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VICENTE FIDELES DE VILA
CULTURA DE SUB/DESENVOLVIMENTOE DESENVOLVIMENTO LOCAL
2005
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SUMRIO
PREFCIO ...............................................................................................................................
ENCAMINHAMENTO ...........................................................................................................
1. NOES DE CULTURA E QUESTES SOBRE O PRESENTE NA EVOLUOCULTURAL:
1.1. Esclarecimentos Preliminares ................................................................................
1.2. Noes Sobre Cultura do Ponto de Vista Sociolgico ..........................................
1.3. Noes Sobre Cultura no Campo Antropolgico ..................................................
1.4. Noes Sobre Cultura em Prisma Mais Histrico-Filosfico ..............................
1.5. Destaque Conclusivo dos Enfoques Nocionais Sobre Cultura .............................
2. CULTURA DE SUB/DESENVOLVIMENTO ...............................................................
3. NO CONTEXTO HISTRICO-CULTURAL SURGIDO, A QU VEIO ODESENVOLVIMENTO LOCAL? ....................................................................................
4. FALANDO DIDATICAMENTE PARA ALUNOS E COMUNIDADES SOBREQU DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDGENO .................................................
4.1. Desenvolvimento Local NO Desenvolvimento NO Local (DnL) ................
4.2. Desenvolvimento Local NO (s) Desenvolvimento PARA O Local (DpL).
4.3. Desenvolvimento Local (DL) [...] .........................................................................
4.4. Caractersticas doDesenvolvimento Local (DL) ...................................................
4.5. Delineamentos Metodolgicos doDesenvolvimento Local ....................................
4.5.1. Viso Geral ou Metodologia do Alpinista ................................................
4.5.2. Dimenses Metodolgicas Especficas .........................................................
4.6. Finalizao por Contextualizaes ............................................................................
5. SOLIDARIEDADE: MEDULA ESPINHAL MOTRIZ DODL ..................................
6. EDUCAO: SISTEMA RESPIRATRIO-CIRCULATRIO DODL ..................
CONCLUSO: LANCE MNIMO .........................................................................................
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PREFCIO
Esta obra, ainda que cuidadosamente concluda pelo autor como lance
mnimo, no sentido de que pela juventude de suas reflexes no pas o temaabordado merecesse novos aprofundamentos, no um simples ensaio. Vicente
Fideles de vila demonstra, no livro em anlise, a maturidade de um pensador j um
tanto versado sobre o assunto, se considerarmos o espao de tempo dedicado a esse
tipo de reflexo no meio acadmico do pas e o que se j apresenta disponvel para o
leitor brasileiro. Alm disso, preciso lembrar o nmero nada desprezvel de outras
obras j lanadas pelo mesmo em torno da idia de desenvolvimento local, ao longo
destes ltimos anos. Melhor esclarecendo, ele j vem refletindo sistematicamente
sobre o assunto desenvolvimento desde os anos em que fazia seu doutorado na
Sorbonne.
Em realidade, os avanos das reflexes colocadas no livro em tela, sem perigo
de errar, distinguem Vicente Fideles de vila em nvel nacional, por que no dizer
at internacional, pelo tipo de abordagem feita em relao ao desenvolvimento local.
O pensamento peculiar, ao refletir esse conceito no contexto das especificidades de
pases fora do circuito do chamado primeiro mundo. O desenvolvimento local
focado, como o prprio autor afirma, levando-se em conta a relao do mundo
subdesenvolvido com suas prprias chances de se desenvolver, de forma efetiva e
emancipada. H extrema clareza e racionalidade nessa especfica proposio de
desenvolvimento local, que se volta para o rompimento das amarras, externas e
internas, que prendem os pases ao subdesenvolvimento, emergindo como uma
nova filosofia de desenvolvimento, capaz de produzir efeitos de contraponto aos
atuais malefcios da globalizao massificadora s ambincias locais..
O leitor ter chances de observar, pela prpria obra, que Vicente Fideles devila, na busca de maior discernimento, no s constri suas proposies
criteriosamente, demonstrando semelhanas e disparidades em relao s concepes
afins que emergem em outros contextos scio-culturais e instncias de organizao,
como tambm as realimenta daquelas concepes construdas historicamente em
diversas reas do conhecimento.
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Os avanos sobre o significado do conceito de desenvolvimento local, na tica
do mundo subdesenvolvido, refletidos neste livro, foram sendo tecidos a partir do
desdobramento de noes construdas sobre cultura, em geral, e, de modo mais
especfico, cultura-do-sub/desenvolvimento historicamente circunstanciada.
Nessa textura, Fideles (como o autor mais conhecido em nosso meio
universitrio) desvenda o papel do presente, na cadeia da sucesso histrica da
cultura, como momento de dinamizao dessa sucesso. O desenvolvimento,
segundo ele, emerge da continuamente presente modificao da aprendizagem da
cultura acumulada, na perspectiva de situaes que favoream aes criativas,
capazes de romper barreiras e permitir avanos. Essas situaes de dinamismo
criativo constroem-se por movimentos interativos entre mundos interior e exterior ao
indivduo, pelas influncias mtuas entre este e a coletividade, como tambm destacom o seu mundo exterior.
O autor desvela, nesse processo de construo conceitual, o estigma do
subdesenvolvimento imposto por aqueles que formulam e detm as regras do jogo do
progresso mundial. Desse modo, os desenvolvimento e subdesenvolvimento seriam
categorias inventadas, dividindo o mundo de forma dicotmica. No deixa de aludir-
se, nesse processo, tambm aos exploradores que atuam no interior dos chamados
pases subdesenvolvidos, contribuindo para acirrar as desigualdades
socioeconmicas e culturais. Tambm argumenta sobre como esses exploradores,
externos e internos, cultivam a cultura da pobreza como forma de garantirem sua
prpria manuteno e alimentarem seus interesses e ambies.
no contexto dessa dicotomia cultural, inventada e alimentada pelo
capitalismo globalizador como linha conceitual de demarcao entre o bloco dos
ricos e o dos pobres em nvel planetrio ou o dos que podem mandar e o dos que
devem obedecer cientfica, tcnica e economicamente falando-, que o autor
consegue discernir as diferentes ticas de desenvolvimento local, vez que emergem
nos mbitos relacionais dos chamados mundos desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Discute, ainda, sobre a importncia das diversas formas de cooperao e
participao solidrias como foras motrizes do dinamismo interno, em processo de
desenvolvimento local. No mesmo sentido, como educador que , demonstra sua
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inquietao com o papel da educao comunitria e escolar, tanto no processo de
informao quanto de formao, ambas em fecunda intercomplementao e
funcionando como instrumento de melhoria e refinamento nos prismas individual e
coletivo.
Um dos avanos do autor, em relao s obras anteriores, foi o de apontar os
primeiros passos metodolgicos para o desenvolvimento local, delineando as
principais dimenses desse processo, assim como a programao e operacionalizao
do que denomina ciclos de trabalho cooperativo. interessante verificar o papel
atribudo ao agente de desenvolvimento local nesse processo, comparado ao de um
pedagogo-scio-comunitrio que auxilia as comunidades localizadas a encontrarem
e trilharem seus prprios caminhos do desenvolvimento, amparados agentes e
comuniades- pela metodologia do aprender a aprender em conjunto epartilhadamente.
O desenvolvimento local, definido na tica de Vicente Fideles de vila como
capaz de romper as amarras do subdesenvolvimento, endgeno, democratizante e
democratizador, integrante e integrador, alm de auto-sustentvel. Em realidade, o
avano nesse rumo pode ser praticado por qualquer coletividade, no importa a que
diviso ou categoria inventada pertena no universo sub/desenvolvido. Para o autor,
o importante que ela consiga se sensibilizar diante dessa nova tica, demonstrando
capacidade para se mobilizar e se organizar de forma cooperativa, cultivando a
autoconfiana e o poder de discernimento, para ir ao encontro das solues possveis.
Implica-se, portanto, em desenvolvimento sociocultural, como ponto de partida, que
respeita e aproveita as peculiaridades e potencialidades locais. Para Fideles, s
coletividades localizadas o desenvolvimento local pode tanto consistir na
transformao do momentopresente em oportunidade de mudana, contrapondo-se
globalizao massificante, como tambm tornar-se caminho para se atingir maior
equilbrio entre os mundos desenvolvido e subdesenvolvido. Fica no ar o seu desafio.
Aqueles -como eu- que conhecem e acompanham com admirao o trabalho de
Vicente Fideles de vila no vo se surpreender com a abrangncia de viso e a
profundidade de suas reflexes nessa sua nova obra. A preciso conceitual, a riqueza
de anlise, amparadas por preciosa capacidade de externar idias com auxlio de
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metforas, constituem um de seus mritos, proporcionando prazer na leitura,
reforada por encadeamento esclarecedor dos argumentos apresentados.
Fiz parte daqueles que o incentivaram a editar este livro, em funo da
contribuio que deve trazer a segmentos mais amplos da sociedade, pelo privilgio
das reflexes nele colocadas. Em outros termos, no s acredito na notvel
contribuio que essa obra trar cincia dedicada ao desenvolvimento, como tenho
certeza de que ela dever servir de ponto obrigatrio de referncia nas discusses
sobre o desenvolvimento local que ora se fazem no Brasil e no mundo.
Cleonice Alexandre Le Bourlegat(Coord. do Programa de Ps-Graduao Mestrado em Desenvolvimento Local/UCDB)
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ENCAMINHAMENTO
Em prisma panormico, a textura desta abordagem temtica CULTURA DE
SUB/DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL- se encadeia atravs dos seis
seguintes e estratgicos desdobramentos bsicos, evidentemente seqenciados de
acordo com a lgica de exposio e argumentao aqui adotada: noes de cultura e
questes sobre o presente na evoluo cultural; cultura de sub/desenvolvimento; no
contexto histrico-cultural surgido, a qu veio o Desenvolvimento Local?; falando
didaticamente para alunos e comunidades sobre que Desenvolvimento Local (DL);
solidariedade: medula espinhal motriz do DL; e educao: sistema respiratrio-
circulatrio doDL.
Os enfoques sobre solidariedade e educao, no contexto do
Desenvolvimento Local, no se situam como quinto e sexto enfoques de abordagem
porque considerados menos importantes que os quatro que os antecedem. Pelo
contrrio, isso se deu em virtude exatamente de ambos permearem, explcita ou
implicitamente, todas as dimenses terico-metodolgicas do Desenvolvimento
Local, gerador de nova perspectiva cultural de desenvolvimento, e de que, por isso
mesmo, posicion-los aps o tratamento dessas dimenses os tornaria mais
concisamente realados.
