Literatura brasileira ii_1360182109

download Literatura brasileira ii_1360182109

If you can't read please download the document

Transcript of Literatura brasileira ii_1360182109

  • 1. LETRAS |71 LITERATURA BRASILEIRA II

2. LETRAS | 72 3. LETRAS |73 LITERATURA BRASILEIRA II O ROMANTISMO WILMA MARTINS DE MENDONA MAURIENE SILVA DE FREITAS Ol, Seja bem vindo (a) Voc est ingressando no Curso Virtual de Literatura Brasileira II, que trata, especificamente, das letras romnticas. Escritos inaugurais de nossa literatura nacional, essas elaboraes estticas so responsveis, em larga medida, pelas configuraes que fazemos de ns mesmos e pelos mais diversos retratos e perfis de brasilidade que circulam, at hoje, em nosso contexto social e em nosso universo escritural. Objetivando a exposio e a discusso das perspectivas tericas que norteiam a leitura dessa modalidade literria, essa componente curricular revisitar as tentativas de apreenso do fenmeno romntico, atentando para a diversidade e a pluralidade que caracterizam as suas manifestaes estti cas, similares multiplicidade de vises que buscam a compreenso da sensibilidade romntica. Nesse intento, estruturamos esse Curso em quatro unidades, assim distribudas. A primeira, intitulada O Romantismo: desencantamento e reencantamento do mundo, focali zar a literatura romntica em suas origens, feies, modos de realizao ou gneros, como tambm em seu processo de propagao no mundo ocidental. Assim, nos voltaremos para o Romantismo em sua prpria gnese e formao, ou seja, para essa esttica em solo europeu. Duas obras nos guiam neste estudo: Os filhos do barro: do romantismo vanguarda (1984), do poeta e crtico Octavio Paz, nico escritor latino americano agraciado com o Prmio Nobel de Literatura (1991), e Revolta e melancolia: o romantismo na contramo da modernidade, de Michael Lwy e Robert Sayre, publicada em Paris (1992) e traduzida para o Brasil em 1995. A segunda unidade se constituir dos estudos sobre o Romantismo no Brasil. Nela, procurare mos verificar como se processam a importao, a aclimatao e a definitiva insero do iderio europeu na literatura brasileira. Busca se, essencialmente, o modus, ou as estratgias de construo textual, com as quais os nossos escritores abrasileirizam o esprito romntico europeu, em conflito aberto com a 4. LETRAS | 74 Modernidade. Na elaborao desse tpico, contamos, sobretudo, com as elaboraes terico crticas de Antonio Candido e de Alfredo Bosi, cujas perspectivas so endossadas por este estudo. A terceira unidade consistir da leitura e da discusso orientada de textos representativos da fase romntica, procurando se contempl la em suas principais tendncias e orientaes. A quarta e ltima unidade se prope como leitura comparada entre os textos romnticos e os escritos posteriores que os retomam e os atualizam, ao longo de nossa trajetria literria, seja em forma parafrsica, paro dstica, ou mesmo atravs da simples apropriao ou da estilizao, mecanismo de criao mais comple xo. Para a realizao desses exerccios literrios, devero ser considerados tanto os objetivos traados quanto as leituras indicadas para esse fim. 5. LETRAS |75 UNIDADE I O ROMANTISMO: DESENCANTAMENTO E REENCANTAMENTO DO MUNDO Sim, meu caro, radica se me cada vez mais a idia de que pouca coisa, bem pouca coisa a existncia de uma criatura. Goethe Como decididamente contrrio ordem burguesa e absolutamente interdito introduzir a poesia romntica na vida, nesse caso, levemos nossa vida para a poesia romntica. Dorothea Schlegel Das dificuldades de conceituao do Romantismo Ao afirmar que seria necessrio ter perdido todo o esprito de rigor para se aventurar na busca de definio do Romantismo, o poeta francs Paul Valry (18711945) sintetizava, em poucas palavras, as dificuldades terico crticas, em face da conceituao e da definio das manifestaes romnticas, modalidade literria que se origina e floresce no Ocidente, espao geogrfico cultural ao qual se restrin giu. Na verdade, desde o seu surgimento, o fenmeno romntico se apresenta como um enigma aparentemente indecifrvel e, concretamente, mutvel e escorregadio, que confunde e espicaa a curio sidade dos mais diversos crticos e tericos da literatura do mundo ocidental, de onde provm e onde persiste em ressurgir at os dias atuais. Esses ressurgimentos complicam, ainda mais, a apreenso crtica da esttica romntica, dificultando a sua demarcao, conforme realam Lwy e Sayre: Depois de ter limitado, durante muito tempo; o fenmeno romntico aos movimentos que se denominavam ou eram designados como tal na primeira metade do sculo XIX, a histria literria acabou, por vezes, reconhecendo sua continuao na segunda me tade desse sculo; evitou, porm, prolong la para alm desse perodo (LWY; SAYRE, 1995, p. 219). Redivivas, as marcas romnticas persistem em frequentar os mais variados movimentos estti cos que lhes sucederam, terminando por alcanar, de forma expressiva, as prprias Vanguardas Euro pias e o Modernismo no Brasil, nos incios do sculo XX. Na compreenso dessa persistente frequenta 6. LETRAS | 76 o romntica nas literaturas ocidentais, que se processa tanto na Europa como na Amrica Latina, ca minha a reflexo, confessadamente ancorada pela perspectiva hispano americana, de Octavio Paz: A contradio entre histria e poesia pertence a todas as sociedades, porm somente na idade moderna manifesta se de modo explcito. O sentimento e a conscincia da discrdia entre sociedade e poesia converteram se a partir do romantismo, no tema central, muitas vezes secreto, de nossa poesia. Neste livro procurei descrever, sob a perspectiva de um poeta hispano americano, o movimento potico moderno e suas relaes contraditrias com o que denominamos modernidade' (PAZ, 1984, p. 11 grifo do autor). Segundo Michael Lwy e Robert Sayre, estudiosos da arte romntica europeia e, como Octavio Paz, autores chave desse tpico disciplinar, as dificuldades de apreenso da complexidade do fato ro mntico se devem sua diversidade, ao seu carter fabulosamente contraditrio, sua natureza de coincidentia oppositorum, conforme expressam em sua obra Revolta e melancolia: o romantismo na contramo da modernidade, de 1995: Enigma aparentemente indecifrvel, o fato romntico parece desafiar a anlise, no s porque sua diversidade superabundante resiste s tentativas de reduo, mas sobre tudo por seu carter fabulosamente contraditrio, sua natureza de coincidentia oppositorum: simultnea (ou alternadamente) revolucionrio e contra revolucionrio, individualista e comunitrio, cosmopolita e nacionalista, realista e fantstico, retrgra do e utopista, revoltado e melanclico, democrtico e aristocrtico, ativista e contem plativo, republicano e monarquista, vermelho e branco, mstico e sensual. Tais contra dies permeiam no s o fato romntico no seu conjunto, mas a vida e a obra de um nico e mesmo autor, e por vezes um nico e mesmo texto (LWY; SAYRE, Da abrangncia da viso romntica A partir do sculo XIX, a viso romntica de mundo migra do terreno especfico do esttico, in vadindo os discursos da Filosofia, da Pedagogia, da Teologia, da Historia, da Economia, da Poltica, etc. Essa notvel abrangncia tem irritado, continuadamente, os tericos literrios, notadamente aqueles pouco afeitos ao iderio romntico. Entre eles, podemos citar o crtico estadunidense Arthur Lovejoy. Ante a disseminao do esprito romntico em to diversos campos da vida cultural e em to diferen tes pases Lovejoy prope que o termo romantismo fosse abolido da crtica literria, em discurso que revela o prprio temor da no aceitao de sua proposio: A palavra romntico j significou to grande nmero de coisas que, em si, no significa nada. Deixou de exercer a funo de um signo verbal... Receio que o nico remdio ra dical a saber, que todos ns deixemos de falar do romantismo no venha ser ado tado (LOVEJOY, apud LWY; SAYRE, 1995, p. 10). 