Livro de poesia plnm 2

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Escola Secundária Marquês de Pombal 10.º PGEI 2011

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Escola Secundária Marquês de Pombal 10.º PGEI

2011

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Encontrei uma preta Encontrei uma preta

que estava a chorar, que estava a chorar,

pedipedi--lhe uma lágrima lhe uma lágrima

para a analisar. para a analisar.

Recolhi a lágrima Recolhi a lágrima

com todo o cuidado com todo o cuidado

num tubo de ensaio num tubo de ensaio

bem esterilizado. bem esterilizado.

OlheiOlhei--a de um lado, a de um lado,

do outro e de frente: do outro e de frente:

tinha um ar de gota tinha um ar de gota

muito transparente. muito transparente.

Mandei vir os ácidos,Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as bases e os sais,

as drogas usadas as drogas usadas

em casos que tais. em casos que tais.

Ensaiei a frio, Ensaiei a frio,

experimentei ao lume, experimentei ao lume,

de todas as vezes de todas as vezes

deudeu--me o que é costume: me o que é costume:

nem sinais de negro, nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio. nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo) Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.e cloreto de sódio.

SELECÇÃO DE JANILSON

Lágrima de preta

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Regresso

E contudo perdendo-te encontraste.

E nem deuses nem monstros nem tiranos

te puderam deter. A mim os oceanos.

E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.

Tu mostraste que o mar era só mar.

Maior do que qualquer império

foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro

e já em Portugal estrangeiros somos.

Se em cada um de nós há ainda um marinheiro

vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calcute até Lisboa sobre o sal

e o Tempo. Porque é tempo de voltar

e de voltando achar em Portugal

esse país que se perdeu de mar em mar.

Letra para um Hino

É possível falar sem um nó na garganta

é possível amar sem que venham proibir

é possível correr sem que seja fugir.

Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão

é possível viver sem que seja de rastos.

Os teus olhos nasceram para olhar os astros

se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É

possível transformares em arma a tua mão.

É possível o amor. É possível o pão.

É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.

É possível viver sem fingir que se vive.

É possível ser homem.

É possível ser livre livre livre.

SELECÇÃO DE JOSEFT PRAZERES

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Quando Eu For Pequeno

Quando eu for pequeno, mãe,

quero ouvir de novo a tua voz

na campânula de som dos meus dias

inquietos, apressados, fustigados pelo medo.

Subirás comigo as ruas íngremes

com a certeza dócil de que só o empedrado

e o cansaço da subida

me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,

os teus olhos voltarão a ver

nem que seja o fio do destino

desenhado por uma estrela cadente

no cetim azul das tardes

sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,

nenhum de nós falará da morte,

a não ser para confirmarmos

que ela só vem quando a chamamos

e que os animais fazem um círculo

para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,

trarei as papoilas e os búzios

para a tua mesa de tricotar encontros,

e então ficaremos debaixo de um alpendre

a ouvir uma banda a tocar

enquanto o pai ao longe nos acena,

lenço branco na mão com as iniciais bordadas,

anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno

e a orfandade até nos olhos deixa marcas.

in O Livro Branco da Melancolia

SELECÇÃO DE IDALMIRA

Um Pouco Mais de Nós

Podes dar uma centelha de lua,

um colar de pétalas breves

ou um farrapo de nuvem;

podes dar mais uma asa

a quem tem sede de voar

ou apenas o tesouro sem preço

do teu tempo em qualquer lugar;

podes dar o que és e o que sentes

sem que te perguntem

nome, sexo ou endereço;

podes dar em suma, com emoção,

tudo aquilo que, em silêncio,

te segreda o coração;

podes dar a rima sem rima

de uma música só tua

a quem sofre a miséria dos dias

na noite sem tecto de uma rua;

podes juntar o diamante da dádiva

ao húmus de uma crença forte e antiga,

sob a forma de poema ou de cantiga;

podes ser o livro, o sonho, o ponteiro

do relógio da vida sem atraso,

e sendo tudo isso serás ainda mais,

anónimo, pleno e livre,

nau sempre aparelhada para deixar o cais,

porque o que conta, vendo bem,

é dar sempre um pouco mais,

sem factura, sem fama, sem horário,

que a máxima recompensa de quem dá

é o júbilo de um gesto voluntário.

E, afinal, tudo isso quanto vale ?

Vale o nada que é tudo

sempre que damos de nós

o que, sendo acto amor, ganha voz

e se torna eterno por ser único e total.