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1. NOES DE CULTURA E QUESTES SOBREO PRESENTE NA EVOLUO CULTURAL
1.1. Esclarecimentos Preliminares
O presente tpico foi pensado e elaborado com estas duas intenes:
primeira, a de enfocar noes gerais e elementares, porm importantes para se
entender a relao entre cultura e desenvolvimento, apreciando rapidamente as
nuances conceituais no tratamento do termo cultura pelos ngulos sociolgico,
antropolgico e filosfico; segunda, a de levantar questes, no mbito das noes
enfocadas, sobre a importncia do presente, entendido como momento de concreta
vivncia na sucesso evolutivo-cultural de qualquer povo configurado como tal ou,
em menor escala, de determinada coletividade humana com certa regularidade de
interao entre seus membros.
Trata-se, pois e to-somente, de um incio de conversa temtica sem a
mnima pretenso de esgotar tamanha e complexa discusso em cada abordagem das
duas intenes acima. de se frisar, nesse sentido, que o prprio Dicionrio de
Cincias Sociais, editado pela Fundao Getlio Vargas (cfr. SILVA, 1987) comea
a tratar o significado de cultura com a notao introdutria (p. 384) de que difcil
estabelecer uma nica definio deste termo complexo e extremamente importante.Alis, convm ressaltar que deliberadamente se optou pelas abordagens
nocionais, abaixo, a partir de dois dicionrios especializados, o Dicionrio de
sociologia: guia prtico de linguagem sociolgica (JOHNSON, Allan G.. Trad.
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro : Zahar Editor, 1997) para a rea sociolgica- e o
Dicionrio de filosofia (ABBAGNANO, Nicola. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed., So
Paulo : Martins Fontes, 1998) no mbito das noes histrico-filosficas- e do livro
Cultura: um conceito antropolgico (LARAIA. Roque de Barros. 15. ed., Rio de
Janeiro : Zahar Editor, 2002), para o prisma antropolgico.
Isso, por se entender que o interessado comum por noes desse tipo tende,
primeiramente, a buscar panoramas conceituais mais genricos nessa modalidade de
publicao, para, depois, se embrenhar em obras e discusses mais detalhadas e
especializadas. Quanto ao livro, j se tornou espcie de clssico, para consulta sobre
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cultura em antropologia, com mais de cinqenta mil exemplares espalhados pelo
Brasil.
1.2. Noes Sobre Cultura do Ponto de Vista Sociolgico
Desse ponto de vista, a primeira impresso que aflora da explicitao do
conceito de cultura diz respeito indefinio da funo e importncia do presente na
evoluo cultural, apontada em 1.1 como segunda inteno de todo este tpico 1.
Tome-se como referncia, neste sentido, o que diz Johnson (1997 : p. 59):
Cultura o conjunto acumulado de smbolos, idias e produtos materiaisassociados a um sistema social, seja ele uma sociedade inteira ou uma famlia.
Juntamente com ESTRUTURA SOCIAL, POPULAO e ECOLOGIA,constitui um dos principais elementos de todos os sistemas sociais e conceitofundamental na definio da perspectiva sociolgica.
O mesmo autor considera a cultura sob dois aspectos, os de que, por um lado,
A cultura material inclui tudo o que feito, modelado ou transformado como parte
da vida social coletiva, da preparao do alimento produo de ao e
computadores, passando pelo paisagismo que produz os jardins do campo ingls e,
por outro, A cultura no-material inclui SMBOLOS de palavras notao musical-,
bem como as idias que modelam e informam a vida de seres humanos em relaesrecprocas e os sistemas sociais dos quais participam. As mais importantes dessas
idias so as ATITUDES, CRENAS, VALORES e NORMAS.
H duas expresses que merecem destaque em relao conceituao geral
acima, com efeitos extensivos tambm s duas subconceituaes (cultura material e
cultura no-material). So as de que Cultura o conjunto acumulado [...] e
tambm [...] conceito fundamental na definio da perspectiva sociolgica:
A primeira expresso chama ateno porque passa a idia de que a percepo da
cultura de cada [...] sociedade inteira ou uma famlia [...] se reduz a espcie de
recortes de uma ou outra, em determinadas pocas, para se identificar e qualificar
[...] o conjunto acumulado [...], portanto em dimenso de passado, por ela
amalgamado e configurado at as pocas em que os recortes so ou sejam feitos.
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E a segunda, ao se referir cultura como [...] conceito fundamental na definio
da perspectiva sociolgica, enseja o direcionamento do papel da cultura para a
prospeco do futuro, deixando apenas brechas nas entrelinhas para se interpretar
que, no mximo, a cultura ajuda a melhor conhecer o presente dessa mesma
sociedade ou famlia.
Portanto, o que parece estranho nessas ticas que, em relao a ambas, o
ativo e efetivo papel da cultura na dinmica e permanente construo do presente
cultural no mereceu clara explicitao na acima transcrita significao conceitual
de cultura. Afinal, na cadeia da sucesso histrica de todos os fatos, o passado e o
futuro no so sempre os elos anteriores e posteriores aos do presente nessa
cadeia? Ou, ainda, se a essncia e configurao dos fatos do passado no podem
mais ser modificadas (porque j acontecidas), suas repercusses tanto no presente
sempre fluindo para futuro-, no podem ser continuamente corrigidas ou
redimensionadas, inclusive no que concerne s suas influncias no permanente
surgimento de novos fatos?
Em outros termos, o presente enquanto momento de dinamizao cultural
no constitui o fator decisivo da prpria evoluo cultural e, em decorrncia
processualmente lgica, da gerao de [...] conjuntos acumulados [...], ou que se
acumulem at as dimenses do futuro (aqui entendido como pocas vindouras emque se fizerem os recortes supramencionados) da sociedade ou famlia a que se
refere o texto?
Alis, no que respeita ativa influncia dopresente na histria de um povo, o
texto desse autor deixa margem a dvida, como a de contundentemente afirmar, por
um lado, que importante notar que cultura no se refere ao que pessoas fazem
concretamente, mas s idias que tm em comum sobre o que fazem e os objetos
materiais que usam. [...]. No entanto, ao descrever em seguida a teoria que o
antroplogo Oscar Lewis formulou como Cultura da Pobreza (a partir de estudos
sobre comunidades de Porto Rico e do Mxico), assim se expressou (p. 60):
Lewis identificou o que acreditava ser um fator importante na perpetuao dapobreza. Independentemente do que tenha originado padres de desigualdade epobreza na sociedade, argumentou Lewis, uma vez sejam eles estabelecidos, a
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vida de pobreza tende a gerar idias culturais que promovem comportamentos epontos de vista que a perpetuam.
Se assim (at porque Johnson no contra-argumenta, s aludindo a
possveis restries de aplicabilidade da teoria a outros povos, inclusive observadas
pelo prprio Lewis), de se realar que os comportamentos aculturadores, bem
como os geradores ou articuladores culturais em perspectiva de ao portanto de
dinmica presente-, mesmo no se configurando em essncia como cultura, por uma
parte so visceralmente influenciados pela cultura exceo dos decorrentes
estritamente de impulsos instintivo-biolgicos- e, por outra, influem fundamental e
decisivamente no processo evolutivo de gerao e acumulao cultural, mesmo que
tal processo se configure como movimento de acomodao, a exemplo daquele
perpetuador da Cultura da Pobreza teorizada por Lewis.
1.3. Noes Sobre Cultura no Campo Antropolgico
No campo antropolgico, o papel e a importncia do presente na evoluo
cultural so bem mais explcitos que no sociolgico, da maneira como vista acima,
inclusive merecendo posio destacada. Alis, j se aludiu atrs que a forma como
Johnson sumaria a teoria da Cultura da Pobreza formulada por Oscar Lewis-,
ligeiramente vista em pargrafo anterior, j os pressupe.
Mas qualquer dvida possivelmente remanescente, em relao aos
mencionados papel e importncia, peremptoriamente desfeita pelo professor de
antropologia Roque de Barros Laraia, em seu livro Cultura: um conceito
antropolgico, mencionado no item 1.1, ao informar que (p. 8):
O livro est dividido em duas partes: a primeira, que se refere aodesenvolvimento do conceito de cultura a partir das manifestaes iluministas
at os autores modernos; a segunda parte procura demonstrar como a culturainfluencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade,apesar de sua comprovada unidade biolgica.
Na primeira parte, conforme anunciado, o professor Laraia, depois de
analisar o dilema da [...] conciliao da unidade biolgica e a diversidade cultural
da espcie humana, percorre a trajetria conceitual de Edward Tylor, considerado o
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primeiro a definir cultura do ponto de vista antropolgico em 1871- (embora o
autor considere como precursores John Locke cujo Ensaio acerca do entendimento
humano, de 1690, interpretado por Marvin Harris em 1969- e Jacques Targot, que
viveu entre 1727 e 1781), at Alfred Kroeber, antroplogo americano (1876-1960).
Este, em 1949, documentou enriquecedoras contribuies definio tyloriana de
cultura, extrapolando-a do naturalismo evolucionista influenciado pelo
evolucionismo darwiniano, em pleno apogeu poca em que Tylor a formulou.
Mas, por motivo de restrio ao essencial, dado que reiterando- no se
pretende aqui esgotar o assunto, apenas a definio de Tylor e o resumo das
contribuies de Kroeber so a seguir registrados. Em relao a Tylor, diz Laraia (p.
25):
No final do sculo XVIII e no princpio do seguinte, o termo germnico Kulturera utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade,enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente s realizaesmateriais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor(1832-1917) no vocbulo ingls Culture, que [indicando o comeo dadefinio tyloriana] tomado em seu sentido etnogrfico este todo complexoque inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, lei, costumes ou qualquer outracapacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de umasociedade. Com esta definio Tylor abrangia em uma s palavra todas aspossibilidades de realizao humana, alm de marcar fortemente o carter deaprendizado da cultura em oposio idia de aquisio inata, transmitida por
mecanismos biolgicos.
No que respeita s contribuies de Kroeber, Laraia as organiza nas seguintes
oito caractersticas descritivas (p. 48-49):
1.A cultura, mais do que a herana gentica, determina o comportamento dohomem e justifica as suas realizaes.
2.O homem age de acordo com os seus padres culturais. Os seus instintosforam parcialmente anulados pelo longo processo evolutivo por que passou[...].
3.A cultura o meio de adaptao aos diferentes ambientes ecolgicos. Em vezde modificar para isto o seu aparato biolgico, o homem modifica o seuequipamento superorgnico.
4.Em decorrncia da afirmao anterior, o homem foi capaz de romper asbarreiras das diferenas ambientais e transformar toda a terra em seu habitat.
5.Adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizadodo que a agir atravs de atitudes geneticamente determinadas.
6.Como j era do conhecimento da humanidade, desde o Iluminismo, esteprocesso de aprendizagem (socializao ou endoculturao, no importa o
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termo) que determina o seu comportamento e a sua capacidade artstica ouprofissional.
7.A cultura um processo acumulativo, resultante de toda a experinciahistrica das geraes anteriores. Este processo limita ou estimula a aocriativa do indivduo.
8.Os gnios so indivduos altamente inteligentes que tm a oportunidade de
utilizar o conhecimento existente ao seu dispor, construdo pelos participantesvivos e mortos de seu sistema cultural, e criar um novo objeto ou uma novatcnica [...].