7. LETRAS |77 O receio, ou intuio, de Arthur Lovejoy se concretizava. Os mais conhecidos e importantes cr ticos literrios do Ocidente, especialmente os pesquisadores do Romantismo, se opuseram a sua pro posta de banimento lingustico, ou nominalismo, como ficou conhecida. Entre esses tericos, destacam se Stefanos Rozanis, Ren Wellek, Abrams, Morse Peckham, conforme nos afianam Lwy e Sayre: Ora, como observado por Stefanos Rozanis em sua crtica a Lovejoy, a multiplicidade das expresses literrias, do romantismo nos diferentes pases no ultrapassa o nvel de um problema filolgico limitado enquanto manifestao de particularidades na cionais e individuais que no coloca, de modo algum, em questo a unidade essencial do fenmeno [...] Quanto a Wellek, ao problematizar contra o nominalismo de Love joy, afirma que os movimentos romnticos formam uma unidade e possuem um con junto coerente de idias que implicam reciprocamente: a imaginao, a natureza, o smbolo e o mito (LWY; SAYRE, 1995, p. 10 13) Em aproximao a Lovejoy, o tambm estadunidense William Montgomery McGovern investi ria contra as letras romnticas, mais precisamente sobre o seu corolrio poltico. Ao se debruar sobre a obra de Thomas Carlyle (1795 1881), romntico escocs e admirador da autora germnica Madame de Stal, McGovern a consideraria como um preldio ao nazismo de Hitler. Desse modo, v as ideologias polticas romnticas como uma preparao para o nazismo. A ele, responderiam Michael Lwy e Robert Sayre, desautorizando, concomitantemente, a sua anlise e perspectiva crtica adotada, modelo comum poca da Segunda Guerra: No h dvida de que os idelogos nazistas inspiraram se em alguns temas romnti cos; mas isso no autoriza a reescrever toda a histria do romantismo poltico como um simples prefcio histrico do Terceiro Reich [...] De que maneira incluir Rousseau nesse quadro terico? Evidentemente, para esse tipo de anlise, os romnticos ingle ses e franceses (ocidentais) no podem ser considerados como verdadeiros romn ticos. E o que dizer dos romnticos alemes jacobinos e revolucionrios (Hlderlin, B chner, etc.)? claro, vai ser preciso situar esses textos em seu contexto histrico (nos anos 1939 1945), favorvel a uma percepo do romantismo em geral, e de sua verso alem em particular (LWY; SAYRE, 1995, p. 16 17 grifos dos autores). Entre os que expressam uma ostensiva m vontade com a sensibilidade romntica, podemos elencar, ainda, Carl Schmitt, Benedetto Croce e Pierre Lasserre, cujos escritos so amplamente discuti dos pelos nossos tericos. Os trs, igualmente, investem contra a feminilidade do Romantismo, num discurso marcado pelos tons pejorativos da discriminao mulher, conforme se verifica em seus argu mentos. Em seus escritos sobre o Romantismo, Carl Schmitt assinala uma pretensa insuficincia moral do lirismo romntico. Traduzida como passividade ou falta de virilidade, essa insuficincia da potica 8. LETRAS | 78 romntica derivaria, segundo ele, da exaltao do feminino posta em circulao pelos artistas do Ro mantismo, como anotam Lwy e Sayre (1995, p. 12). Em rota similar, Benedetto Croce observa as contradies que permeiam o objeto artstico romntico. Numa visvel reduplicao dos velhos esteretipos que circundam, historicamente, o univer so feminino, Croce acredita que tais contradies se devem natureza da alma romntica: feminina, impressionvel, sentimental, incoerente e volvel (apud LWY; SAYRE, 1995, p. 12). Com Pierre Lasserre, esse tom no se alteraria. Para esse terico, a idiossincrasia romntica se deve sua essncia feminina que espalha, por toda parte, os instintos e o trabalho da mulher, entregue a si, num puro subjetivismo que o Romantismo sistematiza , glorifica, diviniza, como pontua Lasserre (apud Lwy; Sayre, 1995, p. 12). Tais interpretaes seriam recusadas pelo poeta e terico Octavio Paz. Muito vontade com a centralidade feminina do Romantismo, Octavio Paz observa a multipli cidade romntica, a sua ramificao pelos mais variados discursos culturais do Ocidente, perscrutando lhes o sentido e a significao. Nessa assimetria, demarca lhe a singularidade em relao aos movimen tos e estilos do passado, enquanto reconhece o impulso fuso entre a vida e a poesia, como o dnamo da esttica romntica: Foi a primeira e a mais ousada das revolues poticas, a primeira a explorar os dom nios subterrneos do sonho, do pensamento inconsciente e do erotismo; a primeira, tambm, a fazer da nostalgia do passado uma esttica e uma poltica [..] O romantismo foi um movimento literrio, mas tambm foi uma moral, uma ertica e uma poltica. Se no foi uma religio, foi algo mais que uma esttica e uma filosofia: um modo de pensar, sentir, enamorar se, combater, viajar. Um modo de viver e um modo de mor rer [...] A poesia romntica no foi s uma mudana de estilo e linguagens: foi uma mudana de crenas, e isto o que a distingue dos movimentos e estilos poticos do passado. Nem a arte barroca nem o neoclssico foram rupturas do sistema de crenas do Ocidente (PAZ, 1984, p. 63; 83 88 grifos nossos). Em 1978, aps quatro anos da edio da obra de Octavio Paz, essa inclinao terica seria re tomada pelos estudiosos brasileiros, com a publicao do livro O Romantismo, organizado por Jacob Guinsburg. Verdadeiro painel da viso crtica do Brasil, essa obra, atravs de seus mltiplos autores e textos, tenta descortinar a complexidade do Romantismo, como j indicia Guinsburg em seu texto intro dutrio a essa coletnea crtica: O que o Romantismo? Uma escola, uma tendncia, uma forma, um fenmeno hist rico, um estado de esprito? Provavelmente tudo isto junto e cada item em separado [..] Ele apenas uma configurao estilstica ou, como querem alguns, uma das duas modalidades polares e antitticas [..] Mas tambm uma escola historicamente defi nida, que surgiu num dado momento, em condies concretas e com respostas carac tersticas situao que se lhe