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  • 2Copyright 2013 by ACERP/TV Escola

    Coordenao editorial

    Rosa Helena Mendona

    Diagramao e editorao

    Norma Cury

    Capa

    Daniel Barroca

    Preparao e reviso:

    Magda Frediani Martins

    Reviso Final

    Milena Campos Eich

    DaDos InternacIonaIs De catalogao na PublIcao (cIP)

    (cmara brasIleIra Do lIvro, sP, brasIl)

    Africanidades brasileiras e educao [livro eletrnico] : Salto para o Futuro / organizao

    Azoilda Loretto Trindade.

    Rio de Janeiro : ACERP ; Braslia : TV Escola, 2013.

    1,58 Mb ; PDF

    Vrios autores.

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-60792-06-1

    1. frica - Histria 2. afro-brasileiros - brasil 3. Diversidade cultural 4. educao - brasil 5. mul-

    ticulturalismo 6. Preconceitos 7. Professores - Formao 8. Programa salto para o Futuro (tv

    escola) I. trindade, azoilda loretto.

    13-11695. cDD-370.117

    ndices para catlogo sistemtico: 1. afro-brasileiros e africanos : Diversidade : educao 370.117

    Todos os direitos desta edio reservados Associao de Comunicao Educativa Roquette-Pinto

    (ACERP) e TV Escola (MEC)

    reproduo de textos permitida para fins educativos e desde que citada a fonte.

    e-mail: [email protected]

    rua da relao, 18, 4 andar

    ceP.: 20231-110 rio de janeiro (rJ)

    2013

  • 3Presidncia da Repblica

    Ministrio da Educao

    Secretaria de Educao Bsica

    AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAO

    SALtO pARA O FUtURO

    Organizao

    Azoilda Loretto da Trindade

    acerP

    tv escola/mec

    rio de Janeiro/ braslia

    2013

  • AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAO

    SuMRiO

    Apresentao ........................................................................................................... 8

    introduo ..............................................................................................................10

    Captulo 1 ABORDAgEnS gERAiS SOBRE MultiCultuRAliSMO E DivERSiDADE

    CultuRAl ................................................................................................................18

    i. Multiculturalismo ou de como viver junto ..........................................................21

    Mary Del Priore

    ii. Por um multiculturalismo democrtico ........................................................ ...28

    Sueli Carneiro

    iii. Pluralidade e diversidade ................................................................................. 33

    Carla Ramos

    iv. Saberes culturais e educao do futuro ............................................................ 39

    Edgard de Assis Carvalho

    v. Redes de convivncia e de enfrentamento das desigualdades ............................ 47

    Elizeu Clementino de Souza

    vi. Diversidade e currculo .................................................................................... 55

    Nilma Lino Gomes

    vii. Reinventando a roda: experincias multiculturais de uma educao para

    todos ...................................................................................................................... 58

    Azoilda Loretto da Trindade

    Captulo 2 AFRiCAniDADES .................................................................................. 64

  • 5A. ASPECtOS gERAiS

    i. Africanidades, afrodescendncias e educao .................................................... 68

    Henrique Cunha Jnior

    ii. Humilhao, encorajamento e construo da personalidade ............................ 80

    Azoilda Loretto da Trindade

    iii. A lei n. 10.639/2003 altera a lDB e o olhar sobre a presena dos negros no Brasil

    e transforma a educao escolar............................................................................ 86

    Bel Santos

    iv. frica viva e transcendente! ............................................................................. 92

    Narcimria Correia do Patrocnio Luz

    v. Diversidade tnico-racial no currculo escolar do ensino fundamental ........... 101

    Vra Neusa Lopes

    vi. O legado africano e a formao docente .........................................................108

    Marise de Santana

    vii. As relaes tnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto

    poltico-pedaggico ............................................................................................... 119

    Lauro Cornlio da Rocha

    B. EDuCAO inFAntil

    i. valores civilizatrios afro-brasileiros na educao infantil ............................... 131

    Azoilda Loretto da Trindade

    ii. As relaes tnico-raciais, histria e cultura afro-brasileiras na educao

    infantil ..................................................................................................................139

    Regina Conceio

    iii. tin d l l: brinquedos, brincadeiras e a criana afro-brasileira

    (uma reflexo) .......................................................................................................144

    Azoilda Loretto da Trindade

  • 6C. EDuCAO QuilOMBOlA

    i. Os quilombos e a educao ...............................................................................153

    Maria de Lourdes Siqueira

    ii - Quilombo: conceito ..........................................................................................158

    Gloria Moura

    iii. Saberes tradicionais de sade .........................................................................162

    Brbara Oliveira

    iv. Organizao social e festas como veculos de educao no-formal ...............168

    Vernica Gomes

    v. Kalunga, escola e identidade experincias inovadoras de educao nos

    quilombos .............................................................................................................172

    Ana Lucia Lopes

    vi. lei n 10.639/2003 e educao quilombola incluso educacional e populao

    negra brasileira .....................................................................................................178

    Denise Botelho

    D. AFRiCAniDADES BRASilEiRAS

    Documentrio: Africanidades Brasileiras e Educao ........................................184

    Captulo 3 EntRECRuZAMEntOS tEMtiCOS MultiCultuRAliDADES,

    DiSCiPlinARiDADES E AFRiCAniDADES ................................................................199

    i. Cincia multicultural ........................................................................................202

    Ubiratan DAmbrosio

    ii. Afroetnomatemtica, frica e afrodescendncia .............................................208

    Henrique Cunha Junior

    iii. A multiculturalidade na educao esttica .....................................................220

    Ana Mae Barbosa

  • 7iv. A Construo esttico-cultural de um espao .................................................226

    Laura Maria Coutinho

    v. O espao dos vdeos na sala de aula: a difuso de mensagens sobre

    afro-brasileiros .....................................................................................................232

    Heloisa Pires Lima

    vi. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural ..........................237

    Maria Elisa Ladeira

    vii. no tempo em que os seres humanos conversavam com as rvores ..............245

    Narcimria Correia do Patrocnio Luz

    viii. Os versos sagrados de if: base da tradio civilizatria iorub ...................253

    Juarez Tadeu de Paula Xavier

    iX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras .................................257

    Andria Lisboa de Sousa e Ana Lcia Silva Souza

    X. Conto popular, literatura e formao de leitores ..............................................272

    Ricardo Azevedo

    Xi. literatura e pluralidade cultural ......................................................................280

    Marisa Borba

    Xii. novas bases para o ensino da histria da frica no Brasil .............................288

    Carlos Moore

    Xiii. Enfrentando os desafios: a histria da frica e dos africanos no Brasil na nossa

    sala de aula ............................................................................................................301

    Mnica Lima

    Xiv. Sons de tambores na nossa memria o ensino de histria africana e

    afro-brasileira .......................................................................................................307

    Mnica Lima

  • 8APRESENTAO

    AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAORosa Helena Mendona1

    a coletnea Africanidades brasileiras e educa-

    o, organizada por azoilda loretto trinda-

    de, composta de textos que foram produzi-

    dos para o programa salto para o Futuro, da

    tv escola, ao longo da ltima dcada2.

    o projeto surgiu e ganhou fora durante a

    produo do documentrio Africanidades

    brasileiras e educao, exibido em outubro

    de 2008, pela tv escola.

    Para a realizao do documentrio foi ne-

    cessrio realizar uma pesquisa que envolveu

    uma seleo de textos sobre a temtica nas

    publicaes eletrnicas, alm do visiona-

    mento de sries e transcrio de entrevistas

    que compem o acervo do programa. Da

    para esta coletnea, estava dado o primeiro

    passo.

    caberia organizadora explicitar, a partir

    da linha editorial, a concepo terica que

    fundamenta o trabalho e a organizao

    dos captulos, de acordo com as temticas

    subjacentes aos textos. ela foi alm, empre-

    endendo uma busca que excedeu s sries

    realizadas especificamente para subsidiar a

    implementao da lei n. 10.639/03. nessa

    perspectiva, a obra traz infinitas possibili-

    dades de leitura e combinaes temticas

    desafiadoras. o captulo 1 trata de Abor-

    dagens multiculturais amplas; o captulo

    2, que inclui o texto complementar ao do-

    cumentrio, enfoca as Africanidades; e o

    captulo 3 aponta para Entrecruzamentos

    temticos, ao destacar as contribuies da

    cincia e da literatura nas abordagens mul-

    ticulturais.

    este livro mais uma iniciativa da secretaria

    de educao bsica (seb), do ministrio da

    educao, que, por meio do programa sal-

    to para o Futuro, da tv escola, tem buscado

    contribuir para a formao continuada de

    1 supervisora pedaggica do programa salto para o Futuro/tv escola (mec). Doutoranda no ProPeD-uerJ.

    2 os crditos dos autores correspondem poca em que os textos foram escritos. considerando que um dos objetivos da publicao refletir o pensamento sobre a temtica ao longo desse tempo, optamos tambm em no solicitar aos autores a atualizao dos textos, preservando, assim, a perspectiva histrica dos mesmos.

  • 9professores da educao bsica na implan-

    tao da lei 10639/03.

    a realizao desta obra no teria sido poss-

    vel sem a colaborao de ana maria miguel

    e de carla ramos, analistas educacionais do

    programa, que participaram da seleo ini-

    cial do material, e de magda Frediani mar-

    tins, revisora, que foi responsvel pela pre-

    parao e reviso do livro, contribuindo na

    edio com sua experincia e sensibilidade.

    Devemos, ainda, a Fernanda braga, analista

    educacional, a formatao inicial dos textos,

    a organizao de notas, ttulos e outros as-

    pectos grfico-editorais, o que possibilitou a

    primeira verso dos originais. tambm par-

    ticiparam deste projeto a analista educacio-

    nal mnica mufarrej, que organizou um cD

    com os textos, e amanda souza, estagiria

    do salto para o Futuro, que fez a transcrio

    das fitas com entrevistas.

    De minha parte, sinto especial satisfao em

    ter idealizado esta publicao e supervisio-

    nado todo o processo de edio. ao longo

    de vrios meses, tive o privilgio de fazer a

    interlocuo entre a organizadora da colet-

    nea e os demais profissionais envolvidos, to-

    dos empenhados em fazer chegar s escolas

    brasileiras mais esta obra de referncia para

    a implementao da lei n 10.639/03 e da lei

    n 11.645/08.

    vale destacar que a maior parte dos textos

    que compem esta publicao foi produzida

    para sries que foram realizadas pelo salto

    para o Futuro/tv escola por demandas fei-

    tas pela secretaria de educao continuada,

    alfabetizao, Diversidade e Incluso (seca-

    DI), do ministrio da educao. o objetivo

    comum o de colocar em pauta a questo

    da diversidade, to significativa para a cons-

    truo de uma escola mais equnime, numa

    sociedade que precisa, cada vez mais, se

    assumir como multicultural e pluritnica,

    ultrapassando excluses e preconceitos de

    todas as ordens.

    com prazer que fazemos chegar aos pro-

    fessores e professoras esta obra, no ano em

    se comemoram os 10 anos da promulgao

    da lei 10639/03. Desejamos uma excelente

    leitura, que possa se desdobrar em traba-

    lhos e em outros textos, criando e alimen-

    tando essa rede de educao que constitui o

    programa salto para o Futuro.