A funcionalidade e a importncia da cultura no processo de vivncia e
evoluo do homem-coletivo e do homem-indivduo, expressas pela dinamicidade
geradora de mudanas, que se concretizam em horizontes de sucessivos e reais
momentos temporalmente presentes, embora j essencialmente impregnadas nas
caractersticas acima, so analiticamente ampliadas e densamente reforadas na
segunda parte do livro (p. 65-101), de acordo at com os teores de ttulos dos
captulos que a compem, ou seja, 1. A cultura condiciona a viso de mundo do
homem; 2. A cultura interfere no plano biolgico; 3. Os indivduos participam
diferentemente de sua cultura; 4. A cultura tem uma lgica prpria; 5. A cultura
dinmica, neste destacando (p. 95-96) que:
No Manifesto sobre aculturao, resultado de um seminrio realizado naUniversidade de Stanford, em 1953, os autores afirmam que qualquer sistemacultural est num contnuo processo de modificao. Assim sendo, a mudana
que inculcada pelo contato no representa um salto de um estado esttico paraum dinmico mas, antes, a passagem de uma espcie de mudana para outra. Ocontato, muitas vezes, estimula a mudana mais brusca, geral e rpida do que asforas internas.
E ao encerrar a referida segunda parte, Laraia (p. 101) alude necessidade de
entendimento da dinmica do processo evolutivo-cultural por esta enftica sntese:
Concluindo, cada sistema cultural est sempre em mudana. Entender estadinmica importante para atenuar o choque entre as geraes e evitar
comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que fundamental para ahumanidade a compreenso das diferenas entre povos de culturas diferentes, necessrio saber entender as diferenas que ocorrem dentro do mesmo sistema.Este o nico procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamenteeste constante e admirvel mundo novo do porvir.
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As caractersticas conceituais de cultura, enunciadas na primeira parte do
livro e mais abrangentemente analisadas na segunda, deixam fluir duas
conseqncias absolutamente lgicas:
Primeira, a de que h intrnseca relao entre cultura e comportamento
humano (explcita ou implicitamente, cada uma das oito caractersticas conceituais
elencadas toca numa ou mais dimenses dessa relao).
Segunda, a de no haver motivo para dvida de que os comportamentos so
operaes reais que se concretizam em horizontes de sucessivos presentes, ou
vivenciais momentos temporais de operacionalizao, impulsionados e
impregnados pela cultura at ento acumulada e em evidncia explcita ou
subliminar nos momentos em que so concebidos e operacionalizados.
Esses sucessivos presentes, pela aprendizagem cultural (via processos de
socializao ou endoculturao da experincia acumulada) que se modifica por
contnua reao interativo-comportamental com os fatores mesolgicos na dinmica
existencial interna e externa ao indivduo e respectiva coletividade, no s tornam
o todo do homem-coletivo [...] capaz de romper as barreiras das diferenas
ambientais e transformar toda a terra em seu habitat como tambm possibilitam ao
homem-indivduo, mas sempre como unidade bsica societria e cultural de
multiformes conjuntos de homens-coletivos, por uma parte, limitar como no caso daCultura da Pobreza teorizada por Oscar Lewis- ou, por outra, estimular sua [...]
ao criativa [...] para progredir ou se desenvolver-, com reflexo imediato na
coletividade de sua convivncia, pelo menos aquela vinculada por lngua comum e
laos de convivncia local.
Isso, em razo de trs lgicas evidentes:
- primeira, a de no existir coletividade sem os indivduos que a componham;
- segunda, a de no haver coletividade sem que a mesma se delimite e configure em
funo fundamentalmente de lngua e convivncia espao-territorialmente comuns,
considerando-se principalmente que do final do sculo XX para c esta
modalidade de delimitao (lingstica e de convivncia espao-territorial) vem se
tornando cada vez mais ampliada e amplivel em razo dos canais de interconexo
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e aproximao humana por avanados meios de comunicao, como a Internet e
outros sistemas de redes possibilitados pela teleinformtica;
- e, terceira, a de haver influncias mtuas entre os indivduos e coletividade, por
eles composta, no sentido tanto de limitar ou inibir quanto de estimular, expandir,
diversificar ou aperfeioar o processo de ao criativa nas dimenses tanto coletiva
quanto individual.
1.4. Noes Sobre Cultura em Prisma Mais Histrico-Filosfico
Nesse prisma, Abbagnano (1998 : p. 225-229) comea dizendo que,
historicamente, o termo CULTURA Kultur em alemo, Culture em francs ou
Culture em ingls- compreende duas acepes bsicas: a primeira recorrente daAntigidade ao Iluminismo, no sculo XVIII, mas com dois remanejamentos de
aspectos (um no perodo medieval e outro na Renascena, como se ver frente) e a
segunda prevalente a partir do Iluminismo.
Na primeira acepo, a significao de cultura a da [...] formao do
homem, sua melhoria e seu refinamento [...], inclusive analogicamente interpretada
por Francis Bacon, em seu ensaio de uma Instauratio Magna ou compendiao
enciclopdica da nova cincia positiva cujas partes comearam a ser publicadas em
1605 (THONNARD : p. 452-466), como gergica do esprito, representando
figuradamente agricultura (ou cultivo) do esprito, j que o termo gergica se refere
a trabalho ou atividade em agricultura.
Para Abbagnano, a formao, enquanto Paidia1na acepo clssica grega,
compreendia dois grandes campos operacionais: o da chamada atividade infra-
humana, excluindo-se as parcelas desse campo consideradas utilitrias ou tpicas do
trabalho escravo, mesmo que de cunho artstico (artes plsticas, artesanato, msica,
etc.), em vista de que o escravo era tido apenas como instrumento animado e no
ser humano em plenitude; e o da atividade ultra-humana, mas possvel no mbito
1 O autor alemo Werner Jaeger (cf. JAEGER, s/d) escreveu volumoso e clssico compndio, de 1343pginas, intitulado justamente Paidia: a formao do homem grego, traduzido e impresso emPortugal, mas tambm distribudo em So Paulo pela Editora Herder,.
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natural, portanto voltada ao saber propriamente dito -embora ainda relativo-,
conforme se ilustra abaixo.
Acrescente-se s notaes de Abbagnano, para efeito de ilustrao deste
segundo campo de atividade formativa da cultura, o fato de que a prpria filosofia
expressa bem esse nvel de saber como atividade ultra-humana, enquanto derivada
de flos+swfs = amigo (ou amante2) + sabedoria, da resultando a significao
composta: amigo(amante)-da-sabedoria. O flos+swfs (filsofo) antigo entendia e
aceitava a possibilidade de acesso do ser humano swfa (sabedoria) pela via
natural, mas to-somente na condio relativa de amigo(amante)-da-sabedoria, e
no na apropriativa universalizante de sbio. Isto, em razo de se julgar poca-
que a-sabedoria (em sentido pleno) se alava a prerrogativa divina ou sobrenatural
tanto na concepo mitolgica quanto na dimenso ontolgico-aristotlica do AtoPuro. Da decorreu o surgimento e a universalizao tambm do termo flos+swfa (e
no apenas swfa) para designar o saber humana, metdica, rigorosa e
sistematicamente produzido pela inteligncia humana, portanto melhorado e
refinado conforme acentua o supramencionado primeiro conceito de cultura.
Quanto s alteraes de aspectos no perodo medieval e na Renascena,
referidas atrs, Abbagnano primeiro delineia trs aspectos, ou espcie de macro-
eixos de expresses tendenciais, emergentes da concepo de cultura na poca da
Paidia clssico-grega: o aristocrtico em relao s atividades infra-humanas, o
naturalista concernente s atividades ultra-humanas (aceitao da sabedoria,
mesmo que relativa, no mundo humano natural) e o contemplativo, este referindo-se
viso conjunta de ambos os campos de atividades.
De acordo com o autor, a alterao que se processou na Idade Mdia foi a da
supresso do aspecto naturalista, permanecendo o aristocrtico e o contemplativo,
visto nessa poca cultura ser entendida como sapientia sabedoria- teologicamente
dimensionada, em que a importncia da Filosofia se limitava ao plano auxiliar
(ancilla = serva que auxilia ousimplesmente auxiliar) da Teologia, situao esta de
2 Boyer (1940 : p. 14) entende que o termo grego flos, que se acopla palavra swfa para formar ovocbulo filosofia, deriva da raiz do verbo filin no sentido de amar. Por outra, e j na condio dederivados, esses dois termos eram assim constantemente empregados: flos significando tanto osubstantivo concreto quanto o adjetivo qualificativo amigo e filia designando o substantivo abstratoamizade.
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uso corrente no mundo cristo, atravs da expresso Philosophia ancilla
Theologiae 3.
E na Renascena, outra alterao se processou, em reao ao religiosismo
medieval, pela anulao do contemplativo, permanncia do aristocrtico e nfase no
naturalista.
A segunda acepo de cultura como dito, irrompida no Iluminismo do
sculo XVIII- , para Abbagnano, o reverso da anterior, isto , se cultura significava,
na primeira, [...] a formao do homem, sua melhoria e seu refinamento [...], na
segunda passou a expressar [...] o produto dessa formao, ou seja, o conjunto dos
modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, polidos, que tambm costumam
ser indicados pelo nome de civilizao [...].
Explicando a origem desta acepo no Iluminismo, o autor de opinio quetal maneira de conceber cultura j se fazia presente na seguinte passagem de Kant,
do livro Crtica do Juzo ( 83), editado em 1790: Num ser racional, cultura a
3 Vez por outra h quem atribua forte peso ideolgico frase latina Philosophia ancilla Theologiae ea traduza porFilosofia escrava da Teologia, no se dando conta muito bem do sentido historicamenteassumido pela Filosofia em relao Teologia, principalmente em se remontando a essa relaodesde o sculo IV d. C..Embora ancilla sempre significasse serva ou mulher servial na antigidade romana, e mesmo tendoem vista que a funo servial fosse considerada tpica de escravos (em vrios pases do mundo e hpouco menos de dois sculos atrs), importa observar que a relao entre Filosofia e Teologiacomeou a se estabelecer principalmente a partir do sculo IV d. C. pela converso ao cristianismo de
intelectuais, dentre eles se destacando Santo Agostinho.(354-430), o mais conhecido telogo-filsofocristo antigo. Alis, nos primeiros decnios do sc. IV j havia ocorrido a unio estado/cristianismopela converso de Constantino, Imperador Romano Oriental.At por volta do sculo III d. C., os convertidos se constituam de pessoas para as quais bastavam asnumerosas e variadas expresses do testemunho cristo: observe-se que normalmente qualquerdoutrina religiosa se caracteriza como de cunho moral e no filosfico propriamente dito. Mas osintelectuais neoconvertidos do sculo IV em diante se esforaram por encontrar alguma forma deexplicao ou sustentao racional, mesmo que apenas aproximativo-comparativa, dos pontosfundamentais da doutrina crist. Santo Agostinho, por exemplo, foi buscar explicaes para asobrepujana da alma sobre o corpo, do esprito sobre a matria, e similares, na famosa teoria dePlato a respeito da relao entre mundo sensvel e mundo das idias, de certo modocristianizando essas teorias platnicas.Portanto, vendo as coisas por esse ngulo, a traduo do vocbulo ancilla pelo termo auxiliar ou
serva -que auxilia- parece histrico-culturalmente mais verdadeira, com a significao de que aFilosofia fornece ou cria bases subsidirias racionais, portanto auxiliares, para se embrenhar nohorizonte da Teologia (e a em tela aqui a crist) que, de fato, dessas bases se vem valendo sempre,evidentemente que de modo mais sistemtico principalmente a partir do surgimento da instituiouniversitria medieval, j difundida na Europa no final do sculo XII. Entretanto, convm notar que seat o sculo XI os vnculos da Teologia com a Filosofia se estreitavam pela via platnica, sobretudoatravs de Santo Agostinho, do sculo XII em diante foi a doutrina aristotlica que entrou no circuitopela mediao de Santo Toms de Aquino, at hoje em muita evidncia, s que agora com forteespao de discusso e influncia tambm de filsofos contemporneos, a exemplo de Descartes, Kant,Hegel e vrios outros, tanto convergentes quanto divergentes da doutrina crist.
