meio de interação, mas também de interatividade. Cada um desses fenômenos deve ser

pensado como elementos que são usados conforme a necessidade dos integrantes do meio

roqueiro montes-clarense.

2.5. EVENTOS DE ROCK

A partir do surgimento de iniciativas que fomentam o rock em Montes Claros

algumas consequências foram verificadas. Uma delas e talvez a mais impactante tenha a ver

com a já discutida prática musical independente na cidade, a partir da filosofia que se

instaurou com base nesses grupos. Contudo, outro efeito de grande impacto nessa cena

musical tem sido a realização de eventos. Nesse movimento, a quantidade de shows e festivais

tem sido constantemente aumentada, graças à força de trabalho que se desenrola das relações

entre essas instituições e às pessoas que delas participam. Não é necessário esperar mais do

que de quinze a trinta dias para que aconteça algum evento de rock em Montes Claros. Essa

situação se desenrola desde o ano de 2006.

Como já foi comentado na seção “Rock Independente em Montes Claros”, o que

acontece, com base no movimento dessas instituições em prol da realização de shows de rock

é a formação de uma rede de colaboração. Nunca há muito dinheiro envolvido. A situação

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atual das associações e coletivos tem se mostrado um pouco mais precária a cada dia

(considerando, nesse caso, o ano de 2010), em termos financeiros. Mesmo assim, pelo fato de

muitas pessoas se reunirem ao mesmo tempo, essa rede de trabalho é capaz de realizar

diversos eventos, em que o maior custo a ser coberto não é o cachê das bandas (que raramente

pode ser pago), mas o das coisas que não dependem diretamente da boa vontade das pessoas

que realizam os shows (aluguel, comida, bebidas, impostos, entre outros).

Nessa rede, as pessoas colaboram com o que podem. O Coletivo Retomada

geralmente tem oferecido os espaços nos quais os shows se realizam, além de cobertura com

fotos e filmagens. O Studio Rock – como já citado anteriormente – oferece serviços de

sonorização e equipamentos de som propriamente ditos. Recentemente, não apenas o Studio

Rock, mas também o GT Sound, outro estúdio de ensaio e gravação cujos membros sempre

foram colaboradores na cena do rock. Os membros da Associação do Rock de Montes Claros

e Região também oferecem serviços de produção e divulgação, além de alugar espaços e fazer

acordos para a realização de eventos. O Coletivo Plug! também tem realizado eventos (alguns

de rock, outros não), mas também se presta na divulgação e produção de shows. Rodrigo de

Paula, membro desse coletivo, também se presta a fazer gravações de áudio ao vivo, como foi

o caso de sua participação no Metalmoc do ano de 2009. Além disso, os membros das bandas

sempre colaboram uns com os outros. É comum ver shows em que há pelo menos duas bandas

tocando e, quando não é sua vez, as pessoas que fazem parte de um grupo ajudam o outro na

passagem de som, serviços de palco diversos (roadie18), além de emprestarem instrumentos e

ajudarem nas suas respectivas divulgações e venda de ingressos (quando é o caso).

18 Roadie é uma função exercida por aqueles que auxiliam na produção e execução de shows e

espetáculos diversos. Eles atuam na sonorização, montagem e afinação de instrumentos, ensaios e passagens de som, dentre outras funções.

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Vale dizer que não foram apenas esses atores que constituíram essas redes. Tal

prática já era percebida na Chernobyl, que tinha esquemas de colaboração com as bandas que

faziam shows na noite. É óbvio dizer que esse sistema não era idêntico, mas ainda sim pode

ser visto como precursor da situação atual. O Instituto Geraes foi concebido unicamente

porque sua proposta inicial era de colaboração mútua. Todas as bandas que iriam participar de

um evento tinham que emprestar instrumentos e equipamentos de sonorização, participar na

organização e divulgação, além de vender ingressos, sendo que uma banda fazia propaganda e

trabalhava em função da outra. Antes do fim de suas atividades, no início do ano de 2010,

uma grande quantidade de eventos já havia sido realizada, concomitantemente com a

Associação do Rock de Montes Claros e Região e o Coletivo Retomada, principalmente.

Mesmo com essa rede e com o fato de que a cena do rock em Montes Claros ter se

popularizado graças às iniciativas que fomentam sua prática os problemas e enfrentamentos

não deixam de ser evidentes. E o maior palco e motivo para esses enfrentamentos entre a cena

e as pessoas que não aprovam esse fazer está nos eventos. A disposição de locais para a

realização de shows de rock é variante a todo tempo, isso porque sua natureza visual,

comportamental e sonora, mesmo sendo mais “amigável” ou ”conhecida” do que antes pelos

demais moradores ainda faz oposição àqueles que se sentem incomodados. Novamente, a

questão da diferença de poderes se mostra marcante. É fato que a cena do rock em Montes

Claros é formada por uma grande quantidade de pessoas e que muitos deles têm contatos

políticos que até rendem parcerias, inclusive na obtenção de locais e estruturas para a

realização de eventos. Contudo, ao mesmo tempo é possível encontrar pequenos levantes de

moradores das redondezas, principalmente, que tendem a hostilizar e prezar pelo “sossego” à

noite. Mesmo respeitando uma recente lei montes-clarense que estabelece um horário limite

para a realização de eventos abertos com sonorização na cidade (até as 2 horas da manhã) é

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comum encontrar focos de reclamações e pedidos de providência para o “problema” que tem

tirado o sossego dos moradores que querem descansar.

É óbvio dizer que a própria dificuldade de se conseguir locais para se realizar shows

de rock em Montes Claros se deve à vitória, em muitas vezes, desses embates pelos

moradores das adjacências desses espaços. A falta de “poder” para responder à altura pelos

membros das instituições, iniciativas e bandas faz com que as ações judiciais geralmente

saiam bem sucedidas. Inclusive, torna-se complicado vencer uma ação quando o incomodado

pode ser o próprio juiz, cuja única preocupação foi garantir seu sono e não argumentar em

favor de uma conciliação. Isso não implica, é claro, que as regras de realização dos eventos

tenham sido descumpridas. O que se passa, principalmente, é a diferença de gostos, o embate

de diferenças interculturais nas tessituras urbanas. A diferença de poderes entre aqueles que

exercem cargos de influência, dos adultos em relação aos jovens, da polícia que preza pelo

“sossego” e pela “ordem” – considerando ordem como uma visão específica do que seja o

ideal de comportamento – na verdade desequilibra essa balança das diferenças, o que faz com

que determinadas manifestações permaneçam mais estáveis – no sentido de estruturas para

sua realização –, ao passo que outras tentam uma contraposição com esses problemas. E a

forma que a cena do rock – como meio sociocultural – encontra para se manter e reagir às

condições adversas é estar sempre na busca de novos espaços, na consciência de que ainda

não há uma condição “ideal” para realização desses eventos:

Essa questão de espaço, a gente é que constrói ele. O Rock do Rodolfo já foi em três lugares diferentes, quatro lugares diferentes. A gente sempre acha um lugar, entendeu? Então assim: vai muito da vontade, né? (...) Antigamente tinha a Casa da Juventude que era uma mão na roda. Mas e aí? Acabou a Casa da Juventude e vai deixar de fazer? Até que ponto vai essa articulação que se fala, de ser independente, né? Até que ponto vai isso? Até ter um lugar cômodo pra você fazer e não levantar um braço ou uma perna, sacou (TIM DO INSTITUTO GERAES, 20/07/2009)?

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Como visto, o grande problema da cena do rock em Montes Claros é o fato de não

haver um espaço específico para a realização de eventos. Isso por um lado, pois pelo outro, é

sempre grande o esforço da cena que preza por convencer as pessoas que de o rock não é de

fato uma “bagunça”, ou “desorganizado”, mas sim uma manifestação que tem buscado seu

espaço na conjuntura atual da cidade. Isso denota duas características que tornam a cena

peculiar para os montes-clarenses: o grande poder de articulação e a sua mobilidade física.

A seguir serão descritos alguns exemplos de espaços que foram específicos para a

realização de eventos de rock em Montes Claros, além das consequências de sua atuação e do

iminente término de suas atividades. Serão descritos os principais, sendo eles: a Chernobyl, a

Casa da Juventude, o Taberna Roots e a Casa Fora do Eixo. Não se nega que houve – e há –

outros espaços, mas, no contexto da cena atual do rock em Montes Claros e considerando a

atuação das instituições e iniciativas de fomento a essa prática, esses foram os que

desenvolveram atividades mais duradouras e que mais resistiram como espaços representantes

dessa comunidade.

Um primeiro exemplo seria a Chernobyl. Este espaço só é descrito aqui pelo fato de

ter sido um importante ponto de encontro roqueiro em Montes Claros, mas sua atuação ainda

não era ligada à movimentação das instituições e iniciativas em apoio ao rock. Ainda sim, sua

atuação foi fundamental como precursora da atual situação da cena da cidade. Tratava-se de

um espaço particular para a realização de pequenos shows e a dinâmica de seu trabalho já foi

descrita anteriormente. Jauner, o proprietário do espaço, desistiu subitamente do negócio e a

casa teve que ser fechada. Além disso, eram muitas as reclamações de vizinhos que se sentiam

incomodados.

Outro espaço que foi amplamente utilizado para a prática do rock e do metal – se

bem que não exclusiva – foi a Casa da Juventude. A grande vantagem desse espaço é que ele

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120

era administrado pela prefeitura de Montes Claros. Dessa forma, o empréstimo do lugar, bem

como a estrutura do palco eram de responsabilidade da administração, que mantinha contato

direto com os realizadores desses eventos. Outra vantagem, além do “aval” da prefeitura para

a realização de festas e shows era o baixo custo dos eventos. Isso porque, como já dito, não

era necessário o aluguel de palco nem do espaço. A maioria dos eventos realizados nesse local

eram gratuitos, como foi o caso de uma versão do Grito Rock e que registrou um público de

cerca de mil pessoas. Não apenas o Grito Rock (que marcou o início do Plug!) que teve êxito

de público. Os eventos realizados pela Associação do Rock de Montes Claros e Região, em

sua maioria também eram feitos nesse local e a aceitação era sempre satisfatória para esse

espaço. O grande problema que acabou desencadeando o término das atividades (no início de

2009) nesse local foi uma ação judicial movida por moradores das adjacências, que

reclamavam do “barulho”.

O Taberna Roots foi um espaço peculiar pelo fato de ter incorporado uma prática que

acontecia na cidade, mas não era tão fomentada assim pelas instituições de apoio ao rock: o

acústico19. Em uma parceria feita pela Associação do Rock de Montes Claros e Região e esse

estabelecimento, eram feitos pequenos shows, todas as sextas-feiras, durante o segundo

semestre do ano de 2009. Esse evento foi chamado de Toda Sexta é Dia de Rock. Mesmo

segmentada em relação a essa estética, as bandas não deixaram de se adaptar, além do fato de

que novos grupos se formaram para atuar nesse espaço.

A aceitação do projeto foi muito favorável, porque nos deu a oportunidade de dar mais oportunidades às bandas associadas. Várias bandas manifestaram interesse de se apresentar e outras fizeram questão de ensaiar para adaptar as musicas ao acústico. É considerado

19 O acústico ou unplugged é uma estética específica de produção e performance musical, como afirma

Carvalho (1999). Trata-se de uma prática ainda comum, de forma que a ideia é tocar “desplugado”, o que não é de todo verdade no caso dos segmentos midiáticos. No rock, essa estética tem significado, principalmente, a partir do não uso da guitarra elétrica, que geralmente é substituída pelo violão (elétrico ou microfonado, pois os instrumentos não deixam de ser amplificados).

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mais uma vitoria na nossa luta em prol da cultura rock, pois há muito tempo já tínhamos o interesse de possuir um espaço físico. E mesmo que não seja permanente já contribui para o desenvolvimento da cena (FRED SAPÚLIA, 04/08/2009).

O acústico era prática recorrente não por ser a estética preferida, mas sim pelo fato

de que não havia como tocar com amplificadores, bateria e guitarras distorcidas sem

incomodar aos vizinhos, que por sua vez, iriam reagir. A solução, encontrada já na época do

acordo que foi firmado, foi usar do acústico como meio dominante de atuação das bandas.

Isso não só possibilitou uma nova forma de atuação e de produção de eventos, como também

atraiu novas pessoas para acompanhar o movimento da cena. Entretanto, pelo fato de terem

ocorrido desentendimentos entre os organizadores, o evento cessou suas atividades ainda no

ano de 2009. Mas pode-se dizer que essa prática deu frutos e se difundiu na cidade. Os

músicos de barzinho, como assim são chamados, são comuns em Montes Claros. Porém,

graças à prática que se estabeleceu no Taberna Roots, alguns grupos continuaram suas

práticas, mesmo que desvencilhados das instituições de fomento ao rock.

Já em 2010 o grande espaço para eventos foi a Casa Fora do Eixo. O espaço foi

criado em fevereiro desse mesmo ano, no intuito de sediar os eventos realizados pelo Coletivo

Retomada e qualquer parceiro que se propusesse para tal realização. A história foi bastante

peculiar. Os membros do Coletivo Retomada, no início do ano de 2010, precisavam de um

espaço para realizar o Grito Rock, um evento que acontece simultaneamente em toda a

América Latina. Para tanto, entraram em contato com o dono de um galpão que, ao receber a

proposta de aluguel para uma noite, disse que o mesmo preço que ele cobraria por uma noite

seria para o mês inteiro. Assim foi feito. Desde então, até o mês de agosto, eventos de rock

foram realizados quinzenalmente, com um público considerável – variando entre trinta até

cem pessoas, a depender do evento – e pagante.

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122

Figura 14: Frente da Casa Fora do Eixo

A casa contava com um pequeno palco, além de ter sido personalizada com grafites

nas paredes, um bar e mesas, além de uma pista, perto do palco. A proximidade entre bandas e

público talvez fosse o mais interessante a descrever nesse local. Apesar do palco, ele era

pequeno. Então, era a maioria dos casos que os músicos tocassem no chão e apenas o baterista

sobre o palco. A aproximação – sem invasão ou agressão – era peculiar nesse espaço, o que

gerava um ambiente propício para shows de rock e de metal.

Apesar do êxito da casa e do esforço dos membros do Coletivo Retomada, não foi

possível mantê-la por mais tempo. Ela foi desativada no início do mês de setembro de 2010

porque, apesar de pagar aluguel, o dono requereu o imóvel de volta, sem maiores

justificativas.

Mesmo considerando esses espaços que se consolidaram com mais força e

permaneceram por mais tempo, permitindo, inclusive, a realização de vários eventos, vale

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123

citar outros que foram galgados para a realização shows específicos, o que denota a grande

capacidade dos organizadores do rock em Montes Claros de se articularem. Com o fim da

Casa da Juventude (onde já funcionou uma boate, sem grandes problemas), as pessoas que

organizam eventos de rock não pararam de se articular, tanto umas com as outras, quanto com

a própria prefeitura da cidade. Sendo assim, alguns espaços alternativos acabaram cedidos

para realização de shows esporádicos. A Noite Fora do Eixo, em 2009, foi realizada na Praça

dos Jatobás20, em um palco montado pela prefeitura e com sonorização feita em parceria com

a mesma. Apesar de polêmico, o show recebeu uma quantidade considerável de pessoas.

Entretanto, as reclamações de moradores foram evidentes, tanto presencialmente quanto em

fóruns na internet.

Figura 15: Show da banda Sofia na Noite Fora do Eixo

20 A praça dos Jatobás fica na região sul e é conhecida pela realização de inúmeros eventos como o

Encontro dos Lobos do Cerrado e o Carnamontes, um evento que agrega uma enorme quantidade de pessoas de Montes Claros e outras cidades. Ao mesmo tempo em que ela é palco de eventos diversos, é campo de discussões e brigas, já que ela se localiza junto a uma grande área residencial.

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Figura 16: Público da Noite Fora do Eixo

Já a Associação do Rock de Montes Claros e Região conseguiu uma façanha, frente à

escassez de locais fixos para a realização de eventos de rock. Em duas noites que antecederam

um grande show evangélico na Praça de Esportes21, eles conseguiram articular com os

organizadores e utilizar a mesma estrutura para a realização de dois eventos: o Rockmoc e o

Metalmoc, agregando um público de cerca de trezentas pessoas. A estrutura desses dois

eventos contou com um palco profissional, além de um equipamento de som condizente com

essa estrutura. Tudo foi registrado em áudio e vídeo, sendo que uma equipe de filmagem foi

contratada exclusivamente para os shows. É óbvio dizer que essa estrutura é rara em eventos

de rock em Montes Claros. Contudo, a realização desse evento teve grande repercussão nos

meios de comunicação locais.

21 A Praça de Esportes é um clube localizado no centro da cidade e é administrado pela prefeitura

municipal de Montes Claros. Por ter um ginásio e um campo de futebol, diversos eventos já foram realizados nesse local.

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Figura 17: Palco do Rockmoc e Metalmoc

Figura 18: Espaço de realização do Rockmoc e Metalmoc

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Houve diversas outras iniciativas em prol da realização de shows de rock. O Coletivo

Retomada conseguiu fazer um show na boate Armazém, em plena avenida sanitária, local

onde o rock não tem tanto espaço nem visibilidade. O Instituto Geraes conseguiu alugar um

estacionamento por um semestre inteiro, realizando assim várias versões do Circuito

Catrumano de Música Independente, Rock do Rodolfo, Espaço Cultural, Garagem Rock Bar,

entre outros. A variedade de espaços que foram utilizados para eventos de rock não poderia

ser esgotada neste trabalho, visto que a perenidade e a necessidade de sobrevivência desse

movimento fazem com que quase que qualquer tipo de local seja pleiteado para a prática

roqueira.

Mas, apesar de utilizar dos mais diversos espaços para a realização de eventos, a

tônica é sempre a qualidade dos mesmos. Claro que qualidade, mais uma vez, é uma definição

êmica e que é concebida com base nas ideias que se tem desse parâmetro dentro do contexto

do rock em Montes Claros. Sendo assim, sempre há discordâncias. Um primeiro motivo é

que, como afirma Walser (1993) a cena do heavy metal não é monolítica, nem a cena do rock

em Montes Claros. Ao mesmo tempo em que existem pessoas que pensam na expansão da

cena – que é expressa nos eventos – há aqueles que imaginam que ela deve ser segmentada,

assim como era antigamente. Mais uma vez, as discordâncias intraculturais (NETTL, 2001;

CAMBRIA, 2008) se estabelecem. Em uma conversa informal com Dayan, vice-presidente da

Associação do Rock de Montes Claros e Região, ele declarou que ainda há muitas pessoas que

reclamam da atual configuração dos eventos de rock na cidade. Como ele afirmou, há pessoas

que dizem sentir saudades da época em que o equipamento era de “qualquer jeito”, ou seja,

sem grandes preparos, os rocks eram feitos em garagens quase que exclusivamente e o que

contava era o fato daqueles eventos serem pouco “profissionalizados” – para utilizar uma

expressão de Fred Sapúlia, presidente da associação. Apesar disso, os eventos de rock em

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127

Montes Claros contam com a presença inclusive das pessoas que tem essa concepção. Por

outro lado, a intenção das instituições e iniciativas que trabalham em prol do desenvolvimento

da cena roqueira tem uma concepção diferente e que, é claro, é compartilhada por muitas

pessoas que tocam nos shows. Numa entrevista com os membros do Instituto Geraes, eles

deixam clara a sua ideologia, enfocando sua principal atividade, no caso, os eventos:

Sempre vai gente nova. Aí eu cito como exemplo o evento da praça, que eu acho que por ter sido o último evento lá com os meninos da Plug! que fizeram. Lá na praça pelo fato de ser central, tinha muita gente diferente! Tinha o pessoal nas banquinhas sacando CD, comentando, eu já ouvi essa banda. (...) Toda vez que a gente faz evento, sei lá, quarenta por cento do pessoal é diferente, onde é que esse povo tava? Alguns acabam voltando, outros às vezes não, mas tem uma rotatividade muito grande. No dia que juntar essa galera toda... Um público enorme sabe? A ideologia do circuito é a formação de público. A formação de um público que até então... Formar o público para o trabalho que anda acontecendo aqui na cidade. Até mesmo que isso pode ser a arma fundamental pra quando a gente for captar algum recurso (CHIQUINHO DO INSTITUTO GERAES, 20/07/2009)...

O mesmo afirma Fred Sapúlia, quando fala acerca dos eventos promovidos pela

Associação do Rock de Montes Claros e Região:

A gente sempre busca fazer os eventos da melhor maneira possível, a gente sempre tá preocupado com os eventos, com essa questão de segurança, questão de tratamento dos músicos, essa questão de valorização e respeito com eles e com o público também. Apesar que sempre tem imprevistos. Às vezes o som não fica bom, a galera reclama, mas é assim mesmo (FRED SAPÚLIA, 04/08/2009).

As ideias de melhores tratamentos, de formar públicos têm a ver justamente com a

necessidade das pessoas que representam a cena e que realizam eventos em aumentar sua

audiência e visibilidade no contexto da cidade. Uma razão tem a ver com a questão da música

independente. Essa música produzida pelas bandas montes-clarenses tem toda uma dinâmica

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128

própria de produção, difusão e distribuição, como já foi discutido na seção “música

independente”. Dessa forma, para ser conhecida localmente, a cena se articula no sentido de

galgar novos públicos, de forma a otimizar seu sistema de divulgação. Mais conhecimento por

parte do público gera mais aprovação e mais incentivo para as pessoas que praticam o rock e

realizam eventos. Isso faz com que ela se articule melhor, bem como cresça. Estabelece-se aí

um cenário underground que é sim segmentado, mas que busca sempre agregar novas pessoas

para esse segmento, num sentido expansionista.

Considerando então a grande quantidade de eventos de rock em Montes Claros, mais

a sua articulação direta e quase monopólio desses pelas instituições e iniciativas de fomento

ao rock na cidade, vale discutir acerca da organização e orientação desses eventos. Como

discutido acima, em muito eles se ligam com a questão da cultura underground e da música

independente. Mas isso não se dá apenas na necessidade de expansão num setor segmentado.

As práticas sociais e concepções culturais são fundamentais para se identificar esses eventos

como tal. Isso é tanto verdade que as estruturas dos shows, desde a organização do público,

dos organizadores, dos músicos e das iniciativas são peculiares e recorrentes em quase todos

eles. Isso é fruto do compartilhamento de uma prática.

Deve-se considerar, a princípio, a já citada rede de colaboração. É fato que todos

esses eventos se organizam com base nessas práticas. Mas é necessário também falar como

ocorrem esses shows. Dessa forma, a descrição a seguir se vale das observações feitas em

campo, no sentido de buscar recorrências nas estruturas desses espaços, já que eles são

contextos nos quais se desenrola a prática musical. Trata-se de um feito diferente do de

Guerreiro (1994), que gerou uma etnografia fictícia do que ela chama da tribo do rock

brasileiro, com base nas recorrências que obteve de suas observações. Aqui apenas será

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129

descrito, de forma a considerar as recorrências, a estrutura presente nos shows de rock em

Montes Claros, considerando as variantes que são encontradas.

Os eventos de rock em Montes Claros têm estruturas que podem ser consideradas

como recorrentes de duas formas: em relação às outras cenas alternativas que existem em

outras localidades, sem deixar de considerar que, ainda sim há peculiaridades; e em relação a

ela mesma, como prática organizacional recorrente. É comum a presença de uma portaria e

bilheteria (no caso de shows pagos), onde há sempre um esquema de segurança montado para

impedir entradas indesejadas – leia-se como pessoas que querem tumultuar o evento ou entrar

sem pagar. Esses seguranças que permanecem na portaria são um grupo que foi montado

quase que exclusivamente para acompanhar os shows de rock feitos pelas instituições de

apoio a essa prática. Isso é comprovado pelo fato de que, geralmente, as mesmas pessoas

estão presentes. Sua função se estende a ficar na secretaria. Eles também são responsáveis

pela segurança interna, durante a realização dos shows, impedindo assim que aconteçam

brigas ou confusões indesejadas. É importante ressaltar a vantagem desse grupo, pelo fato de

ser especializado em eventos de rock. É muito comum que o aglomerado que se forma

durante os shows seja confundido como “confusão “ ou “briga” pela polícia e/ou por equipes

que não conheçam essa realidade. Como essa equipe é montada para atuar diretamente nesses

eventos, eles conhecem a dinâmica, bem como compartilham das concepções que norteiam a

prática roqueira montes-clarense. Dessa forma, as intervenções são feitas apenas quando

necessário, considerando “necessário” como numa perspectiva êmica22. Já os eventos maiores

e em locais abertos são acompanhados pela polícia militar, mas que atua em conjunto com

essa equipe de segurança. Mesmo assim, considerando é claro, a fase atual que tem sido

observada dessa cena, praticamente nenhuma ocorrência policial por confusões foi registrada.

22 “Ético”, no caso dessa expressão seria qualquer outra instância que não compartilhasse dos valores

que são estabelecidos na cena do rock em Montes Claros.

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130

O espaço é bastante peculiar e sua organização também. A disposição básica de

palco e pista é sempre recorrente. O palco geralmente fica ao fundo e a pista logo à frente,

sem nenhuma divisão. A variante se encontra apenas na altura do palco que separa (ou não) o

público da banda. Nos eventos em que há parcerias com a prefeitura, ou naqueles em locais

abertos onde se aluga a estrutura de palco é comum constatar que a banda fica a uma altura

considerável do público. Já em shows como os que são realizados na Casa Fora do Eixo, o

palco é baixo, ou a banda toca no chão, no mesmo lugar onde está a pista. O interessante a se

notar aí é a relação de proximidade que se configura entre as bandas e os públicos. Isso se

reflete nas concepções de Janotti Junior e Cardoso Filho (2006), que falam do meio

underground tendo a característica de maior proximidade entre o músico e seu trabalho. Pode-

se, nesse caso, estender esse pensamento de proximidade para a relação entre banda e público,

no próprio evento. Essa estrutura de palco e pista aqui descrita é, na verdade, um dizer acerca

da relação sociocultural que se estabelece na cena do rock da cidade. Essa estrutura é

recorrente e tem a ver com a dinâmica que se estabelece em cenários underground ao redor do

mundo. Não é necessariamente o que um olhar despreparado descreveria como “falta de

estrutura” que acontece na cena. Os eventos também têm essa estrutura porque a proximidade

entre o “público” e o “artista” é grande, de forma que um pode acabar ficando no lugar do

outro. Frith, por exemplo, descreve a cena do folk rock – sem usar o termo “cena” – como um

espaço de compartilhamento de uma linguagem. No seu texto, ele declara: “Existem dois com

componentes para o argumento folk-rock: primeiramente, a música era uma autêntica

“reflexão da experiência”; segundo, a música refletia a experiência de uma comunidade – não

havia distinção de experiência social entre performers e audiências”23 (FRITH, 1981, p. 159)

(Nossa tradução).

23 There were two components to the rock-folk argument: firstly, the music was an authentic “reflection

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131

Sua intenção é mostrar um espaço no qual se realiza uma prática musical sem a

influência do “estrelato”. Dessa forma, qualquer um pode se tornar o performer ou audiência.

Por mais que não seja da mesma forma, pode-se dizer que a cena do rock em Montes Claros

tem uma ideia parecida, pois é bastante comum encontrar pessoas que faziam parte do público

e se integraram a bandas nos dias de hoje. Não apenas isso, mas um espaço onde o palco se

encontra no mesmo nível das pessoas tem uma conotação toda especial, no sentido de que, de

certa forma, todos são próximos e têm o direito de compartilhar das concepções que norteiam

a cena, inclusive as musicais. Fato que é comprovado pelas ações do público e das bandas. As

pessoas sempre sobem ao palco durante os shows, ou “invadem” o espaço onde a banda está

tocando, sem grandes constrangimentos entre as partes.

O’Hara (2005), ao falar do que ele chama de punk moderno, mostra mudanças

significativas que vão ocorrendo na cena, inclusive na estrutura dos eventos:

À medida que as platéias se tornam cada vez maiores, os concertos se tornam mais entretenimento do que interação. Os pequenos teatros ainda apresentavam ambientes interativos, mas os teatros maiores imitam os concertos típicos de rock’n’roll. Além disso, as exibições características dos punks descritas anteriormente foram bastante suavizadas. Quando elas efetivamente acontecem, são em geral consideradas atos pouco originais feitos para chocar ou simplesmente pela nostalgia dos “bons tempos” do punk, quando não havia política envolvida a não ser manifestar a indignação (O’HARA, 2005, p. 39).

É claro que a intenção do autor, nesse caso, não é dizer se o punk ficou melhor ou

pior, se evolui ou se perdeu, mas é de explicar que isso foi, de fato, uma espécie de mudança

ideológica pela qual a “filosofia do punk” – como movimento – passou. Mas o que interessa

nesta seção é ver como a filosofia muda juntamente com o espaço no qual se pratica música.

Essa situação, em termos de mudança não é exclusiva do movimento punk descrito por

of experience”; secondly, the music reflected the experience of a community – there was no distinction of the social experience between performers and audiences.

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O’Hara, mas é sintomático em diversas manifestações musicais. Montes Claros, ou melhor, o

rock em Montes Claros vive passando por mudanças. Vale dizer que não são apenas os

espaços que mudam, no sentido de se conseguir novas localidades para se tocar. A

configuração interna desses é sim fruto e reflexo de concepções culturais distintas, focadas

na(s) maneira(s) de pensar dessas pessoas. Se as concepções das pessoas mudam – ou pelo

menos se as concepções de determinadas pessoas mudam – a cena se transforma,

musicalmente, ideologicamente, fisicamente.

Seguindo a descrição das estruturas dos espaços físicos nos quais se realizam eventos

de rock em Montes Claros, além da portaria e sua estrutura de posição e funcionamento, mais

a disposição do palco e da pista, há outros espaços que devem ser lembrados. O comércio

deve ser enfatizado pelo fato de que, além de ser recorrente, reflete elementos de uma cultura

da música independente na cidade. Em todos os eventos realizados ou pela Associação do

Rock de Montes Claros e Região, ou pelo Coletivo Retomada podem ser encontradas as

“bancas”. “As “banquinhas” – espaços existentes nos shows de rock underground destinados à

venda de materiais independentes – são fundamentais para a própria divulgação e manutenção

dessa cena. Na maioria das vezes o que se vende são CDs, camisetas e bottons das próprias

bandas que tocam naquele determinado show” (ROSA, 2007, p 112).

A citação acima mostra que essa prática não é exclusiva dos montes-clarenses, já que

Pablo Ornelas Rosa descreve uma prática do rock underground em Florianópolis. Além disso,

a manifestação que ele retrata não é ligada ao Circuito Fora do Eixo. É a difusão de um fazer

musical – relativo também à produção, difusão e distribuição – independente que permeia as

mais diversas realidades nas quais o rock underground é discurso. Nos shows underground

em várias localidades além de Montes Claros, essa prática é comum. Sendo assim, traçar sua

origem é deveras fácil. Sabe-se que essa prática foi introduzida por iniciativa dos coletivos.

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Além disso, essas bancas tem um produto-chefe, sempre à venda: CDs. Além desses

materiais, são encontradas camisetas, bottons, fanzines. No caso do coletivo, que faz a

distribuição, por estar no Circuito Fora do Eixo, ele se integra a uma rede de distribuição de

mais de cinquenta pontos no Brasil inteiro. Sendo assim, como já foi dito na seção “Música

Independente”, é possível encontrar álbuns de bandas de outras cenas, desde que apoiadas

pelos coletivos dessas localidades. Da mesma forma, os CDs das bandas de Montes Claros

estão à venda nessas cidades. Vale considerar também que as bandas da cidade só começaram

a vender CDs depois que começaram a gravá-los. Elas não faziam isso com frequência antes

da incursão do Coletivo Retomada. Dessa forma, pode-se dizer que a criação de bancas para o

comércio de materiais (musicais e extramusicais) foi iniciativa dos coletivos, que ajudaram a

consolidar o ideal da música independente em Montes Claros.

Mesmo considerando que essa seja uma incursão creditada a uma iniciativa do

Coletivo Retomada, é importante ressaltar que ela se estende aos eventos realizados pela

Associação do Rock de Montes Claros e Região e dos que eram feitos pelo Instituto Geraes.

Além disso, não são apenas os produtos vinculados aos coletivos que são comercializados.

Outras iniciativas têm se estabelecido nesses espaços. É o caso do Gambiarra e da Nave

Camisaria. Trata-se de artistas da cidade que tem materiais que são distribuídos nesses

espaços, por terem a abertura necessária para tanto. Gambiarra é representada por duas

mulheres, Janaína e Joana, que levam materiais confeccionados por elas (camisetas, broches,

brincos, colares, entre outros) e que são vendidos em uma banca montada e administrada por

elas.

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Figura 19: Banca do Gambiarra

Já a Nave Camisaria possui uma loja, na qual eles criam estampas e camisetas. O

comércio de seus produtos nos eventos de rock é uma extensão do que é feito em sua loja, ou

seja, funciona mais como um ponto de divulgação desse material.

A última forma de comércio que é encontrada nos eventos de rock em Montes Claros

é o de comidas e bebidas (com foco nas bebidas: cerveja, vinho e drinks feitos com vodka).

Quando se trata de shows menores, como os realizados nas casas acima descritas, ele fica a

cargo das pessoas que são donas do espaço. Na Casa Fora do Eixo, por exemplo, isso era

responsabilidade dos membros do Coletivo Retomada. Já no caso de festivais abertos como o

Metalmoc e o Rockmoc, o comércio dessa natureza é repassado para terceiros. Em bares como

os da boate Armazén, a venda de bebidas é responsabilidade da própria, já que ela aluga

apenas o espaço.

Por fim, vale dizer que todos os eventos de rock na cidade contam com banheiros –

banheiros comuns em lugares fechados e banheiros químicos em locais abertos –, espaços

com mesas e cadeiras quando em locais fechados e camarotes para que as bandas se

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preparem. Considerando essa estrutura que é recorrente desde o surgimento dessas iniciativas

que fomentam a prática do rock na cidade, pode-se dizer que ela é, de fato, o reflexo e o meio

do fazer musical alternativo, veiculado e distribuído de forma independente. Típico de uma

cena que se autodetermina underground. Sendo assim, a já comentada resignificação dos

elementos adquiridos no fluxo global de informações (SLOBIN, 1992) não é expressa apenas

nas músicas ou nas práticas musicais. Ela é inscrita nos espaços, que também são recriados ao

gosto do contexto que se manifesta. Vale terminar esta seção com uma citação de Rosa

(2007):

É importante ressaltar que muitos grupos acabam ressignificando muitos desses espaços, caracterizando-os e imprimindo-lhes significados de acordo com os seus próprios processos de ocupação desses territórios. Muitas vezes, ocupam espaços destinados ao consumo sem consumir, e ainda fazem críticas a eles, que acabam se transformando em seus territórios. Assim, esses atores sociais, juntamente com as suas tribos e bandas, apropriam-se de certos espaços, ressignificando-os e remodelando-os de acordo com as suas próprias lógicas e não com os significados socialmente impostos (ROSA, 2007, p. 100).

Sendo assim, observando as mútuas colaborações que se observam nos fatos acima

descritos, pode-se entender que a cena independente do rock em Montes Claros possui uma

peculiaridade: a troca de favores. É entendido pelas pessoas que integram a cena que se elas

se ajudam, podem estabelecer uma prática melhor consolidada na cidade. A troca de favores

não é exclusiva do rock em Montes Claros. Na verdade, é possível que essa prática tenha se

popularizado graças às incursões dos coletivos, que, no Brasil, atuam dessa maneira. Graças a

essa rede de colaboração que se forma é que os eventos têm acontecido com maior qualidade,

tem sido mais frequentados, além de estarem mais bem organizados. Essa rede se dá da

seguinte forma: sempre que alguém se propõe a fazer um show, por exemplo, o Coletivo

Retomada, é provável que ele não tenha uma quantidade de pessoas suficiente para fazê-lo de

forma que eles o considerem algo organizado. Dessa forma, os músicos das bandas

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136

convidadas, pessoas de outras instituições (geralmente pessoas da A.R.M.C.R), do Studio

Rock, ou mesmo pessoas de qualquer uma das iniciativas que foi citada anteriormente são

convidados a colaborar com a realização do evento. Cada um oferece o que pode. Como já

dito, o Retomada dispõe de equipamento de filmagem, as bandas auxiliam umas às outras no

palco, ajudando na passagem de som, na montagem dos instrumentos. As pessoas que

trabalham no Studio Rock fazem gravações dos shows, além de colaborarem na sonorização e

empréstimo de equipamentos. Carrapato, técnico do estúdio (ex-guitarrista da banda Vomer) é

um grande entusiasta nessa colaboração. Mesmo que ele tenha outros trabalhos na noite (ele

trabalha com sonorização em bares), Carrapato sempre está presente no início dos eventos,

fazendo o possível para acompanhar a passagem de som de cada banda.

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3. METAL (NO MUNDO, NO BRASIL, EM MONTES CLAROS)

Considerando então a cena do rock em Montes Claros e suas práticas, uma delas

pode ser entendida como bastante peculiar em relação às demais: o metal. Isso porque ele

agrega uma quantidade considerável de pessoas que têm códigos, pensamentos e concepções

distintas sobre o que seja rock, dentro desse próprio contexto. Em outras palavras, ele é

“segregado”, dentro de um contexto mais amplo. Historicamente, em Montes Claros, esse fato

chegou a criar certa ruptura na cena, fazendo com que as atividades do metal fossem

“bairristas” e “a parte” das demais.

Metal em Montes Claros – e no mundo – se mostra como uma manifestação bastante

consolidada em termos de ideologia, iconografias e práticas específicas. Além disso, certa

“lealdade” é recorrente entre seus membros. Gostar de metal, muitas vezes, é não gostar de

outras músicas, é a busca por uma sonoridade específica. Não apenas isso, mas também a

busca por atitudes e concepções condizentes com essa sonoridade e vice-versa.