  • 10

    INTRODUO

    Azoilda Loretto da Trindade 13

    A todas as pessoas irms da ptria (mtria) amada que no fogem luta, nem

    temem segurar a clava forte da justia quando isto se faz necessrio.

    a tarefa de organizar um livro sobre Africani-

    dades Brasileiras e educao, a partir do ma-

    terial produzido pelo programa Salto para o

    Futuro, foi, sem dvida, muito desafiadora,

    tendo em vista que a produo de saberes

    e fazeres no campo da educao um dos

    compromissos que assumimos no enfrenta-

    mento do racismo e na construo de uma

    sociedade que respeite os direitos humanos,

    sociais, civis e, em especial, o direito vida

    em todas as suas manifestaes. uma so-

    ciedade em que a deusa Justia, entidade

    mitolgica cultuada desde a antiguidade

    clssica, seja, efetivamente, para todos e to-

    das.

    o acervo do programa salto para o Futuro

    representa um patrimnio para a histria da

    educao do brasil. so mais de vinte anos

    de programa, com a presena de educadores

    e educadoras compartilhando suas reflexes

    e aes educativas, seja como acadmico(a)

    s, docentes ou ativistas, atravessando gover-

    nos e gestores diversos, sem perder o com-

    promisso com a educao de qualidade neste

    pas.

    o contato com todo este material escrito,

    disponvel na pgina do programa, tambm

    nos coloca diante de reflexes sobre a diver-

    sidade de vises, contradies e paradoxos.

    so produes que nos inspiram e, a partir

    delas, temos ideias que podem gerar, tanto

    projetos para a ao pedaggica cotidiana,

    quanto outras produes escritas e novos

    documentrios... sentimo-nos como o me-

    nino do conto A funo da arte, de eduardo

    galeano4:

    Diego no conhecia o mar. O pai, San-

    tiago Kovadloff, levou-o para que desco-

    brisse o mar.

    Viajaram para o Sul.

    3 Doutora em comunicao pela eco/ uFrJ. mestre em educao pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletnea

    4 galeano, eduardo. O livro dos abraos. ed. lP&m, 2005.

  • 11

    Ele, o mar, estava do outro lado das du-

    nas altas, esperando.

    Quando o menino e o pai enfim alcana-

    ram aquelas alturas de areia, depois de

    muito caminhar, o mar estava na frente

    de seus olhos. E foi tanta a imensido do

    mar, e tanto fulgor, que o menino ficou

    mudo de beleza.

    E quando finalmente conseguiu falar,

    tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

    Me ajuda a olhar!

    so muitas informaes, muitos conheci-

    mentos, muitos contedos, muitos saberes,

    quer no acervo das produes do salto, quer

    nos espaos institudos de produo de co-

    nhecimento, como as escolas, as universi-

    dades, as instituies da sociedade civil, or-

    ganizada ou no. os textos so muito ricos

    e inspiradores, os minidocumentrios gera-

    dores dos debates so igualmente ricos, so-

    bretudo em possibilidades pedaggicas. Por

    tudo isto, fica difcil escolher, decidir e sele-

    cionar, inclusive pela atualidade dos temas

    e dos textos a eles relacionados e pelo valor

    que este material constitui para a educao

    no brasil.com relao organizao do li-

    vro, convm destacar dois pontos:

    o primeiro relacionou-se seleo dos tex-

    tos e dos contedos a serem privilegiados

    com sua presena nos currculos escolares

    e no dia a dia propriamente dito. a relevn-

    cia e a escolha foram mediadas pela menta-

    lidade inclusiva e antirracista dos educado-

    res e educadoras presentes nas instituies

    de ensino e por sua fora de convencimen-

    to, argumentao e luta. Destaco, assim,

    que se trata de compromisso poltico, de

    desafio e de pacto com a justia e com uma

    proposta de escola feliz, inclusiva, capaz

    de mudanas de mentalidade e comporta-

    mentos. essa perspectiva tambm atende

    s questes polticas, dentre elas a da com-

    preenso de que currculo um documento

    de identidade. se o currculo o documen-

    to de identidade da escola, da sociedade e/

    ou de um grupo, imaginem o desafio que

    mud-lo. Porque, historicamente, a insti-

    tuio escola vive processos contraditrios,

    dialticos, complexos. , muitas vezes, uma

    escola que tem uma identidade negadora

    da sua populao, da sua imagem, da sua

    riqueza cultural e que precisa, por isso, se

    modificar.

    ao pensarmos qual o papel da escola, fica-

    mos de frente com a necessidade de mudar

    essa sua identidade, mudar esse documento

    de identidade, trocar este documento por

    outro que olhe e que diga da riqueza que

    o brasil, da riqueza que um pas plural

    como o nosso. a nossa escola frequente-

    mente nega isso, hierarquiza as diferenas

    humanas, frontalmente. o que acontece se

    formos, em qualquer dia, numa sala de aula,

    e observarmos o que mostram os murais e

    quem so as crianas e os adolescentes que

  • 12

    esto naquela escola? observar um exer-

    ccio simples, no s na nossa escola espe-

    cificamente, mas tambm se ampliarmos

    a observao para outros espaos. Que

    identidade essa? Que escola essa? Que

    imaginrio esse que atravessa e perpassa

    a nossa prtica e a nossa ao docente? a

    escola e os currculos podem ter um papel

    importante, na medida em que eles se pro-

    ponham a se transformar, a se olharem no

    espelho e a no ter vergonha do que veem.

    um grande desafio docente, este que se co-

    loca para todos ns, educadores e educado-

    ras, que queremos transformar essa escola,

    transform-la na sua imagem, na sua estru-

    tura, nas suas aes, na sua eficcia e nos

    seus contedos.

    outro ponto relevante nesta introduo

    o fato de estarmos focados na histria e

    cultura africana e afro-brasileira, na im-

    plementao da lei n. 10.639, de janeiro

    de 2003, que neste ano completa dez anos,

    num tema que faz parte de um dos mais

    graves, viscerais e emblemticos proble-

    mas brasileiros: as desigualdades tnico-

    -raciais.

    sabemos e reconhecemos como importante

    aspecto de anlise e interveno a questo

    das desigualdades, dos preconceitos, dos es-

    tigmas e do racismo na escola. e sabemos

    tambm que esses processos no se limitam

    aos pretos e pardos (negros), mas a vrios

    grupos: mulheres, indgenas, pessoas com

    deficincias, com necessidades especiais...

    a escola e a sociedade esto marcadas por

    essa problemtica que afeta, no s os afro-

    -brasileiros(as), mas a outros grupos hu-

    manos. estamos marcados pelo machismo,

    pelo patrimonialismo, pelo elitismo... lidar

    com isso , portanto, uma escolha poltica,

    uma vez que tambm sabemos o quanto de

    invisibilizao, de desconhecimento e de es-

    tereotipias existem com relao s histrias

    e culturas africanas e afro-brasileiras. Quem

    sabe podemos ter, em breve, e o acervo do

    programa indica isso, coletneas sobre os

    povos indgenas (lei n. 11.645/2008), sobre as

    questes de gnero e orientao afetivo-se-

    xual, como j temos sobre cultura popular

    e outros temas? e quem sabe, um dia, no

    precisemos mais nos ocupar com incluso,

    com preconceito e racismo? Por ora, como

    poderemos ver na primeira parte desta cole-

    tnea, temos ainda um longo caminho a ser

    trilhado.

    POR QuE tRABAlHAR AS

    AFRiCAniDADES nAS ESCOlAS

    BRASilEiRAS?

    embora a pergunta feita seja nica, ela tem

    mltiplas e inmeras respostas. vamos a al-

    guns pontos de vista:

  • 13

    PROvRBiO AFRiCAnO

    At que os lees tenham seus prprios

    historiadores, as histrias de caadas

    continuaro glorificando o caador 5.

    Para elisa larkin6 (intelectual, pesquisado-

    ra):

    Eu acho que em primeiro lugar a gen-

    te no pode falar em humanidade sem

    falar nos africanos. Inclusive porque a

    frica, hoje existe um consenso na an-

    tropologia, na arqueologia, a frica foi

    o bero realmente do nascedouro da

    prpria espcie humana. Ento, h esse

    aspecto que, na verdade, o prprio ser

    humano nasce na frica e vai desenvol-

    vendo na frica sua cultura, em pocas

    muito remotas, vai povoando o mundo.

    se a escola um campo, um espao de pro-

    duo e de apropriao de conhecimentos,

    ento fundamental, justo e funo da es-

    cola que os saberes africanos, que so um

    patrimnio da humanidade, sejam compar-

    tilhados, aprendidos, conhecidos. a escola

    no deve negar populao este patrim-

    nio, no pode subtrair um direito, que de

    todos, de conhecer o repertrio cultural dos

    povos africanos. se a escola no veicula es-

    tes saberes, est tirando o direito das pes-

    soas de se informarem sobre isso. Isso no

    justo, no bom. o patrimnio cultural

    produzido pelos africanos tem muito mais

    do que 500 anos. e tudo que a frica pro-

    duziu e espalhou pelo mundo em termos

    de conhecimentos, de sentimentos, de sa-

    beres, de arquiteturas, de engenharia? Isso

    foi como que subtrado da nossa memria

    social. assim, nossa escola hoje tem esse de-

    safio, a educao formal tem esse desafio,

    os educadores e as educadoras tm esse de-

    safio, de aprender o que a frica produziu,

    que patrimnio esse que foi tirado da nos-

    sa formao. e h um outro desafio maior

    ainda: que ns, educadores, educadoras, ao

    aprendermos sobre isso, transformemos a

    nossa prtica docente, de modo a incorpo-

    rar todo este conhecimento no cotidiano. e

    incorporar no s na cabea, no campo

    da racionalidade, mas incorporar tambm

    nas entranhas, no campo da corporeidade,

    do ser humano na sua completude. Porque

    no basta, por exemplo, trabalharmos com

    a histria africana, afro-brasileira e indge-

    na, isso s no d conta. preciso incorpo-

    rar esses saberes no cotidiano da escola.

    possvel, a partir desse patrimnio africano

    ou indgena, ou de outros patrimnios cul-

    turais, transformar o cotidiano da escola?