apresentou [..] um fato histrico que assinala, na his 9. LETRAS |79 tria da conscincia humana, a relevncia da conscincia histrica. , pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou historicamente (GUINSBURG, 2002, p. 13 14). Do surgimento do fenmeno romntico Do campo terico do qual se indaga o quando e onde surge o fenmeno romntico, j reco nhecido como tal, reina uma considervel confuso, marcada tambm pela diversidade opinativa. Ora, aponta se a Inglaterra como o centro de surgimento da arte romntica; ora a Alemanha, ou, ainda, de forma concomitante, esses dois pases, enquanto se ressalta o ingresso tardio do esprito romntico em solo francs. Defendendo a primazia alem, o francs Paul Van Tieghem (1871 1948) afirma que so nas manifestaes ocorridas entre 1797 e 1810 que se deve situar o incio do Romantismo propriamente dito, ou seja, a partir do surgimento da escola alem, seguida pelos ingleses, em particular por Walter Scott e Chateaubriand. S posteriormente, surgiria na Frana e nos pases escandinavos, na Itlia e, mais tardiamente, na Espanha e na Polnia. Nessa compreenso, Van Tieghem elabora uma tabela cronolgica dos incios do Romantismo na Europa: 1795 para a Alemanha; 1798 para a Inglaterra e o incio do sculo XIX para a Frana e os pa ses escandinavos; 1816, para a Itlia; e um pouco mais tarde para a Espanha; 1822, para a Polnia. Nes se calendrio, Van Tieghem refora o status de precursora que ele atribui Alemanha, assinalando tam bm o atraso da irrupo romntica em Frana. Noutro olhar, o terico Arnold Hauser acredita ser o Romantismo um movimento originalmen te ingls, situando, assim, o cenrio da Inglaterra como ponto de nascimento da esttica romntica, enquanto aponta para as especificidades das manifestaes inglesas, segundo ele, muito mais vontade com as regras de composio da herana clssica, do que a Frana e a Alemanha. Por outro lado, Octavio Paz se inclina pela Inglaterra e pela Alemanha como os epicentros ori ginais da corrente romntica, de onde se propaga o seu iderio por todo o continente europeu. Para Paz, a proeminncia do Romantismo alemo e ingls se deve menos a sua antecipao cronolgica do que sua formidvel penetrao crtica e sua originalidade potica. Ressaltando a qualidade literria das produes romnticas na Alemanha e na Inglaterra, elo giando os seus escritos programticos, verdadeiros manifestos revolucionrios, Octavio Paz terminaria por creditar, a essa excelncia discursiva, a permanncia de uma tradio que se comunicaria posteri dade, para a qual, insistentemente, o poeta mexicano chama a ateno de seu leitor, reforando o car ter de atualidade das expresses romnticas. Tais perspectivas, em conjunto, seriam retomadas e redimensionadas pelos estudos de Jac ques Bousquet e pelas pesquisas de Karl Mannheim, escritores que, semelhana de Octavio Paz, so frequentemente chamados ao texto de Michael Lwy e de Robert Sayre. 10. LETRAS | 80 Em acordo com o pensamento de Bousquet e de Mannheim, Lwy e Sayre focalizam o incio do Romantismo no espao temporal da segunda metade do sculo XVIII, elegendo, igualmente, a Fran a, a Alemanha e a Inglaterra como precursoras e fiadoras do desenvolvimento, da divulgao e da dis seminao da nova arte europeia. Nessa escolha, Lwy e Sayre descartam a viso da Frana como refra tria s ideias iniciais do Romantismo, amparando se, explicitamente, nos trabalhos de Bousquet e Mannheim: Com efeito, a Alemanha e a Inglaterra j foram propostas como candidatas a esse ttulo: a primeira quase sempre por motivo de uma vocao particular devido a seu carter e destino social; a segunda em razo de sue avano socioeconmico. No entanto, se olharmos detalhadamente a histria cultural desses trs pases no sculo XVIII, parece que essas afirmaes so contestveis e estaremos de acordo com Karl Mannheim para quem o Romantismo apareceu praticamente ao mesmo tempo nes- ses trs pases europeus [...] Jacques Bousquet refuta de maneira convincente a i- dia de que a Frana teve um atraso considervel [...] Houve, portanto, na Frana ao mesmo tempo que na Alemanha e na Inglaterra, um denso tecido cultural ro- mntico e no somente algumas obras-guias. Quanto questo das pretensas in- fluncias anglo-germnicas, Bousquet prova que a dos autores alemes no teve grande importncia e a dos ingleses foi muito menor do que se afirmou (LWY; SAYRE, 1995, p. 79-80 grifos dos autores). Elencando os mais variados argumentos que corroboram as suas prprias opinies, isto , de que o surgimento do esprito romntico se processou de forma sincrnica e assemelhada, porm inde pendente, em seus trs pases centros, Lwy e Sayre procedem a um verdadeiro inventrio das perspec tivas tericas acerca do Romantismo. Nessa catalogao do esplio crtico romntico, especialmente o elaborado no sculo XX, nossos autores demonstram que diversidade e multiplicidade que caracteri zam o fato romntico corresponde, igualmente, uma fabulosa e inquietante pluralidade crtica: Em sua forma mais banal, essa abordagem ope o romantismo ao classicismo. Por exemplo, segundo o Larousse du XXe sicle, so chamados de romnticos os escritores que, no incio do sculo XIX, se liberaram das regras de composio e do estilo do classicismo. Na Frana, o romantismo foi uma reao profunda contra a literatura clssica nacional, enquanto vai constituir, na Inglaterra e Alemanha, o fundo primitivo do gnio autctone [...] Sem ultrapassarem a viso estritamente lite- rria do romantismo, outros crticos consideram inadequada a definio que se limi- ta a levar em considerao as regras de composio no clssicas ou a alma na- cional e tentam encontrar denominadores comuns mais substanciais. o caso, em particular, dos trs mais conhecidos especialistas norte-americanos da histria do romantismo: M.H. Abrams, Ren Wellek e Morse Peckham. Para Abrams, apesar de sua diversidade, os romnticos compartilham certos valores: por exemplo, a vida, o amor, a liberdade, a esperana e a alegria. Tm tambm em comum uma nova concepo do esprito, que sublinha mais a atividade criadora do que a recepo das impresses exteriores [...] Wellek afirma que os movimentos romnticos formam uma unidade e possuem um conjunto coerente de idias que se implicam recipro- camente: a imaginao, a natureza, o smbolo e o mito [...] Peckham prope definir 11. LETRAS |81 o romantismo como uma revoluo do esprito europeu contra o pensamento est- tico/mecnico e em favor do organicismo dinmico. Seus valores so: a mudana, o crescimento, a diversidade, a imaginao criadora e o inconsciente [...] Cada au- tor faz sua prpria escolha e, por vezes, revisa sua escolha anterior [...] Por exem- plo, em artigo de 1961 que reconsidera sua teoria de 1951, Morse Peckham verifi- ca que o organicismo era antes um produto da Filosofia das Luzes [...] Incapaz de determinar um contedo qualquer para essa identidade do ego, a nova tentativa de