É óbvio dizer que fazer parte de um grupo de metal não é tão simples. Apenas

agregar símbolos, repertórios e concepções não cria um sentimento do que seja

“autenticidade” nesse meio. Dessa forma, permanece a ideia do que seja “verdadeiro” ou

“falso” metal. “Autenticidade”, nesse caso, parece ser um código específico e compartilhado

por um grupo de pessoas, de forma que a aceitação delas nesse contexto implica em ações,

pensamentos e concepções “autênticas”. No entanto, isso não se mostra como uma coisa

simples de se definir. Se for considerado que cultura se molda com base nos conflitos

resultantes de uma diferença intracultural (CAMBRIA, 2008), pode-se dizer que não há, de

fato, um consenso homogêneo do que seja “autenticidade”. Muitas são as variantes dessa

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concepção dentro de um mesmo contexto sociocultural. Mesmo assim, a ideia de aceitação e

negação é exercida na comunidade metal.

O problema com isso é que não existe uma definição conjunta do que em heavy metal pode ser considerado “verdadeiro” metal. Enquanto os fãs de metal são obcecados com a ideia de autenticidade, as definições variam amplamente entre eles. Por causa das dificuldades que estão associadas com quaisquer meios de definir uma subcultura, muitos, mesmo com a comunidade metal, discordam, frequentemente bastante raivosos, no que é na verdade metal ou não. Mesmo usando termos técnicos ou definindo o metal baseado na instrumentação ou virtuosismo em um instrumento como a guitarra é difícil usar isso como um verdadeiro árbitro do verdadeiro metal. Um exemplo é uma banda como The Who, que claramente possuía um guitarrista habilidoso o suficiente para ser aceito pelos fãs de metal, mas por algumas qualidades, tanto tangíveis ou intangíveis, não são consideras pelos fãs de heavy metal (mesmo aqueles quem também são fãs do The Who)1 (PHILLIPS; COGAN, 2009, p. 7) (Nossa tradução).

O exemplo do The Who é bastante ilustrativo. Essa banda, por mais que tivesse

características que remetessem ao metal, não era considerada como tal. Isso porque nem

banda, nem público compartilhavam da ideia do que é pertencer a um grupo de metaleiros.

Outra forma de pensar em como é mutante a ideia de “autêntico” e de “verdadeiro metal” é

perceber como algumas bandas que, a princípio eram consideradas como de heavy metal

agora não são mais:

Mas, nesse ponto, ocorre uma espécie de reclivagem da música metálica [década de 1980]. As bandas mais abertas, próximas às temáticas dionisíacas, foram reclassificadas como hard rock; as que mantinham um núcleo mais duro, ligadas às temáticas sombrias ou à exacerbação do heavy metal, continuaram sendo reconhecidas como

1The problem with this is that there is not one set definition of what heavy metal is or what can be

considered “true” metal. While metal fans are obsessed with the idea of authenticity, the definitions vary widely among them. Because of the difficulties that are associated with any means of defining a subculture, many, even within the metal community, disagree, often quite angrily, on what is actually metal and what is not. Even using technical terms or defining metal based on instrumentation or virtuosity on an instrument such as a guitar is difficult to use as an arbiter of true metal. An example is a band such as the Who, who clearly possessed a guitarist skilled enough to be accepted by metal fans, but for some qualities, either tangible or intangible, are not considered metal by fans of heavy metal (even ones who are also fans of the Who).

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referências pelos fãs. Bandas já estabelecidas como Iron Maiden e Black Sabbath foram reiteradas como ícones da trajetória metálica, ou seja, hoje é possível pensar o metal antes e depois dessas bandas (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 25).

Nessa situação descrita por Janotti Junior, pode-se perceber que a ideia do que seja

metal foi “revista” pelos próprios fãs e crítica. Bandas que antes eram heavy metal passaram a

ser hard rock (Gun’s Roses, Van Hallen, entre outras) e outras foram reafirmadas, como

ícones e clássicos do metal. Sendo assim, pode-se dizer que há sim um escopo do que seja

“autenticidade” nas cenas metal, mas trata-se de concepções específicas, em constante

mudança e que variam de comunidade para comunidade – por mais que haja práticas e

concepções mundializadas (ORTIZ, 2006) do que venha a ser metal.

Pensar em metal, portanto, pode ser conceber uma comunidade fechada, segregada.

Mas nem sempre é assim. Fato que comprova isso é a recente configuração da cena roqueira

montes-clarense, que inclui o metal. Como já dito anteriormente, os eventos de rock na cidade

têm recebido todo tipo de pessoas, já que a busca da cena é por reconhecimento. Os eventos

de metal, por sua vez, se tornaram palco para atores múltiplos e não apenas para aqueles que

têm esse gênero como seu norte musical. Isso não muda o fato de que a cena do rock seja

segmentada, mas as fronteiras dessa segmentação não são tão rígidas quando a necessidade é

de se manter em um contexto.

Ainda em relação à citação feita acima, percebe-se que determinadas técnicas ao se

tocar não necessariamente são definidoras do que é ou não metal. A instrumentação das

bandas, o uso de elementos como o solo de guitarra, o pedal duplo na bateria (ou dois

bumbos), riffs, licks, nada disso faz sentido se não é embasado em um discurso específico do

meio do metal. Mesmo porque elementos musicais por si só não são o discurso musical e

podem ser recorrentes em outros gêneros. Nesse sentido, a definição de música feita por

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Blacking é bastante útil, ou seja, como “um sistema de modelamento primário do pensamento

humano e uma parte da infraestrutura da vida humana2 (BLACKING, 1995, p. 223) (Nossa

tradução). Sendo assim, “música não é tão imediatamente uma linguagem compreendida que

pode ser esperada em produzir respostas específicas como ela é uma expressão metafórica do

sentimento. Ela é primariamente sensória e não-referencial3 (...)” (idem, p. 35) (Nossa

tradução). O fazer musical estaria, portanto, repleto de concepções que são criadas e

manifestadas comunitariamente. Os elementos sonoro-musicais são sim parte desse fazer mas,

são primariamente embasados em “fatos conhecidos, característica não da experiência

objetiva por si só mas de nossa consciência da experiência objetiva4 (FERGUSON apud

BLACKING, 1995, p. 35) (Nossa tradução). Um exemplo disso é ver que há bandas de

metal que são consideradas como posers ou “não-autênticas” pelo fato de serem “comerciais”

ou “vendidas5”, mesmo que incorporem para si elementos musicais que tornem sua

sonoridade idêntica à de qualquer grupo underground aceito pela comunidade metal. Sendo

assim, a sonoridade não é a única marca que define o que é metal, mas, também a parte visual,

de performance, entre outras, mas que também não definem o meio metaleiro por si só. O que

importa, na verdade, é a resultante cultural concebida pelo ideário dessa comunidade como o

que seja ou não metal.

A seguir, serão feitas algumas considerações acerca do metal: em escala mundial,

depois um breve escopo de sua influência no Brasil, chegando até Montes Claros,

desencadeando a prática que na cidade acontece, nos dias atuais.

2 (...) a primary modeling system of human thought and a part of the infrastructure of human life. 3 Music is not so much an immediately understood language which can be expected to produce specific

responses as it is a metaphorical expression of feeling. It is primarily sensuous and nonreferential (…) 4 (...) knowable facts, characteristics not of objective experience itself but of our consciousness of

objective experience. 5 Nas seções “Música Popular” e “Rock Independente em Montes Claros” essa questão foi melhor

discutida.

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Definir a origem do metal – que era chamado de heavy metal – é bastante

complicado. São diversos os argumentos que tratam da origem dessa prática. A origem do

próprio termo é confusa. Isso porque, por estar situado em um meio ligado à imprensa, ao

show buisiness, grande é a disputa pelo pioneirismo, como uma forma de marketing. O nome

heavy metal aparece em diversas instâncias, mas, principalmente, pela mão dos críticos e

jornalistas musicais. Muitos deles disputam a autoria do termo que viria a nomear todo um

gênero musical, mas que a princípio era apenas um “adjetivo” empregado para definir certa

sonoridade que emergiu no cenário do rock. Não apenas os jornalistas, mas também

escritores, como o beatnik William S. Burroughts, que cita em uma de suas obras o “heavy

metal kid”. Isso, a princípio, em contexto britânico, local que pode ser considerado como o

palco do surgimento das primeiras bandas de heavy metal. Já em solo norte americano, a

música Born to Be Wild, da banda Steppenwolf, em um de seus versos, cita: “(...) heavy metal

thunder (...)”. Mesmo assim, o que se pode fazer, mais do que dizer que há uma origem, ou

um criador para o nome heavy metal é explicitar tal discussão e pluralidade de fatos quase

concomitantes que, com certeza, em conjunto, marcam a origem dessa prática musical. Mais

do que isso, o surgimento de bandas que “cabiam” no rótulo heavy metal tanto na Europa

quanto na América mostra que essa prática, desde seus primórdios, já compartilhava de certo

“senso de mundialização”, ao mesmo tempo em que apresentava características e ideologias

parcialmente distintas.

Além disso, há outra questão: heavy metal ou apenas metal? A princípio, o termo

usado era sim heavy metal. Contudo, “(...) até o fim da década de 1970, não havia uma

definição precisa do que fosse Heavy Metal, nem sequer uma aceitação dessa nomenclatura

por grande parte das bandas da época” (RIBEIRO, 2010, p. 30). Heavy metal definia –

mesmo sendo um termo não completamente aceito – toda a prática de uma época.

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Posteriormente, esse termo ficou pequeno para abranger a pluralidade de subgêneros que dele

surgiram. Metal, por sua vez, se tornou um sufixo, um gênero empregado para definir uma

grande quantidade de subgêneros que compartilham desse discurso, mas com vieses e

características diferentes, segmentadas.

Voltando para a origem do heavy metal, enquanto prática musical – como prática

musical porque não é apenas o “som” que é importante, mas também todas as significações

que por seu meio são produzidas –, mais uma vez encontra-se uma confusão. É difícil

argumentar que haja uma banda em específico que “criou” o gênero heavy metal e o estilo

heavy metal. Isso porque são muitas as tendências, as bandas, as práticas. Dessa forma, pode

um gênero existir de verdade até que ele seja nomeado6 (PHILLIPS; COGAN, 2009, p. 4)

(Nossa tradução)? Essa pergunta se mostra de fato interessante, pois pode-se dizer que sim, a

prática musical que posteriormente foi chamada de heavy metal existia antes mesmo de

receber tal nome. O confuso seria descrever quais bandas eram tidas como “legítimas”

representantes dessa música.

Pode-se dizer que o heavy metal, mesmo antes de receber seu nome, advém do final

dos anos 1960 e início do anos de 1970. A criação desse gênero (ou subgênero, como afirmam

alguns autores) vem da configuração de sonoridades que, como tendência, passaram a

configurar as práticas de algumas bandas. O termo heavy preza por si só pela ideia de “peso”,

o que remete a sonoridades características que foram se desenvolvendo ao longo da história

desse gênero. É claro, nem sempre a partir do momento em que o heavy metal foi concebido.

Muitos elementos vieram de outras práticas. A guitarra distorcida, por exemplo, é fruto de,

entre muitos, das experimentações de Jimmy Hendrix.

6 Can a genre truly exist until it is named?

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Mas qual foi a primeira banda de heavy metal propriamente dita? Parece consenso

que muitos autores definam bandas como Black Sabbath e Led Zeppelin como as primeiras

bandas de heavy metal. Walser (1993) amplia essa discussão, afirmando que pode encontrar

estruturas e concepções musicais próprias do heavy metal antes mesmo dessas bandas. Ele

exemplifica com a banda Iron Butterfly e com a sua música In-A-Gadda-da-Vida. De acordo

com o autor, já são perceptíveis elementos como o riff 7, uma ideia musical recorrente e

condutora da música, muito frequente e recorrente no heavy metal:

Figura 20: riff da música In-A- Gadda-da-Vida, da banda Iron Butterfly

Entretanto, falar de recorrências de práticas musicais que antecedem ao gênero

propriamente dito não é falar do gênero em si. Na verdade, Walser tem consciência disso, ele

apenas chama a atenção para o fato de que o heavy metal não nasceu do nada. Mais

importante, Iron Butterfly é uma banda norte-americana e é parte da formação da consciência

musical de um gênero que supostamente despontou na Inglaterra:

Mas não se pode alinhar o surgimento do heavy metal somente à Inglaterra. Fruto das transformações midiáticas que deram origem ao rock, ele também é permeado por todos os aspectos que caracterizam os processos comunicacionais a partir da mundialização cultural do século XX. Desse modo, ao mesmo tempo em que surgiram os ingleses do Black Sabbath e Led Zeppelin, bandas oriundas dos EUA, como Iron Butterfly e Steppenwolf, também misturavam sonoridades

7 “Riffs podem ser definidos como pequenas ideias composicionais que servem como base harmônica

na música. São motivos que funcionam e organizam a estrutura formal da peça. Quase sempre os riffs são construídos a partir dos power chords, ou sobre uma tônica repetida (trêmolo) com variações melódicas em outras notas. Apesar de, algumas vezes, delinearem uma progressão harmônica tradicional, na maioria das músicas, além de agregar uma interação harmônica, o riff de guitarra desenvolve uma ideia melódica que é muito característica” (RIBEIRO, 2010, p. 33).

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blues, psicodelismo e distorção para criar suas expressões musicais (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 22).

Sendo assim, o heavy metal é fruto de uma conjuntura anterior, na qual os elementos

que futuramente comporiam o gênero já estavam sendo articulados. Essa articulação, por sua

vez, transcende os limites geográficos. Dessa forma, a música e o estilo de bandas como o

Black Sabbath e Led Zeppelin são resultado do trânsito de diversos elementos musicais e

extramusicais, num fluxo que estava não apenas na Inglaterra, mas também nos Estados

Unidos e que já ganhava o mundo, profundamente ligado à difusão do rock. Não apenas isso,

mas esse foi um momento de criações e experimentações, o que acabou resultando em uma

nova – ou em novas – prática musical. Mas, na busca de um marco histórico, serão

consideradas como pivô do surgimento do heavy metal as bandas Black Sabbath e Led

Zeppelin, ambas inglesas. Isso porque, ao que parece, elas trazem consigo, além de elementos

musicais que mais tarde se tornariam base para a cultura musical do heavy metal, novas

concepções de caráter ideológico, em tempos de dificuldade econômica e pessimismo com a

crise do petróleo, no início da década de 1970:

Em termos estritamente musicais, pode-se dizer que a distorção e a intensidade sonora já estavam estabelecidas como práticas musicais roqueiras desde o final dos anos 60. O caso do Led Zeppelin é exemplar, seu primeiro disco, lançado em 1969, é uma releitura distorcida de padrões e temas tradicionais do blues, ao lado das influências do rock sessentista. O próprio nome da banda carrega essa intertextualidade, além dos elementos pesados, Led Zeppelin lembra o nome de bandas psicodélicas como Jefferson Airplane. Mas, ao contrário de seus ancestrais, um zepelim de chumbo parece convidar o roqueiro a viagens mais abissais, afinal, um zepelim de chumbo [tradução literal do nome da banda] não pode voar (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 22).

A época do Led Zeppelin, bem como do Black Sabbath e de outras bandas que não

tiveram tanta evidência na história, como já dito acima, era de recessão e a melancolia e

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obscuridade expressa nas letras e melodias dessas bandas não era mais do que um reflexo de

momentos difíceis, que atingiam principalmente a classe trabalhadora da Inglaterra. Vale

dizer que o punk, movimento pessimista e radical em relação aos problemas a sua volta surgiu

da mesma classe operária que sofria com problemas econômicos diversos. A música, ou

melhor, essas manifestações musicais são, por sua vez, reflexos de uma conjuntura maior, que

era combatida e expressada através do fazer musical.

Mas em termos estritamente sonoro-musicais, pode-se dizer também que o Black

Sabbath, em específico, foi responsável – ou responsabilizado – pela introdução do trítono8

no heavy metal. Não que as músicas ao longo da história ocidental – considerando a trajetória

de um grupo de teorias em específico – nunca tenham utilizado tal intervalo em suas

composições. Na verdade, o trítono está presente em acordes diminutos, em tétrades de

função dominante, na escala de blues, entre outros, considerando a música “tonal” como

referência. No tema de abertura do seriado “The Simpsons”, no tema de “West Side History”,

em “Gotterdammerung”, de Wagner, em todas essas músicas podem ser encontrados trítonos,

em sequências melódicas ou harmônicas. A grande falácia a respeito desse intervalo no heavy

metal tem a ver com a suposta significação “demoníaca” que essa estratégia composicional

adquiriu. Em tratados da idade média, a sonoridade do trítono era evitada e, portanto, sua

utilização, pelo fato de se acreditar que o seu soar indicava algo que fosse relacionado ao

demônio. Sendo assim, o trítono ganhou o nome de “intervalo do diabo9”, resultado de uma

época na qual a representação que se tinha dessa sonoridade era justamente a descrita.

Enquanto processo de formação de uma consciência cultural sobre música, isso lembra o

modelo tripartite de Merriam (1964), no qual os conceitos sobre música (pensamentos sobre o

8 Trata-se de um intervalo de três tons inteiros ou de um intervalo de quarta aumentada ou quinta

diminuta, quando tratado harmonicamente. 9 Diabolus in musica.

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trítono) influenciaram nos comportamentos (estranhamento do trítono) e, por conseguinte, o

produto musical também foi afetado (músicas evitando o uso do trítono).

Mas no caso do Black Sabbath, alega-se um desconhecimento inicial sobre tal

significado do trítono. Segundo Tony Iommi (guitarrista e compositor de muitas das músicas

da banda), em uma entrevista, ele nunca compôs músicas para se referir ao diabo:

Antes de começarmos, fazíamos um lance mesclado entre blues e jazz. Nunca pensei a respeito. Eu não sabia ler música, eu só tocava. Não haviam termos pressupostos para mim. Jazz, blues, rock e música clássica sempre estiveram em minhas composições (disponível em: <http://www.cifraclubnews.com.br/noticias/3497-tony-iommi-eu-nunca-quis-fazer-musica-para-invocar-satanas.html?utm_source=twitter&utm_medium=tweets&utm_campaign=divulgacao>. Acesso em: 15 out. 2010).

Mesmo assim, a ideia de obscuridade permaneceu nas músicas do Black Sabbath e

em muitas outras bandas de heavy metal. Um dos motivos foi a rentabilidade desse mito. O

sucesso alcançado por esses grupos fez com que as próprias bandas ou seus produtores

investissem em temáticas sombrias em capas de álbuns, letras de músicas, elementos cênicos,

performáticos e composicionais. Isso acabou se tornando um ingrediente na busca de

concepções e sentidos para criação musical e um elemento característico do heavy metal. Em

outras palavras, o trítono se tornou um elemento recorrente, até mesmo nas composições mais

recentes.

Como dito e voltando à questão dos contextos nos quais surgiu o heavy metal, a

tendência sombria se mostra muito mais como reflexo de um pessimismo local e reflexão

sobre a precariedade da vida de um grupo do que adesões explícitas a práticas ocultistas ou

satanistas. Além disso, a influência sonora do trítono vem muito mais de músicos ligados ao

blues do que de músicas da idade média. De certa forma, a sonoridade do heavy metal

também é associada por muitos autores (JANOTTI JUNIOR, 2004; WALSER, 1993;

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MUGNAINI JR, 2007) ao blues, ou seja, à sonoridade da música “negra” norte-americana.

Muito do que se pensa enquanto sonoridade heavy metal, no uso de escalas, formação de

acordes, corporalidade, entre outros elementos pode ser atribuído à influência do blues e do

jazz. Mugnaini define o heavy metal da década de 1960 como “blues superamplificado, com

guitarra, contrabaixo e bateria socando riffs em uníssono e vocais igualmente estridentes, com

sonoridade e temática aflitivos e tenebrosos” (MUGNAINI JR, 2007, p.45). Essa definição é

bastante simplista em relação à quantidade de informações que aqui já foi exposta e não faz

jus à complexidade do heavy metal, enquanto música e enquanto cultura. Mas a ênfase na

ideia do blues é bastante útil nesse caso. As músicas do Black Sabbath e do Led Zeppelin são

profundamente influenciadas pela prática do blues. Mas, dizer que o blues era uma prática

essencialmente “negra” é um pensamento equivocado, considerando seu contato com o heavy

metal. Blues não é o “elemento negro” do heavy metal, nem o “elemento branco”, mas sim

uma influência que é, antes de mais nada, sonoro-musical. Além do mais, o blues está ligado

ao rock desde seus primórdios. Nessa época, já existiam “brancos” que tocavam rythm’n

blues, “negros” que tocavam rock. Na época do heavy metal, Eric Clapton já tocava “blues

amplificado”, em alto volume e para grandes massas, bem como os primeiros músicos do

metal se inspiravam em figuras como Robert Johnson, bluesman “negro”. “Negro” e

“branco”, nesse caso, são muito mais contextos e meios de práticas musicais do que qualquer

outra coisa. Como visto, de uma forma ou outra, há uma enorme fluência de elementos e

práticas de uma para o outro. Sendo assim, é rechaçada neste trabalho qualquer indagação que

remeta a uma determinante biológica de cultura.

Mas não apenas de elementos “negros” se influenciou o heavy metal. Segundo

Walser (1993), há uma profunda influência e apropriação da música “clássica” (“erudita”)

nesse meio. Desde a época do rock progressivo, ou até antes, já era possível encontrar

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músicos com o que esses autores chamam de “treinamento clássico”. Bandas como o Deep

Purple, um dos expoentes do heavy metal, faziam experimentações dessa natureza, além de

sua visível – ou audível – influência do blues. Nesse sentido:

Enquanto a música blues pode ser vista como uma influência fundacional que tem influenciado pesadamente a evolução do heavy metal, a influência clássica é muito menor então, e de fato tem funcionado como uma influência que mais frequentemente é sobreposta sobre a música ao contrário de fornecer uma fundação para ela (PHILLIPS; COGAN, 2009, p. 9) (Nossa tradução)10.

Apesar do que possa parecer, a presença da influência “erudita” no heavy metal é

bastante profunda. Na continuidade da história desse gênero há bandas e músicos que podem

comprovar esse argumento. O que é importante, na verdade, é compreender que

(...) relacionar a sonoridade metálica somente aos lamentos do blues seria deixar de lado os encontros que envolveram as musicalidades brancas e afro-americanas na constituição do rock. Na verdade, os relatos construídos por fãs, críticos e músicos acabaram dando ênfase à melancolia dos antigos escravos norte-americanos, o que atribui ao heavy metal sentidos de luta por liberdade e espaço próprio. Mas, se por um lado, pode-se reconhecer a distorção oriunda do blues, por outro, é possível reconhecer a influência do psicodelismo não só na sonoridade, como também nas alusões a mágicos, bruxas e demônios. Realçar somente os aspectos bluesy do rock pesado é esquecer que se trata de uma música, que, em geral, é produzida e consumida por jovens brancos, o que envolve uma série de negociações culturais relacionada a esse fato (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 20).

Essas influências que até agora foram enfatizadas no contexto inglês também fizeram

toda a diferença em solo norte-americano. Entretanto, lá, o que foi inicialmente classificado

como heavy metal se mostrou um pouco diferente, dado as influências que apareceram, bem

como a diferença entre um contexto e outro (O’CONNOR, 2002). Bandas como o

10 While blues music may be seen as a foundational influence that has heavily influenced the evolution

of heavy metal, the classical influence is much less so, and in fact has functioned as an influence that most often is overlaid upon the music as opposed to providing a foundation for it.

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Steppenwolf e Lynyrd Skynyrd, influenciadas muito mais pelo que se chamava de country rock

– que também tem ligação com o blues – do sul dos Estados Unidos apresentava uma temática

um tanto diferente. Dessa vez, a ligação estava com a emancipação, a liberdade, possuir um

carro, uma motocicleta, ser selvagem (Born to be wild). A utilização de riffs, solos virtuose de

guitarra e a distorção eram também elementos importantes nessas músicas. A música Free

Bird, do Lynyrd Skynyrd tem cerca de dez minutos de duração e aproximadamente cinco deles

são um solo de guitarra, expressando a ideia de liberdade, de expansão, aliada à letra que

enfatiza: “Cause I’m free as a bird now, and this bird you cannot change11”. “Desse modo,

temáticas caras ao universo metálico, como álcool, drogas, sexo e liberdade automotiva

possuem fortes influências de Ted Nugent, Lynyrd, Skynyrd e Molly Hatched” (JANOTTI

JUNIOR, 2004, p. 23).

Considerando então a atuação dos públicos e críticos de heavy metal, muitas dessas

bandas que acima foram citadas logo passaram a se enquadrar em outros rótulos. Isso porque

elas não cabiam mais no que viria a ser considerado como metal. Mas essas classificações são,

no mínimo, póstumas à época em que esses grupos fizeram sucesso.

No final da década de 1970 e início de 1980 novas influências começam a se

configurar em relação ao heavy metal. Uma delas vem do guitarrista Ed Van Hallen, que

começa fazer experimentações e desenvolve novas formas de se adaptar os solos de guitarra,

riffs e distorções. Na verdade, ele retoma o que Walser chama de estudos em guitarra, que

seriam justamente essas ações já citadas. Porém, mais importante, aparece um novo

movimento de heavy metal, do qual surgiram bandas que são consagradas até hoje. Trata-se

do New Wave of British Heavy Metal. Mais uma vez originado na Inglaterra, esse grupo

formado por uma grande quantidade de bandas fez grande sucesso e foi representado por

11 Porque eu sou livre como um pássaro agora, e esse pássaro você não pode mudar.

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grupos como o Iron Maiden, Def Leppard, Venom, Girlschool (uma banda formada só por

mulheres), Motörhead, entre muitas outras. Esse movimento surge num momento no qual se

acreditava que o metal estava definhando, se desligando de suas “raízes”, estagnado e ainda

fundado em seus primeiros nomes (Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple). Além disso, o

punk britânico se disseminou de tal maneira que o heavy metal já não tinha tanto espaço ou

notoriedade.

O movimento parecia ter uma necessidade de “resgate” do heavy metal, ou melhor,

de suas características mais marcantes. Da mesma forma, reflorescem os riffs, os solos

virtuose de guitarra, vocais “gritados” ou cantados em regiões extremamente graves ou

agudas, figurinos extravagantes, temáticas sombrias (ou não), tudo isso associado a músicas

que eram executadas em maior velocidade, o que garantiu uma característica peculiar a essa

onda. Além disso, os shows se tornaram espetáculos ainda maiores, com todo tipo de aparato

visual, no sentido de dar suporte à prática sonora e resultando em uma performance de

grandes proporções:

Os shows de heavy metal se tornaram crescentemente espetaculares como músicos performavam em frente a palcos para serem acompanhados por shows de luz, pirotecnia, e outros efeitos especiais. O tour incessante desses shows impressionantes construíram o público metal na década de 197012 (WALSER, 1993, p 10) (Nossa tradução).

Outra característica foi certo “afastamento” da forte tendência Bluesy apresentada

principalmente por bandas como o Deep Purple ou Led Zeppelin. Na verdade, o próprio Black

Sabbath aderiu a essa nova concepção.

12 Heavy metal shows became increasingly spectacular as musicians performed in front of elaborate

stage sets to the accompaniment of light shows, pyrotechnics, and other special effects. Incessant touring of these impressive shows built the metal audience in the 1970s.

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Na verdade, muitas bandas do New Wave of British Heavy Metal acabaram se

tornando o que ficou conhecido como o metal “tradicional”, ou seja, a base pela qual o metal

passou a ser comparado como antes e depois. A “tradição”, portanto, do que seja metal acaba

por ser inventada (HOBSBAWN, 1997), no sentido de consolidar uma prática que, de tanto

sucesso que alcançou, acabou ganhando ares de “início do heavy metal”, pelo menos no senso

comum. Nos dias de hoje, é comum se referir com o termo heavy metal a muitas dessas

bandas que integraram o New Wave of British Heavy Metal.

O sucesso que essas bandas alcançaram, inclusive, foi talvez maior do que o

esperado. Esses grupos dominaram a década de 1980, influenciando, inclusive, uma grande

quantidade de bandas de hard rock – sem deixar de considerar que algumas bandas de hard

rock já foram consideradas como de heavy metal. Vale dizer que muitas delas foram

incorporadas por majors e fazem parte dessas corporações até hoje. Esse é o caso do Iron

Maiden, que tem contrato com a EMI e que, inclusive, acaba de lançar seu novo CD, Final

Frontier por ela. Mesmo assim, muitas comunidades underground de metal tendem a

reconhecer o Iron Maiden como um grupo que é “autêntico” e “tradicional”.

Mas não foi apenas o New Wave of British Heavy Metal que despontou na década de

1980. Nos Estados Unidos e em várias partes do mundo, o heavy metal passou a influenciar a

formação de bandas e novas tendências musicais. Nessa época surgiram bandas como o

Scorpions (Alemanha), AC/DC (Austrália), Europe (Suécia), entre outras. Além de Van

Hallen, outro guitarrista desponta como um virtuose. Trata-se do sueco Yngwie Malmsteem,

“cuja extensão das tendências neoclássicas de metal influenciaram grandemente outros

guitarristas de heavy metal. A fusão de Malmsteem de heavy metal com retórica musical

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barroca aumentou o clamor pela proeza técnica e inspirou legiões de jovens imitadores”13

(WALSER, 1993, p. 12) (Nossa tradução).

Em resposta, sob influência e negação do New Wave of British Heavy Metal surge,

nos Estados Unidos, um novo subgênero do metal, que seria um dos responsáveis pela grande

fragmentação de subgêneros que se estabeleceu nessa prática. Trata-se do thrash metal.

Derivativo de outra prática exponencial nos Estados Unidos, no caso, o speed metal, thrash

metal advém de uma grande influência do punk. Entretanto, não se trata necessariamente do

punk britânico, mas de um movimento norte-americano, inspirado nele: o punk hardcore.

Sendo uma espécie de “resgate” do punk, ele se vale do lema Punk is not Dead: “O termo

hardcore, como eu o utilizo, é simplesmente um sinônimo para o punk que os norte-

americanos inventaram no começo dos anos 80. A música hardcore é em geral mais rápida do

que a música dos anos 70, mas as ideias e as pessoas envolvidas são virtualmente as mesmas”

(O’HARA, 2005, p. 22).

O’Hara tem razão nos pontos que apresenta. A música muda de forma significativa,

pois a busca era por maior velocidade de execução. A natureza contestatória e o lema Do it

yourself seguiam. Acontece que as bandas de metal da cena underground dos Estados Unidos

absorveram bem essas ideologias – inclusive musicais – e as incorporaram a um movimento

que pensava em músicas diferentes do que se tinha como heavy metal até o momento.

Uma banda do New Wave of British Heavy Metal que inspirou – e muito – a

formação do speed metal foi o Motörhead, que, segundo Walser, já tocou para plateias punk e

heavy metal e sua sonoridade, agressiva, rápida e distorcida trouxe a inspiração necessária

para desencadear o que a princípio foi chamado de speed metal. Ele foi desenvolvido na

região de San Francisco, de onde surgiram bandas como Mettallica e Megadeth. Já na cidade

13 (…) extension of metal's neoclassical tendencies greatly influenced other heavy metal guitarists. Malmsteen's fusion of heavy metal with Baroque musical rhetoric upped the ante for technical prowess and inspired legions of young imitators.

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de New York a banda exponencial foi o Anthrax. “Quando as bandas de speed metal

começaram a incorporar mais influências punk, tais como um estilo vocal rosnado e letras

sarcásticas ou críticas, o estilo foi chamado thrash metal, refletindo uma qualidade batedora

de moção na música e dança14” (WALSER, 2010, s.p) (Nossa tradução).

Sendo assim, thrash metal se tornou o que é – ou era – a partir de sua fusão com

algumas características do punk. Entretanto, tal subgênero musical é mais do que música

rápida, em alto volume com guitarras num nível de distorção ainda maior do que as bandas de

heavy metal “tradicionais”, vocais gritados, ou rosnados. Todos esses elementos estão sempre

alocados em um fazer musical de absoluto controle. Dessa forma, apesar do alto volume e da

distorção, tudo isso é articulado em músicas que necessitam de guitarristas que dominem bem

o fazer desse estilo. O virtuose é necessário, pois todos os solos e riffs das músicas thrash

metal necessitam de muito controle de métrica, conhecimento de escalas musicais e

articulação dessas em solos complexos, complexos o suficiente, inclusive, para transgredi-las.

Os arranjos também são complexos, necessitando de coordenação entre os músicos. Dessa

forma, tudo o que um músico faz é diretamente articulado com outro, como por exemplo, o

acompanhamento de riffs simultaneamente pela bateria e baixo. Sem um preparo específico

para se atuar nessa cena musical é difícil que os músicos se sobressaiam. Por preparo pode-se

entender uma grande quantidade de coisas, que vão desde estudar música em uma escola

especializada até aprender com os amigos, tocando em shows, praticando em casa, etc. A

sonoridade resultante é significada num contexto sonoro tenso, fruto da constante emissão

sonora, da articulação musical e quase supressão de pausas sonoras e sua utilização como

forma de manutenção dessa tensão. Um exemplo disso é o que Janotti Junior (2004) trata

como o uso de dois bumbos na bateria, fazendo com que, em alguns momentos da execução,

14 When speed metal bands began incorporating more punk influences, such as a growling vocal style and sarcastic or critical lyrics, the style was called thrash metal, reflecting a thrashing quality of motion in music and dance.

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todos os tempos do bumbo sejam tocados, geralmente em compassos quaternários e em

conjuntos de trinta e duas batidas por compasso. É claro que há variantes, bem como músicas

e momentos musicais mais lentos. Contudo, a ideia de tensão é mantida mesmo assim.

Por toda essa prática, muitos grupos de thrash metal acabaram saindo do meio

underground e atraindo a atenção de grandes gravadoras. O Metallica, Slayer, Megadeth e

Anthrax acabaram se tornando o que Walser classifica como Big Four of thrash metal15. Isso

por um lado, pois, por outro, a cena thrash metal era basicamente underground e seu discurso

era de prezar pela manutenção de uma prática que fosse diferenciada das bandas mais

“comerciais”. Nesse sentido, a banda Metallica acabou por ser cooptada, lançando músicas

cada vez mais distanciadas de seu universo de origem. Isso não se tornou apenas um

distanciamento sonoro-musical, mas a própria banda passou a ter comportamentos mais

próprios do mainstream. Dessa forma, “é, no mínimo, irônico, notar que o Metallica, uma das

bandas mais representativas do período, hoje encabeça o lobby das grandes gravadoras contra

a difusão musical na internet via MP3, o que mostra a antropofagia que envolve a indústria

fonográfica” (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 27). Mesmo assim, como diz Walser, o thrash

metal marcou profundamente o universo do heavy metal, exatamente a partir do momento em

ganhou o grande mercado fonográfico.

Outra prática que foi fortemente influenciada pela cena thrash metal foi o death

metal. Death metal é uma categoria que designou muitas bandas que também eram thrash,

como o Slayer e Cannibal Corpse. No quesito da prática musical, pouco se diferencia, em

aparatos sonoros do thrash, já que continuam a prevalecer os riffs e solos característicos, as

guitarras fortemente distorcidas, a coordenação coletiva de músicos em arranjos virtuose,

rápidos e representantes de toda uma atmosfera de agressividade. Entretanto, dessa vez, o uso

15 Quatro Grandes do thrash metal.

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de temáticas ainda mais violentas, como tortura, mortes, guerra, peste, entre outras alude para

um discurso que tenta retratar a verdade e a visão pessimista sobre o mundo, mais do que as

críticas simplistas que o associam ao satanismo ou a práticas ocultistas. A busca, na verdade,

dentro desse discurso de apresentar de forma “crua” os “problemas” do mundo, as misérias

humanas é de cada vez mais agressividade, peso, o que resulta em uma música com uma forte

evocação de potência e moção através de sua prática (WALSER, 1993). Quanto mais “peso”,

quanto mais “energia” envolvida na atuação dessas bandas, evocando os elementos que já

foram discutidos, mais elas desencadeiam as reações que lhes são necessárias para obter

aprovação em seu meio. Não apenas isso, elas exercem seu papel musical em seu contexto, de

representar as concepções que são discutidas, elaboradas e exercidas coletivamente.

Entretanto, há sim uma cena musical relacionada ao metal que é diretamente voltada

para temáticas satanistas. Na verdade, ele se mostra, a princípio, como o resultado de uma

“mistura da musicalidade death com temáticas satanistas” (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 31).

O black metal surgiu a partir de bandas como a Venom, que, apesar de, nos dias de hoje, não

apresentar as características de “peso” que são necessárias para a atuação de bandas desse

gênero, foi a grande percussora dessa música. Além da musicalidade, é comum as bandas do

subgênero adotarem nomes de demônios ou relacionados a eles, além de que os próprios

músicos, em alguns casos, também usam codinomes ligados aos mesmo temas. O figurino

está geralmente associado ao uso de roupas escuras e maquiagem em preto e branco. A

atuação dos contextos dessa prática é altamente segmentada, de forma que até seus fãs em

outros países têm dificuldades para encontrar materiais produzidos por seus ídolos,

geralmente bandas localizadas na Noruega, local onde estão as bandas mais prolíficas no

black metal na atualidade. Na verdade, essas bandas se orgulham de sua atuação underground

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e sua intenção é, muitas vezes, a de “esconder” seu trabalho, torná-lo o mais segmentado e

“não comercial” possível.

Ainda falando das bandas de black metal, pode-se dizer que sua atuação tem

ultrapassado os limites dos shows, pois tem levado a atitudes extremas. Uma delas tem a ver

com incêndios em igrejas na Noruega, sob o discurso satanista dessas bandas. Outra tem a ver

com a relação já discutida anteriormente, ligada à “autenticidade”. A aceitação e rejeição no

meio do metal parece estar ligada a questões que definem o que é ou não “autêntico” em seus

mais diversos contextos. Sendo assim, as ações que implicam em rejeição são diversas. No

caso do black metal, pode-se encontrar umas das atitudes mais extremas na busca pelo que

seja “autêntico”. Foi o caso, inclusive, de pessoas ligadas ao gênero consideradas como

“falsas” serem assassinadas. Janotti Junior cita outras atitudes “extremas”, como o “suicídio

do vocalista Dead da Mayhem e o assassinato do músico Euronymos por um dos integrantes

do próprio movimento black metal” (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 32).