    Isso, sem dvida, bastante desafiador! e

    fantstico! Imaginem o que de revolucion-

    rio pode acontecer quando incorporarmos

    na escola os valores civilizatrios afro-bra-

    sileiros, que levem em conta, por exemplo,

    5 Provrbio africano citado por eduardo galeano em o livro dos abraos.

    6 srie currculo, relaes raciais e cultura afro-brasileira (2006).

  • 14

    a questo do comunitarismo? Juntos com-

    partilharemos os conhecimentos, a alegria,

    a ludicidade e a cincia, para fazerem parte,

    no apenas de uma grade curricular, mas

    tambm da vida e do dia a dia da escola,

    com potncia, riqueza, garra.

    Para muniz sodr (intelectual e escritor):

    No h como negar a presena da cultu-

    ra europeia e das cincias nas escolas do

    Brasil. Mas em relao cultura negra,

    d pra negar e por isso que demorou

    tanto, porque se esqueceu deliberada-

    mente de colocar nos livros escolares,

    nas mentalidades dos professores das

    escolas, a contribuio que o negro deu

    para a formao da sociedade brasilei-

    ra, da cultura, historicamente, ao longo

    dos tempos. Essa contribuio no foi s

    de trabalho. (...) Foi principalmente cul-

    tural (...). ai que se d o esquecimento,

    a contribuio foi tambm na cultura

    erudita, porque no se diz ao estudan-

    te na escola e no se fazem manuais

    para dizer que at a abolio os gran-

    des escultores e pintores da Academia

    Imperial fundada pelo imperador, eram

    negros, nas igrejas da Bahia, nas igrejas

    de Minas, nas igrejas do Rio de Janeiro,

    os pintores e escultores eram negros e

    mulatos. No se diz que os msicos da

    corte do Imprio eram negros e mula-

    tos, no se diz que o maior compositor

    da corte no Imprio, o padre Jos Mauri-

    cio, era um negro, grande compositor e

    grande maestro da corte, e que estadis-

    tas, deputados, parlamentares do Im-

    prio tambm eram negros e mulatos.

    H um livro que recomendo muito para

    as escolas A mo negra brasileira, que

    foi editado por Emanuel Arajo, artista

    plstico, que foi diretor do museu de

    Arte Moderna de So Paulo, livro edita-

    do por Valter Brest, onde se faz um rela-

    to dessas figuras que integraram a cha-

    mada cultura erudita. O maior escritor

    brasileiro de todos os tempos, Machado

    de Assis, se diz que era mulato escuro.

    Machado de Assis era crioulo mesmo.

    Lima Barreto era negro, ningum diz

    que o Brasil teve um presidente negro,

    no se conta essa histria, todo mundo

    pensa que s houve presidente branco

    no Brasil! Tivemos um presidente qua-

    se negro chamado Nilo Peanha, que

    retocado nos retratos para parecer que

    no negro. Assim como se retoca o

    senhor Rui Barbosa, grande intelectu-

    al baiano, mulato escuro, se retoca no

    retrato para parecer que era branco.

    Nilo Peanha era negro, mulato escuro,

    negro. Agora a famlia dele no era, era

    mais clara. Ento, o que eu quero dizer

    que a presena dos negros na cultu-

    ra erudita foi forte com a abolio. E

    o sculo XX foi esquecer isso, comeou

    a deixar de lado e, a partir da, toda a

    insero do negro na cultura brasileira

    foi s atravs da chamada cultura popu-

  • 15

    lar, atravs da msica, que foi gloriosa:

    Pixinguinha, os grandes compositores,

    o samba vem da, o futebol, o carna-

    val, os folguedos. (...) Por isso que digo

    que houve uma denegao histrica da

    contribuio do negro, da sua presen-

    a. importante que o negro atue em

    novelas, aparea em publicidade, mas

    eu acho mais importante comear a di-

    zer s pessoas, aos meninos nas escolas

    sobre tudo isto (...). Na cultura erudita,

    tanto quanto na cultura popular, o ne-

    gro brilhou, preciso contar tambm s

    pessoas que at os anos 20, na Bahia, os

    professores de matemtica e de piano

    eram todos negros mals, que sabiam

    ler muito bem, inclusive em rabe, liam

    rabe, liam o Alcoro e ningum conta

    isso.

    e, para completar estas reflexes, nada me-

    lhor que os versos da cano de nei lopes e

    Wilson moreira:

    Em toda cultura nacional

    Na arte, at mesmo na cincia

    O modo africano de viver

    Exerceu grande influncia

    O negro brasileiro

    Apesar de tempos infelizes

    Lutou, viveu, morreu e se integrou

    Sem abandonar suas origens .

    entre fundamentos, argumentos e informa-

    es sobre africanidades, organizamos esta

    coletnea.

    ME AjuDA A OlHAR

    nosso processo de organizar e selecionar os

    textos no foi fcil, j que nos deparamos

    com muitas vicissitudes acerca do tema. o

    acabamento, o embelezamento, os ajustes

    e os retoques ficaram sob a responsabilida-

    de da equipe pedaggica do salto fato que

    merece destaque, pois produes para o co-

    letivo so tambm coletivas, por mais indivi-

    duais que paream. ao pesquisar, ler e reler

    o material selecionado, ns nos conectamos

    com algumas percepes que no nos fur-

    taremos a compartilhar. Deparamo-nos com

    caminhos que chamo de exunicidades, por

    tratarem-se de encruzilhadas, possibilidades

    que demandam encontros, comunicao,

    articulao, negociao, conflitos... e, as-

    sim, devemos fazer esta aluso a um deus

    da mitologia africana: exu.

    assim como no existe a frica homognea,

    nem a histria e a cultura africana e afro

    -brasileira, j podemos dizer, com certeza,

    que no existe um pensamento nico sobre

    a temtica. Isso tudo, articulado com a di-

    versidade de pensamento e de aes peda-

    ggicas brasileiras, nos permite afirmar que

    7 ao povo em forma de arte. composio de nei lopes e Wilson moreira.

  • 16

    a implementao da lei tambm plural e

    complexa. Por exemplo, existe uma varieda-

    de de denominaes, concepes, conceitos

    e vises que podem se associar a essa diver-

    sidade pedaggica, como educao banc-

    ria, tradicional, formal, conservadora, scio-

    -histrica, liberal, conteudista...

    Paradoxalmente, no h uma relao biun-

    voca entre o acesso ao conhecimento ou ao

    patrimnio africano e afro-brasileiro e a di-

    minuio das desigualdades tnico-raciais.

    o sistema de apropriao, o racismo e o pa-

    trimonialismo no esto abalados na nossa

    sociedade. temos muito a aprender e a ca-

    minhar na direo da eliminao do racismo

    e das mentalidades e prticas racistas.

    embora esteja na lei maior da educao bra-

    sileira, a lbben, no temos a garantia da

    introduo nos currculos escolares da(s)

    histria(s) e da(s) cultura (s) africana(s) e

    afro-brasileira(s), nos mais de 5.000(cinco)

    mil municpios brasileiros. a temtica das

    relaes tnico-raciais ainda controversa,

    o mito da democracia racial ainda forte,

    muitos no acham este tema relevante e o

    racismo recrudesce no brasil e no mundo.

    temos, por outro lado, um significativo acer-

    vo sobre as temticas da lei n. 10.639/2003

    em livros, stios, ncleos de estudos nas

    universidades, organizaes do movimento

    negro, organizaes governamentais, filmes

    e documentrios, experincias pedaggicas,

    quer na sua especificidade (segunda parte

    desta coletnea), quer em interao com

    reas diversas de conhecimento (terceira

    parte deste livro), o que nos leva a afirmar

    que, a despeito do esforo abnegado de mui-

    tas pessoas, sejam educadoras, educadores

    ou ativistas, esta temtica necessita de

    compromisso poltico por parte, sobretudo,

    dos gestores e dos definidores e definidoras

    de recursos e aes para coletivos, incluindo

    a o reconhecimento dos saberes e fazeres

    dos(das) docentes e dos educadores/as das

    instituies escolares e da comunidade es-

    colar como um todo. cremos que a imple-

    mentao da lei precisa, para tal, suplantar

    as vises equivocadas de ao afirmativa

    como sinnimo de paternalismo e condes-

    cendncia, para vises de ao afirmativa

    como potncia e reconhecimento do direito

    e potncia do outro.

    Posto isto, esta coletnea, tentando estar

    em sintonia com o que foi dito nesta intro-

    duo, est dividida em trs captulos;

    1 ABORDAGENS MULTICULTURAIS AM-

    PLAS: uma articulao da temtica do

    livro com o multiculturalismo, a diver-

    sidade, as narrativas e a complexida-

    de, alm, obviamente, do currculo;

    2 AFRICANIDADES: as africanidades em

    foco;

  • 17

    3 ENTRECRUZAMENTOS TEMTICOS

    MULTICULTURALIDADES, DISCIPLI-

    narIDaDes e aFrIcanIDaDes: nesta

    parte da coletnea se pretende uma

    interseo entre as temticas das afri-

    canidades e reas de conhecimento,

    como uma trama, uma tessitura.

    FiOS DO tEAR DAS MOiRAS

    FiAnDEiRAS8

    MULTICULTURALISMOS | DIVERSIDADE CULTURAL |

    INTERCULTURALISMOS | PLURALIDADE CULTURAL |

    AFRICANIDADES | EDUCAO INDGENA | EDUCA-

    O ESPECIAL | EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS

    | EDUCAO PATRIMONIAL | PEDAGOGIA QUEER

    | ESTUDOS CULTURAIS | EDUCAO RELIGIOSA |

    EDUCAO POPULAR | EDUCAO PBLICA | AFRI-

    CANIDADES | PEDAGOGIA DIASPRICA | PEDAGOGIA

    DA DIFERENA | PEDAGOGIA BRASILIS.

    existe um rico repertrio metodolgico no

    campo da multiculturalidade e, no que se

    refere educao tnico-racial, vrias abor-

    dagens podem e devem ser experimentadas,

    vivenciadas, saboreadas: pedagogia griot, do

    ax, dos terreiros, do samba, dos valores ci-

    vilizatrios afro-brasileiros, em dilogo, em

    confronto, encontro, encanto com as de-

    mais pedagogias, quer sejam as oficiais, do-

    minantes, quer sejam a dos povos indgenas

    ou das florestas, ou dos ciganos, ou dos ra-

    bes, judeus, orientais, das pessoas com defi-

    cincia, com necessidades especiais... todo

    este repertrio, como o fio do destino tecido

    pelas moiras, pode contribuir para construir

    as bases da pedagogia brasilis, uma pedago-

    gia voltada para a real e diversa populao

    brasileira.