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capacidade de escolher seus fins em geral (e portanto ser livre). Por isso, s a
Cultura pode ser o fim ltimo que a natureza tem condies de apresentar ao ser
humano. Esta concepo permeou tambm a obra de Hegel (1770-1831, inclusive
discpulo de Kant), passando do Iluminismo para o enciclopedismo materialista de
DAlembert (1717-1783) e Diderot (1713-1784), que o conceberam com base no
materialismo de Locke, Hume e Condillac, ao enciclopedismo naturalista de
Rousseau (1712-1778) 4 e expanso do liberalismo, cujo principal legado, ainda no
final do sculo XVIII, foi a prpria Revoluo Francesa.
Com acrscimos de enriquecimento e atualizao, a primeira acepo a da
Paidia clssica grega pela qual se entendia cultura como [...] formao do homem,
sua melhoria e seu refinamento [...]- foi retomada por Abbagnano (1998 : p. 228)
em correo dicotomizao influenciada pelo Enciclopedismo de que as disciplinasde formao humana se dividem em dois blocos, as de formao geral (expressando
a formao cultural genericamente falando) e as de formao tcnica especfica,
sobretudo de cunho naturalista, no consideradas de formao cultural.
E os acrscimos enriquecedores do autor, em relao primeira acepo, so
os de que:
[...] possvel indicar de maneira aproximada as caractersticas de uma Cultura
geral que, como a clssica Paidia, esteja preocupada com a formao total eautntica do homem. Em primeiro lugar, Cultura aberta, ou seja, no fecha ohomem num mbito estrito e circunscrito de idias e crenas. Em segundo lugar,e por conseqncia, uma Cultura viva e formativa deve estar aberta para ofuturo mas ancorada no passado. Nesse sentido, o homem culto aquele queno se desarvora diante do novo nem foge dele, mas sabe consider-lo em seu justo valor, vinculando-o ao passado e elucidando suas semelhanas edisparidades. Em terceiro lugar, a Cultura se funda na possibilidade deabstraes operacionais, isto , na capacidade de efetuar escolhas ou abstraesque permitam confrontos, avaliaes globais e, portanto, orientaes de naturezarelativamente estvel [...].
Ainda bem que Abbagnano se preocupou em elucidar o que entendia porhomem culto na segunda caracterstica, supra: [...] aquele que no se desarvora
diante do novo nem foge dele, mas sabe consider-lo em seu justo valor, vinculando-
4 Leonel Franca (s.j.) (1967 : p. 171) inclui Jan Jacques Rousseau, assim como Voltaire (1694-1778),Helvetius (1715-1771), DHolbach (1723-1789) apenas para apontar os mais expressivos-, no roldos Enciclopedistas que influenciaram, evidentemente de modo s negativo na viso jesutica deFranca, [...] no ltimo quartel do sculo XIII [...].
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o ao passado e elucidando suas semelhanas e disparidades. Alis, as primeira e
terceira caractersticas tambm acima atribudas cultura, ou seja, aberta e
possibilidades de abstraes operacionais, ajudam a entender o sentido de
homem culto como aquele que capaz de discernir lies do passado para
influenciar o dimensionamento do presente e ajudar a prospectar rumos culturais
para o futuro. Evita-se, assim, o estreitamento da expresso homem culto a
equivocadas significaes como a de homem erudito (apenas intelectualmente bem
informado), de homem socialmente traquejado ou mesmo de ambas
simultaneamente consideradas.
Da mesma forma que retomou a primeira acepo, Abbagnano tambm o fez
em relao segunda, s que agora em prisma conciliatrio entre socilogos,
antroplogos e filsofos contemporneos, ao se pronunciar no sentido de que [...] autilidade de um termo como Cultura para indicar o conjunto dos modos de vida de
um grupo humano determinado, sem referncia ao sistema de valores para os quais
esto orientados esses modos de vida., imediatamente especificando que Cultura,
em outras palavras, um termo com que se pode designar tanto a civilizao mais
progressista quanto as formas de vida social mais rsticas e primitivas. e chegando
concluso de que, Nesse significado neutro, esse termo empregado por
filsofos, socilogos e antroplogos contemporneos.
1.5. Destaque Conclusivo dos Enfoques Nocionais Sobre Cultura
Concluindo os trs enfoques nocionais (o sociolgico, o antropolgico e o
filosfico) sobre cultura epapel do presente (ou conjunto de sucessivos, prximos e
concatenados momentos de vivncia real, de um povo ou coletividade, nos quais de
fato a construo do futuro se faz articuladamente com o passado) em relao a
Desenvolvimento Local, o grande destaque recai sobre a FORMAO.
A FORMAO ainda que no signifique de per si cultura, porque
essencialmente caracterizada -tanto na Paidia antiga quanto na atualidade- como
performance comportamentalmente operacional para determinadas finalidades
coletivamente aceitas dos ser e agir humanos:
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- por um lado, impregnadamente determinada pelo caudal cultural, que liga o
passado aopresente bem como impulsiona opresente a se projetar para o futuro;
- por outro, constitui-se mecanismo de gerao evolutivo-cultural, e o
Desenvolvimento Local se insere neste contexto, interferindo criativamente no
processo presente deprospeco e aliceramento do futuro de qualquer povo ou
coletividade, tendo em vista que sua dinmica cultural se encontra em permanente
curso de construo, redimensionamento e acumulao;
- em suma, todo o arcabouo terico sobre Desenvolvimento Local, frente
delineado, implica a acima mencionada fecundidade relacional entre FORMAO e
CULTURA, assim como sua lgica de operacionalidade dela necessariamente
decorre, em razo de que a multifuncionalidade da FORMAO, enquanto processo
catalisador, animador, modificador, gerador e disseminador de cultura, fica muitoclara se com Lothellier (1974 : p. 56) for enfaticamente entendido (da o acrscimo
do negrito como destaque) que:
A formao pesquisa de forma e no anlise de elementos. Tudo informe enquanto no assumido por ns. Tudo ao nosso redor matriaprodigiosamente enorme, imperceptvel, incerta, impessoal. Todavia, estarealidade a grande geradora de formas [...] A formao o debate sobreas formas, sobre os modos de expresso [...] A formao o trabalho sobreas formas que realizam uma existncia e estas formas de existncia,
historicamente condicionadas, esto em reforma permanente, sob pena deno sobreviverem seno deformadas, esclerosadas, mortas, ultrapassadas.
2. CULTURA DE SUB/DESENVOLVIMENTO
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O intuito, aqui, no o de se estender ao acervo cultural de toda a histria da
humanidade, no que concerne a sub/desenvolvimento, expresso tanto pelas
narrativas histrico-culturais quanto pelos incontveis patrimnios e stios
arqueolgicos, testemunhos de feitos engenhosos ou da vivncia cotidiana de povos,
tribos e cls, cujo entendimento continua a desafiar indefinidamente a todos os
campos cientficos da atualidade.
O fato que o sub/desenvolvimento humano comeou, muito provavelmente,
no momento em que o primeiro indivduo da espcie afiou a tambm primeira lana
e confeccionou um rstico arco que a impulsionasse, reduzida forma de flecha,
para facilitar e tornar mais eficiente a sua rdua e arriscada tarefa de subsistncia,
bem como sua incansvel sede de dominao, aperfeioando-a e evoluindo-a at a
mais moderna ogiva nuclear, como hipotetiza vila (2000 : p. 45).Tudo isso tremendamente atraente, mas o que realmente interessa, neste
momento, se limita a saber que cultura a humanidade j catalisou e amalgamou a
respeito da relao SUB/DESENVOLVIMENTO, principalmente em termos de idias,
crenas, smbolos, etc.. Esta, sim, embora se constitua fato historicamente muito
recente, j vem deixando marcas culturais profundas e arraigadas de conceitos e
preconceitos entre hemisfrios, povos e pessoas de todo o planeta.
Tanto nas sociedades tidas como mais civilizadas e poderosas quanto nas
comparativamente mais primitivas e subjugadas, ricos e pobres, ncleos e periferias,
carentes e opulentos, nobres e plebeus, senhores e proletrios, industriais e operrios,
livres e escravos compartilhavam espaos territoriais comuns em hemisfrios, pases
e coletividades menores. Isso, at que se resolveu inventar as categorias que
dividiram o mundo terrestre em dois blocos assimtricos, o dospases desenvolvidos
seleto, poderoso e hegemonicamente dominador- e o dos pases/reas
subdesenvolvidos/as: imenso, carente, atrasado e sempre confinado ao crculo-
vicioso da indefinida dependncia e subservincia ao hegemnico bloco dos
desenvolvidos.
Em decorrncia, agora se pensa em hemisfrio e pases, e no mais em
coletividades menores (regies ou cantes dentro de um mesmo pas),
subdesenvolvidos ou desenvolvidos: por um lado, a pobreza, a discriminao tnico-
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racial, a prepotncia cultural, e similares, existentes nos pases da Anglo-Amrica do
Norte, da Europa Ocidental e do Extremo Oriente naturalmente, os
internacionalmente aceitos como desenvolvidos- so consideradas apenas
ocorrncias marginais, e no subdesenvolvimento propriamente dito, em virtude de
a chancela desenvolvimento cobrir cada pas como um todo; por outro, todas as
conquistas de progresso (em dimenses cientficas, tecnolgicas, sociais,
econmicas e culturais, bem como no mais s em mbitos de pases, mas nos das
totalidades da Amrica Latina, da frica e da sia Setentrional -sobretudo da China-
ndia ao extremo norte do Oriente Mdio-), so no mximo consideradas ilhas-de-
desenvolvimento.