Não apenas o trash metal marcou essa grande segregação do que anteriormente era

chamado unicamente de heavy metal. Outras práticas musicais que receberam o sufixo metal

também despontaram nesses contextos. Foi o caso do glam metal. Se, por um lado, as roupas,

atitudes, discursos e ideologias do metal remetem basicamente à força, ao peso e à

representação masculina, o glam metal, pelo menos aparentemente tratou de quebrar essa

concepção. Mas isso se mostra apenas superficialmente. Mais uma vez, qualquer olhar

desatento, numa primeira impressão, diria que se trataria de uma prática que deturpa a

concepção básica de masculinidade do metal. Mas, o fato de músicos de bandas como Mötley

Crüe usarem maquiagens pesadas e figurinos baseados em lingerries não necessariamente se

mostraram como uma representação gay por si só. Na verdade, os músicos dessas bandas,

incluindo os da Twisted Sister, Poison, entre outras, continuaram a representar a ideia forte de

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“masculinidade” do universo metal, entretanto, amparados pelo que Walser chamou de um

“revival da androginia “glam” metal”16 (Walser, 1993, p. 12) (Nossa tradução) . Essa

androginia, na verdade se mostrava como um discurso perturbador, capaz de chocar, ao

mesmo tempo que agregou uma grande quantidade de fãs e acabou se tornando um elemento

também recorrente no que pode se chamar de hard rock (aliás, muitas dessas bandas se

tornaram hard rock), mesmo que outros grupos não tenham de fato aderido à estética glam.

Seria muito para este trabalho designar as particularidades de todos os subgêneros

musicais que se montaram a partir da “segmentação declarada” do heavy metal. O próprio

heavy metal se tornou um subgênero, como já discutido. Além disso, há outros que se

formaram e que merecem citação. O new Metal – também conhecido como nu metal ou nü

metal – parece se distanciar um pouco das bandas do circuito thrash/death/black metal, se

ligando à bandas de alternative metal. Em outras palavras, esses grupos se inspiram em fusões

com o funk, rap, entre outros. Ao mesmo tempo, bandas como System of a Down, Korn e

Linkin Park também são inspiradas por esses meios já citados, também criticam os problemas

da humanidade e alcançaram a grande mídia, com características sonoras que remetem sim ao

universo metal. No entanto, a sonoridade new metal nem sempre é tão aceita por outros

contextos mais “extremos”, “puristas”, ou defensores do “verdadeiro metal”.

O white metal não é necessariamente uma versão oposta do Black metal. Trata-se de

um subgênero que usa de sonoridades recorrentes no metal e se vale de temáticas cristãs. A

intenção tem sido a de pregar valores cristãos através da sonoridade do metal. O doom metal

agrega elementos como o uso de violinos, orquestração, entre outros, além da utilização de

poemas e temáticas medievalistas. O power metal, também conhecido como metal melódico,

com grande representatividade no Brasil, inclusive, se vale da virtuose extrema de todos os

16 (...) revival of “glam” metal androgyny.

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músicos da banda, além da utilização de elementos composicionais oriundos da influência da

música “erudita”, juntamente com arranjos extremamente complexos de guitarra, uso de

pedais duplos na bateria, acompanhamento no contrabaixo condizente com a rítmica da

bateria, além de se valer de temáticas “romantizadas”, quase bucólicas, medievalistas e

remetentes à mitologia grega, misticismo, fantasia, entre outras.

Uma breve varredura no site Wikipédia, cuja elaboração dos verbetes é feita em

conjunto por usuários desse site, mostra o quão diversificado e segmentado é o universo do

metal. Uma grande quantidade de termos pode ser encontrada, como:

avant-garde metal, folk metal, funk metal, groove metal, math metal, metal alternativo, metal

cristão, metal extremo, metal industrial, metal neoclássico, metal progressivo,

metalcore, post-metal, rap metal, sludge metal, stoner metal, symphonic metal, viking metal

(Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Nu_metal>. Acesso em: 20 out. 2010). Outras

buscas mais acuradas poderiam encontrar uma variedade ainda maior de subgêneros, visto que

o metal agrega bandas e cenas ao redor do mundo. Isso confirma a visão de Walser (1993) de

que o metal não é monolítico, que ele se vale de uma infinidade de influências e

resignificações (musicais e extramusicais) para a configuração de discursos específicos,

condizentes com realidades, visões de mundo específicas que são, ao mesmo tempo,

compartilhadas mundialmente.

Dessa forma, o surgimento de determinados expoentes, bem como a difusão – quase

sempre de caráter midiático – e aceitação dos códigos que foram montados em prol do que

seria a definição da cultura – ou das culturas – heavy metal acabou modelando um gênero

musical que, na década de 1980, estava alcançando amplo sucesso, não apenas nos Estados

Unidos e na Europa, mas em todo o mundo. Muitas das bandas citadas acima já faziam turnês

mundiais, o que comprova a grande influência desses músicos sobre outros meios. A

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possibilidade de difusão midiática do metal, através da televisão, revistas, redes de fanzines,

entre outras formas fez com que ele, aos poucos, fosse se tornando uma prática mundializada.

Entretanto, como se pôde notar nas descrições anteriores, o metal, apesar de ter

alcançado as paradas de sucesso ao longo dos anos 1980, teve sua crise no mainstream,

principalmente nos anos 1990. Isso se refletiu no fim de programas que tratavam do metal na

TV, bem como com o sumiço de bandas das paradas de sucesso. O que, por um lado se

pareceu com o fim do metal teve um efeito bastante diferenciado. Apesar do “sumiço” ou da

perda de representatividade no mainstream, ele acabou se tornando mais segmentado e

fechado em pequenos grupos ao redor do mundo – o que faz com que esse gênero tenha uma

quantidade enorme de seguidores no mundo inteiro. Ao mesmo tempo, bandas “menos

ortodoxas” no metal (como no caso do System of a Down, já citado) conseguiram se integrar

ao mainstream e as já consagradas, Metallica, Iron Maiden, Black Sabbath, Ozzy Osbourne,

Deep Purple, entre outras continuaram com grande visibilidade e presentes principalmente

pela mão de grandes conglomerados midiáticos, apesar de não serem consideradas como

“vendidas” ou “comerciais” pela maioria dos fãs. Sendo assim, o metal não “acabou”, sequer

perdeu força. Pensar de forma tão simplista é entender – erroneamente – que uma

manifestação musical só tem êxito quando diretamente articulada e alavancada pela indústria

fonográfica. Entretanto, na verdade, o metal tem mostrado que é possível rearranjar os

aparatos midiáticos a fim de se conseguir uma grande quantidade de contextos musicais que

se articulam em um fazer mundializado, representando visões de mundo e concepções

musicais e extramusicais específicas, com sucesso.

Considerando então que o metal é uma prática que tem alcançado o mundo, se

desenrolando assim em práticas diversas que, por um lado se integram a fazeres

mundializados (ORTIZ, 2006) e, por outro, à manifestação de concepções específicas aos

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contextos nos quais elas se adaptam e são resignificadas, pode-se compreender que o metal

também se desenvolveu no Brasil. O resultado disso foram práticas e cenas que estão em

constante movimento e mudança, até os dias de hoje.

Historicamente, o metal parece chegar ao Brasil na década de 1970. Entretanto,

assim como se fala em influências anteriores e precursoras do rock em Montes Claros

(descrito anteriormente), pode-se afirmar que o metal também foi anteriormente influenciado

por outros movimentos musicais que chegaram ao país (rock progressivo, rock’n roll,

Beattles, acid rock, dentre outros). Mas, falar dele como prática e, principalmente, no tocante

à formação das primeiras bandas, é da década de 1970 que se deve tratar.

As influências do heavy metal parecem já ter sido incorporadas na música brasileira

há muito. De acordo com Janotti Junior (2004), a influência do Black Sabbath, Led Zeppelin e

Deep Purple já eram possíveis de ser encontradas nas músicas de bandas como Os Mutantes,

O Terço, A Bolha. Isso no sentido de se encontrarem recorrências de uma espécie de blues

amplificado, daquele mesmo encontrado nas descrições acima feitas sobre as primeiras

bandas de heavy metal. Entretanto, não se pode dizer ao certo que essas seriam as primeiras

bandas de metal do Brasil, mesmo porque, de acordo com Leão (1997), antes do primeiro

Rock in Rio “tudo por aqui era genericamente conhecido como rock n’ roll” (p.199). Pode-se

dizer apenas que essas tiveram influências de elementos que permeavam também as primeiras

bandas de metal, como o uso da guitarra, distorção nessas guitarras, elementos

composicionais do blues, entre outros.

Mas a já citada década de 1970 apresentava algumas bandas que já haviam

incorporado elementos do heavy metal, que despontava mundo afora. Na verdade, o que

parecia mais incorporado nessas bandas era o que Janotti Junior (2004) e Leão (1997)

definem como rock pesado. Em outras palavras, a preocupação com o “peso”, característica

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sonora recorrente no heavy metal estava presente. Foi o caso de bandas como o Made in

Brazil, além de O Peso, que, segundo Janotti Junior, já haviam elementos do rock pesado, ou

seja, o que se pode aludir como uma utilização de elementos do heavy metal. O curioso é

apontar que o nome Made in Brazil se referia a uma característica identitária da banda que,

forçosamente a ligava a uma alusão de uma música produzida no país. Isso porque o nome era

reflexo da impossibilidade de adquirirem instrumentos importados, “bastante superiores

naquela época aos similares nacionais” (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 35). Outro fato

interessante apontado por Janotti Junior seria o contato que, de uma forma ou de outra, as

bandas de heavy metal do exterior sempre fizeram com o Brasil.

Coincidência ou não, a maioria dos shows de astros do rock internacional que aportou em terras brasileiras estava diretamente associado à sonoridade metálica. Os roqueiros brasileiros tiveram oportunidade de presenciar os shows de Alice Cooper em 1974, do Queen em 1981, do Van Halen em 1983 e do Kiss, também em 1983 (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 36).

Acontecimentos como esses, mais o interesse de fãs e da constante inserção desses

personagens na circulação midiática no país fizeram com que, aos poucos, o metal fosse

sendo descoberto, incentivando assim práticas brasileiras.

Todos esses shows foram grandes acontecimentos midiáticos, que, além do congraçamento dos fãs, também possibilitaram o surgimento de uma nova geração de adeptos do rock pesado, uma vez que esses eventos tiveram uma ampla cobertura das grandes cadeias televisivas, destacando os aspectos exóticos dos músicos e da sonoridade metálica (idem).

Ainda seguindo as ideias de Janotti Junior, uma prática metal latente aos

conglomerados midiáticos começou a se estabelecer no país, em especial nos anos 1980.

Essas bandas estavam ainda confinadas em garagens, seguindo carreiras tímidas e

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segmentadas ao longo do país. Em apoio às primeiras bandas de metal emergiram alguns

selos, além de lojas de discos que deram o suporte necessário para a manutenção e influência

desses músicos. Foi o caso de lojas como a Woodstock, na cidade de São Paulo, que era

especializada em materiais heavy metal. Não apenas isso, mas Brandini (2004) cita espaços

como o Carbono 14, também em São Paulo. Esse era um local no qual os fãs se agregavam.

Reinava a possibilidade da pirataria nessa época, pois era possível encontrar materiais

importados que não poderiam ser comprados em uma loja convencional, mas que eram

gravados em fitas K-7, para quem se interessasse.

Ainda sim, tratava-se de um contexto segregado e tímido no país, por diversos

motivos, entre eles a predominância de um processo lento de redemocratização e constante

crise, entre tantas, a econômica, em decorrência da ditadura militar no Brasil. Heavy metal,

como afirma Avelar (2001) e como outras manifestações musicais do país, era fruto de jovens

descontentes com a situação do país, inclusive a musical. Isso porque as representações

sonoras que davam cabo do Brasil “oficialmente”, na verdade não davam conta – e nem dão –

da multiplicidade de vieses que nele existem. De acordo com esse autor, determinadas cenas

ou tribos musicais eram avessas, há muito, à ideia de MPB e assim buscavam novas formas de

manifestação.

Se você viu a liderança liberal-conservadora daquela aliança de mãos dadas nos comícios cantando “Coração de estudante” com Milton Nascimento, você sabe por que goths, punks, headbangers, ativistas do partido dos trabalhadores, feministas, militantes do movimento negro, anarquistas, ambientalistas, e muitas outras tribos estavam unidas em odiar isso17 (AVELAR, 2001, p. 125) (Nossa tradução).

17 If you saw the liberal-conservative leadership of that alliance holding hands at rallies singing

“Coração de estudante” with Milton Nascimento, you know why goths, punks, headbangers, Worker’s Party activists, feminists, black-movement militants, anarchists, environmentalists, and several other tribes were united in hating it.

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Não é foco deste trabalho discutir as questões culturais e musicais envolvidas com os

processos da ditadura militar no Brasil e sua lenta e tendenciosa redemocratização. Mas vale

afirmar que música, como forma de expressão e representação teve um papel-chave nessa

história. Sendo assim, ao mesmo tempo em que alguns nomes da “MPB” se tornavam

reconhecidos e suas músicas se transformavam em motes por um Brasil “democrático”, outros

artistas e suas canções representavam parcelas da população que, mesmo sendo vítimas do

governo militar, não tinham voz ativa, sequer vez nessa conjuntura, por serem

desprivilegiados pela pobreza extrema, falta de estudos, preconceito racial; grupos esses que a

“elite intelectual” que lutava não pensava, pelo menos naquela época, em acolher. Dessa

forma, se haviam diferenças tão grandes, é óbvio que a diferença musical também se torna

marcante. Músicas como o brega, sertanejo, caipira, bem como alguns segmentos do rock,

punk, entre outros representavam pessoas que, ou não concordavam com algumas estratégias

tomadas pelos manifestantes, mas também eram contra a ditadura, ou eram completamente

alienadas da conjuntura política nacional. Coelho traz uma visão interessante acerca dos ideais

culturais brasileiros de direita e esquerda na época da ditadura, centrados em territórios e

patrimônios, fazendo assim com que a multiplicidade cultural brasileira de fato fosse

negligenciada em nome de alguns vieses específicos:

Uma rápida volta ao passado, para depois seguir adiante. Ao longo dos anos 60, sobretudo após o golpe militar de 64, a cultura brasileira parecia um navio atracado no porto. Um navio com as âncoras descidas e a proa e popa firmemente amarradas ao cais por cordas poderosas. Como as águas do porto são rasas — e tão mais rasas em tempos de ditadura, quando se procura retirar de todos os líquidos vitais o máximo que podem conter de alimento e sustentação — esse barco da cultura brasileira praticamente não balançava, e certamente não se movia. Era assim que o comandante de direita desse barco, depois de 64, queria vê-lo: firmemente preso, parado. Como o barco era muito grande e o comandante não podia controlar todos seus recantos ao mesmo tempo, sobretudo quando algum piloto de algumas das esquerdas conseguia infiltrar-se no navio, nem tudo corria dentro dele como queria o militar de plantão. É verdade, de passagem, que

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era igualmente assim que esse piloto da oposição gostaria de ver o mesmo navio: firme como uma rocha, quer dizer, imóvel — sob controle, sob seu controle. Amplas agitações em alguns dos porões do navio, como o do teatro, não tiravam e não tirariam o barco de sua posição imóvel. Naquele tempo, tanto para a esquerda como para a direita a cultura deveria ter raízes que a prendessem a algum lugar: somente assim se teria uma base para os projetos que sobre ela se faziam. A questão, portanto, era procurar essas raízes e fortalecê-las. A direita as via, em parte, no sólido passado de pedra importado de Portugal, visível nas velhas igrejas e casarões e casas grandes coloniais — embora se mostrasse suficientemente atualizada para recorrer à modernidade reluzente e etérea da TV e com ela alcançar resultados mais imediatos. E a esquerda revolucionária que, como manda a própria definição da palavra revolução, queria aplicar um freio no deslocamento que a situação estava assumindo e com isso necessariamente voltar pelo menos um pouco atrás, vislumbrava essas raízes no nacional-popular, dois termos de difícil conceituação mas que mutuamente se sustentavam e explicavam na ideia de que se algo não fosse nacional, não seria popular e se não popular, nacional não poderia ser. Várias tragédias pessoais derivaram dessa visão acentuadamente agrícola e geopolítica da cultura (a cultura ligada à terra e ao território). E coletivamente todos pagamos um preço, como a cultura brasileira pagou um preço, pela política enraizante, patriarcal e patrimonialista da direita como da esquerda (COELHO, 2008, p. 60).

Não se nega aqui a importância que a “elite intelectual” brasileira teve no processo

de redemocratização do país. Entretanto, evidencia-se que sua luta foi sim tendenciosa, já que,

muitos eram os vieses políticos naquela época, sem contar com os resultados coturbados

contidos nas políticas pós-redemocratização. Não apenas isso, mas também não se pode negar

o papel da classe operária nos conflitos da época.

Sendo assim, muitas manifestações musicais brasileiras surgiram a partir de práticas

mundializadas – mas não todas –, chegando assim ao heavy metal brasileiro, filho, é claro, de

uma “maior” abertura política além de ter precedentes nas influências do rock no país que

vêm desde a década de 1950.

Considerando então a possibilidade de maior evidência do heavy metal no Brasil e

tendo o contexto se tornado mais suscetível ao aparecimento de bandas, é gravado o primeiro

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LP de metal brasileiro. O curioso é que essa banda não estava no eixo Rio-São Paulo. Oriunda

do Pará, a banda Stress gravou o álbum com o nome da própria banda, no ano de 198218.

Tratava-se de uma produção independente – mas com a capa do disco patrocinada pela Pepsi

(LEÃO, 1997) –, ainda cantado em português, prática que, ao longo do tempo foi sendo

modificada.

(...) a própria adoção de uma palavra de origem inglesa, stress, para designar o grupo, criava uma certa ambigüidade. A partir desse fato, pode-se inferir que, apesar de inicialmente ser cantado em português, o rock pesado brasileiro procurava uma linguagem que fosse análoga aos grupos estrangeiros (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 36).

E realmente isso era fato consumado. A influência das bandas de thrash e death

metal no contexto metal do Brasil fez com que, aos poucos, a predominância nas letras de

músicas dessas bandas fosse a língua inglesa. Janotti Junior explica isso no sentido de que o

metal, desde seu princípio, se mostrava como uma prática globalizada. Dessa forma,

determinados elementos são compartilhados mundialmente, como músicas, que são tocadas

de forma a serem reconhecidas nesses redutos. Sendo assim, a sonoridade da voz, cantando

letras de músicas em inglês, mesmo que de forma “ininteligível”, parece se mostrar como um

elemento recorrente e essencial para reconhecimento do que seja metal.

Considerando então o primeiro álbum da banda Stress, em sequência outros também

foram lançados. Segundo Leão (1997), também saiu o álbum da banda Karisma, em 1983,

sendo esta a primeira a gravar em inglês (JANOTTI JUNIOR, 2004). Mas, antes de prosseguir

falando das bandas que lançaram LPs ou EPs de metal no Brasil, vale a pena citar um

acontecimento que contribuiu para a popularização do gênero, bem como incentivou ainda

mais a prática do rock e do metal no Brasil. Trata-se do Rock in Rio I, realizado em 1985.

18 O livro de Tom Leão atribui o lançamento desse álbum ao ano de 1983. Entretanto, Janotti Junior, bem como fontes encontradas na internet atribuem esse fato ao ano de 1982. Dessa forma, será, para este trabalho, considerado o ano de 1982 como a data de lançamento do primeiro álbum de metal do Brasil.

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Pela primeira vez, o heavy metal ganhou a visibilidade dos conglomerados multimidiáticos. Nenhum país da América Latina recebera, até então, tamanha concentração de ídolos do rock em suas terras; sendo que, das 13 atrações internacionais, cinco eram astros do universo metálico: Ac/Dc, Iron Maiden, Ozzy Osbourne, Scorpions e Whitesnake. Para os headbangers brasileiros, e de países vizinhos como a Argentina, foi uma apoteose metálica (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 38).

Graças a sua realização, trazendo uma grande quantidade de bandas de heavy metal

(todas do mainstream), o metal se tornou conhecido publicamente, o que, consequentemente,

trouxe visibilidade para as bandas que estavam “escondidas” no Brasil. Dessa forma, “(...) o

Rock in Rio foi fundamental na divulgação do rock pesado por todo o Brasil, o que contribuiu

para a criação de inúmeras bandas e para um aumento considerável do público brasileiro de

heavy metal” (idem).

Além da maior divulgação da cultura metal pelo Brasil, as bandas brasileiras

conseguiram mais espaço, o que já vinha acontecendo mesmo sem o Rock in Rio, mas que foi

catalisado pelo evento. Um fato, que não necessariamente tem a ver com o Rock in Rio, foi a

visibilidade que a Stress alcançou, fazendo-a chegar, inclusive, ao mainstream da indústria

fonográfica brasileira. Seu segundo álbum, o Flor Atômica foi lançado em 1985, pela

gravadora Polygram.

Não apenas isso, mas uma grande quantidade de selos surge no país, no intuito de

produzir bandas de metal. O selo Baratos e Afins, que não era voltado exclusivamente para o

metal, lançou a coletânea SP Metal I (1984) e II (1985), cuja vendagem foi considerável.

Outras coletâneas também foram lançadas, como o Split (1985), um relançamento do selo

Cogumelo Discos. Em 1986, foi lançada a coletânea Warfare Noise. Seu segundo volume saiu

em 1987. A Head Thrashers Live também foi lançada em 1987. Nesses selos estão as músicas

das bandas que mais foram influentes na cena metal brasileira nos anos de 1980,

considerando, principalmente, o eixo Rio de Janeiro - São Paulo - Belo Horizonte, quase

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sempre se difundindo pelo meio underground. Vale dizer que há sim exceções, como é o caso

da Stress, mas que despontou sua carreira no Rio de Janeiro. Do Rio de Janeiro, saiu a Dorsal

Atlântica, que conseguiu relativo sucesso no exterior, Metalmorphose e Azul Limão. De São

Paulo, Korzus, que, segundo Leão (1997), até a data de seu livro, ainda lançava sucessos no

exterior. Outras bandas despontaram por todo o país. “Assim, pode-se perceber pela própria

nomenclatura e origem geográfica de algumas bandas, o estabelecimento do rock pesado no

Brasil: Aerometal (SP), Astaroth (RS), Avalon (PI), Blindagem (PR), Burn (SC), Chakal

(MG), Crosskill (RN), Herdeiros de Lúcifer (PE), Mortífera (PB), Taurus (RJ) e Thor (ES)”

(JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 38).

Destacando a cidade de Belo Horizonte e o selo Cogumelo Discos, uma banda

despontou no cenário do metal nacional e internacional. Trata-se do Sepultura. Fundado pelos

irmãos Cavallera, de Belo Horizonte, a banda lançou seu primeiro disco em 1985, pelo selo

Cogumelo Discos. Na verdade, o álbum não pertencia somente ao Sepultura, mas também à

banda Overdose (o EP Bestial Devastation). A vendagem foi grande. Isso incentivou a banda

a continuar seu trabalho, tocando no máximo de lugares possível, tanto na cena underground

belorizontina quanto em outros locais. Isso permitiu a ela, inclusive, abrir shows de bandas

maiores e consagradas, como a Venom e Exciter, na própria cidade de Belo Horizonte

(JANOTTI JUNIOR, 2004).

Os álbuns seguintes seriam agora apenas da banda Sepultura, ainda pela Cogumelo

discos. Nesse caso, vieram o Morbid Visions (1986) e Schizophremia (1987), ambos com

grande sucesso, mas ainda em nível local e, talvez, nacional. A apoteose da banda veio com o

contrato assinado com uma grande gravadora, no caso, a Roadrunner, que a permitiu entrar

para o cenário do metal internacional. Benneath The Remains foi o primeiro disco lançado

pela gravadora, o que, segundo Janotti Junior (2004), não rendeu sucesso imediato. O

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168

Sepultura, para pagar as despesas da gravação (o que constava no contrato) teve que fazer

muitos shows, no Brasil e fora dele, para alcançar a visibilidade necessária, o que fez com que

esse álbum vendesse 600 mil cópias. Essa atitude rendeu o sucesso de seu próximo álbum,

Arise, que vendeu 800 mil cópias no mundo inteiro. O crescimento da banda foi tamanho no

cenário mundial que “quando os historiadores do metal falam sobre as “quatro grandes”

bandas de thrash metal (Anthrax, Slayer, Metallica, e Megadeth), alguns a mudam para as

“cinco grandes” incluindo também a banda brasileira Sepultura”19 (PHILLIPS; COGAN,

2009) (Nossa tradução).

O sucesso segue com o disco Chaos A.D., “disco de ouro20 na Inglaterra, na Bélgica

e na França” (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 42). Ao mesmo tempo, além dos shows e

aproveitando da divulgação oferecida pela MTV na década de 1990, a banda também se vale

de videoclipes. Já o álbum Roots foi visto como um dos maiores sucessos da banda, que

chegou a vender mais de um milhão de cópias em todo o mundo. O diferencial desse disco

seria certo “retorno às origens” feito pela banda. Esse álbum contava com a participação

especial de músicos como Carlinhos Brown, além de um profundo trabalho de imersão na

cultura indígena xavante, tribo com a qual o Sepultura conviveu por certo tempo. A

vendagem foi enorme e garantiu sucesso à banda não apenas no universo do metal, mas

também em outros meios, popularizando ainda mais seu trabalho. O Sepultura lançou mais

trabalhos, até o ano de 2006, mas, Max Cavalera, antigo vocalista, saiu do grupo tempos

depois do Roots, se integrando à Soulfly, banda com um discurso mais “comercial”, pelo

menos mais aberto para tal proposta. O sucesso e as vendas do Sepultura parecem não ser

19 When metal historians talk about the “big four” thrash metal bands (Anthrax, Slayer, Metallica, and

Megadeth), some change it to the “big five” including the Brazilian band Sepultura as well.

20 “Disco de Ouro” é uma certificação dada a álbuns, EPs ou Singles que vendem uma quantidade específica, que varia conforme o país em que a obra é vendida.

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mais os mesmos que eram até a época de Roots, mas ainda sim ela é considerada como uma

das grandes bandas de metal do mundo.

Outras bandas de metal merecem destaque ainda, tanto no cenário nacional quanto

internacional. Sem desconsiderar que após a influência nacional do Sepultura, uma

quantidade enorme de bandas de thrash e death metal surgiu no país, geralmente pela mão de

selos independentes, bandas de outros subgêneros do metal também se destacaram. Tratam-se

da Angra e da Doctor Sin. Angra, segundo Leão (1997), perseguiu e conquistou o mercado

japonês, além de fazer relativo sucesso no Brasil na década de 1990. Com o tempo ela

encerrou suas atividades e retornou nos anos 2000 com um novo vocalista e baterista,

lançando novos trabalhos. A banda Angra se dedicava ao power metal ou ao metal melódico.

Na atualidade, em específico, no ano de 2010, ela lançou um novo álbum, Aqua, contando

com influências composicionais de músicas brasileiras, como o baião. Já a Doctor Sin se

aventurou na cidade de New York e conseguiu êxito, integrando o mainstream das bandas de

metal no Brasil. Entretanto, para muitos, ela é considerada como uma banda de hard rock. O

vocalista André Mattos, antigo vocalista da Viper e Angra surgiu no ano de 2006 com a banda

Shaman e seu discurso inicial era desenvolver um subgênero chamado de mystic metal, mas

que não chegou a ser consumado. Outra banda, do sul do Brasil e que tem conseguido grande

sucesso no universo do metal é a banda Krisiun, que estabeleceu contrato com uma gravadora

internacional.

Considerando então o campo fértil que tem o metal no Brasil, este trabalho, mais

uma vez, não poderia dar conta da enorme quantidade de bandas que aqui existem e surgem a

todo tempo. Entretanto, como argumenta Janotti Junior, as bandas tem seguido uma tendência

da maioria das cenas de metal do mundo, que é se tornarem basicamente segregadas. Atuar no

underground é uma forma que as bandas e públicos do metal encontraram para se manterem

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“autônomas”. Essa busca de “autonomia” é também uma reação à ascensão e queda constante

de vendabilidade no mercado fonográfico. É complicado se manter consagrado para um meio

inteiro durante muito tempo. Poucas bandas de metal se mantêm como tal. Na verdade,

poucas bandas de metal que migram ou são cooptadas para a mídia de amplo acesso

continuam reconhecidas pela comunidade metaleira segmentada. Fazer parte de uma

comunidade segmentada – inclusive no tocante ao consumo – é uma condição básica para o

universo do metal.

Sendo assim,

Dificilmente é possível imaginar que alguma das novas bandas de heavy metal, do Brasil ou de qualquer lugar do mundo, consiga atingir o patamar de antigas bandas como Black Sabbath e Iron Maiden, pois o mercado de heavy metal se tornou ainda mais especializado. Imaginar que Krisium ou Angra possam alcançar o sucesso de um Sepultura, por exemplo, significa dizer que eles teriam que romper as delimitações do universo metálico e, tal como o Sepultura, deixarem de ser reconhecidos como heavy metal (JANOTTI JUNIOR, 2004, p. 46).

Dizer então que as cenas do metal, no Brasil e no mundo, são segmentadas e

representadas por um mercado que condiz com essa perspectiva é dizer que, antes de uma

opção mercadológica de sobrevivência, isso representa uma escolha social e uma concepção

cultural compartilhada em comunidade. A já referida busca por “autenticidade” é, portanto,

um meio de validação dos processos sociais e dos produtos culturais e musicais que são

produzidos para grupos de pessoas, que definem o que é “autêntico” ou não. Daí, faz-se

autêntico, para bandas e públicos, integrar um cenário musical alternativo e, portanto,

segmentado.

Que consequências todo esse desenvolvimento do metal em cenas tão próximas traz

a Montes Claros? Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais se encontra a apenas 450

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quilômetros de Montes Claros. Que impacto a cena do metal independente belorizontino, ou

paulistano, ou carioca, tem sobre essa cidade do norte de Minas? Nos dias de hoje, é possível

verificar contatos diretos com Coletivos de música independente em outras cidades, graças às

já citadas instituições de fomento ao rock em Montes Claros. No entanto, na época em que

tantas bandas despontaram no Brasil, pouco ou nada se ouviu falar delas em Montes Claros. O

impacto das cenas independentes dessas cidades não foi tão grande em Montes Claros que,

apesar de ter uma cena expressiva de rock, principalmente depois de 1985, não compartilhava,

não fazia parte das redes de circulação das bandas underground de metal no Brasil. Daí o

argumento deste trabalho enfocando a ideia de música popular como difundida massivamente,

consumida e resignificada em um discurso específico. Apesar de Eltomar Santoro ter vindo de

Belo Horizonte, não havia relação sua com o meio do metal. Havia, na verdade, com o punk,

já que ele integrava a banda do lixo. Mas a cena montes-clarense do rock era de fato

segregada.

Se não havia contato direto com as bandas de Belo Horizonte, mesmo elas estando

geograficamente tão próximas, de que forma se configurou a influência do metal na cidade de

Montes Claros? Provavelmente, pelo mesmo meio pelo qual chegou o rock na cidade de

Montes Claros: por rádio, discos (a maioria do mainstream), cinema, internet, televisão, entre

outros meios que possibilitaram a imersão dos montes-clarenses no mundo do metal.

Já era perceptível a alusão à ideia de heavy metal, ou de rock pesado na década de

1980 e princípio da década de 1990. A banda Capiroto, que existia desde a década de 1980

fazia alusões a temas sombrios, com caveiras, além de buscar um rock que fosse “pesado”,

aludindo assim às características do heavy metal, em específico do New Wave of British

Heavy Metal. O nome de outra banda também era alusivo ao metal. Tratava-se da Estrutura

Metálica, mas não há dados que remetam à sua sonoridade. O certo é que, ao que parece, o

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contato inicial dos montes-clarenses com o metal está ligado, também, com o consumo de

artefatos culturais.

Apesar do suposto surgimento de uma cena metal em Montes Claros, na época de

Eltomar Santoro, não havia articulação o suficiente para uma cena segmentada, apartada das

demais. Metal em Montes Claros, na verdade, se integrava ao grande discurso do rock, como

gênero musical que abrangia todos os discursos que a ele fossem ligados. Até hoje, mesmo

que segregado enquanto prática, o discurso metaleiro é aceito como parte do rock. Em uma

entrevista, quando perguntado se metal é ou não rock, Clayton, vocalista da banda Vomer

afirma: “Metal é rock. Totalmente” (Entrevista realizada em 08/08/2009). Portanto, essa é

uma concordância que prevalece, dadas as circunstâncias da cena roqueira em Montes Claros

(público reduzido, poucas opções de locais para realização de eventos, falta de apoio).

O surgimento de uma cena de metal propriamente dita, em Montes Claros, parece

surgir em meados da década de 1990. As principais influências? Bandas que já circulavam

internacionalmente, como o Sepultura! A influência de uma banda que tocava em uma cena

que ficava a apenas 450 quilômetros de Montes Claros só chegou nesta terra depois de um

longo processo de difusão e mundialização cultural. Sendo assim, a articulação local do metal

montes-clarense é fruto do compartilhamento cultural de práticas mundidalizadas, do

consumo de material musical, ou seja, apenas a partir do momento em que essas músicas e

elementos passaram a circular em escala global.

Consumindo assim, suas primeiras influências, as primeiras bandas de metal em

Montes Claros se formaram. Sua atuação massiva se dá a partir de meados da década de 1990.

Algumas bandas, inspiradas principalmente no punk hardcore, começaram a se interessar pelo

metal. A busca se mostra coincidente com as demais cenas. A importância, a princípio, parece

ser dada ao quesito sonoro do “peso”, de uma sonoridade que tenha uma maior capacidade de

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moção (WALSER, 1993). Sendo assim, algumas dessas primeiras bandas hardcore acabam se

enveredando para o metal. Isso acontece em diversas vertentes. Ainda não era possível

subdividir a cena metal em tantos subgêneros. Num mesmo show era possível encontrar uma

banda voltada para músicas do Black Sabbath, Iron Maiden, Slayer, Brujeria, entre outras.

Predominava quase que hegemonicamente a ideia de cover, juntamente com uma indefinição

de qual metal era o expressivo nessa cena.

A divisão estilística estava muito mais no ideário das bandas do que dos públicos,

que assistiam a todos. Isso por um lado, pois, por outro, as pessoas que integravam esse

movimento sabiam o que era ou não metal. Fato que comprova essa tese foi um show

realizado pela banda Sapo Joe para um evento de metal. A banda não obteve aprovação do

público, que ficou parado, não participou e, apenas esperou a próxima banda. Vale uma

análise da situação. O repertório da banda Sapo Joe não era voltado para as bandas de metal

que o público e as outras bandas acompanhavam. O grupo tocava, principalmente, músicas do

Nirvana, uma tendência grunge, que não era ligada ao metal diretamente. Não apenas no

quesito repertório, mas as pessoas que frequentavam a cena metal sabiam que a Sapo Joe

tocava em outros ambientes. Em outras palavras, não compartilhava da ideia segregada do que

seria metal em Montes Claros. Sendo assim, numa performance que, antes de tudo foi social

(TURNER, 1988), a banda Sapo Joe foi identificada e negada como representante da cena

metal em Montes Claros.

Os eventos de metal, em sua maioria, eram realizados em garagens e galpões.

Entretanto, por garagens, não se entendem as garagens de casas, mas sim estacionamentos

privados, que cediam seus espaços, aos fins de semana, para a realização de shows de metal

em sua maioria. Esses shows eram chamados de rocks. Nesses rocks, a princípio, aparecia

todo tipo de pessoas que, de alguma maneira, fossem adeptas ao rock. Mas a tendência metal

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era mais forte. Dessa forma, as bandas de metal começaram a predominar no espaço e,

juntamente, os headbangers21, que se viam diferenciados dos demais roqueiros. Daí surgiu

um grupo bastante segregado, mas que não representa a totalidade dos fãs de metal em

Montes Claros. Tratam-se dos denominados Capa-pretas. Esse nome não é de autoria deles,

mas foi uma definição decorrente da impressão que as demais pessoas da cidade tiveram. Esse

grupo de pessoas que se vestia de preto, calçado com coturnos, com mulheres usando

maquiagens escuras passou a frequentar não apenas os rocks, mas também os espaços mais

movimentados da cidade, como foi o caso da avenida Deputado Esteves Rodrigues, conhecida

também como avenida sanitária22. A evidência maior desse grupo se deve ao

“compartilhamento” de um espaço comum a diversas pessoas de concepções culturais e

musicais diferentes. Na avenida sanitária predomina a já descrita MPB, emicamente definida

como música tocada em bares, ao vivo e, vale dizer, esse local tem uma das maiores

concentrações de bares e restaurantes da cidade.

Considerando então, a avenida sanitária, pôde-se perceber que os Capa-pretas

ocuparam diversos espaços nesse local, criando um meio específico no qual eles circulam ou

se reúnem. No caso da avenida, eles se agregam no seu canteiro central, onde existem mesas e

bancos de praça. Lá os Capa-pretas passam a noite, bebendo, conversando, tocando violão,

sempre caracterizados, sempre hostilizados por pessoas de uma suposta “classe média23”.

Outro local, também na avenida sanitária, frequentado pelos Capa-pretas era o bar do Gôda.

Entretanto, o bar não existia para eles. Os headbangers simplesmente o escolheram. Levavam

suas próprias bebidas, sentavam-se à porta e nas mesas, o que espantava a freguesia. Não

21 Entende-se por headbanger pessoas inseridas no universo metal. 22 O nome “avenida sanitária foi dado a esse espaço pelo fato de lá estar a canalização de um rio que

passa por Montes Claros, o rio Vieira, e que recebe o esgoto produzido na cidade. 23 Não há como, com um simples olhar superficial, definir o que venha a ser ou não “classe média” em

Montes Claros. Por conta de aparências, pessoas com poderes aquisitivos diferentes se misturam, sem grandes problemas. De forma que há pessoas de “classe baixa” misturadas àquelas de classe média e alta, sem grandes problemas aparentes.

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durou muito para que Gôda fechasse suas portas. Como já comentado numa citação anterior

de Rosa (2007), é comum as pessoas integrantes de movimentos de rock underground se

apropriarem desses espaços, nos quais não consomem. Na verdade, apenas o resignificam

enquanto seus. Daí a ideia de entender, retornando à citação de Barthes (apud HARVEY,

2006) que a cidade é um discurso. Na verdade, ele é montado e remontado com base nas

significações e resignificações que as pessoas o dão. Dessa forma, uma área de convivência

comum, com barras de ferro para ginástica, bancos de praça, mesas com marcação para jogos

de dama e xadrez são refeitos como um espaço de convivência de headbangers, sem grandes

problemas de adaptação.