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Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua

O meu interior é uma atenção voltada para fora

O meu viver escuta

A frase que de coisa em coisa silabada

Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro

Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações

Olho e confronto

E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar

São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade

Pois nenhum outro senão o mundo tenho

Não me peçam opiniões nem entrevistas

Não me perguntem datas nem moradas

De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente

Cada dia preparada SELECÇÃO DE YURAN SEMEDO

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SELECÇÃO DE RAMIRO CÁ

É urgente o amor

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

O sal da Língua

Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém - mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar,

para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

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Amor que morre

O nosso amor morreu... Quem o diria! Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta, Ceguinha de te ver, sem ver a conta Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria... E outro clarão, ao longe, já desponta! Um engano que morre... e logo aponta A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver São precisos amores, pra morrer, E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso Fazer do amor que parte o claro riso De outro amor impossível que há-de vir!

Minha culpa Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem... Sou um reflexo... um canto de paisagem Ou apenas cenário! Um vaivém Como a sorte: hoje aqui, depois além! Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem De um doido que partiu numa romagem E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!... Sou um verme que um dia quis ser astro... Uma estátua truncada de alabastro… Uma chaga sangrenta do Senhor... Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados, Num mundo de maldades e pecados, Sou mais um mau, sou mais um pecador...

SELECÇÃO DE EUNICE BARBOSA

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A leoa convenceu o leão,

depois de uma grande discussão,

a passarem juntos o Verão.

Sei lá... talvez no Ceilão!

O leão, convencido,

com a leoa foi mesmo querido:

- Ouve lá o teu rico marido:

e se fôssemos para um sítio bem florido?

A leoa rosnou e ripostou:

- Sabes bem como é que eu sou.

Há climas com os quais eu não me dou.

Prefiro o fresco. Para o pólo eu vou.

E lá partiram, a rugir, para a zona polar.

Fartaram-se de pular, de rosnar e de andar.

Chegaram lá... o pólo estava a fechar:

Pedimos desculpa, mas estamos a gelar!

- O pólo está fechado?

- gritou a leoa. O leão, escaldado,

olhou de alto a baixo e depois de lado.

- Anda daí, vamos mas é comer um gelado! SELECÇÃO DE VICTA SOARES

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Rio

As águas vêm de longe,

trazem o mundo,

os montes a terra as pedras

os bichos pólen

as folhas e a luz

a chuva o granizo

e a sede dos homens

o rumor das noites e dos dias.

Rio vivo, quase mudo,

cheio de água

cheio de terra

cheio de tudo.

SELECÇÃO DE ADILSON

O MAR

O mar,

o meu mar.

todo o mar

do mundo

ao meu encontro.

Mar meu,

centro.

Mergulho

no mar.

Entro?

Ou entra

em mim

o mar?

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EU SOU PORTUGUÊS AQUI Eu sou português aqui em terra e fome talhado feito de barro e carvão rasgado pelo vento norte amante certo da morte no silêncio da agressão. Eu sou português aqui mas nascido deste lado do lado de cá da vida do lado do sofrimento da miséria repetida do pé descalço do vento Nasci deste lado da cidade nesta margem no meio da tempestade durante o reino do medo. Sempre a apostar na viagem quando os frutos amargavam e o luar sabia a azedo.

Eu sou português aqui no teatro mentiroso mas afinal verdadeiro na finta fácil no gozo no sorriso doloroso no gingar de um marinheiro. Nasci deste lado da ternura do coração esfarrapado eu sou filho da aventura da anedota do acaso campeão do improviso trago as mãos sujas do sangue que empapa a terra que piso. Eu sou português aqui na brilhantina em que embrulho no alto da minha esquina a conversa e a borrasca eu sou filho do sarilho no gesto desmesurado nos cordéis do desenrasca.

Nasci aqui no mês de Abril quando esqueci toda a saudade e comecei a inventar em cada gesto a liberdade.o Nasci aqui ao pé do mar de uma garganta magoada no cantar. Eu sou a festa inacabada quase ausente eu sou a briga a luta antiga renovada ainda urgente. Eu sou português aqui o português sem mestre mas com jeito. Eu sou português aqui e trago o mês de Abril a voar

SELECÇÃO DE ADMILSON

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Tudo de pernas para o ar

Numa noite escura, escura,

o sol brilhava no céu.

Subi pela rua abaixo,

vestido de corpo ao léu.

Fui cair dentro de um poço

mais alto que a chaminé,

vi peixes a beber pão,

rãs a comerem café.

Construí a minha casa

com o telhado no chão

e a porta bem no cimo

para lá entrar de avião.

Na escola daquela terra

ensinavam trinta burros.