    8 na verdade, colocar as moiras ou mouras neste contexto provocar as/os leitora/es acerca dos nomes e mitos das vrias origens que povoam nosso imaginrio.as moiras e/ou as mouras?

  • 18

    CAPTULO 1

    ABORDAgENS gERAIS SOBRE mULTICULTURALISmOE DIvERSIDADE CULTURAL

    neste captulo selecionamos, entre os textos

    do salto para o Futuro, alguns que lidam di-

    retamente com questes conceituais gerais

    que do suporte para as reflexes ligadas s

    africanidades ou que com elas dialogam.

    a opo de no seguir uma linearidade cro-

    nolgica dos textos tem como objetivo visi-

    bilizar a no linearidade do pensamento e

    das reflexes sobre os temas em questo:

    multiculturalismo e diversidade cultural.

    esta introduo antecipa algumas indaga-

    es, presentes no texto da organizadora

    desta coletnea, que encerram este primei-

    ro captulo. afinal, uma educao multi-

    cultural, criativa e inclusiva, no sentido de

    incluir na pauta as diferenas, o contato, o

    dilogo e a interao com as diferenas, co-

    loca a prpria escola num lugar de questio-

    namento quanto ao seu papel, seu sentido e

    seu significado.

    vamos aos questionamentos:

    Qual deve ser o papel da escola num con-

    texto multicultural que se sabe poltico,

    e que no se supe racista, nem elitista,

    nem machista, nem etnocntrico?

    o que ns, como educadores, devemos fa-

    zer na escola? e como o faremos? como

    nosso currculo se configurar?

    como sero e devero ser nossas aulas,

    nossa avaliao, nossa sala de aula? como

    ser nossa postura?

    como no sermos to individualistas e

    julgarmos que os outros so muito dife-

    rentes de ns? e como no sermos to

    universalistas a ponto de apagarmos as

    singularidades culturais, polticas, sexu-

    ais, sociais, intelectuais?

    como levar em considerao todos os

    segmentos da escola? como enfrentar

    que nossas mais belas intenes e aes

    so ainda incipientes, que so muito pou-

    cas, embora necessrias?

    ao formular essas questes buscamos evi-

    denciar que trabalhar o multiculturalismo

    na escola no apenas colocar imagens de

    todas as etnias que compem nossa escola

    nos murais ou, simplesmente, festejar o Dia

    do ndio e o Dia nacional da conscincia

    negra. no apenas debater as polticas de

  • 19

    cotas e outras aes afirmativas. ou, ainda,

    ter a imagem de uma virgem negra como

    padroeira do brasil. tampouco ter o atleta

    do sculo l, um homem preto, como um co-

    ne nacional (sobretudo se o que se destaca,

    nesse caso, o dinheiro como submetendo

    as questes relacionadas cor da pele).

    Para buscar respostas para essas e outras

    questes, selecionamos os textos que se se-

    guem, acreditando que, ao reorganiz-los

    nesta coletnea, sob o tpico multicultura-

    lismo e diversidade cultural, estaremos pro-

    pondo novas e possveis leituras:

    i. Multiculturalismo, ou de como viver

    junto, de mary Del Priore - onde a au-

    tora faz uma apresentao panormi-

    ca de questes muito caras temtica

    multicultural deixando-nos a questo

    desafio: como vIver Junto?

    ii. Por um multiculturalismo democrti-

    co, de sueli carneiro destacando a

    democracia como um fim, a autora

    apresenta-nos variveis contempor-

    neas que pem em fragilidade a pers-

    pectiva universalista e hegemnica de

    conformao de sujeitos, convidando-

    -nos a pensar um multiculturalismo

    democrtico brasileiro

    Depois de dois textos, com seus desafios,

    apresentamos o texto anunciado pelo ttulo:

    iii. Pluralidade e diversidade, de carla

    ramos objetivando discutir os con-

    ceitos do ttulo num mundo em movi-

    mento, em mudanas, focando-se na

    cidade como espao onde estes movi-

    mentos nos desafiam a pensar outra

    geopoltica

    iv. Saberes culturais e educao do futu-

    ro, de edgard de assis carvalho. Dis-

    cutindo os saberes culturais na pers-

    pectiva da integrao dos saberes, o

    texto transita entre a poesia, a arte

    e os saberes culturais como pistas

    para a educao na sua complexida-

    de e inclusividade, apresentando-nos

    autores e perspectivas no hegem-

    nicas de pensar o mundo a partir do

    paradigma, digamos, europeu, mas

    como que anunciando um hibridismo,

    mestiagem cultural, e termina apre-

    sentando-nos Fernando Diniz, talvez

    paradigmtico para este livro.

    v. identidade e diferena no cotidiano

    escolar: prticas de formao e de fa-

    bricao de identidades docentes, de

    elizeu clementino de souza. este texto,

    nesta coletnea, coloca os e as docen-

    tes no centro da roda como produtores

    e produtoras de histrias de vida (s), no

    fio de prumo da Identidade e da Dife-

    rena.

  • 20

    vi. Diversidade e Currculo, de nilma

    lino gomes. De volta discusso da

    diversidade, agora focando-se o cur-

    rculo, o que se torna mais um dos

    desafios da escola que normatiza

    a diferena sem hierarquiz-la e bus-

    cando no ser uniformizadora. o tex-

    to indica, prescreve e sinaliza alguns

    desafios para esta arrojada ao pol-

    tico-pedaggica.

    vii. Reinventando a roda: experincias

    multiculturais de uma educao para

    todos, de azoilda loretto da trindade.

    este texto um convite criao e ao

    compromisso com uma educao para

    a vida em expanso.

  • 21

    I. mULTICULTURALISmO OU DE COmO vIvER jUNTO1

    Mary Del Priore2

    MultiCultuRAliSMO: COMO

    vivER juntO?

    nas democracias pluralistas, assistimos a

    um movimento generalizado de incremento

    das identidades particulares. minorias, po-

    pulaes autctones, grupos de migrantes

    e imigrantes manifestam seu desejo de re-

    conhecimento cultural. viver junto uma

    questo cada vez mais premente.

    o termo multiculturalismo designa tanto

    um fato (sociedades so compostas de gru-

    pos culturalmente distintos) quanto uma

    poltica (colocada em funcionamento em

    nveis diferentes) visando coexistncia pa-

    cfica entre grupos tnica e culturalmente

    diferentes. em todas as pocas, sociedades

    pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de

    10% dos pases do planeta podem ser consi-

    derados como culturalmente homogneos.

    Por outro lado, o tratamento poltico da di-

    versidade cultural um fenmeno relativa-

    mente recente.

    H menos de trinta anos, as primeiras me-

    didas polticas de inspirao multicultura-

    lista foram colocadas em ao na amrica

    do norte (canad e eua). l, a indiferena

    frente cor da pele foi substituda pelo prin-

    cpio de conscincia da cor. o debate sobre

    multiculturalismo foi crescendo de intensi-

    dade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na

    europa e amrica do sul. a doutrina multi-

    culturalista avana essencialmente na ideia

    de que as culturas minoritrias so discri-

    minadas e devem merecer reconhecimen-

    to pblico. Para se realizarem ou consoli-

    darem, singularidades culturais devem ser

    amparadas e protegidas pela lei. o Direito

    que vai permitir colocar em movimento as

    condies de uma sociedade multicultural.

    EntRE univERSAliSMO E

    MultiCultuRAliSMO

    mas, de que diferenas culturais ns fala-

    mos? muitas vezes reduzidas questo da

    1 Debates: multiculturalismo e educao 2002 / Pgm 1.

    2 Historiadora e coordenadora geral do arquivo nacional.

  • 22

    etnicidade (condio ou conscincia de per-

    tencer a um grupo) ou, em alguns casos,

    reduzidas at mesmo questo racial, as

    diferenas culturais no concernem apenas

    aos particularismos de origem ou de tradi-

    o (religiosas ou lingusticas).

    as reivindicaes se enrazam cada vez mais

    no particularismo dos mores (preferncias

    sexuais, por exemplo), de idade, de traos

    ou de deficincias fsicas (obesos, cegos,

    paraplgicos). o multiculturalismo comba-

    te o que ele considera como uma forma de

    etnocentrismo, ou seja, combate viso de

    mundo da sociedade branca dominante que

    se toma desde que a ideia de raa nasceu

    no processo de expanso europeia por

    mais importante do que as demais. a polti-

    ca multiculturalista visa, com efeito, resistir

    homogeneidade cultural, sobretudo quan-

    do esta homogeneidade afirma-se como

    nica e legtima, reduzindo outras culturas

    a particularismos e dependncia.

    um detalhe importante nesta discusso

    que, em nossos dias, um cidado raramen-

    te esquece sua condio particular para

    encarnar um pretenso universalismo. o

    universalismo dificilmente se combina com

    as condies da modernidade. com a libe-

    rao dos mores e a emancipao sexual, a

    vida privada foi maciamente reconstruda,

    revestindo-se de grande potencial poltico.

    nesta perspectiva, identidade e individuali-

    dade quase se sobrepem. Isto pode parecer

    paradoxal, mas a reivindicao cultural est

    claramente associada ao individualismo

    moderno, ao primado do sujeito individu-

    al. ela emana da subjetividade pessoal da-

    queles que se reconhecem neste ou naquele

    particularismo e resolvem se engajar coleti-

    vamente em reivindicaes identitrias.

    o debate de ideias entre monoculturalismo

    e multiculturalismo funciona, de certa for-

    ma, em duas vertentes de pensamento. ele

    se organizou, primeiramente, em torno de

    uma querela de filosofia poltica norte-ame-

    ricana: os liberais, ou individualistas, sus-

    tentavam que o indivduo mais importante

    e antecede comunidade. liberais recusam

    a ideia de que direitos minoritrios possam

    ferir a preeminncia legtima do indivduo.

    o comunitarismo ou coletivismo, ao contr-

    rio, acredita que os indivduos so o produto

    das prticas sociais e que preciso prote-

    ger os valores comunitrios ameaados por

    valores individuais e, principalmente, reco-

    nhecer as diferenas culturais.

    tal debate, contudo, j coisa do passado.