Mas, como já dito, metal não é um gênero musical monolítico (WALSER, 1993),

nem seu público. O mundo pós-moderno é fragmentado demais para se acreditar que apenas

pessoas de preto são fãs de metal em Montes Claros. Na verdade, com o tempo, as fronteiras

do gosto desse grupo, dos Capa-pretas, foi se mostrando mais evidente. Muito do que se usa

do sufixo metal não era do gosto deles. Sendo assim, esse grupo se ligava muito mais às

temáticas do thrash/death/doom/speed, além de algumas bandas do New Wave of British

Heavy Metal, como Iron Maiden, Black Sabbath, Motörhead, entre outras. Daí surgiram

bandas como a Proud (que também possuía repertório próprio), Vortex, Metal Militia , Vulgar,

Vomer, entre outras.

Pensar nas garagens como um elemento que dinamizou e possibilitou o crescimento

da cena metal em Montes Claros não é exagero. De acordo com Clayton (vocalista da Vomer,

em entrevista concedida em 10/05/2010), os rocks de garagem foram uma janela para a cena

metal em Montes Claros, pois representaram um momento pelo qual as pessoas se juntaram,

compartilharam, negociaram interesses e configuraram assim o que seriam os primórdios da

prática metal na cidade. Isso fez com que bandas de metal, headbangers e seus eventos

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seguissem ao longo do tempo, geralmente com eventos musicais em garagens e outros

espaços da cidade.

Apesar das garagens terem dado a maior contribuição para a consolidação do metal

na cidade de Montes Claros, deve-se ressaltar que algumas iniciativas, um pouco mais tímidas

e isoladas, foram também importantes para sua divulgação, dessa vez partindo de outro meio.

Nesse caso, alguns shows como os encontros dos Lobos do Cerrado24 também

reuniram algumas bandas de metal. Todo evento desse grupo acabava por contratar pelo

menos duas bandas para shows de fechamento dos festivais. Um dos grupos mais recorrentes

nesse espaço era a Sabotage, cover de Black Sabbath e Led Zeppelin, além de bandas

consideradas precursoras do que viria a ser o heavy metal25. Os headbangers também se

reuniam nesse espaço.

Mas essas não eram apenas as únicas tendências que haviam dentro do metal montes-

clarense, sequer os Capa-pretas são seus únicos representantes. Na verdade, o power metal

também tem seu lugar na tessitura metálica de Montes Claros. Desde o início dos anos 2000,

algumas bandas já se apresentavam fazendo cover desse subgênero, formando um público

considerável. Nesses shows era sempre possível encontrar Capa-pretas, mas não porque esse

era seu gosto musical. Na verdade, eles lá estavam pelo fato de que não haviam tantos shows

na cidade, o que já foi discutido. Bandas como a Anilha 25 (cujo baterista era Léo, que

atualmente está na Vomer) se ligavam a repertórios de bandas como Angra, que parecia ser

seu principal mote. Outra banda que chegou a gravar material próprio, dentro dessa linha do

24 Lobos do Cerrado é um grupo de motoqueiros, cuja prática consiste em viajar principalmente pela região do cerrado do norte de Minas. Usam um figurino ao estilo das gangues de motocicletas norte americanas. As motocicletas também seguem o mesmo estilo. O principal gosto musical entre eles está relacionado ao rock e ao metal, mais especificamente o heavy metal.

25 Para Walser (1993), o heavy metal é mais do que o surgimento de determinadas bandas que lançam influências. Na verdade, heavy metal foi mais uma concepção, uma tendência musical que acabou por ser expressa nos estilos de determinadas bandas, bem como tais concepções foram “aprovadas” quando expostas ao público. Sendo assim, ao tratar bandas como o Black Sabbath e Led Zeppelin como precursoras do heavy metal, elas são vistas mais como grupos que partilhavam dessa tendência do que como criadores desse gênero musical.

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power metal foi a Doctor Phantom. Essa banda, na verdade, não durou muito tempo, mas

tinha grandes nomes, como o Guitarrista Warleyson Almeida, reconhecido inclusive fora de

Montes Claros, com CDs instrumentais de sua autoria já lançados (de forma independente),

mas reconhecidos por pessoas como o seu professor, Kiko Loureiro (guitarrista do Angra).

Outra vertente metal em Montes Claros foi a white metal. Na verdade, não foram

muitas as bandas que seguiram essa linha. O que mais se ouvia na cidade, em determinada

época, eram bandas de christian rock. Das bandas de white metal, podem ser destacadas duas:

a Behavior (católica) e a Exorcista (protestante). Não são da mesma época, necessariamente,

mas são marcantes na formação de grupos de metal cristão em Montes Claros, de forma que

chegaram, inclusive a lançar material próprio. A Behavior vem desde o final da década de

1990, ainda com o nome de Renúncia e não voltada para o metal. Apenas com a mudança de

integrantes foi que ela se voltou com mais força para o white metal. Os integrantes dessa

banda geralmente realizavam eventos de rock cristão e foram responsáveis pela “conversão”

de uma grande quantidade de pessoas para a cena white. A ideia era justamente essa,

basicamente missionária e de convencer as pessoas dos valores cristãos através do metal. Já a

Exorcista teve incursões mais profundas na cena metal de Montes Claros. Isso porque ela se

integrou em espaços nos quais estavam os Capa-pretas, mantém contato com eles e tocam

eventos em que eles estão presentes. Isso culminou na participação da banda no Metalmoc,

um evento que geralmente agrega bandas de thrash, death e black metal. Ao que parece, a

impressão inicial não era a mesma da Beahavior, mas também havia um mote de valores

cristãos, mesmo que num meio não tão específico. A aceitação do público dividiu as opiniões.

Aqueles que eram mais rígidos criticaram negativamente. Entretanto, muitos consideraram a

banda como “autêntica”, em performance e sonoridade. Isso pode conotar duas hipóteses: a de

que a sonoridade e moção (WALSER, 1993) pode ser obtida através de muitas formas dentro

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do universo metal, mesmo através de uma banda de white metal permeando um universo que

não é primariamente seu. Outra hipótese é de que essa divisão de rótulos pouco importe,

assim como a mensagem que a banda traz como seu discurso inicial. A já discutida

fragmentação (HALL, 2006; HARVEY, 2006; RUUD, 2007; ROSA, 2007) tem feito com que

as pessoas cooptem os símbolos que lhes são importantes e assim os remontem aos seus

próprios discursos. A suposta “aprovação” de uma banda que, pelo menos em termos de

ideologia se mostre tão “alienígena” em um contexto como o Metalmoc pode significar que a

banda produziu elementos que foram aceitos como símbolos a serem cooptados e partilhados,

que pode, inclusive, incluir a mensagem cristã da Exorcista.

Voltando então aos rocks, muito do que aconteceu nesses eventos, ao longo do

tempo, fez com que o meio metal se tornasse mais segregado, o que teve certo impacto na

cena do rock, como um todo. Nos rocks de garagem, passou a ser unicamente predominante

bandas de metal, na linha thrash, death, black metal. Os Capa-pretas acabaram, ao longo do

tempo, se tornando a maior parte do público que frequentava as garagens. As atitudes e

performances extremas, próprio dessa linhagem metal fez com que a estranheza permeasse a

cidade, tanto por parte de outros adeptos do rock quanto de outras pessoas que tinham outros

gostos musicais. Não bastasse isso, mas a violência começou a permear os eventos de metal.

Não que ela nunca tivesse acontecido nessa cena, sequer representada, mas o que se passa foi

que ela deixou de ser uma representação, um elemento musical para se manifestar também na

forma de brigas constantes, que atrapalhavam a realização dos eventos. Como já dito, nas

músicas, seja nas letras quanto na sonoridade, na performance e na moção do público que

responde com o headbanging26 e com rodas nas quais as pessoas se debatem as ideias de

agressividade enquanto elemento fundante do metal em Montes Claros – e do mundo – se

26 Bater cabeça, literalmente.

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manifestavam de forma normal. No entanto, a partir do momento em que as brigas se

tornaram mais evidentes, a cena passou a perder público, os eventos começaram a ser mais

hostilizados. Sendo assim, a ideia de violência migrou de um elemento cultural específico e

representativo para um ato literal, que não era necessariamente aceito por todos.

Outro efeito que se mostrou negativo para a articulação da cena em Montes Claros

seriam as acusações de “ocultismo” e “satanismo” feitas por moradores das adjacências de

muitos desses eventos. Acusações que nunca saíram do senso comum do que seria esse

“satanismo”. Na verdade, o conceito “de fora” é, na verdade, o efeito de uma visão de mundo

condicionada por um aparato cultural específico. Muitas das pessoas que faziam essas

acusações viam pessoas de preto, uma sonoridade distorcida, em alto volume e muita moção

corporal. A impressão, baseada no que essas pessoas tinham como conceito de “bem e mal”

era que, o metal era um fazer musical “satanista”. Mas, como já visto, metal é mais que isso e

não se trata de uma única visão das coisas. Na verdade, as bandas de black metal em Montes

Claros, por mais que façam alusão a elementos ocultistas não são cultos a demônios. Trata-se

de elementos condicionadores das performances dessas bandas. Mesmo assim, não era dessa

forma que as pessoas entendiam, o que gerou situações envolvendo inclusive a polícia. Houve

um show de uma banda denominada Desgraça Eterna – pode-se notar o nome, indicando

pessimismo, perda, destruição, coisas ruins que não passam, entretanto, voltados muito mais

para expressão de uma compreensão da realidade do que a um “culto demoníaco” – em um

galpão, cuja sonoridade incomodou os vizinhos que, assustados, chamaram a polícia. A banda

segue até os dias atuais, ainda no black metal, entretanto, com outro nome: panzefaust.

Tudo isso rendeu certo “descrédito” ao metal montes-clarense, que passou a ter

menos apoio e estrutura para realização de seus eventos. Na época da Chernobyl, por

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exemplo, não havia grande espaço para atuação das bandas de metal, além de que, aos poucos,

as garagens cessaram suas atividades. Mesmo assim, ela realizou alguns festivais.

O “amparo” para as bandas de metal retorna apenas no ano de 2006, com o

surgimento da Associação do Rock de Montes Claros e Região, que estabeleceu como um de

seus focos o apoio e fomento ao metal em Montes Claros. Da mesma forma que ela veio

como meio de apoio à cena do rock montes-clarense que estava se estabelecendo desde a

época da Chernobyl, a associação, provavelmente por ter fãs de metal fazendo parte da sua

equipe, viram a necessidade de promovê-lo em Montes Claros, já que havia uma grande

quantidade de bandas, mas poucos eventos. Segundo Sapúlia, em uma entrevista realizada em

agosto de 2009, a associação reconheceu que a cena metal era a menos amparada e, por isso, o

direcionamento e produção dessas bandas.

O reflexo dessa preocupação da Associação do Rock de Montes Claros e Região com

as bandas de metal culminou num evento anual, gratuito, aberto à comunidade montes-

clarense: o Metalmoc. Evento que já foi realizado em quatro versões, desde o ano da fundação

da associação, ele contempla apenas as bandas de metal, de Montes Claros e de outras

localidades. Esse evento, apesar de ser exclusivo de metal, não é mais tão segregado quanto a

época das garagens. Na verdade, ele se agrega à ideia das iniciativas de fomento ao rock em

Montes Claros, que é de angariar público.

Isso causa impacto no metal montes-clarense. Se, num primeiro momento, os eventos

eram segregados, aconteciam em espaços fechados, agora eles existem como parte de uma

ideologia mais expansionista, mais aberta. As bandas de metal, portanto, passaram a tocar

também para outros públicos que frequentavam o Metalmoc. Esse fato pode – ou não – ter

mudado a forma pela qual as bandas se articulam com seus públicos, pelo fato de que elas

passaram a ser mais abertas. Mas a segregação, por parte do público, permanece. Os Capa-

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pretas ainda frequentam os eventos de metal, ainda são apartados da maioria e ainda são

tratados com estranheza pelos demais. Entretanto, agora os grupos podem ocupar o mesmo

espaço, sem grandes tensões evidentes. Até o problema das brigas foi, de fato, sanado. Pôde

ser constatado, na observação do IV Metalmoc, em agosto de 2009, que nenhuma briga

aconteceu. Vale dizer que havia policiamento, além de uma equipe de segurança particular.

Com o tempo, não apenas a Associação do Rock de Montes Claros e Região passam

a apoiar o metal, mas também o Coletivo Retomada. Na verdade, todas as instituições que

apoiam o rock em Montes Claros apoiam também o metal. Como já foi explicitado, é comum

ver shows de rock em que se estabelece uma rede de colaboração, entre diversos atores. O

mesmo acontece nos eventos de metal. Fato que ilustra isso foi a realização do IV Metalmoc,

que teve a ajuda de Digão de Paula, do Coletivo Plug!, além de pessoas do Studio Rock. No

entanto, a incursão do Retomada acabou sendo maior, porque sua estrutura de articulação foi

maior do que a dos outros parceiros, com exceção da associação. O Retomada, com seu

esquema de distribuição de material fonográfico das bandas montes-clarenses, colaborou com

a venda de CDs de bandas de metal da cidade, não apenas em Montes Claros. Além disso,

com o tempo, ele também passou a realizar eventos de metal, quando possível. Foi o caso de

um que aconteceu no início de agosto de 2010, chamado Fora do Eixo ao Extremo. Nele

apenas uma banda de metal de Montes Claros se apresentou, mas mesmo assim ele mostra

que essas instituições também tem recebido as bandas montes-clarenses.

Graças a incursão e apoio à cena metal em Montes Claros, um grande número de

bandas surgiu, além daquelas já vinham desde a década de 1990. Na atual cena pode-se

perceber bandas como a Gory Stage, Panzerfaust, Impalement in Mordor, Res Nullius,

Origamy, Tetrex, Dragão de Ares. Todas elas estão ligadas à maior possibilidade de

articulação da cena metal de Montes Claros. Entretanto, a perenidade, como á dito, tem

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permeado essa cena. O V Metalmoc, destinado a acontecer no ano de 2010 foi cancelado por

falta de estrutura e apoio para a realização do mesmo. Juntamente com o fechamento da Casa

Fora do Eixo, isso conota certa “crise” na cena rock e metal em Montes Claros. Mesmo

assim, os eventos não param de acontecer. No mês de agosto do ano de 2010, numa casa de

shows que não é voltada apenas para o rock, a banda Dragão de Ares fez um show. Mesmo

que a atividade diminua, a articulação não deixa de acontecer. Isso mostra que metal na

cidade de Montes Claros vai além da necessidade de apoios, já que a própria manifestação

tem a capacidade de se organizar frente aos diversos problemas que nela se estabelecem. É

provável que, dentro de certo tempo, outra casa de shows apareça, que outra onda de eventos

de metal se estabeleça, porque as iniciativas em apoio a essa prática, bem como a crescente

quantidade de bandas e maior aceitação do público com essa música parece subsidiar a

realização desse futuro.

Como já dito, a cena do metal em Montes Claros partilha de todo um referencial, de

um ideário que dita quais as músicas, comportamentos, iconografias e concepções são válidas

nesse contexto. Esses conceitos são partilhados por diversos atores, que vão desde as bandas

até o público que acompanha esse movimento. Dessa forma, pensar em uma banda de metal

em Montes Claros é considerar que ela faz parte de toda uma conjuntura e que compartilha de

referenciais comuns, pelo menos a princípio. Sendo assim, o próximo capítulo deste trabalho

irá contemplar uma banda de metal que atua há certo tempo dentro da cena montes-clarense,

no caso, a Vomer. Entende-se que seus músicos fazem parte do contexto do metal em Montes

Claros, ao mesmo tempo em que eles constroem suas próprias bases musicais por meios de

suas articulações, seja como um todo, seja de forma individual. Isso conota uma cena musical

multifacetada, dado a variedade de vieses formando o todo que é a cultura musical do metal.

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4. A BANDA VOMER

A banda Vomer, por fazer parte da cena do rock em Montes Claros, em específico a

do metal, há bastante tempo, vem sofrendo as mudanças que ocorreram desde o surgimento

das instituições e iniciativas em apoio à prática do rock na cidade, até a formação da cena

musical alternativa e independente que se estabeleceu como consequência desses

acontecimentos. Entende-se que, a partir da constituição dessa conjuntura, as bandas de rock e

metal em Montes Claros passaram a ter um referencial diferenciado sobre sua própria

produção musical, o que, consequentemente, mudou seus hábitos de produção, distribuição,

armazenamento e difusão musical. É claro que esses novos comportamentos mercadológicos

se expressam como comportamentos sociais e são concebidos enquanto concepções

embasadas culturalmente. Sendo assim, a Vomer, como exemplo e parte das influências nesse

contexto será vista a partir de quatro perspectivas, a fim de se conceber os principais

processos pelos quais se estabelecem os aspectos performáticos, estilísticos e estético-

musicais de sua produção. Por aspectos, pensa-se mais no levantamento de processos de

constituição de músicas e comportamentos musicais por intermédio das influências que serão

expostas.

O primeiro aspecto tem a ver com a descrição histórica da banda. Serão definidos os

fatos que marcam o seu surgimento, desenvolvimento e trajetória ao longo do tempo. Não

apenas isso, mas nessa trajetória serão explicitadas as mudanças de concepção musical e

cultural que se estabelecem. O segundo aspecto visa entender como a banda concebe música,

numa perspectiva cultural. Dessa forma, as concepções que os membros da Vomer têm sobre

música, o processo de criação/composição musical, a formação musical de cada membro, ou

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seja, o embate das concepções individuais que cada um tem sobre música será analisado. O

terceiro aspecto compreende as relações contextuais da Vomer. Suas práticas musicais serão

verificadas considerando o conceito de Chada: “prática musical como um processo de

significado social, capaz de gerar estruturas que vão além dos aspectos sonoros, embora estes

também tenham um papel importante na sua constituição” (2007, p. 139). Isso será observado

na estrutura dos shows, além de ensaios e gravações. Não apenas as performances serão

analisadas, mas também o posicionamento da Vomer frente ao contexto no qual ela estabelece

sua prática musical. O quarto aspecto está ligado à significação sonora de sua prática musical.

Se a banda se foca em um fazer musical, os aspectos sonoro-musicais são dizeres específicos

e, o estilo musical, traduzido em elementos chaves para a produção do metal é um importante

meio de expressão cultural. Sendo assim, o levantamento dos elementos musicais que se

mostram na forma de um fazer musical estruturado na performance da banda serão vistos

como parte desse discurso.

4.1. FORMAÇÃO E TRAJETÓRIA

A banda conhecida como Vomer é um grupo atuante no gênero thrash metal, inserido

na cena do rock em Montes Claros. Entretanto, nem sempre foi assim. Essa banda tem uma

extensa trajetória e já apresentou diversas faces, ao longo do tempo. Essas diferenças vêm

desde as escolhas musicais até os integrantes da banda, que mudaram diversas vezes. Tudo

isso traz alterações significativas ao modo de ser e pensar do grupo, já que cada um que o

integra é um indivíduo diferente e contribui para a tessitura conceitual do grupo de forma

distinta dos demais.

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A Vomer, a princípio, sequer tinha esse nome. Na verdade, seu nome inicial era

Septecemia. Tratava-se, no caso, de uma banda de adolescentes, a maioria com quatorze,

quinze anos, se prestando a tocar as músicas de suas influências, no caso, fazendo cover

dessas músicas. Dois nomes são recorrentes em toda a trajetória do grupo. Seriam eles os

irmãos Clayton e Airton. Estes dois seriam os responsáveis pela movimentação da banda, bem

como pela manutenção das concepções musicais no decorrer da história da Vomer. Isso

porque são os dois integrantes que permaneceram desde o início até os dias atuais. Contudo,

Airton não estava presente na primeira formação da Septecemia. Nessa época, ele ainda

atuava em outras bandas, como a Neurose. Já Clayton, na época, guitarrista, foi um dos

fundadores da banda, juntamente com os músicos da primeira formação: Fabian (vocalista),

Leôncio (baterista), Mingau (baixista). Na verdade, antes de Mingau, havia um primeiro

baixista, chamado Cléber, mas que logo saiu. Airton só entrou na banda a partir do momento

que Mingau deixou seu posto de baixista, após ter sido aprovado em um concurso público.

Com a entrada do irmão de Clayton, cria-se uma formação um pouco mais estável da

Septecemia.

Essa formação data de 1995, quase que concomitante com a consolidação da cena

metal em Montes Claros. Entretanto, a disposição inicial da banda não era ligada ao metal,

mas sim ao punk hardcore. É certo que as primeiras influências do thrash metal, enquanto

gênero musical estão voltadas também para o punk. Entretanto, em termos de trajetória

musical, essa coincidência não é, de fato, a condicionante para a posterior influência thrash

metal da Vomer. Na verdade, o interesse pelo metal não veio tão cedo. Dessa forma, a ligação

inicial dos membros da Vomer – que ainda era Septecemia – estava ligada ao punk hardcore,

inclusive ao brasileiro. Na parte de cover dos integrantes da banda, constavam músicas dos

Ratos de Porão, que foi uma banda bastante influente no cenário musical do país, tendo

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tendências, inclusive, do metal. Além disso, músicas dos Ramones também podiam ser

encontradas. Apesar de não ser sua grande preocupação, ou mesmo por figurar uma

preocupação latente que, posteriormente iria despontar com mais força, a banda conseguiu

compor algumas músicas, o que resultou em uma pequena gravação, que nunca foi lançada.

A mudança do nome da banda veio de uma descoberta: Septecemia era o nome de

outro grupo:

Antes a banda se chamava Septecemia, bem no começo, a gente era tudo moleque, não sabia nem tocar direito. Aí a gente descobriu que tinha outra banda que se chamava Septecemia, acho que no sul. Aí a gente resolveu mudar, e procuramos outro nome, e eu achei esse nome num livro de anatomia (CLAYTON, 08/08/2009).

E, como já dito, em um livro de anatomia foi encontrado o nome atual dessa banda.

Vomer, na verdade, é o nome de um dos ossos do nariz e que foi considerado como oportuno

para designar toda uma concepção e prática musical. Na verdade, a primeira impressão parece

a de que foi uma escolha aleatória, mas quando perguntados, “o que é Vomer?”, a resposta foi:

“é aquele osso do nariz que você quebra quando leva porrada” (Idem). Mesmo sendo o nome

de uma parte do corpo, de um osso, a alusão indireta com a agressividade, brutalidade e

extremismo existe, desde a simples concepção de um nome para a banda. Trata-se de uma

recorrência da ideologia do punk hardcore. Essa recorrência “veio a calhar” no momento em

que a banda passou a integrar o movimento metal.

Tendo uma formação mais estável e um nome definido, a Vomer passou a figurar,

com mais presença, nos shows, nos eventos de rock da cidade de Montes Claros, ao lado de

outras bandas punk, em sua maioria. Um evento que realmente faz jus de ser citado foi a

participação da Vomer na última edição do Rock da Cidade, em 1995, idealizado por Eltomar

Santoro. Trata-se de um evento que poderia marcar o início de novas incursões roqueiras em

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Montes Claros. Ao mesmo tempo em que havia bandas mais antigas na cidade tocando, elas o

faziam ao lado de um grupo de adolescentes que estavam a trilhar um novo caminho na cena.

A partir daí não houve mais Rock da Cidade e essa geração mais recente do rock em

Montes Claros começou a fazer seus próprios eventos. Entretanto, essa mudança, até que

houvesse locais fixos para a realização de eventos não foi tão simples. De acordo com Airton,

em uma entrevista, entre o surgimento dos eventos de rock nas garagens e a época do fim do

Rock da Cidade, havia poucos locais específicos para as bandas de rock:

Não tinha um lugar fixo igual tem a Casa Fora do Eixo. Tinha o Centro Cultural, que era lugar onde você podia agendar data, Tarde do Rock, do Festival do Pequi e um rock ou outro que alguém fazia, não tinha nada pra falar assim, tem um lugar. Casa de alguém, depois começou a ter Pedrão que era lugar mais fixo. Aí Pedrão virou o templo do rock montes-clarense, todo mundo queria tocar lá ia e tocava (AIRTON, 16/10/2010).

Na verdade, antes do surgimento da Garagem do Pedrão, os locais fixos nos quais

podiam ser feitos eventos de rock eram poucos. Os shows que eram feitos no Centro Cultural,

num momento em que a prefeitura do município ainda dava abertura para os eventos de rock,

dependiam de agendamento, portanto, não tinham a mesma frequência dos eventos que são

realizados na atualidade. Entretanto, houve algumas situações que trataram de encerrar a

possibilidade de uso do Centro Cultural. Num evento específico, na verdade, em um tributo

ao Pink Floyd feito pelas bandas locais. Com um público grande – em um espaço que cabem

cerca de duzentas e cinquenta pessoas –, numa noite que foi agitada, aconteceu um incidente,

no qual as pessoas acabaram quebrando parte das instalações do auditório no qual estavam

acontecendo as apresentações. A reação da administração municipal foi vetar a realização de

shows de rock no espaço.

Dessa forma, ficam os rocks esporádicos, na casa de pessoas que se ofereciam para a

realização de um ou outro evento, além das “tradicionais” tardes do rock, realizadas durante a

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Festa do Pequi. Apenas no ano de 1999, aproximadamente, aparece a Garagem do Pedrão

como local fixo para a realização de shows de rock. E é nesse local que começa, como já dito,

a se proliferar a concepção hardcore e, posteriormente, o metal.

A banda Vomer passa a tocar incessantemente nesse espaço. Na verdade, ela acaba

por acompanhar a mudança gradual de concepção musical que na cena estava se

estabelecendo, em específico nos rocks de garagem. Ela se torna bastante reconhecida por,

provavelmente, responder bem às novas concepções musicais que estavam a se estabelecer.

Os shows da banda, geralmente, agradavam ao público. Mas não foi apenas em garagens que

tocou a Vomer. Havia eventos também no Skate Park, inclusive. Grandes eventos de rock que

havia na cidade, no final da década de 1990, aconteciam lá, no caso, o Rockzone. O

Psickorock, realizado na Aquacenter, um centro esportivo particular, aconteceu pelo menos

em três versões e a Vomer tocou em todas elas.

Mas o caminho até aí envolve a mudança quase que constante da formação da

Vomer. Depois da já citada entrada de Airton, há outra troca. Por se casar e se mudar para

outra cidade, Leôncio deixa a função de baterista, dando lugar para um nome que teve grande

influência na mudança da concepção punk para a metal da banda. Trata-se de Marçal, um

baterista que demonstrava grande habilidade musical para o rock e que já praticava bateria

com enfoque em técnicas utilizadas para se executar músicas de bandas como o Sepultura,

Pantera, entre outras. Isso coincidia com o gosto musical dos irmãos Airton e Clayton, que

eram grandes fãs do Sepultura. Mas isso ainda não marca a mudança total de concepções:

Acho que Marçal foi um dos principais responsáveis por a gente começar a ter uma pegada mais metal, porque Marçal começou a evoluir como baterista, todo mundo na época tava ouvindo muito Pantera, e Marçal começou a pegar muita coisa de Pantera, eu e Clayton sempre gostamos muito de Sepultura, e a gente tentou começar a passar essas influências para as músicas da banda. Até que essas músicas que a gente gravou não eram tão punks mais, já tinham uma coisa mais trabalhada, a batera já tem um lance assim muito de

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pedal duplo, prato, muita coisa, tinha uns riffs mais legais, Clayton já tinha começado a tocar uns negócios diferentes, a banda começou a caminhar. Mas aquela pegada punk era muito forte ainda (AIRTON, 16/10/2010).

Na verdade, Marçal foi visto como um baterista que estava em “evolução”. Em

outras palavras, o desenvolvimento de suas habilidades musicais rumo à estética do metal

possibilitou que a banda pudesse conceber novas formas de se fazer música. Não apenas isso,

mas Clayton e Airton também já tendenciavam mudanças a partir da aquisição de maior

habilidade com seus instrumentos. Mas, como já dito, a banda não migrou para o metal de

uma hora para outra. Na verdade, mesmo com Marçal e com tantas influências do metal, a

Vomer ainda se prestava ao cover, ou ao rearranjo das músicas que tocavam, além de, nesse

momento, gravar três músicas de autoria própria, ainda no estilo punk, entretanto, já

adicionando elementos que seriam mais característicos da influência metal, como o uso de

riffs, a ideia do que se diz como “trabalhado”.

Essa formação também durou por bastante tempo, mas, mesmo assim, Marçal

resolveu sair da banda, numa fase em que ela “crescia” musicalmente. Na verdade, os maiores

problemas que a Vomer sempre teve foi com o fato de bateristas não se fixarem por muito

tempo na banda. Mas, mesmo com a saída de Marçal, rapidamente eles encontram outro. O

irmão de Fabian (vocalista), Boca, se torna o baterista da banda.

Apesar das incursões de concepções do metal, o norte musical ainda era o punk

hardcore. Isso porque esse se mostrava como preferência da maioria. Os ensaios eram

realizados na casa do vocalista, localizada no Bairro Cintra. Tal espaço foi muito importante

para a manutenção das concepções musicais e culturais dos membros da Vomer. Isso porque

era lá que eles se reuniam, discutiam os rumos e concepções de sua prática musical, além de

terem momentos de lazer, nos quais assistiam clipes, ouviam músicas, conversavam, bebiam,

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trocavam ideias, como amigos e isso teve papel fundamental para que as bases musicais da

Vomer se mantessem ou fossem discutidas:

O QG nosso era lá no Cintra, ensaiava lá no Cintra, na casa de Fabian. Lá era tipo o ponto de encontro da galera do metal que ia para lá assim... Era lá no Cintra. A parada nossa que rolava mesmo era lá no Cintra. Aí a gente ensaiava lá num quartinho mofado, um calor do capeta, todo domingo, sábado ou domingo tava ensaiando lá. Regado a caipirinha e pipoca. De vez em quando uma farofa de carne de cobra. Na época gravava muita fita de vídeo e assistia lá. Os caras gravavam, pegava e reunia aquela galera véi, aquele tanto de moleque só para assistir clipe (AIRTON, 16/10/2010).

As condições, a princípio, parecem adversas. No entanto, o local dos ensaios se

mostrava como um ponto de convergência para que a prática musical da Vomer, bem como

suas influências, fosse socializada. Foi nessa época que a banda teve a entrada de seu segundo

guitarrista, Andrey. Ele era um amigo de longa data de Airton, pois tocava com ele na banda

Neurose. Dessa forma, sua entrada foi bem vista.

A reunião de tantas pessoas num lugar como a casa de Fabian foi ponto chave para o

desenrolar musical da Vomer. Mas também foi espaço para o surgimento de divergências

musicais. Com o tempo, as tendências individuais levaram ao particionamento das ideias

musicais da banda. Ao mesmo tempo em que Clayton e Airton tinham um desejo de levar a

banda para uma tendência metal, Fabian, Boca e Andrey tendiam para outro caminho. A ideia

desses três, num momento em que estavam ouvindo novos materiais, principalmente Chico

Science e Nação Zumbi era desenvolver uma prática musical que remetesse a um hibridismo

que remetesse a tais grupos. Sendo assim,

Eles queriam pegar, tocar, e misturar. Eles tavam ouvindo muito Chico Science na época aí eles queriam misturar metal com... Os caras tavam até viajando na época querendo pegar umas músicas, pegar umas músicas de Zé Coco do Riachão, botar umas violas, aí eu falei: véi, esse troço tá viagem demais. Aí começou a desavença (AIRTON, 16/10/2010).

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Essas duas tendências diferentes, por natureza, voltadas principalmente para a

concepção individual que cada um passou a ter de música levou a uma crise na Vomer. Na

verdade, levou ao fim dessa formação. A discordância criada fez com que Clayton tivesse

desentendimentos com os demais membros da banda. Airton passou a não frequentar os

ensaios, pois não mais lhe agradavam. Mesmo assim, a banda se sentia satisfeita ao tocar em

shows. Nos eventos, portanto, havia concordância, provavelmente pelo fato de que as músicas

que a Vomer já tinha em repertório eram indicativas de uma concordância musical que vinha

desde o início dessa formação. Mas os ensaios se mostraram como momentos de tensão e essa

tensão ficou maior do que a satisfação de tocar ao vivo. Sendo assim, Andrey, Fabian e Boca

deixaram a banda, permanecendo apenas Airton e Clayton.

O que a princípio pareceu um grande problema foi, na verdade, responsável pelo

processo que fez a banda ter as concepções musicais que tem hoje. Se, por um lado, parecia

desagradável o rompimento da banda, deixando apenas dois membros na ativa, por outro, vale

ressaltar que se tratava de dois irmãos que tinham toda uma consciência e intenção de seguir

seu trabalho focado no metal e, dessa forma, o ambiente acabou se tonando propício para que

eles tomassem essa tendência como norte musical. Mas as coisas não aconteceram de uma

hora para outra. Clayton e Airton resolveram parar com as atividades por um tempo, isso por

volta do ano 2000, 2001. Eles permaneceram inativos – falando única e exclusivamente das

atividades da banda – por cerca de quatro meses.

Foi nessa época que Airton e Clayton reencontraram um amigo que tinha concepções

musicais semelhantes e que queria tocar. Tim, guitarrista conhecido pelos dois, rapidamente

se dispôs a tocar na Vomer, seguindo a tendência metal que os dois irmãos tanto queriam.

Para seguir as atividades, portanto, só faltava um baterista. Foi quando eles encontraram

Vigílio, que era conhecido dos rocks de garagem e que também partilhava das mesmas

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aspirações dos membros da Vomer. Clayton, por sua vez, passou para os vocais da banda,

atividade que já exercia quando era guitarrista, visto que cuidava dos backing vocals. Mas sua

atividade de guitarrista permaneceu.

Essa formação tinha uma busca em comum: seguir uma linha musical que fosse

ligada ao metal. E foi o que aconteceu. A Vomer passou de uma banda ligada ao punk

hardcore para uma que tocava thrash/death metal. Entretanto, pelo menos a princípio,

prevaleceu a ideia do cover, como elemento fundante de sua prática.

A banda que mais influenciou e figurou nos seus repertórios foi o Sepultura. Isso se

justifica principalmente pelo fato de Airton e Clayton serem fãs da banda desde muito cedo.

Além do mais, Tim e Vigílio compactuavam com os mesmos gostos musicais. Isso contribuiu

para a grande recorrência musical do Sepultura no repertório e performance da Vomer. Mas

vale citar um aspecto curioso. Não são todos os álbuns do Sepultura que fazem parte das

concepções musicais e extramusicais da Vomer. Na verdade, não são todas as concepções

musicais do Sepultura que são compartilhadas com a Vomer. Isso porque o Sepultura tem

uma história específica na cena do metal. Até o álbum Chaos A.D, a banda era considerada

como thrash/death metal. Entretanto, após o lançamento do álbum Roots, muitas pessoas,

principalmente as mais voltadas para o meio thrash/death/black passaram a desconsiderar o

Sepultura como pertencente ao meio metal. Na verdade, Sepultura passou a ser considerada

como new metal a partir daí. Essa visão crítica foi acompanhada pelos membros da Vomer e

isso passou a ser uma característica expressa em seu repertório musical. Para a Vomer,

portanto, o cover do Sepultura tange apenas a sua fase thrash/death metal. Mas isso não quer

dizer que os membros da banda sejam bairristas. Na verdade, eles têm a música Roots em seu

repertório, mas não compactuam, sequer se utilizam dos elementos mais recentes do que seja

o Sepultura na sua construção estilística.

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Fazer cover do Sepultura rendeu boa aceitação para a Vomer. De acordo com Airton,

eles acabaram sendo convidados para tocar em vários eventos e em suas edições

subsequentes. O Psickorock, por exemplo, que já foi citado, convidou a Vomer para tocar nas

suas três versões, por volta dos anos de 2002 e 2003. Não apenas eventos como esse, mas

também eram constantes os shows na Garagem do Pedrão, em rocks que eram

esporadicamente feitos em casas, garagens, entre outros. Entretanto, um evento marcou a

consolidação e o resultado do reconhecimento do público: o Beer Festival, realizado no ano

de 2004. A banda foi convidada para tocar em um evento grande, com várias bandas de

Montes Claros, Belo Horizonte e outras do mainstream, reconhecidas nacional e

internacionalmente. Com esse incentivo, os membros da banda passaram a se esforçar ainda

mais, enxergando uma oportunidade profissional e de reconhecimento nesse evento:

Beer Festival todo mundo animado, aquela coisa, agilizamos tudo pra poder ensaiar, Vigílio, na época tava morando sozinho no Maracanã, eu trabalhava na rádio 98, saía de bicicleta da 98 e ia lá pro Maracanã na hora do almoço, sol rachando, mas ia com gosto. Passou até matéria nossa na TV sobre o Beer Festival na época, não foi? (AIRTON, 16/10/2010).

Com a participação da Vomer no Beer Festival, eles se sentiram encorajados para

retomar determinados projetos. Dessa forma, num consenso, os músicos da banda se

dispuseram para compor músicas novas:

Porque como a gente viu que o show do Beer Festival foi legal, todo mundo tinha curtido o show, a gente chegou num nível, que todo mundo já sabe como é que o outro toca, tinha um entrosamento bacana, tocava cover do Sepultura demais, tava enchendo o saco e queria fazer música, a gente queria gravar e tal (Idem).

A sensação de já se ter um entrosamento, ou seja, uma banda na qual os músicos

conseguiam “afinar” suas concepções musicais e culturais individuais de tal modo que isso já

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lhes permitisse criar coletivamente de forma satisfatória para todos permitiu que a Vomer

buscasse novas formas de se expressar musicalmente. Entretanto, ao contrário do que possa

parecer, a banda sofreu com problemas internos. Apesar do fato de que musicalmente a

Vomer tinha entrosamento, pode-se perceber que ele é por si só, insatisfatório. Isso porque

havia muitas discussões por parte de dois de seus músicos que, apesar de tocarem com

“afinidade musical”, a convivência cotidiana entre eles se mostrava complicada.

Mas a cisão dessa formação não veio desses desentendimentos. Subitamente, Tim,

por motivos pessoais teve que se mudar de Montes Claros. Isso por volta do ano de 2005.