E assim mesmo sob suspeita, porque o estigma do subdesenvolvimento,
internacionalmente imposto pelos que formulam e detm as regras de jogo doprogresso mundial s prprias reas geo-fsicas em que tais ilhas se situam, lhes
mina o crdito de originalidade e confiana. Alis, quando essas ilhas comeam a
despertar a ateno internacional ou so compradas pelas concorrentes
desenvolvidas ou simplesmente esvaziadas tanto pela suco de seus criadores
quanto pela interposio de empecilhos sua industrializao e comercializao.
Em termos de simbologia cultural, a maneira de se saber, por exemplo, se
uma pessoa com aparncia normal ou no subdesenvolvida (hoje e de acordo
com os parmetros conceituais j universalizados) comea, via de regra, pela
pergunta sobre sua procedncia, quando no pela prpria cor da pele ou sotaque
lingstico. No caso da Amrica Latina e da frica, basta que essa pessoa se
identifique como latino-americana ou africana para que se apresente como
subdesenvolvida. Em se tratando de sia, e deixando de lado o Extremo Oriente
mas incluindo a China-, as expresses simblicas de procedncia-subdesenvolvida
se desdobram nas seguintes mais representativas: chins, indiano e rabe, esta
cobrindo praticamente todo o Oriente Mdio. Nesse contexto, at os termos latino e
hispnico , cada um em sua abrangncia, j indicam certa posio de inferioridade
no contexto das relaes entrepovos latinos e anglo-saxnicos, em geral, at mesmo
em dimenso de hemisfrio norte.
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Mas, retomando a questo, atrs, sobre a inveno das categorias a do
desenvolvimento e a do subdesenvolvimento- que dividiram o mundo terrestre em
dois blocos assimtricos, convm registrar que tal inveno ocorreu j em pleno
sculo XX, com preciso de data e ano, de acordo com Esteva (2000 : p. 59): [...]
20 de janeiro de 1949. Naquele mesmo dia, quando toma posse o Presidente
Truman, uma nova era se abria para o mundo a era do desenvolvimento., ao
pronunciar a seguinte passagem de seu discurso: preciso que nos dediquemos a
um programa ousado e moderno que torne nossos avanos cientficos e nosso
progresso industrial disponveis para o crescimento e para o progresso das reas
subdesenvolvidas, lembrando que (id. : p. 60):
Truman no foi o primeiro a usar a palavra. Wilfred Benson, antigo membro do
Secretariado da Organizao Mundial de Trabalho, foi que provavelmente ainventou quando, em 1942, ao escrever suas bases econmicas para a paz,referiu-se s reas subdesenvolvidas. Na poca, porm, a expresso noencontrou eco, nem com o pblico nem com os experts. Dois anos mais tarde,Rosenstein-Rodan ainda falava de reas economicamente atrasadas. ArthurLewis, tambm em 1944, referiu-se distncia que existia entre pases pobres epases ricos. Durante toda essa dcada, a expresso apareceu ocasionalmente emlivros tcnicos, ou em documentos das Naes Unidas. S se tornou realmenteimportante, no entanto, quando Truman a introduziu como um smbolo de suaprpria poltica externa. Nesse contexto, ela adquiriu uma virulnciacolonizadora insuspeita.
Alis, a dicotomia entre os pases socieconomicamente adiantados e
atrasados j comeava a ser tratada, sobretudo na Europa, sob as denominaes
Primeiro Mundo e Terceiro Mundo, este compreendido pelas reas
subdesenvolvidas a que se referiu o Presidente Truman. Mas o curioso que entre
esses dois Mundos deveria haver o Segundo, nunca bem explicitado por todos
que por isto se interessavam e ainda se interessam, como se pode constatar a seguir.
Em abril de 2004, o Prof. Dr. Andr Joyal da Universit du Qubec Trois-
Rivires/Canad- ministrou curso sobre O Papel das Pequenas e Mdias Empresasno Desenvolvimento Local na Universidade Catlica Dom Bosco, de Campo
Grande-MS, manifestando interesse de ler a verso preliminar de todo este material,
poca j em fase muito adiantada de elaborao. Em dilogo, por correspondncia
eletrnica, s esta passagem foi objeto de questionamento do ilustre Professor, assim
como de resposta ponderativa do autor, nos seguintes termos:
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[Prof. Joyal, e-mail de 02/06/04] - Com relao s expresses PrimeiroMundo e Terceiro Mundo, concordo com voc, mas tenho que destacarque aqui h um problema lingstico, porque em francs nunca dizemos: lemonde premier ou second ou troisime. Utilizamos somente aexpresso tiers-monde. Essa expresso foi utilizada pela primeira vez pelo
demgrafo Alfred Sayvy, quando se referiu ao Tiers-tat aludindo-se aosEtats-Gnraux do regime antigo. Assim, no h primeiro ou segundomundo, segundo Sauvy. Tiers em Francs, como voc sabe, se refere aum tiers [terceiro] elemento. Por exemplo, se eu estou discutindo com aCleonice [coordenadora do Mestrado] e no podemos chegar a umentendimento, vamos precisar de uma tierse-personne [terceira-pessoa]que poderia ser voc. Assim, voc seria a tierse-personne sem queCleonice ou eu sejamos a primeira ou segunda pessoa. D paraentender?
[Autor, e-mail de 05/06/04] - Todavia, a expresso "Tiers-Monde",traduzida diretamente para o portugus por "Terceiro-Mundo" em toda aliteratura que a ela diz respeito, se referia poca e at agora continua sereferindo a realidades dos pases mais subdesenvolvidos e/ou mais pobresdo planeta, no rol dos quais se inclui o Brasil. Portanto, implica a suatransposio lgico-lingistica tambm para compreenso em portugus,cujo termo "terceiro" pressupe a ordem hierrquica de existncia e maisintensa qualidade do "segundo" em relao ao "terceiro" e do "primeiro" emrelao ao "segundo" (tanto em termos de "mais" quanto de "menos" algumacoisa, ou seja, indicando ordem hierrquica de prioridade ascendente oudescendente, no sentido -por exemplo- do "melhor para o pior" (ou vice-versa), do "mais para o menos" (ou vice-versa), e assim por diante.Apesar da "babilnia lingstica", e jamais questionando sua explicao[sobre "tiers" em Francs], diria que a lgica a expressa quanto "tierse-
personne" no requer a hierarquia [descrita no meu texto], o que podeocorrer tambm em portugus, mas subentende a existncia dos doiselementos que a antecedem o "voc-Fideles" [Prof. Fideles = nome doautor atualmente mais conhecido no meio universitrio] como tierse-personne: no caso, os dois "elementos" antecedentes so o "eu-Joyal" e o"ela-Cleonice" ou vice-versa, no importando se a nomeao desses"elementos" seja explcita, implcita ou se um ou no "primeiro" ou"segundo".E mais, se o "Tiers-Monde" se refere ao "elemento" constitutivo da partemais subdesenvolvida ou mais pobre do planeta, como dito acima,pressupe-se que os outros dois "elementos subentendidos", que antecedemo "Tiers-Monde", sejam qualitativamente "diferentes dele, isto , mais
desenvolvidos ou mais ricos" que o Tiers-Monde: mas quais so eles,mesmo que no se chegasse ao nvel de discusso sobre qual seria oprimeiro ou o segundo? -Isso foi o que eu tentei discutir inclusive nocontexto prprio dos Ps-II Guerra Mundial, a, sim, enfocando mais ocontexto de poca do que o da propriedade lingstica francesa.
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Tais ponderaes receberam a seguinte resposta do Prof. Joyal (tambm via
e-mail no mesmo 05/06/04): Entendo, bom assim!.
Retomando, pois, a ambigidade que ronda a significao de Segundo
Mundo, cogita-se que tal expresso se destinasse veladamente aos pases do leste
europeu, poca passando a formar o bloco sovitico. Tal hiptese cabvel
inclusive em razo de esses pases serem excludos explicitamente da conotao
Terceiro-Mundo at peloDictionnaire Encyclopdique por Tous Petit Larousse
Illustr, ao especificar conceitos inerentes a Tiers, que confere o seguinte significado
a esta expresso: Terceiro mundo, conjunto de paises pouco desenvolvidos
economicamente, que no pertencem nem ao grupo dos Estados industriais da
economia liberal e nem ao grupo dos Estados de tipo socialista (LIBRAIRIE
LAROUSSE, 1980, p. 1020)5.Mas h, ainda, o fato de que no imediato Ps-II Guerra Mundial o nico pas
em condio de se denominar economicamente Primeiro Mundo eram os Estados
Unidos, em vista de que os pases europeus inclusive a Alemanha de um lado e os
Aliados do outro-, em similares condies (mesmo que resguardas as devidas
propores), foram arrasados e penaram quase duas dcadas para se reconstrurem.
Portanto, no podiam ser considerados economicamente, naquele momento, nem de
Primeiro e nem de Terceiro Mundo, restando-lhes provisoriamente disponvel
tambm o impreciso espao-reserva do Segundo, pelo seu potencial e capacidade
de soerguimento, j demonstrados e exercitados ao longo de sculos e at milnios
de histria.
Todavia, o rpido e eficiente movimento de reconstruo desses pases logo
nos dez primeiros anos aps a II Guerra Mundial fez com que todos eles de fato se
inclussem na configurao de Primeiro Mundo, tanto pela performance de
recuperao que demonstraram quanto pelo fato do pleno recrudescimento da
Guerra Fria, cujos pases protagonistas-cabeas eram a Rssia, pelo bloco
Sovitico no leste europeu, e os Estados Unidos no lado ocidental.
5 A frase francesa original : Tiers monde, ensemble des pays peu dvelopps conomiquement, quinappartiennent ni au groupe des Etats industriels dconomie librale ni au groupe des Etats de typesocialiste.
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Embora desde o fim da II Guerra os Estados Unidos j contassem com os
seus Aliados para a formao do bloco ocidental, intensificaram a poltica da rpida
incorporao tanto dos vencidos (Alemanha, Itlia e inclusive Japo) quanto dos
demais em conjunto. Destarte, j no final dos anos 50 no mais havia pases
europeus ocidentais em situao de Segundo Mundo, ressalvando-se dvidas
quanto a Portugal e Espanha, que ainda sofriam o peso e as conseqncias
socioeconmicas das ditaduras Salazar e Franco -mas assim mesmo de alinhamentos
radicalmente anticomunistas-, assim como aos pases satlites da Rssia na
composio da ento Unio Sovitica. At fora da Europa, naes como Canad e
Austrlia nunca se consideraram ou foram de fato consideradas Segundo Mundo.