    Pensadores como charles taylor e michael

    Walzer avanaram posies mais nuana-

    das. Inmeros tericos acreditam que os

    direitos minoritrios podem promover as

    condies culturais de liberdade potencial

    dos membros de grupos minoritrios. na

    europa, este multiculturalismo liberal pa-

    rece ter se imposto por falta de alguma ideia

    melhor. abandonou-se, ento, o modelo que

  • 23

    prevalecia desde a revoluo Francesa e que

    propugnava o cidado unificado.

    vejamos, num exemplo, como procede esta

    vertente: a sopa passada no liquidificador

    transforma tudo num todo homogneo, no

    qual no se distinguem mais os elementos

    que a compem. apenas um paladar avisa-

    do poder adivinhar, no sabor, cada um dos

    ingredientes. na salada composta, por outro

    lado, cada ingrediente se distingue dos ou-

    tros, conservando sua aparncia, seu gosto

    e sua textura. nos eua, o mito do melting-

    -pot, ou seja, da encruzilhada na qual todas

    as culturas se fundem ao adotar o ameri-

    can way of life jeito americano de viver ,

    sucedeu o modelo do mosaico, ou da sala-

    da, imagem possvel do multiculturalismo:

    uma justaposio um pouco heterognea de

    grupos tnicos e minorias culturais coabi-

    tando num mundo de concordncia.

    AS POltiCAS MultiCultuRAiS

    alm do canad (desde 1982), vrios pases

    tm constituies multiculturais: austrlia,

    frica do sul, colmbia, Paraguai. mas fo-

    ram os eua que, antes de qualquer outro

    pas, colocaram a luta contra a discrimi-

    nao no centro de suas preocupaes. no

    prolongamento da luta dos afro-americanos

    por direitos cvicos, militantes e intelectuais

    consideraram uma injustia que as culturas

    minoritrias no acedessem a um mesmo

    patamar de reconhecimento do que a cul-

    tura dominante branca, saxnica e protes-

    tante.

    em reao a esta etnicizao majoritria,

    na verdade, uma assimilao dissimulada

    leia-se, o mito do melting pot operou-se

    uma etnicizao das minorias. o reconhe-

    cimento pblico das identidades coletivas

    resultou, por sua vez, de redes polticas vol-

    tadas para a consolidao da ideologia do

    politicamente correto.

    na europa, as prticas multiculturalistas

    so ainda pouco desenvolvidas. o modelo

    do estado-nao afirmou-se no sculo XIX,

    praticando uma poltica de reduo de dife-

    renas culturais e de assimilao de popula-

    es imigradas. nos pases europeus, apesar

    das importantes diferenas nacionais (na

    Inglaterra, por exemplo, est bem avanada

    a luta contra discriminaes tnicas), o par-

    ticularismo percebido como uma diviso e

    uma regresso culturais. o multiculturalis-

    mo, por sua vez, um desafio fundamental

    para a consolidao da unio europia. so-

    bretudo, quando l se pergunta se a europa

    ir optar por uma cultura comum ou por

    um regime multicultural constitudo por

    um mosaico de naes.

    na Frana, por exemplo, as polticas de tra-

    tamento preferencial so aplicadas para

    combater as desigualdades socioeconmi-

    cas ou as desigualdades entre gneros (ho-

  • 24

    mem-mulher). l, cada vez mais, a etnicida-

    de reconhecida e respeitada nas prticas

    (no Direito, ainda no): so dadas subven-

    es diretas a associaes tnicas, so cria-

    das polticas em favor de imigrantes, exis-

    tem Fundos de ao social voltados para a

    questo.

    o modelo da diversidade francesa foi come-

    morado no campeonato mundial de Fute-

    bol de 1998, quando os jogadores de origens

    diferentes (Frana, frica do norte e frica

    central) tornaram-se campees do mundo.

    a imagem de uma equipe multitnica fun-

    diu-se com aquela de uma equipe que ga-

    nha.

    OS liMitES DO

    MultiCultuRAliSMO

    Para vrios autores, o multiculturalismo

    aparece como um mal necessrio. Discute-

    -se muito como aperfeioar o sistema, limi-

    tando seus efeitos perversos e melhorando

    a vida dos atores sociais. em alguns casos,

    o multiculturalismo provoca desprezo e in-

    diferena, como acontece no canad entre

    habitantes de lngua francesa e os de lngua

    inglesa.

    nos eua, esta militncia s fez acentuar as

    rivalidades tnicas. ao denunciar seus ad-

    versrios, tais polticas terminam por estig-

    matiz-los e acabam, tambm, por dar uma

    dimenso tnica s relaes sociais.

    a pergunta a fazer : ser que os fins justi-

    ficam os meios? o princpio da discrimina-

    o positiva se choca com as exigncias de

    igualdade do Direito e imparcialidade do

    estado? caminhamos no sentido da justia

    social? a busca de uma igualdade real pode

    ser incompatvel com os princpios de igual-

    dade formal?

    sabemos que nem todos os membros das

    minorias so desfavorecidos e os que sabem

    aproveitar as vantagens so raramente os

    mais desfavorecidos. Por outro lado, exis-

    tem grupos da populao realmente desfa-

    vorecidos que no pertencem s minorias

    tnicas.

    neste caso, todas as diferenas podem ser

    defendidas? sabemos que h o risco de

    opresso do grupo cultural sobre seus mem-

    bros: como proteger a minoria das outras

    minorias, os explorados dos excludos? Por

    vezes, ocorre at o contrrio, pois foi invo-

    cando a noo de Direito que os brancos de

    origem holandesa defenderam o sistema do

    apartheid. muitos pensadores, entre eles

    charles taylor, autor de Multiculturalismo,

    Diferena e Democracia, acreditam que ne-

    nhuma poltica identitria deveria ultrapas-

    sar a liberdade individual. Indivduos, no seu

    entender, so nicos e no poderiam ser ca-

    tegorizados.

    a quem cabe a legitimidade de atribuir uma

    identidade? no o indivduo o nico capaz

  • 25

    de escolher a sua, ou as suas identidades de

    pertena? mais ainda, quando pensamos que

    identidades individuais so construdas em

    oposio ao grupo de pertena, os especia-

    listas concordam sobre o princpio de que as

    diferenas culturais no podem colocar em

    causa os direitos do homem e do cidado.

    nOvAS PERSPECtivAS

    no podemos analisar tudo em termos de

    culturas. a denncia das discriminaes e as

    reivindicaes pelo reconhecimento cultu-

    ral parecem ter se sobreposto luta de clas-

    ses e denncia da explorao socioecon-

    mica que caracterizaram a primeira metade

    do sculo na europa, e na segunda metade,

    no brasil.

    mas, na luta contra as discriminaes, o es-

    quema dominados/dominantes no mais

    possvel. os conflitos sociais so cada vez

    menos bvios, menos maniquestas. cada

    um de ns pode ser ao mesmo tempo discri-

    minado e discriminador. um operrio pode

    ser discriminado socialmente, mas tambm

    discriminar como homem, como pai e como

    marido. existe, hoje, uma oposio entre as

    polticas sociais e as polticas multiculturais.

    os que so objeto de discriminao cultural

    so tambm os que mais sofrem as desigual-

    dades socioeconmicas. Por trs da tenso

    entre brancos e negros, h, antes de qual-

    quer coisa, a tenso entre ricos e pobres.

    vale lembrar, ainda, que o reconhecimento

    de uma cultura minoritria no implica o fim

    de sua alienao socioeconmica. o grande

    desafio consiste em conciliar as polticas de

    reconhecimento e as de redistribuio.

    Pesquisadores de todas as reas insistem

    sobre a necessidade de construir uma ver-

    dadeira educao intercultural. apresen-

    ta-se, a, a ocasio de um aprendizado de-

    mocrtico. a ideia de uma democracia de

    mores proposta por Farhad Khosrokhavar,

    na qual a comunicao cultural possvel:

    democracia feita de respeito alteridade

    cultural e de tolerncia. , tambm, a ideia

    de uma democracia inclusiva, na qual as

    comunidades no se definiriam mais pela

    excluso.

    tambm a vontade de viver junto que

    funda uma cultura e permite uma relativa

    homogeneidade social. Quando uma socie-

    dade se diz multirracial, ela se bate, igual-

    mente, contra a desigualdade racial. taylor,

    por exemplo, definiu a democracia como a

    poltica do reconhecimento do outro, logo,

    da diversidade. mais adiante, o debate so-

    bre o multiculturalismo obriga tambm a

    redefinir o conceito de cultura, sobretudo,

    a alarg-lo para a incluir um conjunto de

    diferenas comportamentais. as culturas

    so menos feitas de tradio do que de re-

    presentaes construdas pela histria, sus-

    cetveis de mudanas tal como vemos nas

    reivindicaes de uns e outros.

  • 26

    como j demonstraram o socilogo michel

    Wieviorka e o historiador serge gruzinski,

    o hibridismo e a maleabilidade das cultu-

    ras so, igualmente, fatores positivos de

    inovao. considerar a cultura como algo

    que no varivel, bem como julgar sobre

    diferenas culturais so tambm formas de

    marcar a cultura com um selo de autenti-

    cidade que no existe e fix-la num molde

    nico. uma sada possvel seria considerar

    as vantagens da mestiagem cultural, este

    poderoso fator de mudanas, de criativida-

    de e de inveno, e que no objeto de ne-

    nhuma reivindicao. mas o que dizer de

    mulatos que, na bahia e no caribe, despre-

    zam os negros?

    Foi se apoiando em suas razes culturais

    que a ao dos negros brasileiros tomou a

    dimenso de um movimento social de mas-

    sas. nas ruas das grandes cidades brasilei-

    ras j possvel ler, em muitas camisetas,

    100% negro!. Desde os anos 80, a questo

    racial est nos espaos pblicos e teve in-

    cio um debate interno sobre as representa-

    es coletivas, sua histria, sua diversidade

    cultural e racial. a maior parte deles acedeu

    conscincia negra pela brecha da cultura

    popular. a msica afro-brasileira e as escolas

    de samba tiveram a um importante papel

    mobilizador. a busca da pureza africana

    acompanhou-se tambm de uma crtica fe-

    roz ao sincretismo. Finalmente, a aprovao

    de cotas para os afro-brasileiros na univer-

    sidade e no funcionalismo pblico acabou

    por negar a fbula do encontro harmonioso

    entre as trs raas. Durante muitos anos, os

    negros aceitaram a iluso de que a mestia-

    gem poderia ser a soluo para a discrimi-

    nao racial, diluindo a cor em casamentos

    mistos. mas a questo da raa est tambm

    ligada da posio social: quanto mais so-

    bem na escala social, mais os negros se tor-

    nam brancos.

    o processo de reafricanizao do brasil tal-

    vez melhore o status social, artstico ou reli-

    gioso de muitos de ns. mudanas, contudo,

    dependem diretamente da redistribuio

    de renda e do fim das desigualdades imen-

    sas entre ricos e pobres. a, sim, estaremos

    prontos para construir uma democracia in-

    clusiva e intercultural.