Quase que ao mesmo tempo, o irmão de Vigílio, Marquito, criou uma nova banda, a Tetrex.

Voltada desde o início para trabalhos autorais, Vigílio passou a atuar também com seu irmão.

Foi apenas uma questão de tempo para que ele saísse da Vomer. Mais uma vez ficaram apenas

Clayton e Airton. Foi necessário procurar novos músicos. Rapidamente encontraram outro

guitarrista. No caso, Rafael (Doidin), que tocava em uma banda de punk hardcore chamada

Frango atropelado, que geralmente se apresentava no Skate Park. Mesmo assim, ele não

apresentava todo tipo de concordância musical com os membros da Vomer. Airton relata: “Aí

na época o cara viajava (sic) nos covers de Korn, aí eu falei não. Esse treco aí, eu gosto de

ouvir, mas pra tocar não rola não” (AIRTON, 16/10/2010). Korn é uma das bandas que

integram o movimento new metal e provavelmente por isso não fazia parte da gama de gostos

musicais que permeavam a prática musical da Vomer. Mesmo assim, Rafael permaneceu na

banda.

As atividades cover foram retomadas, uma vez que a banda não tinha mais a

estrutura considerada ideal por seus membros para compor. Era necessário reconquistar essa

capacidade. Mas ainda faltava um baterista. Mais uma vez, os músicos da Vomer

estabeleceram testes. Permaneceram na banda dois bateristas, ambos por um período bastante

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curto. O primeiro se chamava Alexandre Zuba. O segundo era músico da banda Impalement

in Mordor, Charles, que também não permaneceu.

Já no ano de 2006, uma oportunidade apareceu para a Vomer: ela foi convidada para

tocar com uma banda de Belo Horizonte que iria se apresentar em Montes Claros, no caso, a

Drowned. No entanto, a banda ainda estava sem um baterista. Para honrar seu compromisso,

Marçal foi novamente chamado para tocar. Ele aceitou o convite, mas permaneceu apenas até

a realização desse show. A Vomer continuou sem seu baterista.

Ainda no ano de 2006, eles conseguem fazer contato com um baterista, que se tornou

o músico que segue até a formação atual da banda. Léo foi contatado por um irmão de

Clayton e Airton. Nessa época, ele ainda tocava na banda Anilha 25, o que despertou certa

estranheza em Airton. A princípio, ele não concordava com a participação de Léo na banda.

Ainda assim, Clayton e Rafael seguiram com os testes. Airton, ao conhecer Léo mais de perto

e endossado pelos colegas de banda acabou aceitando-o no posto de baterista. Hoje a relação

dos dois é bastante amistosa. Na verdade, com o tempo, Léo acabou tocando com a Vomer,

exclusivamente. Não apenas isso, mas hoje ele é diretamente envolvido nas questões de

produção e divulgação da banda.

Entretanto, no momento em que o baterista estava certo, Rafael deixa sua função de

guitarrista. A banda fica com poucas atividades nesse curto período. Assim, Airton passa a

tocar também na Tetrex. Só que, em pouco tempo, Carrapato foi chamado para ocupar o lugar

de Rafael na guitarra. Carrapato é guitarrista e compositor, tocava sozinho, não estava em

nenhuma banda. Mas por já conhecer os músicos da Vomer e por ter gostos musicais

parecidos, acabou se tornando uma boa opção. Nisso a banda retomou os ensaios, dessa vez

na casa de Clayton e, nessa atividade, surgiu a necessidade de outro guitarrista. Clayton

passaria a se dedicar exclusivamente aos vocais. Surgindo essa oportunidade, Carrapato

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encontrou um candidato, que iria se apresentar no Metalmoc, em 2006. Lá eles encontraram

João Bernardo, um rapaz de apenas quinze anos de idade, mas que impressionou os músicos

da Vomer por sua habilidade, bem como performance e figurino:

Aí eu vi o cara tocando lá, e ele tava meio chapado no dia, cabelão, ele tinha uma presença massa pra caralho veio, ele agitava pra caramba, fazendo solo, você via que o moleque tocava pra caralho. Véi, rola véi, quinze anos, rola. É ele, é esse cara aí. Aí chamamos ele, veio ele, cigarrão no canto da boca, cabelão, quinze anos, guitarra pendurada, calçona frouxona: e aê gad (sic)! Pois é, tava querendo ver se você queria tocar com a Vomer lá, como é que é, rola? - Ô bicho, massa demais! (AIRTON, 16/10/2010).

Sendo aprovado pelos músicos da Vomer, João Bernardo foi convidado a integrar a

banda. Ele aceitou, por já conhecer o trabalho do grupo, já que ele havia assistido ao show do

Beer Festival. Sua presença na banda, aliada ao retorno das atividades de todos marcou um

momento prolífico para que a Vomer passasse a criar suas próprias músicas. E, segundo

Airton e Léo, em praticamente todos os ensaios era criada uma música nova. Os ensaios,

dessa vez na casa de Léo, acabaram se mostrando momentos importantes para a criação

musical. Aconteceram shows que os membros da Vomer consideram memoráveis, como um

na Chernobyl, além de um festival no estacionamento desse mesmo lugar.

Seguindo o ritmo de criação musical constante, a Vomer chegou a produzir o seu

primeiro demo, no caso, o Lord of Hell, em 2007. Trata-se de um CD contendo quatro

músicas, sendo elas: Lord of Hell (com o mesmo nome do demo), Puppets, Temple e Lies.

Eles consideram que esse período, com essa formação, foi a fase em que eles mais se

profissionalizaram, ganharam maturidade com gravações, buscaram formas de crescer

musicalmente, no tocante a técnica instrumental e vocal e que começaram a criar estratégias

de divulgação de seu trabalho.

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197

Essa busca por “profissionalização” é marcada também pela criação do símbolo da

banda, assim como foi refeito o logotipo.

Figura 21: Símbolo da banda Vomer

Como estratégias de divulgação do material produzido pela Vomer, um amigo,

Danilão, um dos antigos sócios do Studio Rock, baterista da banda Soprones (da qual Clayton

é vocalista), por ser graduado em sistemas de informação e conhecer bem as alternativas de

divulgação no meio do rock e do metal passou a ajudar a Vomer. E, dessa forma, conseguiram

um grande feito: ao mandar seu demo para a revista Road Crew, famosa e bastante

considerada no meio do rock e do metal, eles receberam uma crítica bastante positiva sobre

seu material, na coluna Garage Demos:

Porque a Road Crew é assim, chegam milhões de demos e eles lançam no mês aquilo que eles acham que compensa na revista. Aquilo que é bom, ou aquilo que é muito ruim, eles põem lá. Aí saímos na Road Crew, crítica boa pra caramba. Então a crítica foi muito boa, comparou a gente com o Sepultura, com o Exodus. Pra gente foi... No dia que eu cheguei na banca, porque todo dia, depois que a gente mandou a demo pra lá, todo mês eu ia na banca. O dia que eu vi quase caí duro dentro da banca. Eu não sabia se eu lia, ou se eu saia na rua gritando; com medo dos caras terem escrito na revista metendo o pau. Mas ainda bem que tava falando bem (AIRTON, 16/08/2010).

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A comparação feita pela crítica, da banda com o Sepultura não parece novidade. Na

verdade, a Vomer se influencia e muito nessa fonte. Não apenas a crítica positiva na Road

Crew, mas as estratégias de divulgação foram das mais variadas. A maioria delas se

concentrou na internet. O site whiplash.net, por exemplo, bastante considerado por muitos fãs

de metal também veiculou notícias sobre a Vomer. Outros sites como o Rock Freeday, que

funcionam como uma rádio on line tocavam músicas da banda. Os músicos da banda

pagavam cerca de cem reais mensais para que um agente, de fora da cidade, fizesse trabalhos

de divulgação. Em suma, a recepção do Lord of Hell foi bastante positiva e incentivou a

Vomer a fazer um evento de lançamento, em Montes Claros, no ano de 2008. Tratou-se de um

grande show, feito apenas pela Vomer, com o apoio de amigos na organização e produção,

mas apenas para uma banda, a própria Vomer.

A princípio, o show foi pago pelos próprios músicos da banda, com recursos

próprios, bastante escassos. Eles pagaram pela estrutura do som, palco, entre outros. Não

apenas isso, mas esse lançamento foi feito na Praça de Esportes da cidade, o que mostra que

houve negociações com a prefeitura municipal, responsável pelo local. Os ingressos foram

vendidos pelo preço de cinco reais, o que não assustou o público, cuja presença foi marcante e

considerável no evento. Não apenas isso. Eles também compraram CDs, camisetas, adesivos,

entre outros. O resultado foi que a banda conseguiu pagar seu investimento inicial. Mas a

realização do show, no dia propriamente dito, foi bastante conturbada. Isso porque a prefeitura

da cidade achou por bem embargar o evento, alegando que o corpo de bombeiros da cidade

condenou a estrutura da Praça de Esportes. A reação dos membros da Vomer e seus parceiros

foi a de procurar a prefeitura imediatamente. Depois de muitas discussões, com vereadores,

secretário de cultura, entre outros, o show foi permitido sob a assinatura de um termo de

responsabilidade pelos seus realizadores. O que se mostrou evidente aí foi a preocupação da

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prefeitura pelo fato desse ser um evento de metal. Imperou o temor pela violência, fato

marcante em alguns eventos no passado, mas que não era mais tão recorrente.

O show que foi marcado para as 19hs acabou acontecendo às 23hs, pois a estrutura

só foi montada após a autorização da prefeitura. De acordo com os membros da Vomer, nada

deu errado, o show aconteceu sem nenhuma ocorrência de violência, o som funcionou de

forma satisfatória, o público aprovou o evento. Além disso, o clipe da música Puppets foi

gravado nesse show. Na verdade, ele foi produzido posteriormente, mas as imagens que

compuseram o clipe foram captadas no evento. Vale lembrar que os clipes, bem como a demo

foram disponibilizados gratuitamente na internet.

Com o sucesso de tantos intentos da banda, o próximo passo seria fazer shows fora

de Montes Claros, a partir de oportunidades que já haviam surgindo. Contudo, mais uma vez a

Vomer perdeu parte de seus membros. A primeira perda foi João Bernardo. Isso porque ele

não era montes-clarense. Natural de Taiobeiras e sustentado pelos pais, ele era estudante e

chegou à época de prestar vestibular. Pelo fato do curso de sua opção não ser oferecido em

nenhuma faculdade ou universidade de Montes Claros ele teve que se mudar, deixando

também a Vomer. Surgiu a necessidade de um novo guitarrista. Carrapato cogitava Geraldo,

que acabava de chegar do Rio de Janeiro. Já Clayton, Airton e Léo conheceram Thiago,

guitarrista da banda Gory Stage, que lhes agradou pela sua produção sonora, que tendia mais

para o thrash metal, ou mesmo para as aspirações deles.

Com o tempo, Carrapato acabou deixando a banda. Isso permitiu a entrada de outro

guitarrista, no caso, Geraldo, que havia sido sondado anteriormente pelo próprio Carrapato.

Com a entrada de Geraldo, algumas práticas da banda foram refeitas. Permaneceu a mesma

configuração: Clayton nos vocais, Airton no baixo, Léo na bateria, Geraldo e Thiago nas

guitarras. Entretanto, passou a não haver mais a divisão entre guitarras base e solo. Essa

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200

função passou a ser alternada entre os dois. Nessa mesma época, por volta de 2008, por

diversos motivos, a divulgação da banda que era constante na internet – feita por Danilão –

cessou. Na verdade, ela passou a ficar nas mãos dos membros da Vomer, que não a fazem

com a mesma periodicidade que Danilão. Mesmo assim, ainda haviam frutos para serem

colhidos. Havia oportunidades em aberto para que a Vomer pudesse tocar em outras cidades.

E esse acabou sendo o foco da banda. Tal movimentação rendeu dois shows: um em Belo

Horizonte e outro em Juiz de Fora. Houve outras oportunidades, inclusive em São Paulo

Contudo, o investimento por parte da Vomer não seria compensado com base nos acordos que

lhe foram propostos. Não apenas isso, mas o show em Juiz de Fora foi bastante conturbado,

pelo fato da organização não ter dado nenhuma assistência à banda, que não teve sequer apoio

para alimentação e hospedagem.

O ano de 2009 foi relativamente movimentado para a Vomer. Permaneceu a última

formação e aconteceu o show de Juiz de Fora, já mencionado, bem como alguns em Montes

Claros, no primeiro semestre. Já no segundo, o único evento do qual ela participou foi o IV

Metalmoc, no mês de agosto, com um grande público e estrutura, incomum nos eventos de

metal na cidade. Após essa onda de eventos, a Vomer, em consenso, optou por se voltar mais

aos ensaios, no Studio Rock, em sua maioria. A intenção era de reestruturar os shows, as

performances, bem como compor novas músicas para o lançamento de um Full.

Essa intenção segue até o início de 2010. Em fevereiro, acontece um show da Vomer.

Na verdade, ela fez um show de abertura para o lançamento do CD da banda Impalement in

Mordor, na Casa Fora do Eixo. E é nesse evento que Clayton anunciou para o público que a

banda passaria por um momento de reestruturação e que aquela seria, provavelmente, a última

vez que eles veriam um show com aquele repertório. Depois desse evento, a Vomer cessou um

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pouco com os ensaios e parou com os shows. O que aconteceu, no caso, foram reuniões,

buscando estratégias para reestruturar a banda.

No desenrolar desses fatos Geraldo resolveu deixar a Vomer, o que acarretou na atual

conjuntura da banda. No momento atual, estão acontecendo alguns ensaios e reuniões

periódicas, nas quais eles buscam definir se irão ou não admitir um novo guitarrista. Segundo

Airton, a situação tende a buscar sim um novo músico, mas nada é certo ainda. Resta o

respaldo conseguido com o lançamento do Lord of Hell, o que continua trazendo muitos

convites de shows para a banda dentro e fora de Montes Claros. Há bandas que fazem

propostas de turnê com a Vomer. Entretanto, como afirmam seus membros, parece difícil,

principalmente com a saída de Geraldo, que a banda faça mais algum show no ano de 2010.

Além do mais, é prioridade do grupo, na atualidade, reativar suas estratégias de divulgação,

além de retomar os ensaios e os processos de composição de novas músicas. Mas, para isso, é

necessário remontar a Vomer, tarefa cotidiana e que já foi feita com sucesso por eles, por

muitas vezes...

4.2. CONCEPÇÕES, CONTEXTO, MÚSICA...

Compreendendo então a história da banda Vomer, que se desenrola desde 1995,

pode-se entender que ela é, antes de tudo, um agregado de pessoas que professam uma ideia

musical em comum. Na verdade, não apenas musical, mas também social e cultural, já que

música é meio de expressão desses contextos. Sendo assim, as concepções que os membros da

Vomer têm em comum é que dão à música seu resultado sonoro. Da mesma forma, a música,

quando tocada, em ensaios ou em shows, é a expressão de todo um jogo de ideais que são

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articulados corporalmente, sonoramente, enfim, musicalmente. Música, portanto, acaba sendo

o que Blacking (1995) define como o resultado de relações humanas, expressas sonoramente.

Mas, será que a música praticada pela banda Vomer possui o mesmo significado para

todos? Será que todos concordam com as ideias que formam as concepções musicais da

banda? Será que todos os membros da Vomer concordam com tudo o que ela faz, enquanto

grupo, enquanto comunidade?

Berger (1999) faz uma crítica ao modelo funcionalista de Merriam em seu livro que

trata sobre cenas de rock, heavy metal e jazz. Sua preocupação jaz na busca de Merriam que,

segundo sua crítica, não foi completamente alcançada. Nisso, ele quer dizer que o pensamento

de Merriam, na busca de definir música como cultura é válido e correto. Não apenas isso, mas

ele se torna icônico por ser uma obra que trata de romper de vez com as correntes

evolucionistas no estudo da música. Porém, por outro lado, por se pautar nessa perspectiva

funcionalista, acabou por solapar o preceito individual na análise etnomusicológica. Sendo

assim, por mais que Merriam pudesse falar em descrição e compreensão do contexto, isso não

é mais do que a expressão da cultura em um sentido macro, como se ela fosse uma força que

estivesse inacessível para as pessoas que a praticam. A preocupação de Berger, é claro, é com

a ideia de experiência, como a música afeta as pessoas, baseado em uma perspectiva

fenomenológica. Mesmo assim, ele faz uma crítica ao que chama de “contexto”:

“Contexto” social, entretanto, não é uma força anônima separada da conduta humana individual; ao contrário, ele é composto de consequências intencionais e não intencionais de práticas passadas. Similarmente, os eventos típicos de performance e culturas musicais que o funcionalismo descreve são por si só constituídas pelas diversas práticas dos atores sociais1 (BERGER, 1999, p. 12) (Nossa tradução).

1 Social “context,” however, is not an anonymous force separate from individual human conduct;

rather, it is made up of the intentional and unintentional consequences of past practices. Similarly, the typical performance events and musical cultures that functionalism describes are themselves constituted by the diverse practices of social actors.

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Mas a crítica que ele faz ao funcionalismo de Merriam, também é feita a Feld, que

optou por uma ótica estruturalista, além de, segundo o autor, ter feito uma brilhante síntese da

ideia de antropologia interpretativa de Geertz. Na verdade, ele reconhece a façanha de Feld,

cujo trabalho com os kaluli foi essencial para que a etnomusicologia percebesse a necessidade

de se conhecer contextos sociais e musicais em suas microestruturas. Feld, na ótica de Berger,

foi capaz de associar a prática musical kaluli com seu sistema de mitologias, bem como

conseguiu correlacionar a vida cotidiana e concepções musicais de forma eficaz. Feld trouxe,

dessa forma, o que foi chamado de perspectiva nativa (BERGER, 1999). Entretanto, a ideia de

contexto cultural, como a expressão total do conjunto de práticas de um grupo de pessoas,

segundo Berger, é apenas uma parte do problema. A outra parte estaria relacionada às

relações que as práticas musicais teriam com cada um desses kaluli. Assim,

O “nativo” é uma norma reificada, um kaluli sem idade e sem gênero, falante/ouvinte ideal do estruturalismo cuja perspectiva é produzida por um sistema subjacente e inacessível, por si só formado pelas forças maiores do funcionalismo. Aqui, a perspectiva nativa não são os elementos das diversas experiências kaluli compartilhadas, mas um conjunto autônomo de metáforas que relacionam sistemas abstratos de mito, ornitologia, e música2 (BERGER, 1999, p. 13) (Nossa tradução).

Vale dizer que tanto para Berger quanto para este trabalho, as obras que são aqui

criticadas são essenciais. Isso porque elas trazem contribuições importantes para a

etnomusicologia e para a compreensão de música como um elemento da cultura, dinâmica e

não estática. Entretanto, sua ótica crítica traz uma importante questão: a da compreensão da

música como mais do que o resultado de uma macroestrutura chamada “contexto”, mas sim

2 The “native” is a reified norm, an ageless and genderless Kaluli, structuralism's ideal speaker/hearer

whose perspective is produced by an underlying and inaccessible system, itself formed by functionalism's larger social forces. Here, native perspective is not the partially shared elements of diverse Kaluli experiences, but an autonomous set of metaphors that relate abstract systems of myth, ornithology, and music.

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como o resultado de diversos atores, de vieses distintos que estão sempre se articulando,

formando assim esse grande meio social, dotado de uma suposta homogeneidade. Mas, o que

parece ser tão homogêneo, na verdade é uma verdadeira “colcha de retalhos” de concepções

individuais que estão em constante articulação social.

Sendo assim, Cambria (2008) chama a atenção para a questão da “diferença”.

“Diferença”, para ele, é uma questão recorrente nos estudos em etnomusicologia. Fazendo

uma revisão em algumas pesquisas e, associando-as às mudanças de concepção que foram

acontecendo ao longo do tempo, ele compreende que essa questão vem sendo sempre

utilizada como primícia para estudos na área:

Várias dicotomias, centrais em etapas passadas da história intelectual de nosso campo (mas que, muitas vezes, temos tomado emprestadas de outras áreas) vieram reforçar (e confirmar) a oposição binária definidora entre “nós” e o “outro”: civilizado/primitivo, mente/corpo, cultura/natureza, ciência/magia, escrita/oralidade, lógico/pré-lógico, urbano/rural, ocidental/nãoocidental, modernidade/tradição, formal/informal, familiar/exótico e assim por diante (CAMBRIA, 2008, s.p).

Cambria afirma que, mesmo que tenham se transformado os pressupostos teóricos,

essa relação com o “outro” sempre permaneceu. Entretanto, com o surgimento de novas

perspectivas em relação à cultura e às relações culturais/comunicacionais, negando, de certa

forma, essas antigas primícias, não apenas isso, mas, estabelecendo-se novas conjunturas

mundiais, principalmente a partir do período pós-segunda guerra, essa dicotomia deixa de ser

simples, ou mesmo simplificada. Isso também se associa ao surgimento de diversas correntes

de pensamento como o pós-modernismo/pós-modernidade, pós-estruturalismo, pós-

marxismo, pós-colonialismo, entre outros. A partir dessas óticas, enfocando a complexidade e

a mudança radical da ordem das coisas, a “diferença” também se torna uma questão

problemática, carente de revisão.

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Dessa forma, Cambria chama a atenção para Nettl (2003), que fala de uma

perspectiva que muda, não apenas nos estudos em etnomusicologia, mas também nas ciências

sociais. Sendo assim, “a ‘alteridade’ passou a não ser mais pensada como uma característica

predefinida das culturas que estudamos, mas, sim, o que geralmente (mas não

necessariamente) define a posição do pesquisador (o outsider) em relação a elas”

(CAMBRIA, 2008, s.p). Nettl corrobora com essa visão ao dizer que hoje em dia, a

etnomusicologia se mostra capaz de estudar e lançar o seu “olhar” etnomusicológico sobre

qualquer música, sabendo que “mesmo que estudemos nossa própria cultura, tratamos de

fazê-lo como outsiders.” 3 (NETTL, 2003, s.p) (Nossa tradução). Não apenas isso, mas,

compreendendo o mundo numa perspectiva pós-moderna, percebe-se que, na sua atual

conjuntura, a “diferença” se torna uma característica interna, marcante, parte de todas as

culturas. A “alteridade” pode ser uma condição de pessoas que vivem em uma mesma cidade,

bairro, rua, etc. As pessoas passam a ter rostos, gêneros, professam sentimentos de etnicidade,

origens e formações distintas, o que faz delas diferentes ou pertencentes a grupos diferentes,

mesmo que dentro de um contexto social específico:

As sociedades da modernidade tardia, (...) são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta (HALL, 2006, p.17).

3 (...) aunque estudiemos nuestra propia cultura, tratamos de hacerlo como outsiders.

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Dessa forma, a ideia de alteridade passa a ser mais fugidia, mais confusa, e definir

quem seria “o outro” não se torna mais uma tarefa tão simples quanto as dicotomias acima

descritas previam.

Os focos dos estudos em etnomusicologia também se tornam mais amplos. Se essa

área do conhecimento que se presta ao estudo da música na cultura e compreende que essa

música é resultado de relações sociais, ela acaba por acompanhar a mudança radical na

conjuntura mundial, decorrente, principalmente, dessa modernidade tardia (HALL, 2006;

HARVEY, 2006). Dessa forma, as músicas no espaço urbano, ou mesmo as culturas musicais

– e qual não é? – que antes não eram contempladas passaram a ser também estudadas pela

etnomusicologia. Na verdade, aos poucos, o seu foco de atuação deixou de se fixar nos

“objetos” de pesquisa, ideia professada na época de Kunst:

O objeto de estudo da etnomusicologia, ou, como ela era originalmente chamada: musicologia comparativa é a música tradicional e os instrumentos musicais de todos os estratos musicais da espécie humana, dos assim chamados povos primitivos até as nações civilizadas. Nossa ciência, portanto, investiga todas as músicas tribais e folclóricas e todo tipo de arte musical não-ocidental. Além, bem como ela estuda os aspectos sociológicos da música, como o fenômeno da aculturação musical, ou seja, a influência hibridizante dos elementos musicais alienígenas. Música artística ocidental [música erudita] e música popular (entretenimento) não pertencem a seu campo4 (KUNST apud MYERS, 1992, p. 7) (Nossa tradução).

Etnomusicologia, por sua vez, para de se basear em pressupostos voltados para o que

se chama de objeto de pesquisa, qual música se pode ou não estudar, de forma que começam a

aparecer estudos em campos que antes não eram tão familiares para a área, como a própria

música “erudita”, a música popular urbana, entre outros. Na verdade, a própria música

4 The study-object of ethnomusicology, or, as it originally was called: comparative musicology, is the

tradicional music and musical instruments of all cultural strata of mankind, from the so-called primitive peoples to the civilized nations. Our science, therefore, investigates all tribal and folk music and every kind of non-western art music. Besides, it studies as well the sociological aspects of music, as the phenomena of musical acculturation, i.e. the hybridizing influence of alien musical elements. Western art- and popular (entertainment) music do not belong to its field.

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advinda de lugares que outrora eram tão remotos passa também a ser atingida e atingir o

mundo “ocidental”. Música popular (no seu sentido midiatizado, mercadológico) não é mais

algo que vem de lugares específicos, mas acontece em qualquer lugar. Espaços urbanos não

são mais exclusivos de países emergentes, além de que os fluxos migratórios refazem as

tessituras das cidades. Onde estaria o “outro” agora? Quem seria ele? Ora, “alteridade”, como

já dito, é uma característica comum a todos e o “outro distante” não está mais tão distante, de

forma que ele se tornou capaz de se valer de processos e elementos que indicam a

“apropriação” desse “outro” e de fazeres que, antes eram considerados como exclusivamente

“ocidentais” (GUILBAULT, 2006). Consome-se world music em escala global, da mesma

forma em que se produz. O fazer musical se tornou fragmentado de tal forma que suas

influências circulam ao redor do mundo e ele acaba se baseando num enorme fluxo de

informações que tem circulado globalmente (SLOBIN, 1992). A música, portanto, tem se

mostrado como meio de expressão através do qual as pessoas, as comunidades tem resistido à

diferença de poderes que existe em decorrência da globalização. Dessa forma, surge o

conceito que Slobin define como micromusics:

Por micromúsicas eu quero dizer as pequenas unidades musicais com as grandes culturas musicais. Essas não têm desaparecido, apesar das previsões desanimadas dos primeiros comentaristas. Se há alguma coisa, eles estão proliferando hoje como uma parte da grande ressurgência do sentimento regional e nacional e com a rápida desterritorialização de grandes populações, particularmente na esfera euro-americana que esse ensaio trata. O fato central é que hoje a música está no coração do indivíduo, grupo, e identidade nacional, do pessoal para o político, da canção de ninar da mãe refugiada até o “Star-Spangled Banner” no jogo de Baseball5 (SLOBIN, 1992, p. 1) (Nossa tradução).

5 By micromusics I mean the small musical units within big music-cultures. These have not disappeared,

despite the dismal forecasts of earlier commentators. If anything, they are proliferating today as part of a great resurgence of regional and national feeling and with the rapid deterritorialization of large populations, particularly in the Euro-American sphere this essay is about. The central fact is that today music is at the heart of individual, group, and national identity, from the personal to the political, from the refugee mother's lullaby to the "Star-Spangled Banner" at the baseball game.

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Sendo assim, música passou a ser vista de forma mais ampla e os processos que a

fundamentam passaram a ser mais evidenciados. Etnomusicologia, nos dias atuais, pode

estudar qualquer música, sob qualquer enfoque, desde que seu embasamento seja suficiente

para abordar determinado contexto.

Considerando então a abertura em foco que a etnomusicologia tem adquirido ao

longo do tempo e, lembrando que, conforme a perspectiva de Nettl (2003), compartilhada por

Cambria (2008) de que a diferença se mostra como um caráter fundante de todas as culturas e

que é necessário compreender que o “contexto social”, conforme afirma Berger (1999) é, em

princípio, um fazer parcialmente compartilhado, fruto do embate de concepções que são

individualmente formadas, faz-se necessário compreender a banda Vomer nessa perspectiva.

Pensar em metal em Montes Claros, especificamente falando da Vomer, é

compreender que seus membros, num processo de formação musical, tenderam ao consumo, à

incorporação dessa música em suas vidas. Como afirma Ruud (2007), na formação da trilha

sonora de suas vidas, eles se valeram do consumo de símbolos, de elementos musicais que

foram resignificados como fundamentos de seus fazeres culturais. Pelo fato de se tornarem

músicos – partindo do pressuposto de que qualquer pessoa que tenha música em seu cotidiano

pode montar a “trilha sonora” que embasa sua vida –, se tornaram também capazes de

produzir música. Música esta que, sendo influenciada pelas concepções que norteiam a vida

dos membros da Vomer é de caráter reflexivo, ou seja, expressa toda uma memória musical e

cultural, uma trajetória de vida.

Essa trajetória, seguindo os pressupostos teóricos acima apresentados tem cunho

individual e coletivo. Se a diferença é um elemento interno e se o contexto musical e social é

o resultado de fazeres individuais pautados em termos coletivos, faz-se necessário

compreender a trajetória de cada membro da Vomer, bem como sua relação com o mundo, em

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termos musicais ou não. Não apenas isso, mas é também importante verificar a visão musical

e cultural que se estabelece em grupo, mostrando então como essa concepção coletiva de

música se constrói a partir do embate das semelhanças e diferenças individuais.

Então, por que o metal? O que fez com que os integrantes da Vomer se

interessassem, sobretudo, por esse gênero musical? As razões seriam várias, considerando a

trajetória de cada um. Como esta pesquisa enfocou a atual formação da banda, serão descritos

aqui os membros da formação que é vigente desde 2009 até o início de 2010, no caso: Clayton

(vocalista), Airton (baixista), Geraldo (guitarrista), Tiago (guitarrista) e Léo (bateria).

Numa perspectiva individual, a princípio, cada um tem uma trajetória específica e ela

contribuiu, posteriormente, para a perspectiva da banda. Clayton, por exemplo, assim como

seu irmão Airton, não são naturais de Montes Claros. Na verdade, se mudaram para a cidade

na adolescência, época em que já ouviam rock. Naturais de São Paulo, já assistiam a MTV

sempre que podiam, além de estarem presentes em uma cidade cuja história com o rock e com

o metal já era bastante evidente. Rock era um elemento cotidiano para eles, não apenas na

forma de CDs, cassetes, entre outros, mas também de uma cena ativa desde muito tempo.

Chegar a Montes Claros e se deparar com um espaço urbano com recorrências, mas ainda sim,

bastante diferente do que seria São Paulo fez com que eles se encontrassem com uma

realidade que não era a deles. Mas não há como falar que não havia rock em Montes Claros.

Só não se podia dizer que era algo evidente como manifestação totalmente aberta na cidade.

Rock, portanto, acabou por se mostrar como o elemento de afirmação de cada um frente ao

novo contexto no qual se inseriram. Mesmo em Montes Claros que nem sempre tinha o rock

como sua paisagem sonora (PINTO, 2002), ele foi usado como elemento de afirmação das

concepções musicais e culturais de Clayton e Airton. Suas memórias musicais e culturais, por

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assim dizer, remetem ao rock como música cotidiana, como elemento que remete à sua

identificação.

Sendo então o rock e o metal gêneros musicais midiatizados, ou seja, veiculados em

diversos meios de comunicação, o que lhes confere uma possibilidade enorme de difusão e

alcance nos mais diversos locais no mundo, eles também eram acessíveis em Montes Claros.

As influências e “ídolos” de Clayton e Airton, portanto, estavam disponíveis através de

materiais fonográficos, de fitas de vídeo e, posteriormente, do encontro com toda uma cena

musical roqueira na cidade de Montes Claros. Antes disso, a impressão que eles podiam ter da

cidade era a pior possível. Clayton disse, em uma conversa, que se assustou quando, ao chegar

à cidade, em meados da década de 1990, ainda dentro do carro, não conseguiu sintonizar mais

do que três estações de rádio. Não apenas isso, mas segundo ele, se não tivesse conhecido a

cena do rock, sua vida em Montes Claros seria o que ele chamou de “inferno”. Sendo assim, o

rock – e o metal –, consumido através de processos midiatizados, permitiu que os irmãos

Clayton e Airton se “aproximassem” de concepções mais próximas de seus antigos

cotidianos, ao mesmo tempo em que podiam se afastar do que era “estranho” em Montes

Claros. Assim, tal fenômeno é ligado com a ideia de Thompson, entendendo que a recepção

através de fluxos cosmopolitas de informação tende a provocar certo “afastamento

simbólico”:

Como deveríamos entender o impacto social da apropriação localizada dos produtos globalizados da mídia? Quero enfatizar aqui um aspecto-chave deste processo. Quero sugerir que a apropriação do material simbólico globalizado envolve o que descreverei como a acentuação do simbólico distanciamento dos contextos espaço-temporais da vida cotidiana. A apropriação dos materiais simbólicos permite aos indivíduos se distanciarem das condições da vida cotidiana – não literalmente, mas simbolicamente e imaginativamente. Os indivíduos podem conceber, ainda que parcialmente, maneiras de viver e condições de vida totalmente diferentes das que eles experimentam no dia-a-dia. Podem ter alguma concepção de regiões do mundo muito

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distantes de seus próprios contextos geográficos (THOMPSON, 1999, p. 156).

A motivação para se tocar, se tornarem músicos, por sua vez, não veio de outro lugar

senão da influência que o rock teve em suas vidas. Dessa forma, apesar da vontade confessa

de ter uma banda de rock, os dois irmãos não conseguiram fazê-lo em São Paulo. Foi apenas

em Montes Claros, depois que Airton ganhou um baixo e Clayton comprou uma guitarra, que

eles começaram a praticar.

Nem Clayton nem Airton aprenderam música através de escolas ou professores

particulares. Na verdade, sua aprendizagem musical acontecia há muito tempo, desde o

momento em que decidiram consumir, ouvir e manifestarem-se como fãs de rock. Ou seja, a

aprendizagem de como ser roqueiro veio desde o momento em que Clayton e Airton passaram

a buscar formas de fazer parte da comunidade do rock. Em outras palavras, a partir do

consumo de elementos que remetem ao rock e ao metal pode-se dizer que eles começaram seu

processo de aprendizagem musical. É claro que esses elementos só se agregaram à sua prática

musical a partir do momento em que eles começaram a exercer seus papéis de músicos. Mas

falando especificamente do processo de aprendizagem do instrumento musical pelo qual

passaram Clayton e Airton, percebe-se que ambos aprenderam a tocar conforme sua

curiosidade. A recorrência, nesse caso, quando lhes são perguntados como aprenderam a

tocar, é a resposta de que eles aprenderam a “tocar de ouvido”, ou que sua aprendizagem foi

“autodidata”:

Eu sou totalmente autodidata. A única coisa que eu tive de diferente foi que eu peguei um mês de aula com um guitarrista profissional. O resto eu sou autodidata, sozinho. Sempre que eu via alguém tocando, fazendo as notas, eu sempre procurei perguntar. Aí eu chegava em casa, comprava nessas bancas de revistas essas revistas de música, como eu gostava de rock já nessa época, comecei pegar as músicas mais simples, quando eu comecei a gostar. Então, na real mesmo eu

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sou totalmente autodidata. Tudo o que eu peguei foi sozinho. Sempre procurando vídeos de guitarristas, e eu olhava o que dava pra fazer. Eu tive tipo, educação de ouvido boa, então eu tenho facilidade de pegar (AIRTON, 08/08/2009).

A fala de Airton denota que ele não aprendeu a tocar sozinho. Se determinados

contextos musicais são responsáveis pelo que se chama de “comportamento aprendido”

(MERRIAM, 1964), pode-se dizer que Clayton e Airton aprenderam música com base nas

características que marcaram seu contexto e experiência com música. Dessa forma, na

ausência de professores de música, ou de uma escola especializada, ou mesmo pela falta de

informação ou de dinheiro, essa formação ”autodidata” era, na verdade, todo um contexto

pelo qual as pessoas se juntavam para compartilhar conhecimentos musicais. Isso porque o

uso de materiais como vídeo aulas (o próprio nome é denunciativo), revistas com cifras

compradas em bancas de jornal e outros processos como o fato de se ouvir músicas no rádio

para que se possam reproduzir tais sonoridades no instrumento ou mesmo acompanhar com o

próprio instrumento música tocadas em aparelhos de CD (CAMPBELL, 1995) criou todo um

contexto pelo qual se compartilha e se aprende rock e metal. Tocar com os amigos também se

mostrou uma escola. Havia momentos em que eles podiam se reunir com pessoas que também

queriam tocar e compartilhavam experiências. Além disso, a prática individual de exercícios

para desenvolvimento técnico e agilidade ao tocar era – e é – comum. Dessa forma, nessa rede

de aprendizagem se deu a formação “de ouvido e autodidata” de Clayton e Airton. O interesse

pelo metal, por sua vez, veio desde muito cedo, já que, como afirmou Clayton, seu primeiro

vinil comprado em São Paulo foi o álbum Arise, do Sepultura. Mas o ato de tocar

propriamente dito veio apenas a partir do momento em que os estudos musicais de cada um

passaram a prezar pelo que eles chamam de virtuose, que seria basicamente ter a agilidade, a

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213

técnica, o controle e conhecimento musical suficientes para se tocar tais músicas. Metal,

portanto, é sempre visto por eles como uma evolução.

Léo teve caminhos de formação parecidos já que ele, pelo menos a princípio, não

estudou música em escolas especializadas. Na verdade, sua vivência inicial com o rock vem

de uma cidade ainda menor, no caso, São João das Missões, extremo norte de Minas Gerais.