Assim, esse nebuloso espao do Segundo Mundo, talvez melhor entendido
como limbo de transio do Terceiro para o Primeiro Mundo, aindaencampava os pases desmembrados do bloco socialista sovitico, mas tambm se
estendia a outras denominaes (mais nomenclaturas que reais situaes, portanto
igualmente ambguas), como as de pases-em-via-de-desenvolvimento (sobre a qual
se falar um pouco mais, frente) e pases-emergentes. Esta ltima ainda hoje
bastante utilizada em virtude de pases como o Brasil, a China, a ndia, o Mxico, e
similares, por um lado no se verem na precria e incmoda situao de Terceiro
Mundo mas, por outro, estarem certos de que no so Primeiro, pelas atuais
regras do jogo socioeconmico mundial.
Entretanto, voltando ao discurso de Truman, conforme Esteva (p. 60), Ao
usar pela primeira vez, em tal contexto, a palavra subdesenvolvido, Truman deu
um novo significado ao desenvolvimento [...], no tendo Esteva- a menor dvida
em afirmar que:
O subdesenvolvimento comeou, assim, a 20 de janeiro de 1949. Naquele dia,dois bilhes de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. Em um sentido muito
real, daquele momento em diante, deixaram de ser o que eram antes, em toda asua diversidade, e foram transformados magicamente em uma imagem inversada realidade alheia: uma imagem que os diminui e os envia para o fim da fila;uma imagem que simplesmente define sua identidade, uma identidade que , narealidade, a maioria heterognea e diferente, nos termos de uma minoriahomogeneizante e limitada.
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E mesmo a tentativa de amenizar o enorme fosso diferencial entre pases
desenvolvidos e pases subdesenvolvidos, no termos acima, pela criao da
expresso pases-em-via-de-desenvolvimento, mais ou menos com a mesma
significao de Segundo Mundo, conforme se viu anteriormente, no surtiu os
efeitos culturais desejados. Como numa disputa em que no h lugar para meio-
vencido-vencedor, tambm nesse caso o peso da evidncia no recai no meio-termo
em-via-de-desenvolvimento, mas, sim, no dilema ser ou no ser (be or not to be,
plagiando Shakspeare) desenvolvido.
Ademais, a anteriormente mencionada Cultura da Pobreza, caracterizada
por Oscar Lewis, expressa bem um tipo fundamental de [...] imagem inversa da
realidade alheia [...] acima referida. Todos ns que vivemos o subdesenvolvimento,
e no apenas com ele convivemos, jamais poderamos contradizer a sua realocorrncia, inclusive da maneira como sucintamente descrita atrs por Johnson.
Entretanto, temos que ressaltar uma observao extremamente sria, a de que a
Cultura da Pobreza nem se define e nem se alimenta por si mesma.
Sua definio se faz, como dito supra, pelo contraste com a [...] imagem
inversa da realidade alheia [...] no caso a dos desenvolvidos- e sua ininterrupta
alimentao se processa em duas mos convergentemente alinhadas, as das
instncias externas e internas s reas subdesenvolvidas, para dela dessa
Cultura- tirarem incessantes proveitos. Isto, em virtude de que seria incorreto
pensar que s os desenvolvidos exploram os subdesenvolvidos: uma das maiores
chagas do subdesenvolvimento, assim como de qualquer outra denominao que se
refira principalmente a aberrantes desigualdades socioeconmicas e culturais,
sempre foi e continuar sendo tambm a dos prprios exploradores intramuros, no
importa se na condio de exploradores autnomos, na de mediadores da
explorao externa ou, ainda, na de ambas essas duas maneiras de explorao.
O fato que aos exploradores das reas subdesenvolvidas, tanto os
externos quanto os internos em relao a elas, no convm a reverso da Cultura da
Pobreza. Pelo contrrio, o que de fato interessa cultiv-la enquanto eficiente
dinamismo de sustentao e permanente alimentao de seus prprios interesses e
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riquezas. vila (2000b : p. 118-119) ilustra esta situao atravs da seguinte
comparao:
Para compreender isso, basta observar a natureza. Fique-se debaixo de uma
laranjeira cheia de pulges e procure-se verificar com ateno o que se passa.Os pulges so, na verdade, um campo de cultivo de formigas doceiras grandese midas. Elas os cultivam para sugarem as suas secrees adocicadas.Portanto, as formigas jamais quereriam que os pulges se acabassem, comotambm jamais permitiriam que deixassem de ser pulges. O que fazem aliment-los sempre para que excretem tambm cada vez mais. O queinteressa s formigas, em ltima anlise, a autopreservao e o bem-estardelas mesmas e no a vida e a comodidade dos pulges.
Trazendo a histria das formigas e pulges questo do
sub/desenvolvimento, o princpio da estratgia de relacionamento do mundo
desenvolvido com o subdesenvolvido j fora embutido implicitamente no prprio
discurso do Presidente Truman ao dizer, reiterando: preciso que nos dediquemos
a um programa ousado e moderno que torne nossos avanos cientficos e nosso
progresso industrial disponveis para o crescimento e para o progresso das reas
subdesenvolvidas.
O que estava explcito era e continua parecendo desejvel, inclusive pela
elevada dose de solidariedade paternalista internacionalizante. Mas havia e h outras
implicncias que ele no disse (porque ainda no sabia ao certo ou, mesmo tendo
noo do que seria, no convinha dizer), quais sejam: EM QUE CIRCUNSTNCIAS, EMTROCA DIRETA OU INDIRETA DE QU E A QUE CUSTOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
os referidos avanos seriam disponveis s reas subdesenvolvidas, bem comoSE O INTERESSE POR TO GENEROSA DISPONIBILIDADE SE BASEAVA NO APENAS EM METAS
DE CRESCIMENTO E PROGRESSO MAS NA PRPRIA EMANCIPAO DO
SUBDESENVOLVIMENTO POR ESSAS REAS.
Essas questes permanecem abertas ainda hoje, afetando at mesmo os
investimentos feitos pelos organismos multilaterais, principalmente quando
implicam o entrecruzamento desses dois mundos. Por um lado vm recursos
financeiros mas, por outro, impem-se em qu e como gastar: alis, grandes fatias
dos recursos financeiros captados, por esse tipo de financiamento, na maioria das
vezes sequer chegam aos destinos subdesenvolvidos, restando nas origens em razo
de clusulas vinculatrias referentes, por exemplo, a aquisio de equipamentos
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(muitos j obsoletos nos respectivos pases), monitorao tcnica e assistncia
tecnolgica. Ademais, grossos subsdios em esferas nacionais e altas taxaes em
mbito internacional recaem exatamente naqueles poucos produtos em relao aos
quais os pases subdesenvolvidos j se capacitaram para competir em certo p de
igualdade no mercado mundial.
No por mera coincidncia, pois, que a presente negociao entre pases
americanos desenvolvidos e subdesenvolvidos para a formao da rea de Livre
Comrcio das Amricas (ALCA) vem se desenrolando bem moda, resguardas as
propores, da mencionada histria do relacionamento entre formigas e pulges.
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3. NO CONTEXTO HISTRICO-CULTURAL SURGIDO,A QU VEIO ODESENVOLVIMENTO LOCAL ?
A ateno aos toques culturais a respeito de sub/desenvolvimento, enfocados
anteriormente, imprescindvel para que melhor se captem sutilezas lgicas que j
permeiam ou tendero a impregnar a caracterizao conceitual tambm da expresso
Desenvolvimento Local, como se ver na seqncia.
Pelo vis do socialismo histrico, teoricamente o Desenvolvimento Local
visaria o coletivo local. Entretanto, o prprio socialismo histrico na prtica j se
curvou falncia em virtude de por ele, desde sua implantao aps a Revoluo
russo-bolchevista de 1917, se ter procurado rechaar o capitalismo liberal, mas, em
verdade, substituindo-o pelo -que costumo chamar- capitalismo de estado, o qual
acabou arruinando tanto a economia quanto a cidadania pessoal no mbito dos pases
envolvidos.
Isso significa que, a partir do final da dcada de 70, o mundo comeou a ficar
disponvel e sem concorrente para o capitalismo liberal ( exceo de Cuba, China,
Vietn do Norte e Coria do Norte), agora comeando a se instrumentalizar
cientfica e tecnologicamente para o fortalecimento do circuito globalizador de
amplitude planetria, evidentemente intentando tirar, e de fato j tirando, o mximo
proveito prprio dessa intensificao globalizadora.Por outra, coincidncia ou no, o Desenvolvimento Local comeou a se
configurar intensa e sistematicamente na Europa justo nesse perodo ou, mais
precisamente, ao longo da dcada de 80, segundo Jos Carpio Martn (1999),
professor da Universidade Complutense de Madri:
[...] durante los aos 80, el crecimiento de las experiencias de Desarrollo Localest reforzado por el proceso de descentralizacin poltico-administrativa, laspolticas de creacin de empleo, las polticas europeas y el creciente
protagonismo de las sociedades locales en la gestin del desarrollo [...] comouna estrategia adecuada a las demandas sociales de mayor bienestar social y decreacin de empleo [...]. [Tendo sido entendido pelo Consejo Econmico ySocial-CES da Unio Europia, em 1995, segundo o mesmo autor-,como] el proceso reactivador de la economa y dinamizador de la sociedadlocal, mediante el aprovechamiento eficiente de los recursos endgenosexistentes en una determinada zona, capaz de estimular y diversificar sucrecimiento econmico, crear empleo y mejorar la calidad de vida de lacomunidad local, siendo el resultado de un compromiso por el que se entiende el
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espacio como lugar de solidaridad activa, lo que implica cambios de actitudes ycomportamientos de grupos e individuos.
No que respeita extrapolao do Desenvolvimento Local para os pases
iberoamericanos, destaca-se o papel principalmente dos gegrafos espanhis, no
dizer do mesmo Prof. Jos Carpio Martn (id., 1999), segundo o qual:
Los gegrafos espaoles se han despabilado en los ltimos aos y se han acercadoa las realidades iberoamericanas. Las valoraciones y balances de esta situacin cambiante felizmente- presentan un avance notable desde comienzos de los aosnoventa bajo formas de convenios institucionalizados entre universidades, elaumento de la docencia geogrfica sobre Amrica Latina en la Licenciatura y losProgramas de Doctorado de Tercer Ciclo.
Em termos de Brasil, terreno favorvel a essa modalidade de
desenvolvimento foi-se preparando desde a Conferncia Mundial Sobre Meio-Ambiente, tambm conhecida pela abreviao ECO-RIO/92, porque realizada na
cidade do Rio de Janeiro em 1992, mas a idia propriamente dita de
Desenvolvimento Local, da maneira como acima esboada, de fato passou a ser
disseminada principalmente a partir de 1996, como descreve vila (2003 : p. 16):
No Brasil, a explicitao desse interesse se iniciou por volta de 1996 atravs deum curso na Universidade de So Paulo-USP, sendo o autor supracitado [Prof.Jos Carpio Martn]um dos ministrantes. A notcia espalhou-se rapidamente,
principalmente em alguns estados do Nordeste, chegando imediatamentetambm Universidade Catlica Dom Bosco-UCDB, de Campo Grande, Estadode Mato Grosso do Sul, na qual amplo programa de desenvolvimento localcomeou a ser delineado em meados de 1997, mediante convnio com aUniversidade Complutense de Madri (UCM) [tambm com apoio e ativaparticipao pessoal do Prof. Jos Carpio Martn e de outros colegas daUCM]. Hoje, a mencionada universidade sul-mato-grossense j conta at comum Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local, com rea deconcentrao em Territorialidade e Dinmicas Scio-Ambientais.