    REFERnCiAS

    caPone, stefania. le candombl au brsil,

    ou lafrique rinvente. In: cultures la

    construction des identits. Sciences Humai-

    nes, nov. 2000, p. 52-54.

    gruZInsKI, serge. La pense mtisse. Paris:

    Fayard, 2000. (edio em portugus: o pen-

    samento mestio. so Paulo: cia. das letras,

    2001).

  • 27

    KYmlIcKa, Will. Multicultural citizenship:

    a liberal theory of minirity rights. london:

    clarendon Press, 1995.

    soutY, Jrme. multiculturalisme: com-

    ment vivre ensemble. In: les grandes ques-

    tions de notre temps. Sciences Humaines,

    dez. 2001, p. 78-82.

    taYlor, charles. Multiculturalisme, diffren-

    ce et dmocracie. Paris: aubier, 1994.

    WaltZer, michel. Pluralisme et dmocracie.

    Paris: esprit, 1997.

    WIeWIorKa, michel; oHana, Jocelyne (dir.).

    La diffrence culturelle. une reformulation

    des dbats. Paris: balland, 2001.

  • 28

    II. POR Um mULTICULTURALISmO DEmOCRTICO1

    Sueli Carneiro 2

    gnero, raa/etnia, orientao sexual, reli-

    gio e classe social so algumas das vari-

    veis que se impem contemporaneamente,

    conformando novos sujeitos polticos que

    demandam ao estado e sociedade por re-

    conhecimento e polticas inclusivas.

    a emergncia desses novos atores decorre

    da insuficincia da perspectiva universalista

    para contemplar as diferentes identidades

    sociais e realizar um dos fundamentos da

    democracia, que o princpio de igualdade

    para todos. a imposio de um sujeito uni-

    versal ao qual todos os seres humanos seriam

    redutveis obscureceu, ao longo dos tempos,

    as ideologias discricionrias que promovem

    as desigualdades entre os sexos, as raas, as

    classes sociais, as religies etc... so elas: o

    patriarcalismo, que, ao instituir como natu-

    ral a hegemonia do sexo masculino, justifi-

    ca todas as formas de controle, violncia e

    excluso social da maioria dos seres huma-

    nos que pertencem ao sexo masculino; o eli-

    tismo classista determinado por modos de

    produo que instituem classes minoritrias

    abastadas, que submetem e exploram maio-

    rias despossudas; homofobia decorrente da

    imposio da heterossexualidade como for-

    ma exclusiva de relacionamento afetivo e se-

    xual e condenao arbitrria, muitas vezes

    violenta, do relacionamento entre pessoas

    do mesmo sexo; fundamentalismo religioso,

    responsvel por grande parte dos martrios

    ocorridos na histria da humanidade, em

    que cada denominao religiosa, ao buscar

    impor o seu Deus aos outros, transforma-o,

    paradoxalmente, em uma das principais fon-

    tes de intolerncia do mundo; racismo que,

    ao eleger que um grupo racial superior ao

    outro, provoca a desumanizao de grupos

    humanos, justificando as formas mais abje-

    tas de opresso, tais como a escravido, os

    holocaustos e genocdios e a discriminao

    tnica e racial.

    essas so algumas das ideologias que cons-

    piram contra a consolidao da democra-

    cia e o pleno gozo dos direitos de cidadania

    1 Debates: multiculturalismo e educao 2002 / Pgm 2.

    2 Diretora do geleds Instituto da mulher negra, ps-graduanda em Filosofia da educao pela universidade de so Paulo e articulista do Jornal correio braziliense.

  • 29

    para a maioria da populao em nosso pas,

    tornando o homem branco, de classe supe-

    rior e heterossexual, no nico tipo humano

    a desfrutar plenamente do exerccio de di-

    reitos e poder em nossa sociedade. Por isso,

    esse tipo humano, embora se constitua uma

    minoria, est em absoluta maioria nas ins-

    tncias de mando e de poder da sociedade.

    em funo dessa evidncia que adentram

    cena poltica os movimentos de minorias

    polticas, como o movimento de mulheres

    lutando pela igualdade de gnero, de gays

    e lsbicas pelo direito e respeito orienta-

    o sexual diferente, de negros ou afrodes-

    cendentes por igualdade de direitos, etc. ou

    seja, a afirmao da diferena constitui-se

    num pressuposto para conquistar a igualda-

    de. e, dentre esses movimentos, a questo

    racial aparece no momento como aquela

    que maior peso tem na estruturao das

    desigualdades sociais no brasil, impactando

    todos os indicadores sociais, como se pode

    auferir pelos estudos realizados pelo Ibge,

    IPea, DIeese entre outros. Por isso, a enfati-

    zamos nesse texto.

    a temtica da diversidade sempre esteve

    presente no debate nacional e informou as

    principais teses sobre a identidade nacional

    ou a formao do Pas enquanto nao.

    triunfou, neste debate, um discurso ufa-

    nista em relao ao carter plural de nossa

    identidade nacional, a despeito de esta ter

    sido construda a partir de uma perspectiva

    hierrquica, segundo a qual, no topo, se en-

    contram os brancos responsveis pelo nosso

    processo civilizatrio e, na base, os negros e

    indgenas, contribuindo com pinceladas cul-

    turais exticas, que caracterizariam o jeito

    especial de ser do brasileiro.

    a primeira questo que esta viso coloca

    a despolitizao dos processos de excluso

    e discriminao que os diferentes sofrem

    em nossa sociedade, como tambm escamo-

    teia a forma pela qual historicamente este

    diferente vem sendo construdo em opo-

    sio a uma universalidade cultural branca

    e ocidental, supostamente legtima para se

    instituir como paradigma, segundo o qual

    os diversos povos do mundo so avaliados.

    H um outro vis neste debate sobre diver-

    sidade. ele to mais aceito quanto mais

    for capaz de encobrir um elemento bsico

    e estruturante da nossa sociedade, que o

    racismo, o maior tabu da sociedade brasi-

    leira, em relao ao qual h uma verdadeira

    conspirao de silncio.

    as organizaes negras vm, ao longo das

    ltimas trs dcadas, denunciando os pro-

    cessos de excluso a que os negros esto

    submetidos na sociedade brasileira, seja no

    mercado de trabalho, sensibilizando as enti-

    dades sindicais para a incorporao da luta

    contra o racismo e pela utilizao dos me-

    canismos internacionais que combatem as

  • 30

    discriminaes no mbito do trabalho, seja

    no setor empresarial, sensibilizando-o para a

    adoo de polticas de diversidade em seus

    processos de seleo. ocupam-se ainda em

    projetos de capacitao e reciclagem da mo-

    -de-obra negra para o mercado de trabalho.

    as aes que vm sendo realizadas pelas

    organizaes negras no campo da educa-

    o expressam-se em diferentes dimenses

    dessa temtica, incidindo sobre a educao

    formal nos diferentes nveis; na produo e

    avaliao crtica de instrumentos didticos;

    em projetos de formao para o exerccio da

    cidadania, para a capacitao para o merca-

    do de trabalho e/ou para o fortalecimento

    da capacidade de presso sobre o estado.

    a compreenso de que o racismo e a discri-

    minao impedem a distribuio igualitria

    da Justia no brasil vm motivando diversas

    iniciativas. a constiuio de 1988, ao tornar

    o racismo crime inafianvel e imprescrit-

    vel, criou uma oportunidade nova de enfren-

    tamento do racismo na esfera legal. Desde

    ento, essa perspectiva jurdica fez surgir

    projetos exemplares e pioneiros, como os

    sos racismo, servios de assistncia legal

    para vtimas de discriminao racial, uma

    experincia exitosa que j se multiplicou em

    diversos estados do pas e em alguns dos pa-

    ses da amrica latina.

    no campo da cultura, so inmeras as ex-

    perincias de politizao das expresses cul-

    turais negras, no sentido do fortalecimento

    da identidade tnica e racial da populao

    negra, tais como as oriundas dos terreiros

    de candombl, das bandas de rap ou dos

    blocos afros. avanou a organizao poltica

    das comunidades remanescentes de quilom-

    bos, adquirindo dimenses nacionais, e elas

    demandam, cada vez com maior contun-

    dncia, ao estado, o direito pela titulao

    de suas terras ancestrais e a um desenvolvi-

    mento sustentado.

    as organizaes negras vm monitorando

    e denunciando as prticas discriminatrias

    presentes nos veculos de comunicao de

    massa e, atravs dos casos exemplares de

    discriminao, mobilizam a opinio pblica

    para o debate da questo racial. essas de-

    nncias e crticas vm obrigando os veculos

    de comunicao a ampliarem e diversifica-

    rem a presena de negros nesses veculos,

    em especial na televiso.

    as organizaes de mulheres negras, por sua

    vez, vm desenvolvendo uma srie de expe-

    rincias-modelo em diversos campos, tais

    como em comunicao, novas tecnologias,

    advocacy em mdia; atendimento jurdico e

    psicossocial a mulheres vtimas de violncia

    domstica e sexual; experincias inovado-

    ras na abordagem das sequelas emocionais

    produzidas pelo racismo. e, sobretudo, as

    organizaes de mulheres negras impulsio-

    naram a interveno do ponto de vista racial

    na questo da sade, dando visibilidade s

  • 31

    questes das doenas tnicas/raciais ou do-

    enas de maior incidncia entre a populao

    negra, denunciando o vis controlista sobre

    a populao negra que a esterilizao tem

    no brasil.