Suas primeiras experiências com o rock vêm de influências como a de Pink Floyd, John

Lennon, trazida através de fitas K-7 por um tio, seminarista no Rio Grande do Sul. Seu

interesse inicial pelo repertório vem daí, ainda em sua infância. Ainda com oito anos de idade,

Léo se muda para Montes Claros e, com o tempo, continua a ser influenciado pela sonoridade

do rock nacional, dessa vez oriunda principalmente de seu irmão, que já tocava e que também

tinha material fonográfico à mão. Em 1998, Léo volta para São João das Missões, onde fica

por mais dois anos. Ao voltar para Montes Claros já tinha interesse por tocar bateria. Suas

primeiras práticas eram baseadas em imitação, tocando “no ar”, buscando imitar movimentos

que geram os toques, a sonoridade e as estruturas rítmicas feitas na bateria, ouvindo músicas e

tentando acompanhá-las. Após um tempo, já com certa habilidade no instrumento, passa a

integrar bandas de rock. Nesse momento, Léo começa a estudar por meio de vídeo aulas, além

de, após começar a tocar na Anilha 25, trocar experiências com Neylson, que já tinha

formação em bateria, pelo Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandez. A partir

daí ele começa a estudar – sozinho – bateria através de uma apostila que era usada para as

aulas no conservatório. As dúvidas eram tiradas com Neylson. Surgiu a partir de seus estudos,

também, como afirma Léo, o interesse pelo pedal duplo, bem como pela sua técnica de

execução. Como houve o interesse por essa técnica, foi também consequente o interesse pelo

gênero musical no qual ela era mais utilizada, pelo menos a seu ver: o metal. Dessa forma,

Léo começou a praticar o pedal duplo para tocar metal, que estava presente no repertório da

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214

Anilha 25, sobretudo metal melódico. Assim como no caso de Clayton e Airton, metal é visto

por Léo, além de uma música que compõe seu ideário e gosto musical, como uma evolução

técnica. Mas, no seu caso, não é apenas o metal que é visto como evolução musical.

Atualmente, Léo faz parte do curso de Licenciatura em Música da Universidade Estadual de

Montes Claros. Lá ele estuda piano. Sua justificativa é a de que ele sentiu necessidade de

aprender “teoria” musical, além da necessidade de aprender um instrumento harmônico.

Geraldo é montes-clarense e começou a ouvir bandas de rock nacional, geralmente

aquelas veiculadas pelo mainstream. Com o tempo, veio também o seu interesse pelo

instrumento (guitarra), bem como de ouvir algo mais “pesado”. Na verdade, emicamente

falando, a ideia de “peso” parece ser um dos motivos pelos quais as pessoas recorrem ao

metal, no sentido sonoro. A distorção das guitarras, a velocidade ao se tocar, o alto volume,

tudo isso implica na ideia de “peso”. Além disso, implica também em virtuosismo e

desenvolvimento técnico. Dessa forma, ele acabou se interessando pelo metal. Sua formação,

também vista por ele como “autodidata”, a princípio, teve um diferencial das demais. Geraldo

morou por um tempo no Rio de Janeiro onde, diferente de seus colegas de banda, fez um

curso de guitarra no Conservatório Villa-Lobos.

Já Tiago é montes-clarense e desde pequeno escutava rock. Não apenas rock

nacional, mas seu pai gostava de AC/DC, desde que ele tinha seis anos de idade. Não apenas

isso, mas também Madonna, Roxette, Scorpions, Raul Seixas, entre outros. Na sua

adolescência ele já se interessava por hard rock e por bandas nacionais, como Legião Urbana,

Ultraje a Rigor, Biquíni Cavadão e Titãs. Isso o motivou a estudar violão, por conta própria.

O interesse em tocar metal veio por volta dos seus quinze anos, começando por Black

Sabbath, passando pelo speed metal, hard rock, chegando até o thrash metal. Aos poucos ele

acabou estudando guitarra, já que esse instrumento se mostrava como um elemento

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215

importante nas músicas que gostava. Como ele afirma, sua formação musical, mesmo em

guitarra, foi – e é – “autodidata”. Sua ligação com o instrumento, tocando metal tem a ver

com o que ele chama de “atitude”, o que seria, no caso, a forma como acontece a performance

desses músicos, as sonoridades características, além das técnicas de execução empregadas.

Como pode ser visto, observando o caso de cada um, há recorrências, mas também

há diferenças marcantes no tocante às suas experiências musicais, descrita aqui de forma

breve. As semelhanças estariam ligadas a processos recorrentes na experimentação musical.

Já as diferenças existem de acordo com a experiência musical propriamente dita e o

significado que ela tem na vida de cada um. Sendo assim, no delimitar de processos, pode-se

dizer que os membros da Vomer passaram por muitas situações que se mostraram recorrentes

para todos, como por exemplo: a aprendizagem musical que eles definem como “autodidata”,

a vivência musical através do consumo de artefatos culturais, a troca de experiências musicais

com amigos e parentes, entre outros. Da mesma forma, há processos que não são marcantes

na vida de todos, como a necessidade de se procurar uma escola de música especializada.

Entretanto, dizer que os músicos da Vomer experimentaram as mesmas situações de vivência

musical – levando em consideração apenas a natureza desses processos – é negar o contexto

no qual cada um se formou. O significado gerado pela assimilação musical na vida dessas

pessoas é distinto. Por mais que os materiais fonográficos sejam recorrentes, comercializados

e circulem tanto em São João das Missões quanto em São Paulo, a relação estabelecida entre

as pessoas e as músicas, no âmbito individual é peculiar a elas. Já que a assimilação do rock,

do metal, no que neste trabalho se define como música popular é pautada no consumo de

elementos musicais que são resignificados, pode-se dizer que essa resignificação é uma

abstração individual e fundada nas relações contextuais que uma pessoa tem com os fatos e

ambientes a sua volta, em diversas fases de sua vida. É Nesse sentido que Thompson entende

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que, antes de um suposto afastamento simbólico advindo da recepção de materiais veiculados

em fluxos globais de comunicação, deve-se entender que o contexto da recepção influencia a

resultante cultural do lugar ou das pessoas que “recebem” esse material:

(...) dado o caráter hermenêutico da apropriação, a importância que as mensagens da mídia tem para os indivíduos e as maneiras de utilizar os materiais simbólicos mediados dependem crucialmente dos contextos de recepção e dos recursos que os receptores têm a disposição para os auxiliar no processo de recepção (THOMPSON, 1999, p. 155).

Sendo assim:

Quando os materiais simbólicos circulam em escala sempre crescente, os lugares se tornam situações onde, em extensão cada vez maior, os produtos globalizados da mídia são recebidos, interpretados e incorporados pelos indivíduos. Através de processos de apropriação localizada, os produtos da mídia são transplantados para os conjuntos de práticas que modelam e alteram seus significados (THOMPSON, 1999, p. 156).

Nesse sentido, Walser (1993), ao tratar da questão do heavy metal, define um escopo

de visão acerca dessa manifestação. Para ele, o gênero musical deve ser visto na forma de um

discurso. Discurso esse que gera infinitos significados individuais. Ele acredita que gêneros

musicais, em especial aqueles que são amplamente rotulados no que é definido como música

popular – como é o caso do heavy metal – possui fronteiras flexíveis, sempre permitindo

mudanças e fusões musicais, performáticas e estilísticas das mais diversas. Não apenas isso,

mas o significado musical produzido através de sua experiência não pode ser definido como

apenas um como aquele que é amplamente compartilhado em contexto, pelo menos não em

princípio. Na verdade, acredita-se que, considerando essa perspectiva, os significados

produzidos através da prática musical são diversos, tantos que talvez não seja sequer possível

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mapeá-los. Não apenas isso, mas os conceitos, operações e significados produzidos pela

vivência musical não são estáveis:

Como gêneros e discursos, significados musicais são contingentes, mas nunca arbitrários. Nunca existe uma correspondência essencial entre signos musicais particulares ou processos e significados sociais específicos, ainda que sinais e processos nunca pudessem circular se eles não produzem tal sentido. Significados musicais são sempre fundados socialmente e historicamente, e eles operam sobre um campo ideológico de interesses conflitantes, instituições, e memórias6 (WALSER, 1993, p. 29) (Nossa tradução).

Como já foi discutido acima, como esperar tantas concordâncias musicais em

contextos tão pautados pela diferença e fragmentação na atualidade? Não apenas isso, mas

essa fragmentação implica em mudanças musicais e culturais constantes, além de ampla

atividade musical individual. Mesmo assim, o gênero musical não deixa de existir, nem de ser

delimitação para toda uma prática musical, como é o caso do metal. A verdade é que mesmo

numa perspectiva fragmentária e num campo no qual os significados musicais estão em

constante (re)discussão, variando conforme a realidade do contexto em que são articulados

(HALL, 2006; THOMPSON, 1999), existe toda uma flexibilidade que permite que esses

conceitos sejam articulados sem que haja uma cisão significativa no contexto. Essas quebras e

separações, no metal, se mostram como resultado desses conflitos ideológicos que, a

princípio, parecem acontecer internamente.

No entanto, nem tudo é discordância. Isso porque, assim como explicitado acima, na

descrição das trajetórias dos músicos da Vomer, são comuns alguns processos de vivência

musical, bem como boa parte das tecnologias e materiais pelos quais as experiências musicais

acontecem. Querendo ou não, um show de rock, um álbum de uma banda, são elementos

6 Like genres and discourses, musical meanings are contingent but never arbitrary. There is never any essential correspondence between particular musical signs or processes and specific social meanings, yet such signs and processes would never circulate if they did not produce such meanings. Musical meanings are always grounded socially and historically, and they operate on an ideological field of conflicting interests, institutions, and memories.

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agregadores, formadores de comunidades. Essas comunidades, apesar de se situarem em um

campo de constante conflito ideológico, também geram concordâncias que tangem ao que seja

ou não música, o que seja ou não “autêntico”. Isso porque mesmo que um gênero musical não

seja um emaranhado de concordâncias é necessária uma base fundante da comunidade,

elementos que, no mínimo, definam o que é metal, ainda que eles se percam na fluidez de

suas fronteiras:

Isso é uma visão pós-esruturalista da música em que ela vê toda significação como provisória, e não busca por verdades essenciais inerentes nas estruturas, considerando todos os resultados como produzidos através das intenções entre textos e leitores. Isso vai além ao sugerir que a subjetividade é constituída não apenas através da linguagem (...) mas também através do discurso musical 7 (WALSER, 1993, p. 29) (Nossa tradução).

Dessa forma, Walser acredita que os contextos musicais e as músicas, por mais que

estejam embasados por constante resignificações e discussões de conceitos musicais, são

fundados em uma visão compartilhada social e historicamente. A experiência conjunta de um

gênero musical, a já citada experiência individual parcialmente compartilhada (BERGER,

1999) também se mostra como importante para a definição de um gênero musical, bem como

sua prática. Da mesma forma, Fabbri acredita que gênero musical é um “conjunto de eventos

musicais (reais ou possíveis) cujo curso é governado por um conjunto definido de regras

socialmente aceitas8” (2009, p. 1) (Nossa tradução). Para construir então, conceitos como o

de gênero musical, parece ser necessário o compartilhamento constante – e dinâmico – de

concepções, que podem sim ser formadas a partir da experiência individual em conjunto, em

um contexto:

7 This is a post structural view of music in that it sees all signification as provisional, and it seeks for no essential truths inherent in structures, regarding all meanings as produced through the interaction of texts and readers. It goes further in suggesting that subjectivity is constituted not only through language, (…) but through musical discourses as well.

8 (…) set of musical events (real or possible) whose course is governed by a definite set of socially accepted rules.

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Entretanto, o fato que as ideias podem ser bastante consistentemente comunicadas, sem consideração com as nuances da resposta individual, é o que aponta para a importância dos discursos musicais como sistemas coerentes de significação. O alcance das possíveis interpretações pode ser teoricamente infinito, mas na verdade certos significados preferidos tendem a ser suportados por aqueles envolvidos com um gênero, e significados variantes são comumente negociados9 (WALSER, 1993, p. 33) (Nossa tradução) (nosso grifo).

Se os gêneros musicais são negociados socialmente, mesmo que em comunidades

que transcendam os limites do local, é bem possível que haja elementos, concepções que

sejam amplamente compartilhadas e tidas como características que os embasam. Como já

dito, fundamentado nessa base que compõe o gênero musical estariam também as variantes e

as infinitas interpretações que podem acontecer decorrentes dessa prática musical. É

justamente pela possibilidade teórica de haverem bases que são “comuns” que Walser define

características musicais e sociais inerentes ao heavy metal, ao mesmo tempo em que as expõe

a uma grande variante de interpretações, de músicas que, apesar de trazerem certas

representações, também estariam abertas para outras, tanto pelas pessoas que integram a

comunidade quanto por aquelas que não concordam com ela.

Sendo assim, considerando a ideia que aqui se faz de gênero musical, como um

emaranhado de significações e pensamentos individuais parcialmente expressos em conjunto,

pode-se entender a banda Vomer, bem como o gênero musical que pratica, como resultado

desses processos. Gênero musical, portanto, se mostra como o resultado de um complexo

construto social, uma concepção musical/cultural que engloba não apenas música, em seu

aspecto meramente sonoro, mas também fazeres diversos, posicionamento mercadológico,

performance, além de uma relação tensa entre contextos. Isso porque nem sempre gênero

9 However, the fact that ideas can be fairly consistently communicated, regardless of the nuances of

individual response, is what points to the importance of musical discourses as coherent systems of signification. The range of possible interpretations may be theoretically infinite, but in fact certain preferred meanings tend to be supported by those involved with a genre, and related variant meanings are commonly negotiated.

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musical se mostra como concordância. Pode ser também um campo tenso em uma

comunidade musical, divisor de opiniões.

Considerando a banda Vomer como um grupo ligado a um gênero musical em

específico, no caso, o thrash metal, pode-se dizer que sua relação com ele – na perspectiva

aqui apontada – seja geradora dos padrões, dos processos norteadores dos seus aspectos

performáticos, estilísticos e estético-musicais. Para compreender esses processos, será feita

uma explicitação daqueles vistos como principais. Através desses processos, a banda Vomer

constrói suas bases e concepções. Entende-se que esses conceitos que norteiam o gênero

musical que ela professa – compreendendo que, numa perspectiva pós-estruturalista o gênero

musical é também fruto de uma interpretação da banda – são formados a partir de vários

processos, em várias perspectivas. Estariam eles ligados 1) à relação que a Vomer tem com o

consumo de materiais musicais, oriundos do mainstream e resignificados em um discurso

próprio, dentro da estética underground. Tudo isso também se mostra como o reflexo de uma

prática musical mundializada; 2) à configuração musical decorrente dessa resignificação; 3) à

ligação da banda com a cena musical da cidade, englobando assim as instituições e iniciativas

em apoio ao rock e ao metal; 4) à performance da banda, que seria um momento no qual a

Vomer negocia suas concepções musicais e culturais com o amplo contexto que é a cena metal

montes-clarense. Não apenas isso, mas há outros momentos de performance, como os ensaios,

que são meios de negociação entre os músicos da banda.

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221

4.3. O CONSUMO DE MATERIAIS MUSICAIS

Em uma conversa com Clayton, vocalista da banda Vomer, ele declarou que, em São

Paulo, teve suas primeiras experiências com o metal. De que forma seria? Sua maior

lembrança está relaciona à compra de seu primeiro disco de vinil, no caso, o álbum Arise, do

Sepultura. Em Montes Claros, sua opção era comprar fitas K-7, frutos de reproduções pirata

feitas em camelôs e lojas de discos na cidade. Posteriormente, tornou-se possível conseguir

fitas de vídeo gravadas de programas da MTV, baixar músicas na internet. Quando começou a

trabalhar, passou a comprar discos, que eram compartilhados com seu irmão. As roupas que

os músicos da Vomer usam, em sua maioria, são camisetas contendo imagens de bandas que

consideram importantes.

Léo admite que sua formação musical também vem do consumo de materiais

fonográficos. Da mesma forma, seu “estudo” musical, sua formação como baterista está

ligada a “imitação” de padrões que ele escutava em CDs. Geraldo e Tiago também tiveram

toda uma vivência através do consumo de materiais fonográficos. Já em entrevistas feitas com

a banda, seus membros sempre mostram influências de bandas importantes do cenário do

metal, no caso, grupos como o Slayer, Lamb of God, Arch Enemy, Sepultura, entre outras.

Não apenas isso, mas o repertório cover da banda possui músicas do Sepultura, em sua

maioria.

Dessa forma, pode-se considerar que a experiência musical dos membros da banda

Vomer está diretamente ligada com a difusão, distribuição e consumo de materiais

fonográficos. Como já dito, de uma forma ou outra, música é basicamente consumida por

eles. Mas, como já explicitado na seção “Música Popular”, não se trata da imposição de

modelos musicais ou de materiais que funcionam como elementos alienadores. Todo esse

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222

consumo é auto-orientado, bem como é um elemento delimitador do ideário musical da banda.

Como já dito, na ótica de Ruud (2007) a composição de uma vida musical se dá através da

resignificação de materiais que são comprados, baixados na internet, compartilhados entre

amigos e parentes, entre outros. Mais do que um processo desigual de poderes entre as

pessoas e a indústria fonográfica, verifica-se a partir dessas relações que a construção desse

ideário vem da assimilação musical que os membros da Vomer fazem de determinadas

músicas para seus cotidianos (RUUD, 2007). Nesse sentido, Ruud chama as pessoas que têm

a música tão enraizada, através do seu consumo através de sua fixação em fonogramas, de

headphone generation. Sua experiência musical, portanto, passou a ser consideravelmente

aumentada por essa possibilidade, de forma que “foi dito da geração que cresceu nos últimos

vinte anos que eles têm ouvido mais música antes deles irem para a escola do que seus avós

ouviram em suas vidas inteiras10” (TAGG apud RUUD, 2007, p. 35) (Nossa tradução). Não

apenas isso, mas a variedade musical exposta na vida dessas pessoas se tornou imensa, além

de mundializada, de forma que comunidades musicais com gostos parecidos se formam ao

redor do mundo, a todo o momento.

Nessa perspectiva, na possibilidade de escolha e resignificação de materiais musicais

para formação de um discurso próprio, a partir desses processos, a Vomer e seus músicos

escolheram músicas, elementos que acabaram por compor não apenas seu repertório a ser

executado, mas que também influenciam as formas pelas quais eles veem o mundo. Para cada

um, o rock e o metal têm uma importância específica, por mais que os processos pelos quais

se deram suas vivências musicais fossem parecidos, num sentido geral. Essas músicas que

10 It has been said of the generation that has grown up in the last twenty years that they have heard

more music before they go to school than their grandparents had heard in their whole lives.

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223

foram consumidas acabaram, portanto, “sonorizando” vidas diferentes, através de processos

parecidos.

Porém, em se falando da banda como um todo, pode-se ver que em uma lógica

musical construída em consenso, sua visão continua pautada no consumo musical. Isso

porque, mesmo que com significados diferenciados, os músicos da Vomer são diretamente

envolvidos com esses processos. Mais do que isso, porque se pode dizer que diversas pessoas

estão ligadas ao consumo musical, desde a música sertaneja ao rock. Há um ideal comum que

seria o consumo e a busca pelo consumo de metal, na verdade, a linha thrash/death/black

metal. Sendo assim, a busca específica por repertórios como elementos representacionais, a

princípio, parecem ser elementos chave para a formação de comunidades metal e, no caso da

Vomer, a necessidade de executar tais músicas faz com que ele seja compartilhado, gerando

diversos significados, desde aqueles compartilhados coletivamente até os que são

individualmente produzidos.

Acontece que não apenas de consumo musical se estabelecem os padrões musicais e

performáticos da Vomer. Abordar a questão do consumo, da absorção de símbolos, de

elementos musicais é apenas um lado. O outro estaria ligado com as ações da banda em

relação a essa absorção. Em outras palavras, pode-se perceber que a Vomer, por fazer música

e se relacionar com um determinado contexto musical, resignifica os materiais que consome

na forma de sua própria música. Não apenas isso, mas, assim como muitas tendências, ela se

reapropria de uma série de processos de articulação usados pelas bandas e repertórios que

consome.

É consenso entre os músicos da Vomer encarar sua prática musical como “trabalho”.

Sua música, apesar de ter uma grande importância enquanto elemento que representa suas

vidas, concepções e ações são também um meio pelo qual ela se posiciona

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224

mercadologicamente. Isso porque não são apenas elementos tangentes ao estilo e ao gênero

musical que a Vomer absorve e resignifica, sequer o consumo de materiais musicas é o único

meio pelo qual ela constrói o seu ideário. Frente à prática de consumo, de relação

mercadológica no ato de absorção de elementos, a Vomer tem um posicionamento

mercadológico específico. Esse posicionamento se mostra evidente quando se verifica que a

banda integra uma cena musical alternativa, underground. E nessa cena é comum que os

grupos produzam, abasteçam-na com materiais produzidos por eles próprios.

Por conta de concepções que são compartilhadas em cena – e que serão melhor

explicitadas a seguir – a Vomer, bem como outras bandas em Montes Claros também prezam

pela produção musical, pelo tratamento de suas músicas como materiais que também podem

ser comercializados. Todavia, o posicionamento independente da banda é pelo menos em

princípio contrário àquele de muitas bandas que consome. Isso se mostra evidente pelo fato da

estética underground ser contrária ao que é produzido e veiculado no mainstream. Mas, como

já foi explicitado, por mais que a Vomer esteja ligada a um meio alternativo e que negue as

incursões das grandes gravadoras, pelo menos em discurso, sua ligação com elas é fato, já que

boa parte das bandas que se mostram como sua influência são integrantes desse mainstream

(ROSA, 2007). Essa relação, que parece confusa, portanto, se mostra muito mais como um

processo constante de retroalimentação feito por bandas que estão sempre (re)criando

materiais que circulam tanto no mainstream quanto no underground. A Vomer faz parte desse

sistema, uma vez que integra um discurso específico.

Por fazer parte de um meio underground, sendo ele um posicionamento

mercadológico, vale dizer que a Vomer se vale de uma gama de processos de divulgação e

difusão de seu material musical. Na verdade, ela tem feito uso de, basicamente, meios

eletrônicos, também utilizados por outros grupos. O ciberespaço se mostra como o principal

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225

meio pelo qual a Vomer difunde seu trabalho. Nesse caso, o grupo dispõe de uma conta My

Space, outra no Twitter, um perfil e uma comunidade próprios no Orkut e um blog oficial.

Todos esses meios gratuitos dispõem de informações acerca da história, formação, influências

musicais, circunscrição musical da banda, além da possibilidade de supostos contatos.

Os materiais que a banda grava também estão disponíveis na internet. Em entrevista,

os membros da Vomer declararam que sabem que ainda não fazem sucesso e que, por isso, a

prioridade da banda é divulgar seu trabalho. Mesmo tendo já gravado uma demo, que é

vendida até hoje, esse mesmo material é disponível – gratuitamente – na internet. Priorizando

a divulgação, os músicos da Vomer veem a necessidade de serem descobertos, deixando suas

músicas disponíveis para que seja encontrada, o que pode render, assim, novos fãs, lugares

diferentes para se fazer shows, além de um possível contrato com gravadoras ou selos. O

“sonho” declarado da banda é “viver de música”. Para isso ela faz uso de todos os meios

disponíveis. Portanto, a Vomer tem suas músicas – as mesmas do Lord of Hell – disponíveis

gratuitamente para download na rede. Esses locais são o próprio blog oficial da banda, o My

Space, além de sites especializados em alocação de produções fonográficas. Seriam eles, no

caso da Vomer, o Trama Virtual e o Palco MP3. Esses dois sites são especializados na

disponibilização de materiais fonográficos independentes de toda natureza. O Trama Virtual,

em especial, possui uma gravadora, no caso, a própria Trama que constantemente pesquisa

por bandas e músicos que possam ser contratados. Além disso, em decorrência do lançamento

da demo e, seguindo uma tendência de produção de materiais, ao que parece oriunda do

mainstream, mas também amplamente utilizada no meio underground, a gravação de dois

videoclipes. Esses estão gratuitamente disponíveis no You tube, com cerca de mil exibições

cada um, desde a época do lançamento, em 2008. Não apenas clipes estão disponíveis, mas

também filmagens de shows já feitos pela Vomer ao longo de sua carreira.

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226

A finalidade de tantos materiais disponíveis em rede é, basicamente, publicitária.

Para que a banda possa, um dia, alcançar a visibilidade que busca, bem como a possibilidade

de conseguir um grande contrato, o alcance que lhe permita ganhar dinheiro o suficiente para

que sua música seja seu único meio de vida. Dessa forma, seu posicionamento mercadológico,

seu discurso underground, bem como parte da formação de suas bases musicais, estilísticas e

performáticas por meio do consumo de materiais musicais veiculados na mídia de amplo

acesso e segmentada se mostram como elementos fundantes do aparato cultural da banda

Vomer:

Como você consome música, quando (a) música não é uma coisa e (b) ela continua lá depois que você a usou ou você pensa que a usou. Apenas porque a indústria a comercializa como uma mercadoria não significa que nós temos que aceitar seus termos de referência. É tempo das pessoas pararem de falar sobre arte de “consumo” e cultura e assim por diante e começarem a pensar na arte como uma atividade, alguma coisa que você faz. Mesmo comprar e tocar discos são atividades; o disco é apenas o meio através do qual a atividade toma lugar11 (SMALL apud WALSER, 1993, p. XII) (Nossa tradução).

Da mesma forma que Small acredita que atividades que envolvem a ideia de

consumo musical sejam atividades culturais, fazeres praticamente ordinários mediados por um

artefato, um aparato tecnológico, deve-se entender que a prática musical da Vomer, com uma

visão específica visando o mercado musical é, antes de tudo, um fazer cultural, uma

concepção partilhada pelos músicos da banda e aceita em seu contexto. Sendo assim, também

é intenção da banda produzir músicas que se adequem a um mercado, a um meio cultural que

se pauta no consumo de símbolos para produção de suas identidades.

11 How do you "consume" music, when (a) music isn't a thing and (b) it's still there after you've used it

or you think you've used it. Just became the industry markets it as commodity doesn't mean we have to accept their terms of reference. It's time people stopped talking about "consuming" art and culture and so on and started thinking of art as an activity, something you do. Even buying and playing records are activities; the record is only the medium through which the activity takes place.

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227

Se integrando nesse jogo mercadológico da música, tanto na absorção de elementos

quanto na composição de materiais que possa também ser consumido por outras pessoas, a

Vomer acaba por fazer parte de uma rede, a ampliar os meios pelos quais alcança as pessoas,

transcendendo, inclusive, o sistema ao qual se chama de cultura, como aquele territorialmente

delimitado, se referindo exclusivamente ao espaço físico. Na verdade, tanto no consumo

quanto na produção musical, a Vomer acaba por estar em um fazer musical mundializado, ao

se valer de elementos que têm circulado globalmente (SLOBIN, 1992). Os elementos que são

recorrentes em seu estilo musical, o figurino que usa, o fato das letras das músicas estarem

todas em inglês, as sonoridades, o nome do gênero musical que é dominante em seu

repertório, tudo isso são evidências de que a Vomer é montada e remontada também ao sabor

de uma cultura que se encontra mundializada, no caso, a do metal. É possível que as práticas,

inclusive musicais da Vomer sejam aceitas e reconhecidas em outros redutos ao redor do

mundo. Não apenas isso, mas a crítica que a banda recebeu na revista Road Crew quando

lançou seu demo é sinal de que sua música é referenciada como parte do universo metal,

universo esse que existe em escala mundial.

4.4. A INSERÇÃO NO CONTEXTO MONTES-CLARENSE

Por mais que Montes Claros seja uma cidade que a princípio tenha causado

estranheza a Clayton e seu irmão Airton, ela se mostrou como o lugar no qual eles dizem ter

realizado um sonho, o de tocar, de formar uma banda, o que não foi possível em São Paulo.

Da mesma forma, por mais que tenha estudado fora, a possibilidade de se agregar a uma

banda estava em Montes Claros para Geraldo. Léo só começou a praticar bateria após chegar

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228

à cidade. Tiago também se desenvolveu musicalmente no contexto de Montes Claros. Sendo

assim, o local foi muito influente na formação da Vomer, tal qual ela é nos dias de hoje. Cada

membro da banda, ao se deparar com o conjunto de situações, fatos e pessoas da cidade de

Montes Claros teve a condição necessária para se tornar o que são atualmente.

Nesse sentido, Wheeler (2007) trata o local como o meio prolífico pelo qual se dá o

desenvolvimento musical desse lugar. Sem as configurações que ele apresenta, não apenas

fisicamente, no tocante às estruturas físicas, mas também a partir da formação de

comunidades, de pessoas dispostas a determinadas ações e formando certas concepções, não

há como haver o surgimento de práticas musicais. Ao chegarem a Montes Claros, os irmãos

Clayton e Airton logo se depararam com uma cidade que já praticava rock, que fazia eventos.

Airton tocou na última versão do Rock da Cidade. Clayton, já na Vomer, abriu shows com

bandas da época como a Animal Core.

Figura 22: Cartaz do Show da banda Animal Core, com abertura da Vomer

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229

Em outras palavras, os membros da Vomer encontraram uma Montes Claros que já

tendenciava suas práticas ao rock e, posteriormente, ao metal. Tendo se identificado com o

meio, suas práticas vieram a fortalecer as concepções que na cidade se estabelecem. Da

mesma forma, a Vomer pratica uma música que condiz com esse contexto. A música que ela

faz, que toca em seus shows é constantemente negociada em contextos, na sua performance,

que será discutida adiante.

Considerando então que a Vomer faz parte de um contexto, no caso, a cidade de

Montes Claros, pode-se dizer que ela é atuante em um meio que influencia fortemente suas

concepções musicais. O que acontece na cidade de Montes Claros, no tocante à sua disposição

para a prática do rock e do metal, tem ligação com o que a Vomer faz enquanto música. Não

apenas isso, mas seu contexto dita os comportamentos pelos quais a banda deve se valer para

participar dos eventos nos quais ela socializa suas composições, sua performance, o que se

traduz nos shows e festivais de rock e metal da cidade.

Acredita-se que a atual conjuntura que se estabelece na cena do rock e do metal em

Montes Claros implica em práticas que as bandas seguem, negociam, aceitam e negam, no

intuito de estabelecer concepções e ideais compartilhados socialmente. Montes Claros,

portanto, tendo passado por grandes mudanças (ULHÔA, 2000), se tornou passível de novas

formas de atuação, em se falando do rock. Após o ano de 2006, começa a se delinear, com

mais clareza, a cena que na cidade existe até hoje. Surgiram instituições e iniciativas de

fomento ao rock e ao metal, mudando completamente a dinâmica, a periodicidade e a natureza

dos eventos em Montes Claros. Isso afeta as bandas diretamente. Como já discutido e

apresentado, a formação de bandas aumentou consideravelmente, os eventos passaram a ser

mais organizados na intenção de atrair novos públicos, além de que se começou a incentivar

que os grupos tivessem autonomia em seu trabalho. Em outras palavras, na busca pela

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230

configuração de um cenário musical independente, as bandas foram encorajadas a compor, a

criar seu próprio material. A Vomer que já almejava gravar, compor, passou a fazê-lo nessa

época, praticamente. Assim a banda passou a integrar com mais assiduidade os eventos de

rock da cena montes-clarense.

Com a formação de uma cena musical alternativa e que busca se pautar na

independência através da produção, difusão e distribuição de material autoral, a Vomer

conseguiu as condições contextuais que precisava para seguir com seus planos. Isso denota

dois fatos: o primeiro é que a banda já tinha intenções de gravar e seguir uma carreira cujo

material autoral fosse produzido; o segundo é que a cena, “coincidentemente”, passou a

incentivar a produção de tais materiais. O cruzamento desses dois fatos poderia levar a uma

conclusão óbvia: a de que bandas que tinham as mesmas intenções que a Vomer e que em

negociação com a cena da cidade, propiciaram a popularização da prática da música autoral.

No entanto, as coisas não são bem assim. O grande problema que bandas como a

Vomer tinham para ter músicas próprias em seus repertórios estava ligado à falta de

credibilidade que tinham com as pessoas que realizavam eventos que, para angariar mais

público, preferiam bandas cover, além da dificuldade que havia para se divulgar materiais,

bem como gravá-los a baixo custo. Para que elas pudessem ter seu espaço para a performance

e divulgação de músicas autorais, além do barateamento dos custos de gravação e produção de

materiais fonográficos e da maior possibilidade de veiculação gratuita dessas informações em

rede, era necessário que houvesse apoio para que os eventos da cidade permitissem ou

endossassem essa prática. A preocupação inicial das iniciativas de fomento à prática roqueira

em Montes Claros prezou, desde seu princípio, por bandas que possuíssem músicas próprias.

Mas isso não veio de uma pressão de bandas que buscavam essa prática. Na verdade, isso

parece fruto das incursões do Coletivo Retomada que passou a exigir músicas autorais nos

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231

eventos que realizava. Esse “incentivo” fez com que as bandas, o que inclui a Vomer,

passassem a gravar seus materiais musicais. O que acontece é que o Retomada busca a

formação de uma cena musical que sobrevive de forma independente. Essa intenção está

diretamente ligada com Circuito Fora do Eixo. Esse circuito articula, quase que

nacionalmente, essas idéias que chegam à cidade de Montes Claros. Sendo assim, mais do que

por pressão ou articulação entre as pessoas que integram a cena do rock em Montes Claros, as

concepções de música independente são mais um ideal que permeia o Coletivo Retomada e

que serviram, a princípio, como exigência para a participação em eventos. Posteriormente,

essas concepções acabaram sendo o mote para a ação de boa parte das bandas atuantes na

cena em Montes Claros, uma característica quase que “inata”.

Como já evidenciado, a Vomer respondeu a esse incentivo propiciado pelo Coletivo

Retomada, prova disso é que o CD da banda pode ser encontrado em banquinhas, nos eventos

realizados pelo Circuito Fora do Eixo. Mas dizer que essa foi a única medida tomada em prol

da realização de trabalhos autorais no rock e metal montes-clarense é não fazer jus ao que

acontecia na cidade, numa perspectiva mais ampla. A “medida” tomada pelos membros do

Retomada não faria sentido se as bandas não tendenciassem, pelo menos em um número

considerável, a compor. E isso já vinha acontecendo concomitantemente, na verdade, antes

mesmo do Retomada. Apesar de tímida, a produção de músicas autorais surge desde muito

cedo na cena do rock em Montes Claros. A própria Vomer, como mostrado, havia gravado um

material que nunca foi lançado. A banda Feeble tem um CD gravado no início da cena que se

tem nos dias atuais. Não apenas isso, mas as bandas que tocavam na Chernobyl já

compunham músicas também. No primeiro Metalmoc, realizado pela Associação do Rock de

Montes Claros e Região, bandas como a Tetrex também apresentaram músicas autorais.

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232

Tudo isso denota que Montes Claros, em específico o contexto do rock, já possuía

certa predisposição para a composição. Concomitantemente com o Coletivo Retomada, ou até

antes dele, surgem a Associação do Rock de Montes Claros e Região e o Instituto Geraes. Em

que consistiam esses grupos? Basicamente de músicos ou de pessoas que buscavam formas de

promover a cena do rock e do metal em Montes Claros. Além da articulação com o poder

público e da busca constante pela realização de eventos, essas iniciativas e instituições

optaram pelo “incentivo” à produção de música autoral. Como se fala aqui de iniciativas que

foram tomadas por músicos, mostra-se que elas se revelaram como um desejo compartilhado

entre algumas bandas e músicos, o que inclui a Vomer. Isso se espalhou por vários motivos

entre as demais bandas da cidade. Mas o principal poder de negociação entre elas foi o fato de

que as bandas participantes de eventos deveriam ter, pelo menos em parte dos seus

repertórios, músicas autorais. Assim, desde 2006, antes mesmo do surgimento do Coletivo

Retomada, as bandas montes-clarenses já se habituavam à criação musical própria.

Qual seria o papel do Coletivo Retomada, portanto, para a difusão da idéia de música

autoral? Qual seria seu impacto na configuração da visão da banda Vomer? Apesar de – de

uma forma ou outra – ter tomado medidas parecidas com as demais instituições em apoio à

prática roqueira em Montes Claros, pode-se perceber que o Coletivo Retomada teve ações

mais enérgicas na necessidade de criação musical. Não apenas isso, mas, juntamente com a

Associação do Rock de Montes Claros e Região, ele foi o responsável por uma grande

quantidade de eventos que traziam bandas de outras cidades, além de levar bandas montes-

clarenses para outras localidades. Com isso, bandas como a Vomer passaram a ter mais

vivência com um sistema consolidado de produção musical independente. Não apenas isso,

mas, juntamente com o surgimento de estúdios que também passaram a dar apoio na gravação

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233

de materiais de bandas de rock formou-se toda uma rede de concepções que permitiu o

surgimento de uma cena independente da qual a Vomer faz parte.

A banda Vomer integra, graças a sua relação com as instituições e iniciativas de

fomento à prática do rock e metal, uma cena musical independente que tem produzido seus

próprios materiais musicais. Mas o faz por razões próprias. A configuração musical da Vomer

reflete sim uma gama de concepções produzidas em sua relação com o contexto do rock em

Montes Claros. Entretanto, suas ações como integrante dessa cena é resultado de toda uma

negociação que a banda tem com o meio do qual ela faz parte. Se por um lado as iniciativas

em apoio ao rock buscam estabelecer uma cena alternativa, a Vomer se integra a ela pelo fato

de buscar crescer, como banda, nessa cena e estendendo ainda mais essa relação. Como já

explicitado na seção “Rock Independente em Montes Claros”, muitas são as visões

particulares em uma prática musical, em um contexto que a princípio parece homogêneo e de

acordo. Apesar de ter sido a iniciativa que mais ajudou a consolidar o discurso alternativo,

independente e auto-suficiente da cena do rock em Montes Claros, não é intenção do Coletivo

Retomada o encaminhamento de bandas para o mainstream. Como já mencionado, essa visão

não é totalmente compartilhada na cena do rock em Montes Claros. A Vomer, por sua vez,

não teria problemas para se integrar ao mainstream se tal oportunidade surgisse. Integrar tal

movimento poderia causar certa rejeição por parte dos integrantes da cena do metal

(JANOTTI, 2006; ROSA, 2007), mas ainda estar ligado a uma major seria sinal de que a

banda poderia se dedicar completamente a sua prática musical. Mesmo não compactuando de

todas as concepções que são estabelecidas no seu contexto, a banda integra, com sucesso,

grande parte dos shows de rock e metal em Montes Claros. Isso parece ser uma condição

expressa na pós-modernidade. Os sujeitos se mostram de fato fragmentados e determinadas

condições e ações sociais produzem efeitos distintos. Nesse sentido, exemplifica Hall:

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234

Durante as “audiências” em torno da indicação, no Senado, o juiz Thomas foi acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-colega de Thomas. As audiências causaram um escândalo público e polarizaram a sociedade americana. Alguns negros apoiaram Thomas, baseados na questão da raça; outros se opuseram a ele, tomando como base a questão sexual. As mulheres negras estavam divididas, dependendo de qual identidade prevalecia: sua identidade como negra ou sua identidade como mulher. Os homens negros também estavam divididos, dependendo de qual fator prevalecia: seu sexismo ou seu liberalismo. Os homens brancos estavam divididos, dependendo, não apenas de sua política, mas da forma como eles se identificavam com respeito ao racismo e ao sexismo. As mulheres conservadoras brancas apoiavam Thomas, não apenas com base em sua inclinação política, mas também por causa de sua oposição ao feminismo. As feministas brancas, que frequentemente tinham posições mais progressistas nas questões da raça, se opunham a Thomas tendo como base a questão sexual. E, uma vez que o juiz Thomas era um membro da elite judiciária e Anita Hill, na época do alegado incidente, uma funcionária subalterna, estava em jogo, nesses argumentos, também a questão de classe social (HALL, 2006, p. 20).