O professor aprendia

a dar coices e dar zurros. SELECÇÃO DE EDWIGES

Rei, Capitão, Soldado, Ladrão

Rei, capitão,

soldado, ladrão,

menina bonita

do meu coração.

Não quero ter coroa,

nem arma na mão,

nem fazer assaltos

com um facalhão.

Quero ser criança,

quero ser feliz,

não quero nas lutas

partir o nariz.

Quero ter amigos

jogar futebol,

descobrir o mundo

debaixo do sol.

Rei, capitão,

soldado, ladrão,

não.

Mas quero a menina

do meu coração.

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Poemas perdidos.

Real, real porque me abandonaste?

E, no entanto, às vezes bem preciso

de entregar nas tuas mãos o meu espírito

e que, por um momento, baste

que seja feita a tua vontade

para tudo de novo ter sentido,

não digo a vida, mas ao menos o vivido,

nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.

Oh, juntar os pedaços de todos os livros

e desimaginar o mundo, descriá-lo,

amarrado ao mastro mais altivo

do passado! Mas onde encontrar um passado? SELECÇÃO DE CLAUDINA

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Pretexto

Por que não cai a noite, de uma vez?

— Custa viver assim aos encontrões!

Já sei de cor os passos que me cercam,

o silêncio que pede pelas ruas,

e o desenho de todos os portões.

Por que não cai a noite, de uma vez?

— Irritam-me estas horas penduradas

como frutos maduros que não tombam.

(E dentro em mim, ninguém vem desfazer

o novelo das tardes enroladas.)

SELECÇÃO DE ALINE

Cântico de Barro

Inquieta chuva, inquieta me dispersa,

esquecida a tradição e o cansado som.

Dentro e fora de mim tudo é deserto

como se as ervas fossem arrancadas

ou se esgotasse a dor por que se chora.

Na grande solidão me basta, e a contemplo

para o sonho interior que me resolve!

Tão fácil é esperar, que já nem sinto

o que vem a dormir ou a morrer

na mesma angústia que o silêncio envolve.

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Deixa contar...

Era uma vez

O senhor Mar

Com uma onda...

Com muita onda...

E depois?

E depois…

Ondinha vai...

Ondinha vem...

Ondinha vai...

Ondinha vem...

E depois...

A menina adormeceu

Nos braços da sua SELECÇÃO DE MARIA DE FÁTIMA

A girafa

deu

ao seu

marido

no dia

de Natal

um lenço

colorido

de seda natural.

Que alegria!

– disse o marido –

ponha a pata

nesta pata,

com um pescoço

tão comprido

você não podia

ter-me comprado

uma gravata.

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Saudação à Primavera

Na hora certa

Disse que chegaria.

Declarou dia e hora.

Tão longe que ela mora

que diabo, até

se lhe perdoaria

que, perdendo a maré,

chegasse no outro dia.

De tudo se abrigou

na sorte ingrata

e à hora exacta

“aqui estou!”

disse da alta esfera.

Bem-vinda Primavera!

A erva secou no telhado.

Não dá pão.

As minhas costas estão em carne viva.

Encham agricultores

o celeiro!

Calquei as minhas culpas, meus pecados.

Fugi para o silêncio. E entretanto

de mim, calado, o pranto todo o dia

jorrava, e este corpo esmorecia

ossos roídos de suor e febre.

– Não sejas – me disseste –

como aqueles cavalos dominados

somente pelo freio e pela mordaça:

eles só se aproximam, se confiam.

Entendi. Este canto bem o mostra.

Prometo que só ficarei atento

os séculos que forem necessários.

Atento nas promessas

que fazem os amigos

atento na justiça

com a paz na pista dos seus passos.

Vejam só que de frutos se enche a Terra!

Porque és eterno é que criaste o dia.

Porque és eterno é que me criaste a mim. SELECÇÃO DE EMACULADA

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SEIS DA MANHÃ Para começar bem o dia, antes que o dia me veja, ponho-te aqui de bandeja a meu lado, rosto de amor, extenuado. Hoje o teu corpo, onde quer que ele esteja, vai ter de se erguer sozinho, respirar sozinho, sair sozinho, e tudo lhe vai parecer estranho, estranha a luz, estranho o tamanho do caminho.

SELECÇÃO DE DULCELINA

AS CHÁVENAS

As chaveninhas da avó,

repartidas em partilhas

por netas, noras e filhas,

lembram-me as chávenas da feira

com tatuagem Lembrança

gravada a ouro na pança.

Todas elas são de saldo,

nunca a salvo, todas vêm do desterro

e trazem no aro fino

um óculo cego, um destino,

um erro.

Anjos de uma asa só,

leve penugem de pó.