    Portanto, as organizaes negras vm de-

    senvolvendo um conjunto de boas prti-

    cas, ou de experincias exemplares, em

    nvel nacional, para a incluso efetiva dos

    negros na sociedade brasileira.

    essas experincias expressam a responsabili-

    dade que os negros organizados tm em re-

    lao populao negra, na busca de cons-

    truo de uma rede de solidariedade baseada

    na identidade racial e na conscincia do per-

    tencimento a uma comunidade de destino

    fundada numa experincia histrica com-

    partilhada. essas prticas visam superao

    da discriminao racial e, sobretudo, visam

    oferecer ao estado e aos governos modelos

    para polticas pblicas que, ao beneficiarem

    a comunidade negra, promovam a realizao

    da igualdade de direitos e oportunidades.

    a sociedade civil negra vem fazendo a sua

    parte: denuncia, reivindica, formula e im-

    plementa propostas inclusivas. no entanto,

    essas aes alcanam baixa visibilidade e

    pouca adeso e solidariedade do conjunto

    da sociedade.

    a problemtica racial requer vontade polti-

    ca dos governos, empresas e demais institui-

    es da sociedade para a adoo de polticas

    que rompam com a apartao racial existen-

    te no brasil, que se exprime nos ndices de

    desigualdades raciais em alguns indicadores

    superiores aos encontrados para a frica do

    sul.

    como indica uma propaganda, hora de

    mudar os nossos conceitos. Isso implica,

    por exemplo, desnaturalizar a heterossexua-

    lidade, a hegemonia masculina, a suprema-

    cia branca. nesse ltimo caso, exige, sobre-

    tudo, no rompimento com o conforto do

    mito da democracia racial, em prol do reco-

    nhecimento de que imperiosa a correo

    das injustias sociais motivadas pela exclu-

    so dos negros, em especial das mulheres

    negras em nossa sociedade.

    uma exigncia tica, um pressuposto para

    a consolidao da democracia e condio de

    reconciliao do pas com sua histria, no

    sentido da construo de um futuro mais

    justo e igualitrio para todos.

    uma inspiradora abordagem da questo do

    multiculturalismo no brasil nos oferecida

    por Jacques Dadesky em seu livro Racismo

    e anti-racismo no Brasil. Partindo da noo

    hegeliana de reconhecimento, Dadesky nos

    anuncia que o desejo de reconhecimento

    que nos leva luta. Desejo de reconhecimen-

    to de nossa igualdade e dignidade humanas,

    o que se traduz politicamente na luta pelo

    direito igualitrio aos bens materiais e sim-

  • 32

    blicos de prestgio da sociedade. Desejo de

    reconhecimento de nossa identidade cultu-

    ral diferenciada, do qual decorre a luta pelo

    direito de sermos quem somos, sem precisar

    nos negar para sermos aceitos.

    Para Jacques Dadesky, so esses os eixos de

    luta que estruturam o discurso e a prxis

    antirracista dos movimentos negros brasi-

    leiros, em resposta ao racismo caractersti-

    co de nossa sociedade que, segundo ele, ao

    fundar-se num tipo de pluralismo tnico que

    prescinde de um tratamento igualitrio das

    diferentes culturas, legitima as hierarquias

    e desigualdades materiais e simblicas entre

    os grupos tnicos e raciais.

    Da exegese das contradies colocadas por

    essa forma de racismo e do tipo de antirracis-

    mo que ele produz, Dadesky retirar o subs-

    trato para a formulao de sua concepo de

    um multiculturalismo democrtico capaz de

    realizar, a um s tempo, o reconhecimento

    da igualdade da cidadania e do valor igualit-

    rio intrnseco das diferentes culturas.

    tal como afirma o jurista Jorge da silva: a

    cidadania plena se afirma pela conjugao

    do desfrute dos direitos civis, dos direitos

    polticos e dos direitos sociais. a situao

    dos cidados negros pode ser aferida pela

    garantia desses direitos: de liberdade de ir

    e vir (e no ser molestado pela polcia como

    suspeito em funo da cor da pele); de ser

    lembrado para ocupar posies de confian-

    a e destaque; da possibilidade de acesso ao

    trabalho digno e moradia; de educar-se

    nas mesmas condies dos cidados da clas-

    se mdia e de acesso aos sistemas de sade,

    pblico ou privado.

    Portanto, da forma pela qual a sociedade

    brasileira enfrentar estas questes depen-

    de o projeto de nao inclusiva que todos

    desejamos ou a consolidao do projeto

    de nao excludente que vem sendo cons-

    trudo h mais de 500 anos de extermnio

    dos povos indgenas e de marginalizao

    social dos negros em prol do desejado em-

    branquecimento racial, tnico e cultural do

    pas.

    REFERnCiAS

    DaDesKY, Jacques. Pluralismo tnico e Multi-

    culturalismo - racismos e antirracismos no

    brasil. ed. Pallas, 2001.

  • 33

    III. PLURALIDADE E DIvERSIDADE1

    Carla Ramos2

    uMA PEQuEnA HiStRiA Ou

    QuAnDO SigniFiCADOS E

    SEnSAES EStO juntOS

    gosto da idia de que as palavras tm sen-

    tido e de que muitas delas carregam sensa-

    es3. Primeiramente, vamos ao significado:

    Diversidade: qualidade daquilo que diver-

    so, diferente, variado; Pluralidade: fato de

    existir uma grande quantidade, de no ser o

    nico; multiplicidade, diversidade4.

    e, para debater estes conceitos, reporto-

    -me a uma pequena histria. em outubro de

    2005, um homem com aproximadamente 60

    anos para o seu carro numa rua da tranquila

    cidade de malmo, sul da sucia, e inicia uma

    discusso fervorosa com um grupo de jovens

    estudantes. os gritos comeam a chamar a

    ateno dos vizinhos, que abrem as janelas

    para olhar o que estava acontecendo. eu e

    a minha amiga, na poca radicada naquele

    pas, samos apressadas para a rua, na ten-

    tativa de entender o motivo daquele inusita-

    do acontecimento. Quando chegamos bem

    perto, um carro de polcia tinha acabado de

    estacionar. o homem, visivelmente trans-

    tornado, afirmava que aqueles jovens s

    podiam ser estrangeiros, s podiam ser

    rabes porque no sabiam e nem respeita-

    vam as regras de trnsito. ao passo que os

    estudantes, um deles mais exaltado, respon-

    deu que os seus pais eram chilenos, e que

    ele era sueco! a briga durou cerca de duas

    horas e terminou com os policiais contem-

    porizando a situao, os vizinhos fechando

    silenciosamente as janelas, o homem indo

    embora e os estudantes dispersando-se pelo

    caminho.

    a razo deste srio desentendimento foi

    uma suposta infrao do cdigo de trnsito

    cometida por um daqueles jovens, quando

    andava de bicicleta. as regras para o tr-

    1 a cidade como espao educativo 2008 / Pgm 5

    2 mestre em sociologia e antropologia pela uFrJ/PPgsa e analista educacional do salto para o Futuro

    3 bauman, Zygmunt. comunidade. A busca por segurana no mundo atual (cf. bibliografia).

    4 Dicionrio Houaiss. rio de Janeiro, editora objetiva, 2001.

  • 34

    fego em vias suecas so rgidas e dizem

    respeito tambm s pessoas que utilizam a

    bicicleta como meio de transporte dirio.

    mas qual seria a importncia deste evento

    para pensarmos as noes de diversidade e

    pluralidade? alm de nos dar uma pequena

    mostra das relaes sociais daquele pas, o

    conflito nos permite observar, por exemplo,

    que percepes de ordem moral e racial,

    como o fato de atribuir comportamentos

    desviantes a grupos estigmatizados social-

    mente neste caso: rabes e estrangei-

    ros fazem parte do repertrio do nosso

    mundo contemporneo, to marcado pelo

    fenmeno da imigrao e de um regime de

    verdades, de um sistema de representaes

    por que no dizer? ainda tributrio do

    colonialismo5.

    todos os dias somos bombardeados com

    imagens, capturadas por agncias de not-

    cias internacionais, que trazem o mundo

    para dentro das nossas casas via telejornais,

    jornais impressos, revistas, internet e outras

    mdias. no entanto, cabe perguntar: como o

    mundo est sendo representado? como as

    pessoas aparecem? De que modo os luga-

    res so retratados? Podemos observar, por

    exemplo, uma notcia bastante conhecida

    por todos ns: o conflito envolvendo israe-

    lenses e palestinos. na maioria das reporta-

    gens, os palestinos so mostrados como hor-

    das de homens barbudos, que correm de um

    lado para outro, aos berros, carregando cor-

    pos de companheiros vitimados no confron-

    to. as suas mulheres vestem exticos trajes

    cobrindo a cabea e o rosto e perambulam

    como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas

    devastadas; uma paisagem inspita, digna

    dos filmes de fico cientfica hollywoodia-

    nos. na frica, que vale sublinhar, no um

    pas, mas um continente, o que em geral

    mostrado so epidemias, mortes, guerras,

    fome, desespero e brutalidade. Diante disso,

    cabe perguntar: quem so estes rabes pa-

    lestinos e quem so estes africanos? eles

    sequer tm uma lngua porque no tm voz;

    no tm famlia, porque vivem aos bandos

    e raramente so mostrados seus ncleos fa-

    miliares. o que resta deste diferente, seno

    a sua diferena estereotipada pela mdia? e

    a pluralidade de vozes, de vises de mundo,

    de pensamentos, de ideologias, de corpos,

    de histrias, de Histria? tudo facilmen-

    te suplantado diante do fast food dirio de

    onde retiramos punhados de narrativas es-

    tereotipadas sobre o Outro6.

    ainda sob este aspecto, o filme do diretor ca-

    nadense Paul Haggis, Crash: no limite, mos-

    tra a populao da cidade de los angeles,

    nos estados unidos, na iminncia de um co-

    5 no brasil padecemos do mal causado pela discriminao racial, de gnero, religiosa, de classe, motivada pela opo sexual, etc. estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso pas.

    6 s precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais ateno nas nossas atitudes cotidianas para perceber as prticas discriminatrias, os nossos preconceitos e a dificuldade explcita de conviver com a diferena.

  • 35

    lapso causado por um excesso de, digamos,

    diversidade e pluralidade, e pela consequente

    impossibilidade de convvio e comunicao

    em tal contexto. neste caso, a emergncia

    das diferenas e do fundamentalismo das

    identidades guetorizadas com nuanas es-

    sencialistas desarticularam o aparato das

    regras de convvio social que, idealmente,

    serviria a todos da mesma maneira. a partir

    de ento, qualquer desentendimento pas-

    sou a ser motivo para acusaes de cunho

    racial, todo problema interpretado como

    de fundo tnico, todos os desencontros so

    causados por barreiras lingusticas ou de

    costumes/tradies particulares, e as insti-

    tuies operam de maneira a privilegiar gru-

    pos religiosos, castas, etc. estes so momen-

    tos profundamente dolorosos e traumticos

    para todo e qualquer grupamento humano.

    no obstante este cenrio pouco atraente,

    os personagens permaneciam ligados; to-

    dos estavam implicados nos rumos da tra-

    ma, nos rumos daquela sociedade; os laos,

    mesmo esgarados, sobreviviam e aponta-

    vam para algumas sadas e uma delas foi

    o afeto. o afeto foi/ um dispositivo capaz

    de reordenar, por exemplo, contextos mar-

    cados por dinmicas violentas de conflito e

    ciso, como aconteceu na frica do sul, no

    ps-apartheid7.