É óbvio dizer que a citação de Hall não se aplica à cena do rock em Montes Claros

nos termos em que é feita. No entanto, a conjuntura na qual os fatos são apresentados é

indicativa do que acontece nesse contexto. Os atores e os pequenos grupamentos (como uma

banda) têm apresentado identidades tão fragmentadas que um contexto aparentemente sólido

ou monolítico é na verdade uma teia de posicionamentos, frutos de concepções construídas

individualmente. Entretanto, apesar de tantas negociações, a Vomer não deixa de praticar

metal e sua música não deixa de atingir pessoas, tornando-a reconhecida em seu meio. Isso se

dá pelo fato que as pessoas veem a banda conforme se estabelecem suas concepções

individuais. Em outras palavras, a música do grupo causa um impacto específico, ligado ao

que essa pessoa pensa acerca de música, do que a toca especificamente, sem deixar de

mencionar que há sim concepções e sensações que são amplamente compartilhadas.

Assim sendo, pode-se dizer que a banda Vomer se articula com o amplo contexto do

rock e do metal em Montes Claros e que as concepções que são veiculadas através deles são

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235

absorvidas pelos seus músicos. Entretanto, vale destacar que a Vomer é parte desse meio e,

portanto, é influente, negocia com ele e que essas concepções atingem cada ator, cada

grupamento social de uma maneira distinta, o que é denotado a partir do momento em que se

vê que a Vomer estabelece práticas comuns na cena, mas, ao mesmo tempo, as faz por seus

próprios motivos, estabelecidos através da relação que a banda tem consigo mesma, além do

contexto do qual faz parte.

4.5. A PERFORMANCE DA VOMER

Por performance, neste trabalho, serão consideradas todas as ações e momentos nos

quais a banda Vomer expõe seu fazer musical de forma exponencial, no caso, tocando. É

tocando que a Vomer passa sua mensagem, se expressa através de sua música. As pessoas se

ligam – ou não – à banda através da vivência musical. Performance, portanto, não é apenas o

soar dos instrumentos e da voz. É também o que se faz com eles corporalmente, é a teia de

relações que se estabelece entre os músicos da Vomer e as pessoas que lá estão para

compartilhar de um evento, participar, dar a resposta de que a banda precisa para “validar”

sua produção musical.

Nesse sentido, pode-se então perceber que a performance musical é muito mais do

que um show, ou um evento por si só. Na verdade, ela é de cunho social, fundada nas

concepções compartilhadas e negociadas em um contexto. Não se pode considerar a

performance como definitiva, já que ela compactua com a dinâmica de um contexto social.

Portanto, ela nunca é um texto pronto, acabado, mas é, na verdade, algo que está em constante

construção, negociação:

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236

Antes dos músicos começarem sua performance eles têm frequentemente se submetido a um longo treinamento na tradição musical; a música que eles irão executar vai ser significativa o suficiente para eles e para o público para justificar o tempo, dinheiro, ou energia que eles dedicaram ao evento. Os músicos têm certas expectativas da situação em que eles vão estar quanto ao seu papel nela e quanto às ações do público. O público, também, participa com certas expectativas sobre os tipos de coisas que vão acontecer baseados em suas experiências passadas, conceitos sobre o evento, e talvez conhecimento sobre esses performers em particular. A hora do dia e o lugar da performance pode ser significativo, bem como o gênero, idade e status dos performers e público. Ambos podem fazer preparativos para a performance incluindo dieta especial, roupas ou atividades. Quando os performers começam, eles movem seus corpos de certas formas, produzem certos sons e impressões. Eles se comunicam entre si através de pistas para coordenar sua performance. Sua performance tem certo efeito físico e psicológico no público, e algum tipo de interação acontece. Na medida em que a performance progride, o envolvimento dos performers e do público continua, a comunicação acontece, e vários níveis de satisfação, prazer, até mesmo êxtase, geralmente resultam. Quando o evento conclui, os performers e o público têm uma nova experiência, por quaisquer meios, para avaliar suas concepções anteriores sobre o que poderia ocorrer, e sobre o que vai acontecer da próxima vez. Isso pode ser formalizado em revisões publicadas, memorando interno, ou conversação12 (SEEGER, 1992, p. 88) (Nossa tradução).

Com isso, nem tudo o que a Vomer faz em performance deve ser visto como algo que

é aceito. Seus padrões musicais e performáticos são constantemente negociados entre ela e o

público que participa dos shows. “Público”, por sua vez, não indica passividade, já que suas

12 Before the musicians begin their performance they have usually undergone long training in a musical

tradition; the music they will perform will be significant enough to them and to the audience to justify the time, money, food or energy they devote to the event. The musicians have certain expectations of the situation they will be in, of their role in it, and of the actions of the audience. The audience, too, attends with certain expectations about the kinds of things that will happen, based on past experiences, concepts about the event, and perhaps knowledge of these particular performers. The time of day and the place of the performance may be significant, as well as the gender, age and status of the performance and the audience. Both may make preparations for the performance including special diet, clothes or activities. When the performers begin, they move their bodies in certain ways, produce certain sounds and impressions. They communicate among themselves trough cues to coordinate their performance. Their performance has a certain physical and psychological effect on the audience, and some kind of interaction takes place. As the performance progresses, the involvement of the performers and the audience continues, communication takes place, and various levels of satisfaction, pleasure, even ecstasy, usually result. When the event concludes, the performers and the audience have a new experience, by whatever means, trough which to evaluate their earlier conceptions about what would occur, and about what will happen next time. These may be formalized in published reviews, internal memoranda, or conversation.

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237

atitudes de aprovação e negação, mais a moção na qual ele se embala – ou não – através da

música da Vomer são indicativos de aceitação ou rejeição musical.

Considerando então a performance musical da banda Vomer como um evento, um

acontecimento social, pode-se perceber que ela está de acordo com o conceito de Turner: “a

performance é frequentemente uma crítica, direta ou velada, da vida social que cresce; uma

avaliação (com possibilidades viventes de rejeição) da forma que a sociedade mantém a

história” (TURNER, 1988, p. 22) (Nossa tradução).13 A relação que a Vomer estabelece em

suas performances é dialeticamente crítica já que a banda faz mais do que mostrar o que fez

musicalmente, mas sim discutir, de certa forma, as bases contextuais nas quais ela se insere.

Não apenas isso, mas significados e valores são constantemente discutidos, criados (em várias

vias), rejeitados e afirmados, em termos individuais e coletivos. Quando o público se queixa,

é de um show que eles estarão falando provavelmente. Quando surgem críticas na internet,

elas são relacionadas a eventos, geralmente à sua “qualidade”. Quando alguém se torna

reconhecido, isso provavelmente acontece em decorrência de um evento, de uma

performance.

A banda se encaixa então no que Turner (1988) define como “drama social.” Sua

descrição e teorização sobre o tema é bastante complexa e detalhada, implicando em

momentos de exposição, discussão, aceitação e negação do que é exposto até a mudança das

bases sociais e culturais do contexto ou mesmo afirmação das mesmas. Nesse sentido, o autor

esclarece que “essas situações – argumentos, combates, ritos de passagem – são

inerentemente dramáticos porque os participantes não apenas fazem coisas, eles tentam

mostrar aos outros o que eles estão fazendo ou têm feito; as ações tomam um aspecto de

13 The performance is often a critique, direct or veiled, of the social life it grows out of; an evaluation (with

lively possibilities of rejection) of the way society handles history.

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238

‘performance-para-um-público’”14 (TURNER, 1988, p. 74) (Nossa tradução). A Vomer,

portanto, estabelece em cena um “drama social”, uma “performance social”, na qual não

apenas toca, mas expõe também elementos de valor cultural, expressos socialmente, que têm

significados, sentidos específicos, e que são negociados entre ela e os demais participantes

desse processo.

Mas não se pode dizer que é apenas a Vomer que é responsável pela performance. Na

verdade, todos os envolvidos o são. Como afirma Pinto (2002), a performance começa desde

muito antes do ato propriamente dito. As pessoas que preparam, montam, desmontam, dão

suporte, além de todos os atores que estão envolvidos, dos próprios músicos que também são

responsáveis, todos estão envolvidos na performance. Um bom show de uma banda de metal

em Montes Claros e, no caso, da Vomer, estaria ligado não apenas a uma

execução/interpretação musical competente, mas também à qualidade do equipamento de

som, ao desempenho das pessoas que o operam, à organização do espaço no qual o evento

acontece, à infraestrutura oferecida aos participantes. Isso em termos materiais e

organizacionais. Porque mesmo com toda essa estrutura, de nada ela vale se todos não

compartilharem de uma experiência musical/social autêntica.

A performance da Vomer, portanto, também se mostra como um processo pelo qual a

banda lida diretamente com seu contexto. Na verdade, muito do que ela expõe para a crítica

em revistas, sites, do que se encontra registrado na sua demo, foi ou está disposto e discutido

em sua performance. Suas músicas só causam determinadas reações e moções no público pelo

fato da banda compartilhar valores, elementos culturais com seu público. Dessa forma, não é

necessariamente a música que a banda produz que gera a sensação de coletividade, de

14 These situations – arguments, combats, rites of passage – are inherently dramatic because

participants not only do things, they try to show others what they are doing or have done; actions take on a “performed-for-an-audience” aspect.

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compartilhamento, mas sim as representações que são geradas através da vivência social.

Música se torna então o meio pelo qual essas relações acontecem. As sensações e significados

produzidos por essa prática musical que vai além da mera execução sonora (CHADA, 2007)

não são, de fato, produto direto da música por si só, mas sim da relação contextual que as

pessoas tem com ela, em especial no momento da performance. Assim,

As coisas não acontecem com as pessoas automaticamente porque os sons musicais alcançam seus ouvidos: se os sons organizados estão para afetar os sentimentos e ações das pessoas, as pessoas não devem apenas estar predispostas para ouvi-los, elas devem também ter adquirido certos hábitos de assimilação da experiência sensória15 (BLACKING, 1995, p. 174) (Nossa tradução).

O metal praticado pela Vomer só atinge as pessoas de forma significativa, ou seja, só

gera os efeitos desejados, não necessariamente ligados ao transe, ou possessão, mas sim à

moção, performance corporal, empolgação conjunta, manifestações de aprovação, caso as

pessoas que frequentam os shows compartilhem dos códigos necessários para isso. Da mesma

forma, a banda também tem que saber como se valer desses códigos de forma a produzir uma

performance que faça sentido nesse contexto. A resultante desse processo é a prática musical

da banda Vomer.

A partir do momento em que ela busca estender seus limites de atuação, a Vomer

também se pauta no que faz em performance. Ou seja, o que a banda grava, a forma como ela

vê o mundo e o meio com o qual se relaciona, em se falando do local e além dele, são reflexos

de performances, de “dramas sociais”. Antes de galgar novas fronteiras, novos mercados, é

em seu contexto que a Vomer define o que é satisfatoriamente metal, o que vale ser mantido.

Sem fazer “sucesso” em seu meio de atuação a banda ainda não tem maturidade suficiente

15 Things do not happen to people automatically because musical sounds reach their ears: if organized

sounds are to affect people’s feelings and actions, people must not only be predisposed to listen to them, they must also have acquired certain habits of assimilating sensory experience.

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para seguir para outros. “Agradar o público” local é, em princípio, uma forma de validar os

aspectos performáticos, estilísticos e estético-musicais da banda. Sequer a posição de músico

se estabelece sem uma crítica social positiva, validando essa função:

Todos os músicos, então, são especialistas, e alguns músicos são profissionais, embora os graus de profissionalismo variem. Existe, entretanto, outro critério de maior importância, e isso se trata da aceitação do indivíduo como um especialista ou profissional. Em outras palavras, o “verdadeiro” especialista é um especialista social; ele deve ser reconhecido como um músico pelos membros da sociedade da qual ele é parte. Esse tipo de reconhecimento é o critério principal; sem ele, o profissionalismo poderia ser impossível. Embora o indivíduo possa se considerar como profissional, ele não o é realmente a não ser que outros membros da sociedade reconheçam sua afirmação e concordem com ele no papel e status que ele busca para si mesmo16 (MERRIAM, 1964, p. 125) (Nossa tradução).

Por mais que a formação do músico possa ser “individual” – o que não é de fato, por

ser pautada na socialização de saberes, mas ter um discurso que a preza como individual –,

sem o reconhecimento de seu contexto, ou seja, das pessoas que integram seu meio, por mais

que sua vivência musical possa ser individual, a princípio, não há validação de sua função

musical no conjunto.

A Vomer, por sua vez, se liga, em performance, a uma crítica cultural (TURNER,

1988) que se estabelece em seu contexto, no caso, em seus shows. As pessoas que o

frequentam estão em constante negociação com a banda, no intuito de se configurar o que seja

thrash metal – o thrash metal da Vomer – tanto em suas características sonoras quanto nas

demais. Essa crítica é exercida a todo o momento e de várias formas. Pode-se definir que ela

acontece durante o show, através da reação das pessoas ao todo que é o evento, desde sua

16 All musicians, then, are specialists, and some musicians are professionals, though the degrees of

professionalism vary. There is, however, another criterion of major importance, and this concerns the acceptance of the individual as a specialist or professional. In other words, the “true” specialist is a social specialist; he must be acknowledged as a musician by the members of the society of which he is a part. This kind of recognition is the ultimate criterion; without it, professionalism would be impossible. Although the individual may regard himself as professional, he is not truly so unless other members of the society acknowledge his claim and accord him the role and status he seeks for himself.

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alocação e acomodação no local até a sua reação corporal e verbal à atração musical, no caso,

a prática da Vomer. Não apenas isso, mas essa crítica se estende a outros meios. Ela se dá

também após os eventos, ou entre eles, em outra performance social, que tem se desenrolado

principalmente através do ciberespaço. As pessoas, ao postarem em fóruns e chats acerca de

suas opiniões dos eventos que frequentaram também estão estabelecendo uma postura crítica

em relação com a performance da Vomer. Além disso, há uma porção de webzines que fazem

coberturas com fotos e relatos dos shows de rock e metal em Montes Claros. Eles também têm

uma relação crítica com as performances.

Da mesma forma que foi descrita a estrutura de um evento de rock na seção “Eventos

de Rock em Montes Claros” será feita aqui uma interpretação acerca do que acontece em um

evento musical no qual a Vomer estabelece uma performance. Não se nega aqui o fato de que

cada performance, cada execução musical seja única e o fato de que seja um processo de

negociação constante e dinâmico. Os dados que serão apresentados aqui são resultados de

constantes observações feitas em pesquisa de campo, além de análises realizadas a partir do

registro desses eventos. Não apenas isso, mas os dados obtidos e analisados foram levados aos

membros da Vomer e discutidos. Enfim, essa descrição, de caráter analítico, tem o objetivo de

identificar como se estabelece o processo de construção da Vomer, a partir de sua relação com

o contexto, através da performance musical.

Sendo a Vomer uma banda que participa, em sua maioria, de eventos que acontecem

na cena do rock na cidade de Montes Claros, pode-se dizer que a sua performance se pauta,

principalmente, na sua relação com esse contexto. Os eventos dos quais a banda participa têm

a mesma estrutura daquela já citada na seção “Os Eventos de Rock”. Acontece que há eventos

de grande porte e médio/pequeno porte, como já mencionado. A presença e a relação dos

músicos da banda varia de um tipo de evento para o outro. A formação de um grande

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242

espetáculo, por exemplo – como o Metalmoc –, parece prezar por um tipo de relação

público/banda, enquanto os shows realizados em locais como a Casa Fora do Eixo denotam

outro tipo de articulação. Os eventos do tipo do Metalmoc são dotados de palcos com uma

diferença grande entre o público e a banda, de forma que o primeiro fica em um nível inferior

em relação à segunda. Não apenas isso, mas a performance da banda não pode ser voltada

“apenas” para seu público. Eventos como o Metalmoc são amplamente cobertos pela imprensa

local especializada, o que implica em fotografias, filmagens, que se destinam a propagandas

posteriores, além de registros que ficam disponíveis para bandas e realizadores. Com isso, a

Vomer tem que se apresentar tanto para as pessoas que vão ao evento em busca de um show

de metal quanto para as câmeras, os equipamentos que registram o evento.

Mesmo assim, através de uma sonorização específica para locais abertos, a Vomer

destina sua prática musical para as pessoas que foram assisti-los. Nesse sentido, há vários

meios pelos quais a banda tenta “falar” para o seu público. Isso tudo é feito através do

compartilhamento de um mesmo “dialeto” musical, no caso, o thrash metal.

Figura 23: Show da Vomer, de grande porte

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243

Figura 24: Show da Vomer, de pequeno porte

Esse discurso, praticado tanto pela Vomer quanto pelo público que a acompanha é

expresso na performance da banda. As inscrições corporais e iconografias, figurino

específico, movimentações no palco, postura com os instrumentos, expressões faciais,

projeção desses fazeres para o público e a produção sonora nessa performance são dizeres,

formas de compartilhamento de elementos e de concepções culturais com o seu público. Já

este último integra e responde à performance. Há todo tipo de reação. O público – ou seja, as

pessoas que integram a performance, que respondem e colaboram com a prática da Vomer –

pode se apresentar de formas variadas, no tocante ao figurino e inscrições corporais, que

podem ou não estar presentes nas pessoas. Não apenas isso, gritos de apoio, o “agito”, que

consiste na moção corporal que é comum nos shows de metal, o ato do headbanging, bater

cabeça seguindo a pulsação da música – ou não –, além do air guitar, simulação do “tocar

guitarra” e das mãos das pessoas que fazem gestos na forma de chifres representam reações –

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244

no caso, positivas – à performance que a banda estabelece. E o elemento que torna possível

toda essa moção conjunta, essa performance, no caso, acaba por ser a música produzida pela

Vomer.

Figura 25: Público em um show da Vomer

Tudo isso é esperado, é claro, em um show, em especial num feito em grandes

proporções, como é o caso do Metalmoc. Entretanto, apesar de ser amplamente compartilhado

e frequentado, pela sua própria estrutura, alguns aspectos performáticos não são possíveis

nesses eventos. Nesse sentido, os shows de pequeno porte têm características especiais. Locais

como a Casa Fora do Eixo não dispõem de grandes palcos – como já explicitado – ou mesmo

não dispõem de nenhum. Os shows, portanto, são realizados em palcos baixos, ou mesmo no

chão. Isso implica numa maior proximidade entre os músicos da Vomer e seu público.

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245

Figura 26: Proximidade entre público e banda

Um relato de Airton, quando tocou em um festival na Chernobyl, ilustra bem essa

questão:

A gente já tocou lá. Teve uns eventos bacanas de metal lá. Isso foi na época que a gente tava compondo pra gravar o Lord of Hell (2006), foi a época em que a banda mais produziu. E foi um dos shows mais loucos que a gente fez. Foi escroto, porque o Chernobyl é um lugar pequeno pra caralho. Cê tava tocando, cê tava batendo cabeça ali e era perigoso cê bater a testa na cabeça do cara que tava lá em baixo de tão apertado que era (AIRTON, 16/10/2010).

A aprovação do baixista pelo local, pelo evento no qual tocou mostra que a Vomer

estabelece relações diferentes e tem reações e resultados diferentes a depender do porte do

show. Nesse caso, “bater a testa” com uma pessoa que estava no público indica quanta

energia, quão tensa era a relação, cujo expoente poderia se associar com uma catarse, uma

explosão expressa em moção corporal (WALSER, 1993). Não apenas isso, mas pôde ser

observado nos shows na Casa Fora do Eixo que é comum que o público compartilhe do

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mesmo lugar – mas não da mesma função – que os músicos da banda. E assim acontece nos

shows da Vomer. Não apenas o “agito” acontece em um lugar muito mais próximo da banda,

mas também as pessoas geralmente têm a liberdade de subir ao palco e participar ainda mais

de perto dos shows. Dessa forma, os fãs, o público faz air guitars, além de bater cabeça

juntamente com os músicos da Vomer. A performance, nesse caso, se torna ainda mais cheia

de moção, de forma que os movimentos dos músicos se tornam ainda mais próximos do que é

feito pelo público.

Figura 27: Público dividindo o palco com a Vomer

Através dessa demonstração acerca dos aspectos recorrentes em performances de

grande e pequeno porte na cena atual do rock em Montes Claros, pode-se perceber que, em

diversos aspectos, compartilham-se filosofias. Isso tudo através da performance da Vomer.

Essas concepções são ligadas ao compartilhamento do gênero musical – em sua acepção

social – entre a banda e seu público; dos posicionamentos mercadológicos e ideológicos da

banda em contrapartida – ou concordância – à cena do rock em Montes Claros, bem como o

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247

reflexo do que seria a exposição dos elementos musicais que são resignificados na prática do

thrash metal da banda Vomer.

Por se tratar de uma banda de thrash metal, ou seja, que baseia sua produção num

escopo de elementos que são definidos como esse gênero, é óbvio dizer que a performance da

Vomer está pautada nesse estilo, nesse fazer musical. Da mesma forma, se há um contexto de

aprovação por parte do público que frequenta seus shows, pode-se dizer que ele compartilha

desses códigos, desses valores expressos na prática musical da banda. Sendo assim, thrash

metal, numa concepção mais ampla que o soar da música – mas que também envolve esse

aspecto – é um meio pelo qual a Vomer se relaciona com seu público. Todos os elementos que

são expostos nos shows da banda são, portanto, elementos que a ligam ao seu público,

formando assim o contexto. Como já explicitado, então, a performance da Vomer é marcada

por posturas, gestos, iconografias, posicionamentos e sons que formam a prática musical que

é compartilhada com seu público e que responde de forma similar, ou pelo menos compatível

com o discurso ali professado.

De que forma cada um desses elementos seria exposto e compartilhado em

performance? O corpo, a princípio, é um dos meios pelo qual acontece a comunicação. Isso

porque é através dele que se canta, se tocam os instrumentos, se gesticula, se move, enfim, se

pratica música. Nele também se inscrevem símbolos inerentes às filosofias do metal. As

tatuagens se mostram como elementos marcantes nos membros da Vomer. Através delas,

comunica-se agressividade, símbolos que remetem a bandas, a termos ou imagens que

permeiam o extremismo, pessimismo ou mesmo a tensão, discursos que integram a ideologia

thrash metal. Mas as tatuagens são apenas parte dessa representação mesmo porque, dada a

fragmentação identitária das pessoas na atualidade, é possível que não necessariamente se

tenham inscrições corporais para se fazer parte de uma manifestação como essa.

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248

O figurino, por sua vez, pelo menos no caso da banda é muito importante. As roupas

que os músicos usam e os adereços também são elementos culturais. Assim, é comum aos

membros da Vomer que eles usem roupas escuras, geralmente pretas, além de calças jeans ou

bermudas, ou mesmo calças e bermudas pretas, além de camisas com estampas em xadrez, em

alguns casos. As camisetas podem ou não ter estampas, mas quando as têm, é de bandas que

lhes são influentes, geralmente o Sepultura. Além disso, geralmente eles têm spikes nos

braços, pulseiras com “espinhos” de metal que conotam agressividade e obscuridade

juntamente com as roupas. É comum Léo tocar bateria sem camisa, o que pode indicar uma

performance corporal, já que ele faz movimentos rápidos quando toca e gera um visual

específico. Os cabelos também integram o figurino, mas isso é opcional. Cabelos grandes são

recorrentes, mas nem sempre. Clayton usava cabelos compridos, mas não usa mais. O mesmo

aconteceu com Léo. Airton ainda os tem. Tiago e Geraldo sempre tiveram os cabelos curtos.

Mas vale dizer que há efeitos que se produzem a partir do movimento do headbanging.

Figura 28: Roupas, cabelos e tatuagens dos membros da Vomer

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249

Como mencionado, nem sempre se pode dizer que o público usa o mesmo figurino.

Mas, principalmente entre os Capa-preta, que são assíduos em eventos de metal, prevalecem

roupas, cabelos, acessórios e iconografias parecidas. Entretanto, há fãs que não

necessariamente usam esses elementos e compartilham da prática da Vomer. Há também

outros elementos que são evidentes na performance da banda. Se por um lado há símbolos

estáticos que alimentam as concepções dos músicos e de seu público, por outro há ações que

fortalecem ainda mais esses conceitos. É o caso dos movimentos que condicionam a parte

corporal da performance da Vomer. Sendo assim, em palco, os músicos tem ações específicas

durante o seu fazer musical. Considerando a perspectiva de um público que participa de um

show, pode-se considerar que os que são mais vistos são os guitarristas, o baixista e, é claro, o

vocalista, que tem uma ligação mais direta e próxima com as pessoas que participam. Este

geralmente tem a tarefa de falar mais abertamente, sem nada nas mãos, ou apenas com seu

microfone. Clayton reflete bem as características ideológicas do thrash metal. Sua face tende

sempre a aparentar agressividade. É essa a face que ele quer que seu público veja. Da mesma

forma, Clayton se projeta para o público de forma agressiva, sua moção corporal, quando

acompanha a massa sonora gerada pela parte instrumental da banda. A depender do ritmo,

volume e distorção, Clayton responde a esse estímulo com o headbanging. Num andamento

mais marcado, no qual, em um compasso quaternário, são acentuados o segundo e o quarto

tempo na caixa, enquanto o bumbo segue com variações, mas mantendo, ainda assim, a noção

de primeiro e terceiro tempos, o vocalista faz um headbanging marcando a cabeça de cada

tempo desse compasso. Mas, em andamentos mais frenéticos, com rítmicas mais complexas, o

headbanging também se torna frenético, rápido, indicando uma catarse, uma agressividade e

entrega à moção sonora. Isso contagia o público, que tende a compartilhar essa

movimentação, ou mesmo responder com o “agito”, que se trata de um agregado de pessoas,

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que se movimentam, se debatendo agressivamente, se empurrando ou mesmo se movendo em

círculos. O que pode ser interpretado, a princípio e por um olhar de um outsider como

“violência” o é, mas não a violência como transgressão social. Esse “agito” é, antes de tudo,

uma resposta corporal à sonoridade e ao contexto do thrash metal.

Figura 29: Headbanging

Outro aspecto importante que tange ao vocalista é a sua voz. Nesse sentido, vale

ressaltar como se canta no thrash metal, em específico, na Vomer. Clayton faz emissões

sonoras de caráter gutural, que são, na prática, uma forma de distorção sonora. A voz acaba

tendo uma característica timbrística importante na estética musical da banda. Não apenas o

gutural é usado, mas também o screaming, o uso de gritos ao se cantar. Clayton se vale dessas

técnicas para emitir sons que condizem com a agressividade prevista no instrumental e nas

letras das músicas da banda. As letras, portanto, se tornam “ininteligíveis”. Isso por dois

motivos: o primeiro pelo fato de que todas estão em inglês e boa parte do público não domina

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o idioma e o segundo por causa do tipo de emissão sonora utilizada por Clayton, o que

dificulta ainda mais a detecção das palavras. Mas as pessoas não deixam de se comunicar

nesse contexto. A “ininteligibilidade” da letra, a princípio, não é uma falha, mas sim um traço

estético. É daí que se seguem críticas como a de Walser (1993), que afirma que as pessoas que

analisam apenas as letras das músicas não estão analisando música, mas sim uma parte dela

que não faz sentido sem sua contraparte. No mesmo sentido mas, enfocando a pesquisa em

música popular no Brasil, Ikeda (2000) enfatiza que

(...) entre os estudos dirigidos para a música popular, é bem restrita a quantidade daqueles que enfocam elementos musicais intrínsecos, como, por exemplo, questões rítmicas, melódicas, de harmonia ou arranjo, das formas, enfim, elementos das estruturas sonoras, ou outros, como instrumentação, interpretação e execução (2000, p. 2).

Não se pode considerar que a música seja apenas som, ou apenas um elemento

social, político, cultural, numa perspectiva analítica – em música, é claro. Na verdade, ela é

som, produção sonora, sonorização de um contexto, meio de expressão do mesmo. Sendo

assim,

As normas estilísticas do rock dependem da prática comum, mas diferem das normas da prática comum em formas cruciais. Um entendimento dos padrões peculiares típicos do rock é essencial para análise das peças de rock individuais, e vital para a explicação do poder dessa música como um veículo de expressão para a cultura que o clama como seu (STEPHENSON, 2002) (Nossa tradução). 17

No caso do thrash metal, as pessoas compartilham as ideias de agressividade,

pessimismo catastrófico e crítica social nas letras, mas esses elementos são mais bem

explicitados na sonoridade da banda do que na busca pelo “entendimento” da letra. Frith

17 The stylistic norms of rock depend on ideas from the common practice, but differ from common-practice

norms in crucial ways. An understanding of the typical patterns peculiar to rock is essential to the analysis of individual rock pieces, and vital to the explanation of this music’s power as a vehicle of expression for the culture that claims it as its own.

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252

(2007) define, portanto, que na música popular a voz tem um papel estético importante, mas

não necessariamente a letra. A voz, como elemento estético, no caso da Vomer, se integra à

tessitura musical para expressar toda a agressividade, distorção e violência necessária para

essa performance. A letra como aspecto linguístico, se perde, na maioria das vezes.

Permanece a experiência sonora da voz.

Uma consideração importante em relação à voz é que ela não segue características

melódicas “tonais” ou “modais”, ou seja, por mais que integre uma tessitura “homofônica”,

ela não produz alturas e intervalos que condizem com a parte instrumental. A parte vocal se

torna uma constante emissão de gritos, “grunhidos”, sons guturais. Mas não se tratam de

emissões desorientadas. Na verdade elas seguem coerentemente a rítmica musical, além de

enfatizar com acentos, gritos ou outros elementos determinados momentos musicais. Esses

fatos comprovam que a voz, no thrash metal e na música da Vomer são elementos articulados,

frutos de uma estética própria.

Figura 30: Clayton, em performance vocal

Uma breve análise das letras pode, junto a uma audição, em específico na parte das

execuções vocais, portanto, ser esclarecedor acerca da organização sonora que prevalece na

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articulação com a música. Consideram-se aqui as letras das quatro músicas do CD Lord of

Hell: Lord of Hell, Puppets, Temple e Lies. Todas, em suas letras, tem características

marcantes do thrash metal, voltadas para a crítica extrema, o que os membros da Vomer veem

como a busca pela exposição da “verdade”, como mensagem da banda. Criticam, portanto, os

problemas que se espalham mundo afora, ligados à pobreza, à guerra, à religião, à violência, à

fome, à miséria, à falsidade humana, entre outros. A agressividade expressa sonoramente é

um meio de se mostrar essas temáticas, compartilhadas pelo público, mesmo que ele não

entenda as letras literalmente. Na verdade, nem sempre o que se compartilha é a mensagem da

letra, mas sim o “espírito” ideológico do thrash metal, pessimista, agressivo, crítico. Mas

parece ser uma estratégia de Clayton comunicar a mensagem de cada música. Nos shows da

Vomer, antes de cada música autoral, ele comenta a mensagem expressa nas letras, chamando

o público para uma espécie de reflexão.

Para se entender então essa articulação musical do vocalista, exemplifica-se com a

música Temple, que faz uma crítica às instâncias religiosas, no tocante às suas ligações com

uma suposta exploração econômica das pessoas, além da manipulação exercida sobre elas. A

letra manifesta profunda descrença com as instituições religiosas que parecem ser usadas

como artifícios de poder. Acusando de forma agressiva, a primeira estrofe é cantada sem

maiores alterações, gritando a letra, acompanhando a métrica instrumental: Opium in the

mind, faith in your heart/Sacrificing your life in search of the Sky/Just a wrong person for

words/Written in a more human book than her (exemplo de áudio 1). Já no momento

seguinte, três palavras são enfatizadas, sendo elas prolongadas pelo vocalista, na verdade,

preenchendo dois compassos inteiros: “Bleed/yours/pains” (exemplo de áudio 2). Essas três

palavras recebem atenção especial de todo o instrumental e soam como uma passagem para

outro momento da música, um momento instrumental e outra estrofe: In a fourth

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darkness/lullabies you sing/Without love, you scream/Anything to hold/Searchind blind, for

anything to seek/Kneeling and praying/Until that its faith bleeds (exemplo de áudio 3). Como

a música começa a ganhar um andamento mais frenético, esse momento começa a ser mais

marcado por distorções e uma estrutura rítmica recorrente para a voz18:

Figura 31: Transcrição de um trecho melódico do vocalista da Vomer

A tensão vocal aumenta na estrofe seguinte: knees in the ground/and hand in the

pocket/lower the head/and don't question/you are arrested/sleep happy/this is your life/I will

control. A rítmica muda novamente, indicando frenesi por parte do vocalista. Na verdade, a

voz passa a seguir a bateria que acentua a metade de cada tempo do compasso na caixa, o que

dá à parte vocal um andamento e ritmo tão tenso quanto o da bateria (exemplo de áudio 4).

Dessa vez, o andamento acelera e a fala se torna mais agressiva, o vocal ganha um tom mais

anasalado e ao mesmo tempo distorcido. Tamanha é a distorção nessa parte que, na versão do

CD, ela aparece com uma segunda voz, cantando simultaneamente com a voz principal. Esse

momento antecede o refrão: live for me/give me your Money/don't worry/you will go to the

sky/I see for you/listen what say/I know what is better for us (exemplo de áudio 5). A

primeira frase inicia em um compasso acéfalo. Esse refrão é retomado posteriormente,

seguindo assim, uma variante do formato “canção”, com estrofes, solos e refrão. Após esse

refrão, a letra é retomada em uma única estrofe: The fear makes you pray/asking to survive/It

follows what is written/only waiting for the death. Considerando apenas as partes vocais, ou

18 Como se trata de um vocal gritado e não associado às alturas representáveis em uma partitura, deve-se

desconsiderar as alturas na figura representadas, considerando apenas as estruturas rítmicas.

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seja, os momentos nos quais o vocalista aparece, o que acontece é um retorno ao refrão. Dessa

forma, o vocalista tenta inspirar tensão e frenesi todo tempo, manifestando a agressividade

presente na realidade que a banda retrata através de sua música. A constante mudança de

rítmica entre as estrofes e o refrão indicam o crescimento de uma tensão constante, que leva a

verdadeiras “explosões”, manifestadas corporalmente pelo vocalista, pela banda e pelo

público.

Da mesma forma, as outras canções da Vomer manifestam essa tensão e estruturas

dinâmicas, que geralmente levam à moção corporal e catarse. Um dos grandes responsáveis

pela formação e manutenção da estrutura rítmica das músicas da banda e que estabelece essas

dinâmicas é a bateria. Léo tem um papel importante na performance da Vomer, já que o

thrash metal, além das guitarras, tem estruturas bastante peculiares na bateria que garantem ao

gênero sua identidade sonora. Considerando a necessidade de um virtuose para se tocar as

músicas da banda, já que é grande a variedade de ritmos, de andamentos e de

acompanhamentos a serem feitos, pode-se dizer que além das variações e “viradas” 19, a

bateria de Léo segue alguns padrões recorrentes. Entende-se, é claro, que são explicitados

aqui elementos recorrentes e fundantes da estrutura rítmica da bateria da banda. Como dito, há

diversos incrementos que tornam esses ritmos altamente complexos de serem executados, mas

são interessantes para análises e exposição apenas aqueles que se mostram como plataformas

pelas quais ocorrem as performances de Léo, enquanto baterista. Na música Lord of Hell

prevalecem as seguintes estruturas:

19 “Virada” é um termo comum usado pelos músicos para designar uma estrutura rítmica executada na

bateria para preparar uma nova frase musical.

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256

Figura 32: Padrões rítmicos (bumbo, caixa, cymbals/condução) da bateria

Como mencionado, as estruturas acima são apenas bases pelas quais Léo recria sua

performance musical, em seu aspecto sonoro. Uma breve audição de trechos correspondentes

a essas sequências mostraria que, a princípio, identificá-las e isolá-las como foi feito aqui

denotaria o trabalho, já que ele faz variações correspondentes a seu ideário que remonta às

suas concepções de interpretação musical do thrash metal. É interessante notar também que,

mesmo com variações rítmicas, as músicas da Vomer sempre obedecem à métrica de um

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257

compasso quaternário (exemplos de áudio 6, 7, 8). Da mesma forma, o papel de Léo como

baterista se encaixa nessa mesma configuração e base rítmica.

A própria configuração da bateria de Léo pode dar indicativos de como funciona sua

performance. Na verdade, ela varia conforme o tipo e local do evento. Em shows próprios,

como foi o caso do lançamento do CD Lord of Hell, Léo costuma levar a própria bateria.

Quando isso acontece, as músicas tendem a ter uma maior variedade timbrística, já que ele

usa dois bumbos ao invés de um pedal duplo, uma quantidade maior de pratos, além de quatro

tons para as “viradas”. Quando se tratam de shows em outras cidades, ou mesmo aqueles nos

quais já há uma bateria montada, ele usa uma quantidade menor de pratos e um pedal duplo,

além de apenas dois tons.