Pois bem, a expressoDesenvolvimento Local, tanto em nvel de idia quanto
no de variadas e por vezes ambguas propostas operacionais, vem se espalhandorapidamente continentes afora, talvez at j beirando s raias do modismo
desenvolvimentista, ou seja, com aparncias tecnicamente atrativas mas de fundo
tipicamente poltico-assistencialista.
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Ora, em funo disso; pela lgica de submisso ou dependncia imposta
pelos (pases) desenvolvidos s reas subdesenvolvidas, como visto no item
anterior; e diante da crua e nua realidade de que o capitalismo globalizador, agora
to afiado tcnico-cientificamente como nunca dantes e completamente sem
obstculos6para controlar o subdesenvolvimento a favor dos que dele tiram proveito;
faz-se mister a seguinte e fundamental questo: A QU, DE FATO, VEIO ODESENVOLVIMENTO LOCAL?
A capital importncia da questo se baseia em que O SIGNIFICADO CONCEITUALE REAL DO DESENVOLVIMENTO LOCAL PODE SER ENCARADO PELO MENOS SOB AS TRS
SEGUINTES TICAS RELACIONAIS:
- A DA RELAO DOMUNDO DESENVOLVIDO COM SUAS PRPRIAS PERIFERIAS, CARNCIAS EPOBREZAS INTERNA E SOCIECONOMICAMENTE DESEQUILIBRADORAS;
- A DA ATUAL RELAO DE DEPENDNCIA E SUBJUGO DO MUNDO SUBDENSENVOLVIDO AO
MUNDODESENVOLVIDO;
- A DA RELAO DO MUNDO SUBDESENVOLVIDO COM SUAS PRPRIAS CHANCES DE EFETIVAE EMANCIPADAMENTE SE DESENVOLVER (TORNANDO-SE CAPAZ DE ROMPER AS AMARRAS
TANTO INTERNAS QUANTO EXTERNAS QUE O PRENDEM AO SUBDESENVOLVIMENTO), A
PARTIR DE COMUNIDADES-LOCALIDADES CONCRETAS E BEM DEFINIDAS7.
No caso da primeira tica, o Desenvolvimento Local se reduz a canal de
extenso das prerrogativas bsicas do desenvolvimento, j reinante nas zonas6 Sobretudo perda da sonhada esperana propalada pelo socialismo histrico do leste europeu, assimcomo paulatina abertura da China ao capitalismo ocidental.7 A questo da comunidade mdia ideal, ou stricto sensu, para o Desenvolvimento Local foi tratadapor vila (2000a : p. 70-73) e vila et al. (2000 : p. 30-36), configurando-se como aquela espao-territorialmnte assim como histrico-identitariamente bem delimitada e com caractersticas comuns,em que, sociologicamente falando, a performance dos seus relacionamentos primrios (ouespontneos) tenda a se equilibrar com a dos tambm seus relacionamentos secundrios (ou decontroles sociais normativos ou regulamentares formalmente institudos).Entretanto, tem-se ouvido o emprego do termo comunidade em sentido lato, para significar toda apopulao de um pas ou de determinada regio dentro do mesmo. De acordo com o(s) autor(es), essedimensionamento amplo do vocbulo comunidade se ajusta aoplanejamento ou plano abrangente de
poltica de desenvolvimento baseada no Desenvolvimento Local, mas no ao Desenvolvimento Localenquanto processo terico-operacional com dimenses prprias, ou seja, destinado diretamente acomunidades localizadas, cuja delimitao considere pelo menos as caractersticas acima.Portanto, pela multiplicao de iniciativas deDesenvolvimento Local que respeitem as peculiaridadese aproveitem as potencialidades de cada comunidade-localidade, pode-se desencadear excelente edinmica poltica de desenvolvimento regional ou nacional, e no o inverso, tendo em vista o
Desenvolvimento Local se caracterizar essencialmente -mais frente esta questo ser retomada-como fluxo que se processa de dentro para fora e de baixo para cima da respectiva comunidade-localidade, e no o contrrio, isto , de fora para dentro e de cima para baixo em relao a ela.
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desenvolvidas, s zonas ou bolses perifricos, carentes ou pobres de determinado
pas desenvolvido. Isso se resolve -pelo menos em termos de amenizao da
injustia social- por emprego, salrio e participativo aproveitamento dos potenciais
locais como geradores de renda e bem-estar social nas comunidades visadas, at por
que outras esferas sobretudo de governo (como as federal ou nacional, estaduais ou
provinciais e municipais ou comunais) normalmente j cuidam ou esto aptas a
cuidarem, quando ainda no existentes, das infra-estruturas fsicas, bem como da
assistncia educao, sade, ao lazer e congneres.
Em suma, a implementao do Desenvolvimento Local, nesse caso, SEQUERPRESSUPE ALTERAES NAS MANEIRAS DE AS COMUNIDADES-LOCALIDADES ENVOLVIDAS
SE RELACIONAREM COM OS PARADIGMAS DE DESENVOLVIMENTO EM CURSO: alis, mud-
las para qu, se so elas que, internacionalmente, mantm e alimentam a boaperformance do desenvolvimento j em curso nopas desenvolvido?
Visto pela segunda tica, a da maneira como atualmente o mundo
desenvolvido v e trata o mundo subdesenvolvido (conforme item 2, anterior), o
Desenvolvimento Local, alm de NO PRESSUPOR ALTERAES NAS
SUPRAMENCIONADAS MANEIRAS DE RELACIONAMENTO, trar benefcios sim- s
comunidades-localidades em que for implementado, mas apenas como LENITIVO
SOCIECONMICO, sem jamais criar perspectivas de elas e o pas que as integre se
emanciparem do fatdico movimento implosivo da Cultura da Pobreza. E mesmo
que se intencione o contrrio, o Desenvolvimento Local nunca ultrapassar as
fronteiras do assistencialismo.
Por isso, oDesenvolvimento Local tem sido pensado tambm nesta tica (da
mesma forma que na primeira) como coisa s de comunidades perifricas,pobres ou
carentes, e no de qualquer comunidade-localidade (acima caracterizada como bem
definida e com tudo o que abranja de ncleo, periferia, pobreza e riqueza), que se
preste no s a se desenvolver como tambm a aprimorar seu processo dedesenvolvimento, se j em andamento: AFINAL DE CONTAS E SOCIOCULTURALMENTEFALANDO, QUANDO E ONDERIQUEZA SE TORNOU SINNIMO DEDESENVOLVIMENTO ERICO DE
DESENVOLVIDO?
Se assim fosse, a questo social da pobreza no mundo estaria em permanente
prioridade de soluo justamente a partir de todos os ricos do planeta (em termos de
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hemisfrios, continentes, pases, comunidades e pessoas), e no o inverso como se
viu atrs, restando os casos reais de pobreza, carncia e misria sociocultural e
material apenas preguia, doena ou outra anomalia e falta de iniciativas
individuais, visto que pobreza, carncia e misria tambm se originam e nutrem
desses lados pessoais.
Quanto terceira tica, a da relao do mundo subdesenvolvido com suas
prprias chances de se desenvolver efetiva e emancipadamente -tornando-se capaz
de romper as amarras tanto internas quanto externas que o prendem ao
subdesenvolvimento-, esta, sim, PRESSUPE ALTERAES NAS MANEIRAS DE ASCOMUNIDADES-LOCALIDADES ENVOLVIDAS (E, POR SOMATRIA, O PRPRIO PAS QUE AS
INTEGRE) SE RELACIONAREM COM OS PARADIGMAS DE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA
GLOBALIZANTE EM CURSO, DESPENCADOS EM AVALANCHE PELO MUNDO DESENVOLVIDO
SOBRE OMUNDO SUBDESENVOLVIDO (como visto no anterior item 2).
No se trata, em princpio, de alterar ou mudar os prprios paradigmas,
porque o mundo subdensenvolvido sequer tem acesso s suas sistemticas de gerao
e controle. O socialismo histrico sovitico (embora encarasse o
subdesenvolvimento no vis da explorao do trabalho ou mo-de-obra pelo capital)
tentou dinamitar esses paradigmas com nfase na estratgia marxista da luta de
classes mas chegou auto-imploso, j o vimos. E, por outro vis o do
fechamento cultural-, tambm o socialismo maosta chins tentou expurg-los de seuterritrio, mas hoje a eles progressivamente j comeou a se curvar.
H, no entanto, uma coisa que pode ser feita gradativamente enquanto
Desenvolvimento Local por qualquer povo, desde que em regime democrtico,
atravs de suas comunidades concretamente localizadas: sensibilizar-se, mobilizar-se
e organizar-se para a gerao gradativamente cooperativa de seu prprio bem-estar
de base, como o desvelamento de auto-estima, o cultivo da autoconfiana e o tornar-
se capaz, competente e hbil para discernir e buscar tanto suas prprias alternativas
de rumos scio-pessoais futuros quanto solues possveis, no seu mbito ou fora
dele, para seus mais imediatos problemas, necessidades e aspiraes. E isso sempre a
partir daquilo que estiver ao seu alcance (principalmente o conhecimento e o
aproveitamento de suas reais peculiaridades e potencialidades), bem como do
simples para o complexo e do mais para o menos comunitariamente necessrio.
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Tais capacidade, competncia e habilidades, uma vez impregnadas na
comunidade especifica ou no pas como um todo, acabam influindo a favor de mais
justa equilibrao entre os atuais mundos subdesenvolvido e desenvolvido, pelo
menos em perspectiva de longo prazo, porque se orientam no sentido de cada
comunidade envolvida comear a romper paulatinamente o crculo-vicioso da
parasitria dependncia assistencialista, que gera e alimenta a Cultura da Pobreza.
Torna-se, em contrapartida, apta a se interagir e negociar com as instncias externas
em relao quilo que lhe convm ou no, independentemente da aparncia e do
marketing em que for embalado.
Afinal, a velha lei do valor baseado na oferta e procura (cunhada pelo
economista escocs Adam Smith em 1776) ainda comanda o cerne da vitalidade
capitalista globalizante. E isso, aplicado questo em pauta, significa que quantomaior a demanda inclusive por dependncia tanto mais cara e prejudicial se torna a
sua disponibilizao, como de fato tem ocorrido at agora.
Caminhando para o fechamento deste tpico 3, dir algum, e com razo: o
Desenvolvimento Local nesta terceira tica tarefa rdua, pacienciosa e implica
muita perseverana, por parte tanto da comunidade mesma quanto dos agentes
externos, que se disponham a subsidiar e acompanhar o trabalho comunitrio local
em verdadeira condio depedagogos sociocomunitrios.