Peckham desemboca em um vazio conceitual e nos faz reconduzir ao ponto de partida a tumultuosa multiplicidade das cores a servio de um ego criativo, cara a Carl Schmitt (LWY; SAYRE, 1995, p. 1-14 grifos dos autores). Da gnese romntica Se o incio do Romantismo , geralmente, delimitado no espao da ltima dcada do sculo XVIII, a sua gnese, todavia, remonta aos princpios da segunda metade do Sculo das Luzes, por volta de 1760. Em razo disso, tem se falado de um proto romantismo, ou de uma pr histria do Romantis mo, que se manifesta durante a fase do Iluminismo, perodo marcado por um crescente desenvolvimen to do capital, do comrcio, da indstria e das cidades. Esse bulcio, metaforizado como solido na socie dade (LWY; SAYRE, 1995, p.68), se transformaria em materialidade verbal, atravs das obras dos mais variados escritores do perodo iluminista. A visvel expanso do progresso no agradava a todos. Havia os romnticos, ou seja, os des contentes, como os denominava Karl Mannheim, socilogo hngaro e estudioso das utopias romnticas. Desse descontentamento surgia uma sensibilidade que se contrapunha dureza da prosa do negcio, que reverberava contra o racionalismo do clculo e a frieza do esprito do capital. Nessa (e contra) at mosfera, desabrocha o esprito romntico. Informados por essa perspectiva, Lwy e Sayre situam a obra de Jean Jacques Rousseau (1712 1778) como gnese dessa sensibilidade. Retomando a compreenso de Octavio Paz, consideram os di versos discursos de Rousseau como textos inaugurais do impulso anticapitalista, precursores da mani festao da viso de mundo dos romnticos, portanto. Assim, consideram os escritos de Rousseau, os de seus discpulos, como tambm os de Chateaubriand, como literatura romntica da fase anterior Revo luo Francesa. Rousseau o autor chave na gnese do romantismo francs porque, ainda em meados do sculo XVIII, soube articular toda a viso romntica do mundo [...], alm disso, Oc tavio Paz observa que se a literatura moderna comea com uma crtica da modernida de Rousseau a figura que encarna esse paradoxo com uma espcie de exemplarida de. Vemos aparecer em Rousseau uma configurao romntica a partir de Discours (1750, 1755) e de La Nouvelle Hlose (1761), mas igualmente em obras escritas no fim de sua vida: Confessions e Rveries du promeneur solitaire [...] os discpulos de Rousse au, tais como Bernardin de Saint Pierre e Restif de La Bretonne so plenamente ro mnticos: o primeiro em seu idlio trgico Paul et Virginie; e o segundo em suas utopi 12. LETRAS | 82 as comunistas, patriarcais e campestres. Nesse romantismo anterior Revoluo Fran cesa, podemos situar tambm Chateaubriand porque sua obra Tableaux de la Nature foi redigida entre 1784 e 1790 (LWY; SAYRE, 1995, p. 85 86). Nesse raciocnio, Michael Lwy e Robert Sayre desconstroem uma perspectiva crtica bastante rotineira nos compndios de Literatura e, de forma mais acentuada, nos livros didticos originados, no mais das vezes, das mais conflitantes interpretaes: a do estabelecimento de uma relao direta entre a Revoluo Francesa e as ideias romnticas. Ora, ao identificar, na obra de Rousseau, a gnese do esprito romntico, Lwy e Sayre fazem o movimento romntico recuar para aqum da Revoluo Francesa e, na mesma moeda, o avana para alm da Revoluo Industrial. Assim, criticam acidamente as interpretaes que insistem em ligar, com estreitos laos, o advento do Romantismo a determinantes histricos ou econmicos, valendo se da contribuio de Henri Peyre, pesquisador francs das letras romnticas, a quem chamam e concedem voz, em sua obra: Escutemos a opinio de um eminente especialista, Henri Peyre: Seria arriscado ligar demasiado estreitamente as criaes do esprito, isto , a mais livre atividade que se possa imaginar, aos acontecimentos da histria e vida econmica... De fato, as rela es entre literatura e sociedade so praticamente indefinveis... Ligar como j se ten tou fazer, o romantismo ao advento da revoluo industrial... ainda mais arriscado... Se, em seguida, o romantismo exprimiu, melhor do que inmeros historiadores, os transtornos causados pelo afluxo das populaes em direo industria e s cidades, a misria das classes trabalhadoras julgadas tambm classes perigosas.... isso aconteceu porque Balzac, o Hugo dos Miserveis e at mesmo Eugne Sue, mais tarde Dickens e Disraeli na Inglaterra, foram observadores argutos da sociedade e homens magnni mos. A explicao pelo corao um pouco limitada e incapaz de preencher o vazio analtico que resulta da recusa em examinar a relao entre literatura e sociedade (LWY; SAYRE, 1995, p. 20) A viso romntica: desencantamento e reencantamento do mundo A partir da segunda metade do sculo XVII, a Europa assiste a uma vertiginosa transformao social, operada pela ordem do capital que se vai consolidando e criando um novo tempo e feio social que se denominar de Modernidade. Conceito exclusivamente ocidental, a Modernidade iria se caracterizar pelo acentuado desen volvimento do comrcio, da indstria, da tcnica, do raciocnio cientfico e lgico que o Iluminismo afa gava. No reverso, tambm se verifica o desalento ante o raciocnio abstrato e frio do clculo, a impesso alidade da burocracia, a misria pasmosa de grandes contingentes humanos que abandonam o campo em busca das grandes cidades, o abandono infantil, a humilhao dos trabalhadores, a quebra dos vn culos sociais e afetivos, o poder do dinheiro, o flagelo da pobreza, a quantificao do mundo e a conse quente reificao humana. 13. LETRAS |83 Dessa Modernidade e contra ela desabrocha a sensibilidade romntica, ou poesia moderna em sentido lato, com novos temas, novas formas e personagens outras que pem fim lgica do Classi cismo, retomada pela Renascimento. Nesse quadro, surge uma multiplicidade de obras que, refratrias a esse desenvolvimento, denunciam, negam e desmontam o progresso ou projeto civilizatrio ociden tal, especialmente em seus trs pases mais desenvolvidos Frana, Alemanha e Inglaterra de onde se origina a poesia moderna, claramente engajada em um projeto centrado no humanismo. Disso resulta uma literatura empenhada, perpassada ora pela perspectiva tica, ora pela polti ca, ou pela religiosidade, ou simplesmente humanstica, ou tudo isso junto, como se v nos diversos discursos romnticos, a exemplo de Thomas Carlyle que, em seus Sinais dos Tempos (1829), expressa o horror romntico mecanizao do mundo, com verdadeiro temor de que esta se estendesse ao huma no. Ou mesmo o romance Oliver Twist (1837), do ingls Charles Dickens, cujo tema se volta para a in fncia abandonada e ultrajada, para a iniquidade dos orfanatos de Londres, seus espaos sujos e srdi dos. Ou mesmo Os miserveis (1862), do francs Victor Hugo, narrativa que se constitui num verdadeiro panorama da sociedade francesa, na qual seu narrador faz uma contundente defesa da bondade huma na, seguindo o pensamento