Figura 33: Léo tocando bateria em um show da Vomer

O pedal duplo se mostra como um importante elemento na performance de Léo

(exemplo de áudio 9). Sendo o seu uso um traço marcante em gêneros como o thrash metal,

ele é indicativo de coordenação motora, além de virtuosismo, isso visto entre os músicos

montes-clarenses. Musicalmente falando, é um elemento que marca pela tensão, manutenção

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de uma massa sonora constante nas músicas e se mostrando como um elemento importante

para que haja moção musical por parte do público. Mas essa massa não existe apenas por

causa do pedal duplo. O uso de pratos como os cymbals abertos, china de 18 polegadas, um

prato de condução de 24 polegadas, crashs (ataques) de 16 a 18 polegadas são indicativos da

busca de auxiliar os sons distorcidos, de aumentar a massa sonora produzida pela bateria –

que tem uma forma definida, fundada nos padrões de execução do thrash metal –, além de

gerar uma performance que impressione, empolgue e ligue o público.

Ainda no tocante às bases estabelecidas acima, pode-se entender que acontece, no

caso de Léo, certo processo de improvisação. Entretanto, no caso deste trabalho, a

improvisação é compreendida como um processo consciente e não aleatório no qual o

baterista sabe quando e como fazer o que deseja. Improvisação, nesse caso, envolve

habilidade, pensamento rápido e entendimento de sua performance para as adaptações

necessárias. Mas por que se deve pensar na performance de Léo como improvisos? Não em

sua totalidade, mas em partes, o desempenho do baterista varia com a relação com seu

instrumento que, como visto, varia de evento para evento. Não apenas isso, mas Léo declara

em uma conversa que as “viradas” geralmente são “improvisadas” durante os shows. Ou seja,

esse movimento musical tem a ver com sua relação com a execução daquele momento. Em

um show o baterista tem uma vasta opção de padrões rítmicos que poderá usar durante sua

performance. Mas isso se mostra como um processo consciente já que ele não pode alterar as

bases e a coordenação com os demais músicos.

A guitarra é um elemento crucial, além de um marco identitário no metal. Tudo o que

é feito performaticamente através dela se mostra icônico. Não é a toa que os guitarristas têm

certa mobilidade nos shows de metal e são vistos como figuras importantes, com destaque,

juntamente com o vocalista. Quando o público sobe ao palco em shows pequenos, além de

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headbaning eles imitam os guitarristas, fazendo air guitar, o que se mostra como uma ação

que comprova a importância da guitarra como elemento fundante da performance musical no

thrash metal. Isso parece denotar que o instrumental tem uma importância fundamental nas

músicas da Vomer e não apenas “acompanha” o que é cantado. Ao contrário, a massa sonora

que é formada na performance da banda é o resultado exponencial de cada parte do

instrumental.

Os guitarristas, como já dito, ocupam a frente do palco, geralmente. Ficam alguns

passos atrás do vocalista, mas, nos momentos em que executam um solo, ou querem alguma

reação do público, vão à frente. Mesmo estando atrás, sua visibilidade é sempre garantida. As

pessoas que vão aos shows esperam pela performance por parte dos guitarristas. Eles, por sua

vez, quando tocam, usam a guitarra como uma espécie de extensão corporal (PINTO, 2002),

de forma que ela é sempre movimentada, é colocada em diferentes posições durante o show,

além de ser exposta como ícone.

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Figura 34: Geraldo, em performance tocando sua guitarra

A guitarra – como elemento utilizado na performance – denota algumas

características marcantes na música da Vomer. Elas são de ordem sonoro-musical, mas

também cultural. O uso de guitarras, equipamentos de distorção e amplificação – o que tange

não apenas às guitarras, mas também a todos os instrumentos – mostra a profunda relação –

indissociável – que a Vomer tem com a tecnologia específica para essas emissões sonoras

(CAMBRIA, 2008; LYSLOFF, 2006). Sem os aparatos que os músicos da banda usam, não

há a música da Vomer. É claro que amplificação, distorção, instrumentos elétricos não são

características exclusivas da banda, mas sim de todo um meio musical, ou mesmo de vários

meios. Mas essa relação com a tecnologia é de fato necessária para que a Vomer estabeleça

sua prática musical. Da mesma forma, as guitarras parecem denotar essa necessidade. Isso

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261

porque se tratam de instrumentos que só funcionam se ligados a aparelhos de amplificação.

Não apenas isso, mas o timbre característico produzido pelos guitarristas Geraldo e Tiago é

fruto de efeitos, ou seja, de pedais ou pedaleiras, equipamentos que distorcem ou agregam

características específicas ao timbre das guitarras. A relação com a tecnologia, portanto, faz

com que as sonoridades específicas do thrash metal e da banda Vomer sejam possíveis.

Figura 35: Tiago, executando um solo de guitarra

A resultante sonora das guitarras da Vomer, por sua vez, é sempre um som

distorcido, saturado, característico das bandas de metal. Distorção, nesse caso, conota

agressividade, tensão. Mas as sonoridades são apenas uma das formas pelas quais é produzida

a performance das guitarras. Por mais que Geraldo e Tiago passem um tempo preparando os

efeitos, as distorções que irão usar em suas guitarras há mais do que o soar timbrístico de

guitarras distorcidas. A resultante sonora das guitarras é também fruto de um modo específico

de se tocar. Há elementos musicais que geram as estruturas sonoro-musicais que são fruto das

técnicas de manipulação do instrumento musical. São enfatizados, portanto, como elementos

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constituintes da massa sonora que é a música da banda Vomer o power chord, relativo às

construções harmônicas, os riffs, como condutores de ideias musicais e os solos, que são

momentos de exposição das guitarras e que, em performance, consolidam sua posição icônica.

Ao contrário do que possa parecer, a maioria das construções harmônicas das

guitarras da Vomer ocorrem por meio do que se chama de power chord. Esse “acorde” tem

toda uma conotação de “peso” no universo metal, além de ter uma estrutura diferenciada. Se

um acorde comum, no caso, uma tríade, possui os elementos do baixo, um intervalo de terça e

mais uma quinta, o power chord preza pela relação intervalar básica entre o baixo e a quinta

do acorde, ou mesmo entre o baixo e a quarta. A terça é suprimida, de forma que, a princípio,

fica impossível definir se o acorde é maior ou menor. Walser (1993) traz uma explicação para

tal elemento:

Power chords resultam da distorção do soar do acorde mais frequentemente usado no metal e hard rock, uma quinta aberta ou quarta tocada nas cordas mais graves. Power chords são manifestadamente mais do que essas duas notas, entretanto, porque eles produzem notas resultantes. Um efeito de ambos distorção e volume, notas resultantes são criadas pela combinação acústica de duas notas. Elas são mais audíveis em altos volumes, e elas são intensificadas pelo tipo de distorção harmônica usada no tocar da guitarra metal20 (WALSER, 1993, p. 43) (Nossa tadução).

Como dito, é difícil compreender o lugar de um power chord. Mas, combinado com

distorções e amplificação que propiciam altos volumes, esse elemento passa a gerar

resultantes sonoras, o que o torna mais do que o soar de um mero intervalo musical:

A nota resultante mais forte é produzida na frequência que é a diferença entre as frequências das notas principais. Se, por exemplo, o A aberto da guitarra (que vibra na frequência de 110 ciclos por

20 Power chords result from distortion of the chord voicings most often used in metal and hard rock, an

open fifth or fourth played on the lower strings. Power chords are manifestly more than these two notes, however, because they produce resultant tones. An effect of both distortion and volume, resultant tones are created by the acoustic combination of two notes. They are most audible at high volume levels, and they are intensifted by the type of harmonic distortion used in metal guitar playing.

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segundo, ou 110 Hz) e o E acima dele (165 Hz) são tocados como um power chord, então o A uma oitava abaixo (165 – 110 = 55 Hz) vai soar muito proeminentemente como uma nota resultante. Se o A é tocado com uma quarta acima ao invés de uma quinta, D (147 Hz), o D duas oitavas abaixo (37 Hz) será produzido. Essas notas resultantes estão frequentemente nas frequências mais graves que o instrumento por si só pode produzir normalmente; ambos os exemplos resultam na produção de alturas mais baixas que o verdadeiro alcance da guitarra21 (Idem) (Nossa tradução).

Não apenas isso, mas as sequências harmônicas, geralmente conotando músicas

construídas no modo menor, na tonalidade ré, mas também com links em modos como o

mixolídio mostram que os power chords são adaptados sem grandes problemas às músicas da

Vomer. A recorrência da tonalidade ré pode ser explicada a partir da afinação das guitarras.

Numa afinação comum, a sequência de alturas de cada corda seria E, B, G, D, A, E. No

entanto, as guitarras da Vomer são afinadas em E, B, G, D, A, D. Uma altura mais grave do

que seria a própria corda garante uma resultante sonora mais grave e, portanto, mais “pesada”

aos olhos – e ouvidos – da banda e do público. A tonalidade ré facilitaria também a execução

das músicas nas guitarras a partir da afinação estabelecida. Não apenas isso, mas são também

muito comuns passagens cromáticas entre acordes e o intervalo de uma quarta aumentada ou

quinta diminuta, o famoso trítono, a partir do movimento do baixo dos acordes. A partir

dessas resultantes sonoras, pode-se dizer que o power chord contribui para a formação da

ideia de “peso” no metal, já que gera alturas a partir do efeito, da distorção que contribuem

para a formação de uma massa sonora grave, tensa. Essa, provavelmente, se mostra como uma

das bases do som “pesado” da banda Vomer. Essa característica é atribuída tanto pelos

21 The strongest resultant tone is produced at the frequency that is the difference between the frequencies of

the main tones. If, for example, the open A string on the guitar (which vibrates at a frequency of 110 cycles per second, or 110 Hz) and the E above it (165 Hz) are played as a power chord, then the A an octave lower (165 - 110 = 55 Hz) will sound very prominently as a resultant tone. If the A is played with a fourth above instead of a fifth, D (147 Hz), the D two octaves lower (37 Hz) will be produced. These resultant tones are often at frequencies lower than the instrument itself can normally produce; both of these examples result in the production of pitches far below the actual range of the guitar.

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próprios guitarristas e demais músicos da banda quanto pelo público, que espera “peso” nas

músicas. Parece consenso, portanto, que o power chord seja um elemento na construção da

performance das guitarras da Vomer.

A forma pela qual o power chord é executado também se mostra como uma ação

significante nas performances de Geraldo e Tiago. Ele pode soar de duas maneiras: “abafado”

ou “solto”. Por “abafado”, entende-se que se trata de uma técnica de execução – e esse nome é

uma referência êmica – na qual o guitarrista, ao tocar, literalmente abafa um pouco as cordas

com a mão direita (exemplo de áudio 10). De forma “solta”, não há esse abafamento das

cordas, o que faz com que o power chord soe diferente, além de ter mais volume. São

recursos usados por Geraldo e Tiago ao tocar. Quando fazem conduções rápidas em algumas

frases, geralmente usam o recurso “abafado”. Pode ser usado também para enfatizar

determinados momentos musicais (exemplo de áudio 11). O recurso “solto” é geralmente

usado quando se precisa de mais volume, de uma massa sonora maior e mais distorcida

(exemplo de áudio 12). Os dois podem ser usados em conjunto, quando se precisa de uma

determinada acentuação musical, o que pode ser feito alternando as duas execuções.

Os riffs também são elementos importantes e que conduzem as ideias musicais ao

longo da performance. Eles podem ser feitos independentes – mas diretamente relacionados,

numa tessitura homofônica – dos power chords (exemplo de áudio 13) ou mesmo integrados

a eles (exemplo de áudio 14). Riffs são ideias melódicas recorrentes, que são usados para

conduzir momentos musicais (exemplo de áudio 15). São considerados por Walser (1993)

como elementos importantes e que dão características marcantes à sonoridade metal. A Vomer

se serve dos riffs em suas músicas. Na verdade, há mais de um riff em cada música. Eles

conduzem cada momento de uma forma diferente. Isso acontece porque as músicas da banda

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265

mudam de andamento e acompanhamento constantemente em uma mesma obra. Momentos

diferentes, riffs diferentes.

Já os solos, como mencionado, são momentos exponenciais e potencializadores da

reação do público à performance da banda. Nesse momento, Geraldo e Tiago ganham uma

posição mais central, pois seus instrumentos tomam o lugar do vocalista, falando de uma

forma diferenciada, criando reações ligadas diretamente a seus instrumentos. Os solos

obedecem ao andamento da música e, no caso da Vomer, geralmente obedecem às mesmas

bases harmônicas do acompanhamento das estrofes cantadas. Entretanto, a guitarra toma o

lugar da voz, criando uma melodia diferente. O solo da música Puppets, por exemplo, segue

basicamente o mesmo acompanhamento da estrofe cantada dessa mesma música (exemplo de

áudio 16). Diversas técnicas de execução são utilizadas ao se solar. De acordo com os

membros da banda, eles são criados intuitivamente, ou seja, a partir da experiência e

conhecimento musical dos guitarristas. Estes utilizam modos como o mixolídio, a escala de

bues, além de cromatismos. Não apenas isso, mas usam técnicas de efeito como o bend

(suspende-se a corda da guitarra, alterando a altura da nota em microtons), taping (uma

espécie de digitação no braço da guitarra, gerando solos rápidos e de sonoridade cíclica),

harmônicos, além de vibratos (exemplos de áudio 17, 18, 19). Entretanto, o solo,

compartilhado por Geraldo e Tiago cria outra atmosfera sonora e, por conseguinte, outra

relação entre público e banda. Essa é outra característica entre os guitarristas da Vomer. Não

há uma guitarrista base, responsável pela parte harmônica e um solo, responsável pelos riffs e

solos. Ambos dividem essa posição, de forma que em muitos momentos eles tocam riffs em

uníssono, ou fazem intervalos harmônicos tocando esses riffs, além de dividirem a

performance nos solos. Nas bases, quando não há uma divisão entre riff e acorde, ambos

tocam a mesma coisa, na intenção de se conseguir mais “peso” na música.

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266

O baixo, enfim, é um dos instrumentos que também ocupa uma posição de frente no

palco da Vomer. Airton toca ao lado de um dos guitarristas, geralmente. Ele é o único que

ainda tem cabelos compridos na banda e, por sua vez, tem um headbanging que chama a

atenção, principalmente por ter uma representação estereotipada pelos grandes nomes do

metal, que geralmente usam cabelos longos. Tendo um formato parecido com a guitarra, o

baixo propicia a Airton a possibilidade de estabelecer os mesmos movimentos em palco de

Geraldo e Tiago. Dessa forma, o air guitar também se destina ou é compartilhado com o

baixista.

Figura 36: Airton, na execução do baixo

Sonoramente falando, a função do baixista numa banda como a Vomer é bem clara: a

de contribuir para a massa sonora do thrash metal que ela produz. A sonoridade do baixo

tende a ser o mais grave possível, de forma que Airton segue o mesmo tratamento dos

guitarristas, em relação à afinação do instrumento. Na busca de sonoridades mais graves, o

que implicaria numa massa sonora mais “pesada”, ele usa um baixo de cinco cordas, sendo

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267

que a quinta corda está na região mais grave do instrumento. Da mesma forma que Tiago e

Geraldo, Airton usa uma afinação mais baixa que o de costume para o instrumento. Mas,

nesse caso, ele abaixa um tom em cada corda. Se, numa afinação comum o baixo seguiria a

ordem G, D, A, E, B, no caso do instrumento no contexto da Vomer ele se mostra com a

sequência F, C, G, D, C, sendo que isso pode variar para F, C, G, D, B, a depender da música

executada, entre próprias e covers.

O acompanhamento feito por Airton é de caráter melódico, ou seja, ele não monta

acordes e raramente executa intervalos harmônicos no baixo, o que é comum em algumas

bandas de metal, como o Motörhead. A prioridade do baixo, portanto, é a de acompanhar as

bases da bateria. Mas, na sua condução mais básica, que seria, no caso, a relação rítmica

relacionada às peças do bumbo e da caixa. Com isso, as linhas melódicas do baixo obedecem

às estruturas rítmicas da bateria, fazendo com que Airton toque, na perspectiva de um

compasso quaternário cuja unidade de tempo seja a semínima, grupos de trinta e duas fusas

por compasso, ou de oito colcheias, ou de dezesseis semicolcheias. Para executar ritmos tão

rápidos é necessária uma técnica específica que se pauta na alternância entre os dedos

indicador, médio e anelar. A condução do baixo também se liga aos riffs. É comum, em

alguns momentos das músicas da Vomer que o baixo siga em uníssono o que é tocado nas

guitarras, ritmicamente e melodicamente. Na verdade, há muitos momentos nos quais todos

os instrumentos seguem a rítmica da bateria, fazendo conduções musicais coordenadas por

toda a banda. Entretanto, o baixo é geralmente associado à bateria. As variações melódicas,

no caso do trash metal da Vomer, são poucas, de forma que a condução do baixo

(instrumento) se concentra, principalmente, na execução das notas do baixo dos power

chords.

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268

Considerando então que as características musicais e extramusicais da Vomer se

manifestam e são construídas através da performance, pode-se entender que há, portanto,

processos que antecedem aquela que se expressa nos shows. Em outras palavras, essa

performance que é socializada, é construída a partir de discussões de outras formas de

socialização de elementos musicais e extramusicais nos ensaios. Tendo-se como base a

perspectiva de Turner (1988) de que a performance é um momento de negociação, de

construção cultural através de um fazer social, pode-se pensar nos ensaios como uma

performance que antecede outras performances, pela qual as bases, os aspectos performáticos,

estilísticos e estético-musicais da banda também são definidos.

Figura 37: Ensaio da Vomer

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269

Figura 38: Ensaio da Vomer

Os ensaios da Vomer, portanto, são momentos tensos, nos quais são definidos o seu

fazer musical e extramusical. É a partir dessas reuniões que os membros da banda avaliam sua

performance nos shows, ensaiam e montam seu repertório, discutem os planos da banda em

relação à divulgação, locais nos quais tocar, com quem articular, bem como criam novas

músicas. Como dito, ensaios são momentos tensos, dinâmicos, nos quais, na perspectiva do

observador e se falando especificamente da Vomer, a impressão que se tem é sempre de que a

banda pode acabar nessas negociações. É comum verificar brigas, desentendimentos e

reclamações a todo tempo. Isso porque as discordâncias são resolvidas principalmente nesses

momentos.

Um dos elementos principais a ser definido e trabalhado nos ensaios é o repertório.

Através do repertório é que toda a performance do show é definida. Escolhendo as músicas,

planeja-se o que se espera do público: como agradá-lo, fazê-lo se mover, participar do evento

no qual a banda toca. É nesse sentido que a Vomer tem parte do seu repertório constando de

músicas cover, principalmente do Sepultura. Os músicos da banda acreditam que o cover

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270

funciona como um elemento agregador, capaz de alcançar públicos. Assim, as músicas de

outras bandas, geralmente as já consagradas, são usadas para que o público se interesse pela

Vomer e, a partir daí, possa também conhecer suas músicas próprias. Vale dizer que a escolha

das músicas que serão tocadas é fruto de toda uma negociação entre os músicos. Por mais que

a maioria das músicas cover a serem tocadas seja do Sepultura, ainda assim há discussão entre

eles de quais músicas serão usadas, de forma que esse repertório é constantemente

remodelado. Já as músicas próprias, pelo fato de serem ainda apenas quatro, não são

descartadas. Todas são utilizadas ao longo dos shows.

A estratégia da montagem do repertório configura todo o resto. A partir da escolha

das músicas que serão tocadas, começam os preparativos e o maior desafio da banda: a

coordenação entre os músicos. O processo de se conhecer as músicas que serão tocadas

começa desde muito antes. Na verdade, a princípio, ele é individual. Cada músico “estuda”

individualmente o repertório, usando gravações como forma de representação dessas músicas.

Antes de criar versões das músicas cover, os membros da Vomer seguem um processo de

aprendizagem que Campbell (1995) chama de song-getting, que envolve audição de músicas

gravadas ou no rádio, depois a imitação no instrumento. Como não usam outra forma de

notação escrita que não seja a cifra ou a tablatura (para guitarra e baixo), o “pegar de ouvido”

é uma prática comum entre os membros da Vomer e é dessa forma que eles aprendem a tocar

os solos, riffs, levadas de bateria, linhas de baixo, entre outros. Não apenas isso, mas as

músicas gravadas oferecem suportes para treino ligado ao fato de que todos os instrumentos e

suas respectivas funções se encontram registrados. Assim, o baterista pode aprender sua parte

na música a partir de imitação, da mesma forma que pode treinar, tocando juntamente com a

gravação da música que tem em mãos. Até as músicas próprias que são gravadas são usadas

como meio de treino. Sabendo que nem sempre os ensaios são possíveis e que, para os

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271

membros da Vomer, a música gravada é a representação “ideal” de um fazer musical, tocar ou

“treinar” ouvindo as gravações é a forma que os músicos têm para a realização de um “ensaio

provisório”.

Apenas a partir do momento em que os membros da Vomer aprendem

individualmente suas partes nas músicas que irão tocar e de treinarem é que esses

conhecimentos são socializados. Adaptar o que um músico aprendeu ao que o outro treinou

leva tempo, de forma que são necessários vários ensaios para que as músicas fiquem prontas,

sejam elas próprias ou covers. Isso fica patente nas discussões e constantes interrupções que

são feitas durante as passagens das músicas. Por mais que os músicos tenham aprendido suas

partes em gravações idênticas, isso não quer dizer que tocar é basicamente reproduzir o que se

aprendeu. O entrosamento entre eles deve ser conquistado. Além do mais, cada um tem uma

visão diferente do mesmo repertório e, dessa forma, apenas em conjunto é que podem criar

consensos acerca sobre o mesmo.

“Tocar junto” é apenas uma parte dos ensaios. Coordenar as funções musicais de

cada um é uma coisa. Mas acertar os detalhes só é possível a partir do momento em que todos

conseguem fazer juntos o que aprenderam. Como já dito, isso demanda tempo, na verdade,

vários ensaios. O acerto desses detalhes seriam adaptar a música ao estilo da Vomer. Isso

porque, em muitos casos, não é possível se tocar de forma idêntica ao que é feito em

gravações de estúdio. Há muitos efeitos, sobreposições de canais – o que permite, por

exemplo, que a mesma voz seja cantada simultaneamente com ela mesma –, trechos de

gravações que são usados para incrementar as músicas, dentre outros. Isso nem sempre pode

ser reproduzido ao vivo e se aplica também às músicas próprias da banda. É necessário,

muitas vezes, que se criem versões que possam ser executadas ao vivo. A forma de

manifestação que os músicos têm para discutir acerca das versões das músicas é usando

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272

palavras e sons que representem o soar de seus instrumentos ou mesmo demonstrar tocando,

no próprio instrumento.

Mas os ensaios também são momentos de criação de novas músicas. Com base no

que já foi dito é possível perceber que esses são momentos de intensa criação, no tocante às

versões das músicas. Mas as músicas novas são concebidas em ensaios também, na mesma

dinâmica da aprendizagem individual. É em casa que as primeiras ideias surgem. Tocando

cada um estabelece algo que criou, o que pode ser chamado de uma matriz de criação. É a

partir desse elemento que a música é concebida, posteriormente, em conjunto. Mas se os

membros da Vomer não dominam formas de escrita musical que não sejam cifras –

ineficientes para o registro de linhas de baixo, solos ou riffs – ou tablaturas, como eles

socializam as matrizes que criam? Mais uma vez, eles se valem dos aparatos tecnológicos

que tem a mão. É costume entre os músicos que eles gravem as matrizes que concebem. Nos

dias de hoje, é comum que se tenham celulares com função de gravador, mp3 players. Dessa

forma, os músicos socializam os registros, que são usados para conceber as músicas inteiras.

Cada elemento, ou cada parte da música é concebido individualmente, mas isso é

apenas uma parte da música. Geralmente, o baixista concebe apenas as linhas de baixo, o

guitarrista apenas os riffs ou sequências harmônicas, o baterista apenas as levadas. As partes

restantes são feitas em conjunto. E o momento em que os músicos da Vomer criam em

conjunto, geralmente, são os ensaios. A partir de uma matriz, os músicos, num esforço

conjunto, começam a criar as partes subsequentes dessas músicas. Tomando como exemplo

uma sequência harmônica concebida por um guitarrista, seja ele Geraldo ou Tiago, logo a

após a criação do baixo, a bateria é encaixada e as devidas articulações entre uma guitarra e

outra também são concebidas, no caso, riffs e solos. As alterações necessárias nessa matriz

também são feitas de forma que a criação acaba se tornando coletiva. Apenas depois que o

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273

instrumental está pronto é que Clayton compõe a letra e a melodia da voz. Tudo o que foi

criado é testado, tocando-se em conjunto. Nesses momentos desfazem-se os limites da função

de cada um em seus instrumentos. É comum que Léo diga a Airton o que fazer no baixo e

vice-versa, que Clayton manifeste se gostou ou não da música, o que ele acha que deveria ser

mudado, que Geraldo diga a Tiago o que fazer, enfim, que todos tenham a propriedade de

criticar um ao outro, no intuito de se chegar ao produto final, no caso, a música da banda

Vomer. O interessante a ressaltar aqui é que não há um membro que tenha a função de

compositor. Todos tem a liberdade de criar e todos o fazem.

A quem pertencem as músicas da Vomer? Na verdade pertencem a todos eles. A

noção de “autor” fica em aberto para todos os músicos da banda que colaboram na criação

musical. Prova disso é que no verso da capa do CD Lord of Hell há o seguinte aviso: All songs

written by Vomer. 22 Em toda a capa, que também tem a função de encarte, mas sem oferecer

muitas informações técnicas, não há qualquer outra referência à autoria das músicas que não a

frase acima citada. As músicas da banda são criadas através de um discurso de coletividade

estabelecido desde o processo no qual essas músicas são concebidas. Vale ressaltar que,

apesar da ideia de coletividade em relação à autoria das canções da banda isso não implica em

anonimato. Ou seja, por mais que as músicas sejam consideradas como de todos os músicos

da banda, bem como a distribuição gratuita destas, principalmente através da internet, não há

a intenção de se esconder os autores desses trabalhos. É por isso que há um aviso de direitos

autorais na capa do CD, mesmo que elas não sejam devidamente registradas. Isso denota o

posicionamento mercadológico que a Vomer tem em relação à difusão e distribuição de seus

produtos musicais.

22 Todas as canções escritas pela Vomer.

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274

A composição de músicas próprias não se destina apenas para a performance ao vivo.

Na verdade, elas são concebidas também para a gravação de material a ser veiculado, no caso,

CDs, DVDs, videoclipes, entre outros. Considera-se aqui que a gravação se mostra como uma

performance em específico e que deve ser considerada:

A gravação em estúdio não é somente o registro de uma sonoridade anterior e igual (a da performance ao vivo); mas sim um processo de criação musical per se, com sua própria estética, valores e referências. Processo que, ao mesmo tempo, ressignifica o papel do produtor – que ganha destaque e trabalha em colaboração estreita com o músico, que também adquire conhecimentos técnicos para dialogar e intervir (SÁ apud CARDOSO FILHO, 2008, p. 15).

O processo de gravação ao qual a Vomer recorre é único. Nele, além da banda, há

uma série de atores que permitem que ele aconteça. Em outras palavras, não apenas os

músicos são responsáveis pelo processo, mas também, no caso da Vomer, o técnico de

gravação, que tem um papel específico e marcante. Não apenas isso, mas, como afirma a

citação feita acima, a gravação é mais do que uma mera produção, é uma performance, um

acontecimento no qual se exercita a criação musical. O resultado desse processo seria,

portanto, um produto sonoro considerado como “ideal” pelos membros da banda.

Carvalho (1999) estabelece uma crítica ao processo de gravação. Ele acredita, depois

de uma discussão em seu artigo, que ele se pauta em uma performance musical que nunca

aconteceu. Isso porque o músico se torna um entre muitos. Além disso, a captação sonora se

dá de forma separada. Ou seja, cada músico grava sua parte separadamente, o que só depois é

juntado em uma única faixa musical. Entretanto, pode-se dizer que mais do que uma

performance que nunca aconteceu, a gravação é um meio específico de criação musical e,

dessa forma, uma espécie de performance “não-convencional”. Nesse sentido, Turner

(1988), falando de filmes, traz uma perspectiva que pode ser aproveitada aqui. Para ele, numa

comparação entre filmes e dramas, ambos se mostram como “sistemas sociais performativos,

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275

colaborativos23” (TURNER, 1988, p. 32) (Nossa tradução). Na sua perspectiva, os filmes

montam estúdios inteiros e resultam em películas, em registros. No entanto, são também

resíduos de uma performance que aconteceu, além do seu próprio resultado. No caso da

música, mesmo que o soar musical coletivo só aconteça após um processo de edição sonora,

as bandas gravaram, o produtor e o técnico de gravação tiveram um papel específico e

integrado à banda e o produto musical resultante é real e, inclusive, usado como base para

performances ao vivo.

A Vomer tem um único CD gravado no Studio Rock, hoje Estúdio Miralonge. Pode-

se dizer que a concepção do Lord of Hell se deu nos moldes acima discutidos. A banda gravou

em canais separados, de forma que cada um fez sua parte, reunidas na edição, feita pelo

técnico de gravação. Os músicos estabelecem um diálogo constante com o técnico, de forma

que eles compartilham influências e um faz inferências ao trabalho do outro. Durante as

gravações de cada instrumento, o técnico diz ao músico como tocar, o que ele deveria fazer

para ter um resultado mais satisfatório, da mesma forma que no processo de edição os

músicos da banda dizem se estão ou não gostando do resultado da gravação, indicando o que

pode ser feito.

Para a Vomer a gravação de seus materiais tende a ser a formação de uma versão

“ideal” de suas músicas. Pelo fato de poderem editar as performances mais satisfatórias de

suas execuções instrumentais e vocais – que podem ser feitas e refeitas à revelia –, as músicas

gravadas servem de base até mesmo para que sejam montadas as execuções ao vivo. Não

apenas isso, mas por “ideais” entende-se também poder fazer coisas que são, no caso da

Vomer, humanamente impossíveis, como o vocalista cantar duas vozes simultâneas, segunda

voz com a própria voz do vocalista ou no caso da música Temple que começa com uma

23 (...) collaborative, social performative systems.

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espécie de canto gregoriano, uma gravação inserida na música. Essas coisas não acontecem ao

vivo, mas são dizeres importantes das representações musicais da banda que só fazem sentido

no CD.

A confecção da capa do CD é outra comunicação acerca dos posicionamentos da

banda. A foto na parte frontal da capa do demo conota toda a agressividade, tensão e

desespero característicos do thrash metal. A parte traseira mostra fotos dos músicos em

performance denotando assim seus corpos e inscrições como parte da ideologia musical da

banda, além dos instrumentos como elementos icônicos. Já os avisos de autoria e direitos

autorais denotam o posicionamento mercadológico da banda, além de sua postura quanto à

propriedade autoral de suas canções.

Figura 39: Frente da capa do CD Lord of Hell

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277

Figura 40: Parte de trás da capa do CD Lord of Hell

Outra composição importante por parte da Vomer é o videoclipe. Puppets, por

exemplo, traz diversas imagens como sugestivas para a música. São diversas imagens

captadas no show de lançamento do CD Lord of Hell, além de imagens captadas de outros

materiais de vídeo, como pessoas sofrendo, guerras, paisagens arrasadas, conotando assim a

mesma agressividade e desesperança das músicas, o extremismo e as críticas sociais,

mostrando imagens quase que apocalípticas. Os videoclipes das músicas da Vomer são

associações de sua produção sonora com representações visuais e, por sua vez, comunicam ao

seu público de forma efetiva visões de mundo, mensagens, bem como sonoridades associadas

à parte visual de sua performance.

Enfim, pode-se dizer que é através da performance que a banda Vomer diz quem é e

o que faz musicalmente e extramusicalmente. Entretanto, “performance” tem se mostrado

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278

como mais do que o show no qual a banda é exposta para seu público. Esse momento é

exponencial e de grande importância já que é a partir dele que a Vomer e seu público

negociam os aspectos que definem as concepções culturais que são partilhadas socialmente.

Mas, para que essa performance aconteça são necessárias outras, pelas quais a banda negocia

com outros atores, bem como produz concepções e produtos distintos. Desconsiderar os

ensaios e as gravações da Vomer como processos sociais é esquecer que é através deles –

todos reais – que a banda se estabelece musicalmente, ideologicamente, estilisticamente e

performaticamente.

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CONCLUSÃO

Montes Claros é um meio prolífico em manifestações, em especial no que

tange a música popular. Tudo isso se deve a mudanças conjunturais em todo o mundo,

permitindo que comunidades musicais baseadas em elementos e discursos comuns se

formem a todo o momento e transcendam o limite físico, sistemático do que venha a ser

a cultura. A Vomer tem se valido dessas mudanças, configurando-se como uma banda

de thrash metal que, apesar de ser parte de uma cultura mundializada, se integra a uma

prática local. Sendo assim, por mais que ela seja parte de um meio localizado na cidade

de Montes Claros, compartilha de valores que são dispostos a comunidades no mundo

inteiro. Graças à internet, à possibilidade de adquirir materiais musicais produzidos em

outras localidades, bem como o constante fluxo de pessoas e de informações, a prática

musical da Vomer se tornou viável não apenas para ela, mas também para todos aqueles

cujas representações culturais não estejam nas “tradições” montes-clarenses, sequer em

outras manifestações da música popular. Metal em Montes Claros é, portanto, uma

prática musical compartilhada por pessoas que não se encontram e nem se sentem como

parte do discurso dominante do que é “ser” montes-clarense. Prova disso é que boa

parte dos membros da Vomer não nasceram nem tiveram suas infâncias na cidade.

Dessa forma, ao praticar o thrash metal, a banda se integra a um meio composto por

pessoas que, pelo menos a princípio, compartilha dos mesmos gostos musicais e

culturais.

Como se compõem, portanto, os aspectos performáticos, estilísticos e estético-

musicais dessa banda? Como foi mostrado ao longo deste trabalho, definir quais são

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280

esses aspectos, de forma pontual, denotaria um trabalho infindável, uma vez que o meio metal

do qual a Vomer faz parte muda constantemente e, assim, ela própria refaz constantemente

seu ideário musical. Entretanto, os processos pelos quais eles são compostos parecem fornecer

bases que compõem esses aspectos. Mas pode-se dizer que há características que marcam as

sonoridades da banda (estético-musicais), além de suas concepções musicais/culturais (estilo),

nas quais as músicas e performances são baseadas, sendo essa última o resultado exponencial,

denotando assim relação direta com o contexto no qual a Vomer atua. Todos esses elementos

acabam por compor a noção de gênero musical que se baseia em relações sociais, em

concepções contextualmente definidas, que vão além dos aspectos sonoros musicais por si só.

Elementos como as guitarras distorcidas, o uso de power chords, riffs, solos, além de

técnicas de execução como o bend, arpejos, harmônicos, dentre outros são elementos ligados

aos padrões estético-musicais da banda, uma vez que se mostram como recursos sonoros

usados em composições, em shows ao vivo, enfim, fazem parte das sonoridades que

identificam a música da Vomer. Esses mesmos elementos, aliados às iconografias, concepções

que permeiam as temáticas das músicas, a descrença, o pessimismo, a agressividade, aliados à

iconografias que remetem à essas questões e sonoridades que compõe o discurso thrash metal

seriam, por sua vez, aspectos estilísticos, já que todos os elementos que são articulados,

inclusive na corporalidade resultante nas performances denotam um modo de fazer específico,

limitado aos padrões definidos pelos membros da Vomer. Toda e qualquer concepção que

remeta ao gênero musical, como uma ampla gama de códigos compartilhados em comunidade

podem ser vistas como elementos estilísticos. Já os aspectos performáticos estão presentes em

toda e qualquer exposição que a Vomer faça dessas concepções estilísticas e/ou estético-

musicais. Os shows são repletos de elementos, movimentos, posturas e ações que trazem

reações do público e vice-versa. A expressão e negociação do que a Vomer tem como seus

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aspectos estilísticos e estético-musicais se mostram como a tônica desse momento. Dessa

forma, a performance da banda é marcada pela sonoridade característica do thrash metal, mas,

também, pela relação que a banda tem com o público. Essa sonoridade é construída

performaticamente, de forma que os elementos estético-musicais e estilísticos são negociados

e definidos em ensaios, em sua maioria e, se fixam em processos de gravação.

Por processos que geram esses aspectos – performáticos, estilísticos e estético-

musicais – entende-se como aqueles que são ligados às práticas que também levam à

formação cultural dos músicos da Vomer. Dessa forma, thrash metal da forma pela qual a

banda o pratica só existe pelo fato de seus músicos terem caminhos pelos quais passaram a

vivenciar o rock e o metal. Assim, por mais que tenham caminhos específicos, se ligam pelo

fato comum de terem conhecido repertórios parecidos, ligados ao consumo de músicas,

materiais veiculados pela mídia, de amplo acesso ou segmentada, por integrarem uma cena

musical específica, no caso, a da cidade de Montes Claros, alternativa, independente, cujos

incentivos permitem às bandas um posicionamento underground além de, a partir dessa

integração, formar a banda que coloca em jogo as concepções formadas individualmente para

a constituição de uma música, uma prática musical conjunta.

Enfim, compreender os aspectos performáticos, estilísticos e estético-musicais da

Vomer é entender que eles são frutos de atores individuais, com gostos parcialmente

compartilhados (BERGER, 1999), em um contexto favorável para a sua atuação, constando,

portanto, de pessoas, instituições, além de um meio urbano que tem corroborado cada dia

mais com o crescimento da multiplicidade musical/cultural. Muitos têm sido os meios pelos

quais as pessoas tem se formado na atualidade, de modo que eles tendem a ser, a princípio,

individuais. O consumo musical que forma o gosto das pessoas tem se mostrado como um

reflexo da fragmentação do indivíduo na formação das suas identidades (HALL, 2006;

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282

HARVEY, 2006). Dessa forma, não se pode mais pensar em uma Montes Claros cuja

identidade seja o discurso montes-clarense. Essa fragmentação dos discursos, que acontece

cotidianamente fragmenta os gostos, as vivências e, mais do que “dividir” a cidade em partes

mínimas, permite a formação de novas comunidades, articuladas, diferentes internamente,

mas ainda assim, lidando com seu meio com base em ações sociais, fundamentadas pelas

concepções individuais. Metal, portanto, é uma das formas que os montes-clarenses

encontraram para lidar com a formação de suas identidades culturais, gerando representações

que alcançam um grupo de pessoas, levando a ações que são locais, localizadas no território

de Montes Claros, ao mesmo tempo em que compartilham suas influências com o mundo.

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