De fato, a autoformao comunitria para o desenvolvimento, naquele
sentido enfocado l no item 1.5, comea segundo Esteva (2000 : p. 61)- pela
seguinte tomada de conscincia:
Para que aqueles que constituem o dois-teros da populao mundial atualpossam pensar em desenvolvimento qualquer tipo de desenvolvimento- preciso em primeiro lugar que se vejam como subdesenvolvidos, com o fardo
total de conotaes que o termo carrega.
Alis, no -toa que o livro Formao educacional em desenvolvimento
local: relato de estudo em grupo e anlise de conceitos -sobre a conceituao de
Desenvolvimento Local nesta tica-, elaborado conjuntamente com quatro
mestrandos (cf. VILA et al., 2000) ao longo de dois anos em regime de grupo-de-
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estudo, se encerra por concluso deliberadamente intitulada: Se Utopia, Uma Boa
Utopia, naturalmente entendendo-se utopia (u = no + tops = localizado) no
como sonho ou miragem, mas no sentido etimolgico de algo ousado ainda no
topificado, porm topificvel se de fato implementado como convm.
Por fim, mais estas cinco observaes:
1 - Se no se atentar para as ticas deDesenvolvimento Local acima focadas,MANEIRAS COMPLETAMENTE DIFERENCIADAS PODERO OCORRER EM TERMOS DE
CONCEPO E DINAMIZAO DODESENVOLVIMENTO LOCAL EM PASES DESENVOLVIDOS E EM
REAS SUBDESENVOLVIDAS, APESAR DA EXISTNCIA DE PONTOS REAIS OU APENAS
APARENTEMENTE COMUNS.
2 - At o presente, tem-se pensado que o Desenvolvimento Local se alicera
no contrapiso do desenvolvimento econmico como sua base de sustentao e o
conceito do CES-Unio Europia, referido atrs, enfatiza justamente isto, ou seja,
que o Desenvolvimento Local [...] el proceso reactivador de la economa y
dinamizador de la sociedad local, mediante [...].
Esse tipo de pensamento no incompatvel com o que foi analisado a respeito das
primeira e segunda ticas, anteriormente abordadas, mas sem dvida no se coaduna
com a terceira, a da relao do mundo subdesenvolvido com suas prprias chances
de desenvolvimento emancipante.
Neste caso, tanto o contrapiso quanto tambm as verdadeiras estacas de fundao do
Desenvolvimento Local consistem no desenvolvimento sociocultural, lastreando e
dinamizando todas as demais performances de desenvolvimento no mbito da
comunidade-localidade, inclusive e por conseqncia a econmica.
O DESENVOLVIMENTO SOCIOCULUTURAL SE CARACTERIZA, POIS, COMO PONTO DE PARTIDA,
DE NORTEAMENTO E DE CHEGADA DO DESENVOLVIMENTO LOCAL, PASSANDO PELAS ROTASDO DESENVOLVIMENTO ECONMICO E MEIO-AMBIENTAL: DA POR QUE IMPLICA
PERMANENTE E ATIVA POLTICA DE FORMAO E EDUCAO COMUNITRIO-LOCAL (cfr.
tpico 6) VISANDO AUTOCONSCIENTIZAO, AUTO-SENSIBILIZAO, AUTO-ESTIMA,AUTOCONFIANA, AUTOMOBILIZAO, AUTO-ORGANIZAO COOPERATIVA E AUTO-
INSTRUMENTALIZAO TAMBM TCNICO-CIENTFICA PARA A GRADATIVA -PORM
CONTNUA- BUSCA DE RUMOS COMUNITRIO-LOCAIS, DE FORMA QUE A COMUNIDADE-
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LOCALIDADE SE EVOLUA PARA A CONDIO DE SUJEITO DO SEU PRPRIO
DESENVOLVIMENTO, A PARTIR DE SUAS CARACTERSTICAS, DE SUAS POTENCIALIDADES E EM
RELAO A SOLUES PARA PROBLEMAS, NECESSIDADES E APIRAES QUE LHE DIGAM
RESPEITO MAIS DIRETA E IMEDIATAMENTE.
3 - Em termos de Desenvolvimento Local, fundamental a orientao por
princpios bsicos de caracterizao tanto de sua natureza quanto de sua delimitao
conceitual e metodolgica. Mas a tendncia cultural de universalizao de pacotes
operacionais, no geral ou mesmo no mbito de um pas e at mesmo de um
municpio, contradiz a prpria natureza doDesenvolvimento Local.
TAL CONTRADIO OCORRE PELO FATO DE QUE O DESENVOLVIMENTO LOCAL SE CONFIGURA
JUSTAMENTE COMO PROCESSO QUE CONSIDERA, RESPEITA E APROVEITA AS
PECULIARIDADES (OU MODOS DE SER E AGIR), A REALIDADE (ENQUANTO COMPLEXIDADE
DOS CONTEXTOS SOCIAL, CULTURAL E MEIO-AMBIENTAL) E AS POTENCIALIDADES (DAS
PESSOAS E DO MEIO) DE CADA COMUNIDADE-LOCALIDADE, ENTENDENDO-SE INCLUSIVE QUE
EM RELAO A ESSES ASPECTOS NUNCA UMA COMUNIDADE-LOCALIDADE IGUAL OUTRA.
4 - Voltando ao item 1, no que respeita importncia do presente na
evoluo cultural, e face ao que se analisou tambm nos itens 2 e 3, acredito
personalizando- que oDesenvolvimento Local pode estar se constituindo um grande
e esperanoso presente de mudana cultural: no apenas uma estratgia a mais e,
sim, uma nova e esperanosa FILOSOFIA DE DESENVOLVIMENTO SURGINDO NO PLANETA.
Isso, em virtude de que, no importando se a longo prazo, oDesenvolvimento Local
poder comear a produzir efeitos de contraponto ou contrap globalizao de
massa, sem luta de classes, sem invases violentas sob pretexto de implantao
de regime democrtico e no s por macropolticas de relaes e negociaes
internacionais.
ABAIXO DE TUDO ISSO, ESTARO AFLORANDO E EBULINDO MICRODINMICAS NO NVEL
DAS PRPRIAS COMUNIDADES LOCALIZADAS- DE PROMOO AUTO-SUSTENTVEL DO BEM-
ESTAR BSICO E DA PAULATINA, PORM PROGRESSIVA, AUTO-EMANCIPAO DO CIRCLO-
VICIOSO DA DEPENDNCIA ASSISTENCIALISTA EXTERNA.
5 - Concebido na perspectiva de processo alicerado no desenvolvimento
sociocultural e ao mesmo tempo gerador de mudana cultural de desenvolvimento, o
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Desenvolvimento Local requer medidas operacionalizadoras de alcance muito alm
de programas e projetos ou iniciativas promocionais e imediatistas.
REITERANDO, SUA IMPLEMENTAO IMPLICA, POIS E TAMBM, A FORMAO (NO SENTIDO
VISTO EM 1.5) INCLUSIVA DE SUCESSIVAS GERAES (cfr. tambm tpico 6), EM RAZO DE
QUE MUDANAS CULTURAIS NO SE OPERAM APENAS POR PROGRAMAS, PROJETOS,CAMPANHAS E OUTRAS INICIATIVAS TEMPORRIAS OU AT PERMANENTES MAS SEM
PENETRAO NAS MANEIRAS DE PENSAR E AGIR DAS PESSOAS, INDIVIDUADAS E EM
COMUNIDADE.
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4. FALANDO DIDATICAMENTE PARA ALUNOS E COMUNIDADESSOBRE QU DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDGENO
Personalizando de vez, j fiz vrias apresentaes sobre Desenvolvimento
Local a mestrandos, graduandos e comunidades de pelo menos quatro municpios do
Estado de Mato Grosso do Sul. E a primeira pergunta de quem nunca ou pouco
ouviu falar sobre isso infalivelmente esta: qu Desenvolvimento Local?
Diante dessa pergunta, logo percebi que primeiro precisava tentar respond-
la para depois contextualiz-la, exatamente o inverso do que estou fazendo neste
texto. Alis, imediatamente aps respondida, da maneira como se ver na seqncia,
a sim- perguntavam se havia algum material escrito sobre o assunto. Ento, sugeriaa leitura de pelo menos trs dos meus trabalhos a esse respeito (cfr. VILA, 2000a;
VILA et al. 2000; e mais recentemente VILA, 2003), que de fato j serviram de
base para a formulao das linhas conceituais gerais esboadas como resposta
prpria questo (qu Desenvolvimento Local?).
Antes, porm, de passar a essas linhas, entendo esclarecedor observar que
comear a resposta questo pelo QU NO DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDGENOpara,
em seguida, enfocar QU , e no o contrrio, tornava muito mais acessvel a
compreenso por parte inclusive de pessoas como delegados de comunidades rurais,
em geral e de assentamentos, e representantes de aldeias indgenas. Por tal razo, a
ordem de apresentao sobre QU NO /QU DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDGENO,
tanto quanto possvel didatizada, passou a ser esta:
4.1 -Desenvolvimento Local NO Desenvolvimento NO Local(DnL)
Desenvolvimento NO Local (DnL) se refere a um empreendimento ouiniciativa a que se atribui a qualificao de desenvolvimento, por gerar emprego e
expcctativa de arrecadao de impostos e circulao de bens e dinheiro, mas que, em
verdade, tem o local apenas como sede fsica. S fica no local enquanto o lucro
compensa. No momento que a lucratividade baixa, ou quebra empresarialmente
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falando- ou vai embora, deixando comunidade-localidade seus destroos-
fantasmas, por vezes muitos e graves problemas ambientais e, principalmente,
enorme frustrao na populao.
O modelo brasileiro de implantao tanto de parques industriais quanto de
indstrias isoladas, a partir da dcada de 1940, vem fazendo com que at populaes
dos centros mais avanados do pas, como as principais capitais, hoje paguem muito
caro por esse tipo de desenvolvimento em termos de gua, ar, solo e sade de
modo geral.
Esse tipo de desenvolvimento deve ser evitado ou banido? No, ele
necessrio at para que se criem bases econmicas para o Desenvolvimento Local
propriamente dito, portanto de carter ENDGENO. Mas a comunidade-localidade
precisa estar bem consciente de que:
primeiro, ele de fato apenas se situa no local, ou seja, est aqui hoje podendo
amanh deslocar-se para a ndia, China ou qualquer outro pas (deixando seus
benficos e/ou funestos rastros para a localidade), como j ocorre muito com
empresas dos pases desenvolvidos que migram de um pas a outro pelo baixo
custo de matrias-primas e abundncia de mo-de-obra barata;
segundo, justo por apenas se situar no local, a gerao de benefcios comunidade-
localidade (alm do que se compra, vende ou contrata) se apresenta to-somente
como questo secundria, por vezes at descartvel.
Alis, muito comum o equvoco de se pensar que inclusive sadias e
necessrias iniciativas de desenvolvimen