do socialismo utpico. No Brasil, essa literatura que toma posio em face das iniquidades sociais teria uma formid vel realizao em Castro Alves. Este, como seus pares europeus, reveste de dignidade os mais ultrajados pela diviso social do mundo da Modernidade. Entre ns, o escravo, sem sombra de dvida, sobre quem recai os nus mais infames do capitalismo. Contra essa escravido, reverbera, em prosa e verso, nosso poeta abolicionista, Castro Alves. Desencantados, descontentes, revoltados ou nostlgicos em relao a um tempo perdido, i dentificado em suas obras como a Idade Mdia, os romnticos europeus recorreram s mais diversas estratgias, em suas buscas de reencantamento do mundo. Entre os variados recursos, temticos e for mais, do reencantamento romntico, elencamos os que se seguem, ressaltando que muitos deles se imbricam num verdadeiro redemoinho para os seus leitores. Imaginao para o Romantismo, a percepo do real obra da imaginao; um apangio da fantasia potica. O tema da imaginao criadora a medula da potica romntica. tam bm uma ruptura com a esttica clssica, que concebia a arte como mimese, como imitao objetiva do real. Fantasia contra o choque com a realidade hostil, provocadora de desencanto, os romnticos recorrem fantasia, como estratgia na ruptura dos limites estreitos da realidade e como ca nal privilegiado de propiciao ao exerccio da imaginao. 14. LETRAS | 84 Ensimesmamento a interioridade, o voltar se para si, o ponto de partida do pensamento romntico. Para os romnticos, expresso da alma a expresso do Eu. Da ligarem, em larga medida, o culto do ego ao senso religioso da totalidade. Senso de religiosidade contra o vazio religioso da Modernidade, visto como ausncia de sen tido da vida, os romnticos retornam s tradies religiosas e s msticas, que se converteriam em uma das principais estratgias romnticas de reencantamento do mundo, a tal ponto de muitos crticos consider las como a principal caracterstica romntica. Nostalgia na reao despoetizao e ao prosasmo da vida burguesa, os romnticos se vol tam para os parasos perdidos, para um passado pr capitalista ou um passado em que o hor ror da mecanizao do mundo no era visvel. Esses parasos eram identificados no medieva lismo ou em terras longnquas e exticas com as florestas americanas, o Oriente e a ndia. Retorno ao passado objeto da nostalgia e da melancolia romntica, o eterno retorno se processava tanto de forma coletiva, a exemplo do medievalismo, das tradies da ptria, usualmente confundida como lar, quanto de forma individual, como expressa a saudade da infncia, do passado particular. Mito narrativa mgica, de interseo entre a religio, a histria, a poesia, a linguagem, e a fi losofia, o mito oferece um reservatrio inesgotvel de smbolos e alegorias: fantasmas, dem nios e deuses. Desfruta de um lugar parte no conjunto dos recursos romnticos de reencan tamento. Karl Wilhelm Friedrich von Schlegel, poeta alemo, associa a poesia mitologia, transformando o mito em carga utpica e a poesia em poder mgico Culto da natureza diferente da imitao clssica, a natureza para os romnticos o afasta mento do hic et nunc; refgio ao bulcio da cidade, locus de manifestao da originalidade do gnio, no contaminado pela sociedade. O paisagismo neoclssico cede lugar ao pitoresco, ao local. , tambm, contraponto modernidade industrial, que v na natureza to somente as quantidades de matrias primas que dela pode extrair. Senso de historicidade orientado pela viso da singularidade da obra, proposio privilegia da pela corrente alem, os romnticos reivindicam o senso de historicidade para as artes, con cebendo as em sua relao com o contexto histrico cultural do pas em que surgem, ou seja, o esprito da nao. Na fico histrica romntica, destaca se o escritor ingls Walter Scott, com quem Alencar dialoga em seus romances histricos. 15. LETRAS |85 Super abundncia de sentimento motivada pela viso maniquesta romntica, do bem ver sus mal, a literatura romntica expressa uma gama variada de emoes que, por vezes, alcan am o exagero da pieguice e do dramalho. Repdio s convenes sociais subvertendo a sociabilidade do artista neoclssico, os romn ticos reabilitam os comportamentos no racionais e/ou no racionalizveis, valorizando todas as formas de existncia subjetiva, tais como o amor, a emoo pura, as paixes, as intuies, as premonies, os instintos, o sonho, o delrio, o estado da infncia. Essa indisposio s normas sociais, ou volpia da transgresso, se expressa no satanismo de Byron. No Brasil, essa tendncia apresenta se, sobretudo, em lvares de Azevedo. Fascnio pela noite espao de magia, de mistrio, dos sortilgios, a noite vem se adequar contraposio romntica luz, signo emblemtico do racionalismo clssico. O feminino romntico objeto do amor, concebido como essncia da vida pelo romantismo, a mulher divinizada, retirada do seu cotidiano, de sua humanidade comum e alada s alturas de uma pureza arquetpica. Mas h tambm outras heronas... Marion Delorme, do romance homnimo de Victor Hugo (1829); Marguerite Gautier, de A Dama das Camlias, de Alexandre Dumas Filho (1848); Carolina, da narrativa dramtica de Jos de Alencar, As Asas de um Anjo (1958); e Lcia, personagem do romance Lucola 1862), de autoria tambm do autor brasileiro. A ptria romntica como a alma romntica vive aqui e agora longe de seu verdadeiro lar, de sua verdadeira ptria, esta representada e vivida como exlio, constituindo se como carncia. Segundo Arnold Hauser, o sentimento de carncia de lar e de isolamento tornou se a experincia fundamental dos romnticos do incio do sculo XIX. Para Walter Benjamim, o ape lo vida onrica dos romnticos indica as dificuldades impostas pela vida real ao regresso da alma ao lar da terra materna (apud LWY; SAYRE, 1995, p.40). Ironia atravs da ironia, os romnticos procuram desfazer as aparncias do mundo quantifi cado da Modernidade, revelando a quebra do princpio da identidade, a ciso do idntico, o outro lado da razo. Em Senhora (1875), Jos de Alencar se utilizaria dessa estratgia para a sua problematizao do amor tornado negcio, por meio da exigncia de dotes, arranjos muito comuns no Rio de Janeiro, como critica Alencar atravs de sua personagem Aurlia: Assim costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando lhes certo valor monetrio. Em linguagem financeira, Aurlia cotava os seus a doradores pelo preo que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial. Uma noite, no Cassino, a Lsia Soares, que fazia se ntima com ela, e desejava arden 16. LETRAS | 86 temente v la casada, dirigiu lhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante que chegara recentemente da Europa. um moo muito distinto, respondeu Aurlia sorrindo; vale bem como noivo cem contos de ris; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preo, Lsia; no me contento com esse (ALENCAR, 1951, p. 97 