    DinMiCAS DE CiSO E DE

    RECOnStRuO

    alguns autores apontam, e eu me identifi-

    co com esta perspectiva, que estamos em

    meio a um turbilho de mudanas que

    atingem, em cheio, os padres de identida-

    de que conhecemos na chamada moderni-

    dade tardia8. De acordo com isso, teramos

    o seguinte quadro interpretativo: temos o

    mundo social e os indivduos que, por sua

    vez, se ligam ao primeiro por um conjun-

    to de referncias e estas podem ser cultu-

    rais, por exemplo. tais referncias atuam

    estabilizando os indivduos em seus con-

    textos. o meu objetivo neste texto fazer

    um exerccio de reflexo acerca da noo

    de diversidade e pluralidade num mundo em

    movimento, no demais lembrar, onde

    as tradicionais fontes de representaes

    culturais, de significados, como o estado-

    -nao, deixam de ser hegemnicos. as

    consequncias so variadas e preciso um

    esforo de investigao amplo e extenso

    para dar conta de mape-las. no entanto,

    importante seguir algumas pistas que po-

    dem nos levar na direo destas mudanas

    na ordem das identidades culturais: se por

    um lado os padres de identificao tradi-

    cionais do estado-nao perderam fora

    7 esta sada foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana nadine gordimer chamado: Engate.

    8 no vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor jamaicano stuart Hall: A identidade cultural na ps-modernidade.

  • 36

    no embate com a diversidade e a pluralidade

    reivindicadas pelos grupos que antes esta-

    vam silenciados sob o plcido manto na-

    cional; de outro lado, acompanhamos o

    ressurgimento de um nacionalismo de tipo

    tnico/racial e fundamentalista religioso.

    Diante deste quadro, quem sabe, podera-

    mos resgatar a tese de gramsci, e trabalhar

    a partir do entendimento de que o mundo

    das disputas polticas o palco para a con-

    quista de mentes e coraes para esta ou

    aquela ideologia. a diversidade e a plurali-

    dade, como valores para serem celebrados,

    no nascem por gerao espontnea, no

    so algo gentico, alguma coisa inevitvel.

    Pelo contrrio, so ideologias, forjadas, la-

    pidadas, escolhidas e levadas a cabo por

    obra e engenharia humana, dos grupos so-

    ciais, portanto, so histricos9! o brasil, por

    exemplo, no sculo XIX, foi condenado pela

    cincia europeia eugenista a poucos anos

    de sobrevivncia como nao; isto porque

    era escandaloso verificar as variaes de

    cores e tipos de pessoas que conviviam nas

    cidades do antigo Imprio Portugus. es-

    candaloso uma boa palavra para resumir

    o sentimento de estranhamento e horror

    declarado por renomados cientistas e po-

    lticos franceses e ingleses depois de um

    pequeno passeio pelas ruas do rio de Janei-

    ro. no tnhamos sada! estvamos fadados

    ao fim por causa de um povo/raa fraco e

    doentio; um contingente de homens e mu-

    lheres resultante de assombrosos intercur-

    sos sexuais entre negros, brancos e ndios.

    uma populao cuja fora havia se enfra-

    quecido biologicamente, havia se tornado

    impura, sem chances de vida.

    sobrevivemos a isso? alcanamos o sculo

    XXI! mas de que maneira nos livramos desta

    sentena de morte e alcanamos a condio

    de Pas do Futuro10? Que engenharia so-

    cial foi responsvel por este acontecimento?

    vou ressaltar, de maneira bastante sintti-

    ca, apenas uma dimenso desta luta por um

    contra-argumento bastante representativo:

    foram muitos anos de intensa produo

    intelectual por estas terras e pelo mundo

    afora at que a tese das diferenas culturais

    conseguisse um campo maior de hegemo-

    nia, em prejuzo do biologismo, da hiptese

    segundo a qual a humanidade devia as suas

    diferenas s divises raciais que classifi-

    cavam os grupos humanos de acordo com

    a sua localizao numa linha evolutiva11. o

    brasil comeou a ganhar flego e horizonte

    a partir da celebrao da mistura genti-

    ca e cultural do povo que por estas terras

    est12. misturar, mesclar, sincretizar, tornar

    hbrido tanto pessoas quanto tradies cul-

    turais: a celebrao destas possibilidades

    precisa ser inventada.

    9 uma leitura interessante o artigo de claude lvi-strauss chamado Raa e Histria.

  • 37

    A CiDADE COMO ESPAO A

    SER PERMAnEntEMEntE

    COnQuiStADO

    visto isso, podemos pensar a respeito do

    papel da cidade neste grande panorama

    que acabamos de desenhar. a cidade o

    lugar onde estes embates se do, ela mol-

    dada, ela est organizada, ela reflete e

    refletida nestes encontros promovidos sob

    a gide da diversidade e da pluralidade. em

    suma, a cidade um ente pulsante neste

    jogo. a geofsica, as fronteiras, a arquite-

    tura, o seu desenho sociopoltico: a cida-

    de cho e abstrao. Quando emigram,

    as pessoas levam consigo as suas cidades.

    com elas viajam hbitos, cheiros, gostos,

    festas, paisagens, sotaques caractersticos,

    etc. neste sentido, a cidade est inscrita

    em nossos corpos. Dessa maneira, quo

    desnorteador deve ser o desaparecimento

    sbito de uma cidade que sucumbe guer-

    ra... D para imaginar o quanto de agonia

    est disseminada entre milhares de pesso-

    as que vivem h anos nos campos de re-

    fugiados espalhados pelo planeta, que vi-

    vem neste vcuo, neste espao provisrio

    que teima em no permitir que elas deitem

    razes? mas a cidade tambm raivosa e,

    muitas vezes, d as costas aos sujeitos. e

    quando isso acontece, os movimentos so-

    ciais os coletivos organizados precisam

    retom-la fora. Por isso, ser necessrio

    apropriar-se do patrimnio da cidade, de

    sua pedra e cal, da sua intangibilidade para

    depois colocar no plural a Histria e, por

    fim, afirmar como diversa a cidade que

    antes se fez arredia.

    a cidade precisa ser constantemente captu-

    rada por seus cidados, afinal de contas, so

    eles que lhe imprimem sentido. a educao

    formal e a no-formal nos do instrumentos

    mais eficazes para colocar em prtica este

    intenso processo de reelaborao das his-

    trias locais sem perder de vista os pro-

    jetos globais13. Quando olhamos ao nosso

    redor, quando descobrimos e organizamos

    as histrias sobre o lugar onde nascemos,

    o bairro onde vivemos, a cidade em que

    transitamos, estamos refazendo a paisa-

    gem, apresentando nossas vozes e nossas

    percepes sobre aquele espao. como

    me explicou um jovem participante do gru-

    po reperiferia, do rio de Janeiro, dizendo

    que reperiferia significa repensar a peri-

    10 Para saber mais, indico a leitura do clssico livro de stefan Zweig: Brasil um pas do futuro.

    11 sobre este tema, as minhas fontes para estas questes costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de gilberto Freire; Raa, Cincia e Sociedade, organizado por marcos chor maio e ricardo dos santos ventura; Inteno e gesto: pessoa, cor e a produo cotidiana da (in)diferena no rio de Janeiro, da antroploga olvia cunha.

    12 ver gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933).

    13 Fiz esta referncia inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter mignolo. o livro em questo tem o ttulo: Histrias locais, Projetos globais. colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. (2003).

  • 38

    feria; pensar novamente alguns lugares da

    cidade que j estiveram submetidos ao olhar

    de outras pessoas, muitas vezes descoladas

    daquela realidade. a ideia recolocar-se na

    cidade a partir de um entendimento amplo

    dos procedimentos de construo de sua ge-

    opoltica e das dinmicas culturais e sociais

    que algumas vezes nos separam, e em ou-

    tras refazem laos afetivos que imaginva-

    mos no mais existir.

    REFERnCiAS

    bauman, Zygmunt. comunidade. A busca

    por segurana no mundo atual. rio de Janei-

    ro: Jorge Zahar editor, 2003.

    cunHa, olivia m. gomes da. Inteno e Ges-

    to: pessoa, cor e a produo cotidiana da (in)

    diferena no rio de Janeiro, 1927-1942. rio

    de Janeiro: arquivo nacional, 2002.

    FreYre, gilberto. Casa-Grande & Senzala. rio

    de Janeiro: editora record, 1998.

    gorDImer, nadine. Engate. rio de Janeiro:

    companhia das letras.

    Hall, stuart. A Identidade cultural da ps-mo-

    dernidade. rio de Janeiro: DP&a editora, 2006.

    Dicionrio HouaIss. rio de Janeiro: editora

    objetiva, 2001.

    lvI-strauss, claude. Raa e Histria. In:

    raa e cincia I so Paulo: unesco/editora

    Perspectiva, 1970.

    maIo, marcos chor e santos, ricardo ven-

    tura (orgs.). Raa, Cincia e Sociedade. rio de

    Janeiro: Fiocruz/ ccbb, 1996.

    mIgnolo, Walter D. Histrias locais/Proje-

    tos globais. Colonialidade, saberes subalter-

    nos e pensamento liminar. belo Horizonte:

    Hb/ed. uFmg, 2003.

    ZWeIg, stefan. Brasil um pas do Futuro. Por-

    to alegre: l&Pm, 2006.

  • 39

    Iv. SABERES CULTURAIS E EDUCAO DO FUTURO1

    Edgard de Assis Carvalho2

    o que so saberes culturais? so o acervo

    de conhecimentos, entendimentos, realiza-

    es, progressos, regresses, utopias, desen-

    cantamentos, produto de uma aventura que

    ns construmos no planeta terra, datada

    de pelo menos 130 mil anos. as sociedades

    humanas, tal como as conhecemos hoje,

    so o produto de uma longa evoluo que

    possibilitou a um pequeno bpede, com um

    crebro muito assemelhado ao de um chim-

    panz, e ainda mais ao de um bonobo, criar

    cognies, transmiti-las, codific-las. nos-

    sas diferenas para com os primatas no hu-

    manos diminuem a cada dia. o genoma das

    duas espcies tem semelhanas de 99%. ms

    passado, foi identificado o FoXP2. Humanos

    que apresentam defeito nesse gene apre-

    sentam graves problemas de fala. chimpan-

    zs, orangotangos, resus e gorilas tambm

    o possuem. talvez uma dissipao gentica

    tenha sido responsvel pelo fenmeno da

    fala, essa fantstica marca dos primatas hu-

    manas que tornou possvel criar e transmitir

    saberes. De qualquer modo, denominou-se

    cultura a esse patrimnio material e imate-

    rial de propores milenares.

    Desde que o mundo passou a ser explica-

    do pela cincia, instituiu-se uma fronteira

    entre humanos e no humanos que nunca

    foi suficientemente explicitada. essa diviso

    entre animalidade e humanidade foi respon-

    svel por muitas das definies pelas quais

    o conceito de cultura passou a ser entendi-

    do. em finais do sculo XIX, por exemplo, a

    cultura era definida como a mera soma de

    fatos que inclua desde tecnologias, artes,