98, V. XV). Romantismo versus classicismo Recusando a cosmoviso do mundo clssico e a esttica neoclssica a ela ligada, o Romantis mo se projetou como um grande fenmeno histrico, como a primeira e a maior das revolues poti cas do Ocidente, nos termos de Octavio Paz. A substituio da viso racionalista clssica pela cosmovi so romntica idealista e metafsica alteraria, radicalmente, os modelos e os padres que at ento orientavam a feitura do potico, do artstico. Nesse caminho de recusa e de substituio, os romnticos contrapem aos princpios discipli nadores da esttica clssica objetividade, conteno, ponderao, proporo, equilbrio, ordem, har monia, serenidade, clareza, carter apolneo, transparncia, clareza e luminosidade, elementos ligados ao domnio do diurno a subjetividade, a liberdade, a abundncia, a noite, a imaginao e a fantasia, os indisciplinamentos da interioridade. Simetricamente oposta, tambm seria a maneira com a qual os romnticos apreenderiam o ar tista. Se, no Classicismo, o valor esttico dependia exclusivamente da obra, cabendo ao artista evaporar se por trs dela, no Romantismo o valor da obra passa a se instalar no artista, elevado condio de gnio, dotado de poder demirgico, visto como porta voz do divino, do infinito. Assim, enquanto o artis ta clssico preso s regras e realista aos fatos, o gnio romntico movido por sua vontade, suas emo es e sentimentos, num exerccio de inusitada liberdade autoral. A liberdade romntica impele os seus artistas a investir contra os ditames clssicos da separa o das artes. Ope o dilogo entre a prosa e a poesia rigidez das fronteiras literrias clssicas, disci plinarmente separadas e obedientes s suas prprias regras, restritas s suas prprias feies. Alm de uma fabulosa discusso sobre o verso, desse dilogo resultaria a corroso romntica das velhas formas clssicas, como sugere Alfredo Bosi: A mesma liberdade desterra formas lricas ossificadas e faz renascer a balada e a cano, em detrimento do soneto e da ode; ou, abolindo qualquer constrangimento, escolhe o poema sem cortes fixos, que termina onde cessa a inspirao (Byron, Lamartine, Vigny...). A epopia, expresso herica j em crise no sculo XVIII, substituda pelo poema poltico e pelo ro- mance histrico, livre das peias de organizao interna que marcavam a narrativa em verso. No teatro, espelho fiel dos abalos ideolgicos, as mudanas no seriam menos radicais: a- frouxada a distino de tragdia e comdia, cria-se o drama, fuso de sublime e grotesco, 17. LETRAS |87 que inspira a reproduzir o encontro das paixes individuais contido pelas biensanceas cls- sicas (BOSI, 1980, p. 105 grifos do autor). Da recusa romntica aos cdigos estticos clssicos, seus gneros, estilos e tcnicas, resultaria o romance. Gnero misto, apreciado como a revoluo literria do Terceiro Estado por Debenedetti (apud BOSI, 1980, p. 106), o romance considerado o gnero moderno por excelncia e o que melhor expressou a poesia da Modernidade. Da, afirmar se, continuadamente, que o romance no apenas ofe receu ao esprito romntico as melhores condies de expresso de seu iderio, como se converteu, exemplarmente, em gnero privilegiado da sociedade burguesa. A Msica romntica Por expressar o inexprimvel, atenuando, portanto, a lacuna do verbo, a busca da expressivi dade musical se tornaria numa das maiores preocupaes do Romantismo, revelada no interesse pela cano, em especial a de origem popular. Ao se voltar para as composies eruditas de Beethoven, o escritor, compositor e pintor alemo Hoffmann sintetizava o que se entendia por msica romntica: pe em movimento a alavanca do medo, do terror, do arrepio, do sofrimento, e desperta precisamente esse infinito anelo que a essncia do romantismo (apud BOSI, 1980, p.103). Romantismo e Dramaturgia Em relao ao teatro, caberia ao romancista francs Victor Hugo a responsabilidade pelas for mulaes romnticas nesse campo artstico. Criticando o modelo clssico, rigidamente dividido em g neros reivindicados em estado de pureza a comdia e a tragdia Victor Hugo situa o drama como a expresso privilegiada da Modernidade, enquanto confronta as bases conceituais clssicas, no tocante s unidades de tempo e de espao, igualmente disciplinadas pelo rigor clssico. Romantismo e Lingustica Como se sabe, o Romantismo no foi to somente um movimento de renovao no campo li terrio, mas uma renovao na forma de compreenso do mundo, do homem e das artes em geral, em suas mltiplas linguagens. A profunda discusso acerca de formas, gneros e linguagens deslocava os romnticos, notadamente os alemes, para o terreno da Lingustica. Esse deslocamento se consumaria com as investigaes lingusticas do poeta alemo Frederich Schlegel. Em 1806, Schlegel publica suas pesquisas Sobre a lngua e a cincia dos Hindus, nas quais se debrua sobre a antiga lngua da ndia, o snscrito. Esmaecia se, assim, a estrela do latim no firmamento lingustico (ELIA, 2005, p. 123), como ressalta Meillet: 18. LETRAS | 88 O Romantismo alemo se interessava por um passado independente da cultura greco latina, e aproveitava se de tudo o que a histria do passado e a explorao do mundo faziam para alargar as vistas estreitas do Classicismo. Para as lnguas como para a lite ratura, para o Direito, para as instituies, os alemes estudaram outra coisa que a Grcia e Roma (MEILLET, apud ELIA, 2005, p. 123). Orientados pelo mtodo histrico comparativo e pelo desejo romntico de resgate s culturas antigas e s experincias lingusticas populares, os estudos de Schlegel operam um descentramento1 , isto , desaloja o idioma clssico de seu lugar de centro, focalizando, como referencialidade, o snscrito. Com Schlegel, a terminologia gramtica comparada seria empregada pela primeira vez, o que lhe d, a nosso ver, o lugar de antecipador dessas pesquisas. Nesse verdadeiro exerccio de rotao, os romnti cos alemes descartam a viso da gramtica tradicional, elaborada pelos filsofos gregos, cuja concep o se pautava pela padronizao e pelo intento de firmar o tico antigo dialeto falado na regio de Atenas, de onde deriva a base da lngua grega clssica como modelo ideal, como observa o linguista brasileiro, Mrio Eduardo Martelotta: O sentimento romntico levou os primeiros comparatistas a tentar reconstruir, atravs do mtodo comparativo um estado de lngua original, considerado idealmente perfeito em funo de concepo da poca de que a mudana era uma espcie de degenerao de um estado de lngua primitivo e, por natureza, ntegro [...] a descoberta do snscri to, antiga lngua da ndia, que se mostrou muito parecida com as lnguas da Europa [...] aguou a curiosidade dos pesquisadores, incentivando os estudos comparativos entre as lnguas. Ou seja, foi a comparao com o snscrito que deu bases slidas teoria re ferente ao parentesco e unidade e origem das lnguas indo europias. Alm disso, forneceu uma nova fonte de inspirao ao Romantismo, movimento de idias que se opunham tradio greco latina (MARTELOTTA, 2008, p. 49). Nessa linha, Franz Boop, tambm alemo, publica o seu livro Sistema de configurao do Snscrito em comparao com o do Grego, Latim, Persa e Germnico (Frankfurt, 1816), dedicado ao estudo dos verbos do snscrito, em aproximao com o grego, latim, persa e os das lnguas germnicas. Preocupado, principalmente, com os aspectos morfolgicos, Boop desenvolveu uma comparao siste mtica entre os principais ramos indo europeus, tornando se, assim, conhecido como o fundador da gramtica comparativa do indo europeu. Afere se, portanto, a importncia dos estudos romnticos no processo de criao e de sedimentao da gramtica histrico comparativa e da Lingustica em geral. 1 Expresso criada por Jacques Derrida, ao tratar da importncia da Etnologia para os estudos dos chamados povos primitivos: a Etnologia s teve condies para nascer como cincia no momento em que a cultura europia [...] foi deslocada, expulsa do seu lugar, deixando ento de ser considerada como a cultura de referncia (DERRIDA, apud SANTIAGO, 1978, p. 13). 19. LETRAS |89 Redefinindo o Romantismo Procedendo a um verdadeiro inventrio das diversas vises sobre o Romantismo, Michael Lwy e Robert Sayre terminariam por se aventurar pelo caminho pedregoso e escorregadio da conceitu ao romntica. Em situao mais confortvel do que a de muitos crticos no passado, haja vista o con sidervel volume e a qualidade da recente fortuna crtica de que podem dispor, Lwy e Sayre ignoram a advertncia do poeta Paul Valry e se dispem, sem perder o senso de rigor, a enveredar na aventura da redefinio do Romantismo, entendido como reao Modernidade que se inaugura. Ao se lanar a essa empreitada, Lwy e Sayre estabelecem como ponto de partida uma defini o do Romantismo como Weltanschuung ou viso do mundo, isto , como estrutura mental coletiva. Desse ponto, procedem s suas apreciaes da expresso romntica em toda sua globalidade, exami nando a em toda a sua extenso e multiplicidade. Essas perspectivas metodolgicas os aproximam, harmoniosamente, de Octavio Paz. Este, como Lwy e Sayre, tambm busca uma apreenso do Roman tismo em sua totalidade e diversidade, apreciando o, tambm, como oposio lgica da Modernidade: Antes de mais, indiquemos com duas palavras a essncia de nossa concepo: para ns, o romantismo representa uma crtica da modernidade, isto , da civilizao capita lista moderna, em nome de valores e ideais do passado (pr capitalista, pr moderno). Podemos dizer que, desde sua origem, o romantismo iluminado pela dupla luz da es trela da revolta e do sol negro da melancolia [...] O romantismo surge de uma oposi o a essa realidade capitalista/moderna [...] , queiramos ou no, uma crtica moder na da modernidade [...] uma conscincia aguda da deteriorao radical da qualidade das relaes humanas na modernidade e a busca nostlgica da comunidade autntica (LWY; SAYRE, 1995, p. 34; 68 grifos dos autores). Desde sua origem, a poesia moderna tem sido uma reao diante, para e contra a mo dernidade [...] Desde o seu nascimento, a modernidade uma paixo crtica [...] A arte moderna no apenas filha da idade crtica, mas tambm crtica de si mesma [...] Sua modernidade ambgua: h um conflito entre poesia e modernidade que comea com os pr romnticos e se prolonga at os nossos dias. A sensibilidade dos pr romnticos no tardar em se transformar em paixo dos romnticos [...] A poesia moderna nasce com os primeiros romnticos e seus predecessores imediatos de fins do sculo XVIII, atravessa o sculo XIX, atravs de sucessivas mutaes que so apesar de tudo repeties, e chega at o sculo XX. Trata se de um movimento que envolve todos os pases do Ocidente, do mundo eslavo ao hispano americano, mas que em ca da um de seus momentos se concentra e manifesta em dois ou trs pontos de irradia o (PAZ, 1984, p. 17 18; 52 54; 152). 20. LETRAS | 90 UNIDADE II O ROMANTISMO NO BRASIL A NARRAO DA NAO Sem dvida que o poeta brasileiro tem que traduzir em sua lngua as idias [...] nessa tra duo est a grande dificuldade. Jos de Alencar Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso. Jos de Alencar O Romantismo na Amrica Latina No que tange recepo latino americana ao Romantismo, cumpre notar que esta s se pro cede, a partir dos anos 30 do sculo XIX, poucos anos depois da acolhida dos pases do Leste Europeu Rssia, Polnia, Hungria, povos balcnicos; da Itlia e da Espanha. Na verdade, desde os fins do sculo XVIII e incios do XIX, as contradies entre as Colnias da Amrica Latina e suas Metrpoles haviam se tornado insuportveis. As Colnias em nuestra Amrica haviam crescido, se desenvolvido e j contavam com pequenos mas importantes crculos de intelectuais que comearam, desde o perodo do Arcadismo, a pensar a Colnia de uma forma mais prpria, como ilustra, entre ns, a participao dos poetas rcades Cludio Manuel da Costa, Toms Antnio Gonza ga, Incio Jos de Alvarenga Peixoto, Brbara Heliodora2 na Inconfidncia Mineira em 1789. Nos princpios do sculo XIX, a Amrica Latina se constitua como cenrio de lutas acirradas, especialmente, nas Colnias espanholas. A essas rebelies libertrias se devem a emancipao do Para guai (1811), do Uruguai (1814), da Argentina (1816), do Chile (1818), Venezuela e Nova Granada (1819 1821), Equador (1820), Peru (1824) e Bolvia em 1825. Em 1822, a maioria das Colnias da Amrica Cen tral unia se ao Mxico, tornando se independentes. Em 1823, essas Colnias se separaram do Mxico e formaram as Provncias Unidas do Centro da Amrica. As presses dos Estados Unidos e da Inglaterra, as discrdias entre as oligarquias locais terminariam, contudo, provocando a fragmentao desse Centro Americano. A partir de 1830, essas Colnias se tornariam as atuais Repblicas da Costa Rica, Nicargua, El Salvador, Honduras e Guatemala. 2 Brbara Heliodora Guilhermina Silveira (So Joo del Rei 1759; So Gonalo de Sapuca (MG) 1819). Musa e esposa de Alvarenga Peixoto, Brbara Heliodora foi ela prpria poeta. Com o marido, participou da Conjurao Mineira. Aps a priso e o degredo de Alvarenga Peixoto, suportou com rara dignidade o confisco de seus bens, a infmia sobre os seus filhos e a morte do marido, um ano aps a chegada deste ao degredo africano. 21. LETRAS |91 Em relao ao Haiti, colonizado pelos franceses, a independncia se consumaria em 1925, de pois de uma luta sangrenta que se arrastou do sculo XVIII ao sculo XIX. Os haitianos pagariam um preo altssimo pela sua liberdade. Os senhores de engenho se recusavam a entregar o pas aos negros, preferindo destru lo. Queimaram todos os canaviais, dizimaram todo o gado e arruinaram os engenhos de acar. Por outro lado, a Metrpole francesa envia tropas fortemente armadas que completam o ser vio dos senhores do acar. No Haiti, o exrcito napolenico pilhou, destroou e cometeu um dos mas sacres mais violentos da histria da Frana. Ao massacre da populao e ao destroo do Haiti, se segui ria o bloqueio comercial imposto pelos franceses, alm de uma dvida imensa. Isso explica a pobreza e a desolao do Haiti, nos dias atuais. Cuba, localizada no arquiplago caribenho como o Haiti, tambm teve um caminho duro e lon go at a sua libertao. Inicialmente, vendida Inglaterra pelos espanhis, depois fica sob a tutela econmica dos EUA, s se libertando com a Revoluo Cubana de 1959, que implantaria um regime de cunho socialista. Movidos por um acirrado sentimento de busca de reconhecimento de si, os pases latino americanos acolhem o iderio romntico europeu. Na Amrica Latina, o fervor das rebelies e dos an seios de independncia daria s primeiras manifestaes romnticas um expressivo e persistente acento de nacionalismo, de fundo germnico, explicvel em face do contexto libertrio e da consequente ne cessidade de identidade nacional, como bem anota o crtico mexicano, Jos Luis Martnez, ressaltando a especificidade do processo brasileiro: Com efeito, as geraes latino americanas que apareceram por volta dos anos trinta do sculo XIX, quando as novas repblicas comeavam a se estabilizar e a dirimir seus conflitos internos com exceo do Brasil, que foi reino independente at 1889, quando passou ao sistema republicano , adotaram integralmente como programa a criao de uma nova literatura que expressasse nossa natureza e nossos costumes. Em todos os pases da regio, poetas romancistas, dramaturgos e ensastas entregaram se laboriosamente tarefa de cantar o esplendor da natureza americana e a de reprodu zir e explorar as peculiaridades de nossos costumes (MARTNEZ, 1972, p. 63 grifos nossos). No obstante a flagrante similaridade entre as letras latino americanas, o Brasil se apresenta ria, contudo, como singularidade histrico literria, no quadro latino americano. Suas experimentaes romnticas, especialmente no romance, gnero criado pelo Romantismo, so, comumente, apreciadas como realizaes mais consistentes e elaboradas, enquanto desfruta do estatuto de melhor elaborao romanesca em nosso continente, como reconhece Octavio Paz e sugere Luis Martnez, terico tambm mexicano: 22. LETRAS | 92 O romantismo hispano americano foi ainda mais pobre que o espanhol: reflexo de um reflexo. No entanto, h uma circunstncia histrica que, embora de maneira no ime diata, afetou a poesia hispano americana e a levou a mudar de rumo. Refiro me re voluo da Independncia [...] Inclusive pode dizer se que houve nessa poca trs grandes revolues com ideologias anlogas: a dos franceses, a dos norte americanos e a dos hispano americanos, o caso do Brasil foi diferente [...] A desolao foi a nossa histria (PAZ, 1974, p. 114 grifos nossos). A relativa paz de que o Brasil desfrutou no sculo XIX em contraste com as persis tentes agitaes da Amrica hispnica contribuiu para o florescimento do romance nesse pas, durante a segunda metade do sculo, o mais importante da Amrica Lati na neste perodo em seu conjunto (MARTNEZ, 1972, p. 63 grifos nossos). Como se verifica, foi num trajeto desigual mas combinado, que a nova potica europeia se instalou nas letras da Amrica Latina. A nossa receptividade permitiu ao Romantismo alcanar a parte que lhe faltava para atingir a totalidade do Ocidente. Como bem lembra Octavio Paz a despeito das dife renas de lnguas e culturas nacionais, a poesia moderna uma, e o termo Ocidente abrange tambm as tradies literrias e culturais latino americanas, em suas trs lnguas: a espanhola, a portuguesa e a francesa (PAZ, 1884, p.11 12). Isso, evidentemente, nos torna construtores e intrpretes do mosaico potico literrio que caracteriza a cultura do universo ocidental. A ESTTICA ROMNTICA CHEGA AO BRASIL O jeitinho brasileiro Enquanto os pases da Amrica Latina, de lngua espanhola e de lngua francesa, estatuam a ruptura com suas Metrpoles, atravs de uma srie de revolues, o Brasil, ao contrrio, estreita seus laos com Portugal. Em 1808, a Famlia Real portuguesa e a sua Corte, seus funcionrios e soldados, chegam e se instalam no Rio de Janeiro, transformando a Colnia em sede da monarquia lusitana, alm de seu refgio e amparo, ante as investidas francesas. Pressionado pelas ameaas napolenicas de invaso de Lisboa, D. Joo VI, ento Prncipe Re gente de Portugal, sob a proteo da armada inglesa, foge para o Brasil abandonando o povo portugus a sua prpria sorte. Ironicamente, a transferncia da Coroa lusitana concretiza o temor portugus ex presso por Ambrsio Fernandes Brando, em sua obra Dilogos e grandezas do Brasil, de 1618: No permita Deus que padea a nao portuguesa tantos danos que venha o Brasil a ser o seu refgio e am paro (BRANDO, 1997, p. 15). 23. LETRAS |93 A transferncia da Coroa portuguesa para o Brasil altera profundamente nossa feio colonial. A cidade do Rio de Janeiro, acanhada para os padres europeus, se transfigura: duplica sua populao e comea a exibir as convenes e etiquetas sociais trazidas pela enorme comitiva de D. Joo e pelos artis tas, intelectuais, pesquisadores que desembarcam na cidade, atrados pela curiosidade e pela presena da Corte lusitana. No terreno da economia, a abertura dos portos primeira medida tomada por D. Joo VI, se guindo se outras resolues que revogam os entraves a produo e ao comrcio da Colnia, incompat veis com a nova condio de sede da monarquia portuguesa. Na cultura, as transformaes foram i gualmente importantes. Permitiu se a importao de livros, a instalao de tipografias, imprimiram se nossas primeiras obras, criou se uma biblioteca, foram fundados os primeiros cursos e escolas de nvel superior, surgiram, enfim, os nossos primeiros jornais. O Brasil comeava a viver um processo de inde pendncia virtual, que garantiria ao nosso pas preservar a sua unidade, como assinala Antonio Candido (2002, p.10). Em 1816, D. Joo VI torna se rei de Brasil e Portugal, aps a morte de sua me, D. Maria I. O Brasil alado condio de Reino Unido de Portugal. Verifica se, nesse cenrio, a criao da Academia de Belas Artes que oferece variados cursos no terreno da arte visual. Comea tambm a se desenvolver, com notria qualidade, a nossa atividade musical. Em 1821, pressionado por seus sditos europeus, D. Joo VI retorna a Portugal, recomendando ao filho que se a independncia brasileira se tornasse inevitvel, ele mesmo a proclamasse. Foi o que fez D. Pedro em 1822. Nesse caminho, o Brasil no passava de Colnia a Repblica; como os nossos pases co irmos, passava de Colnia a Monarquia, sem ter se resolvido o grave problema da escravido. S nos tornaramos uma Repblica em 1889, um ano aps a abolio da escravatura, a mais longa de nosso continente. Nesse jeitinho, lento e gradual, marcado pelos pactos e conchavos de nossas elites, se proces saria a emancipao poltica do Brasil. Diferenciando se do processo emancipatrio latino americano, nossa independncia se constituiria como uma soluo conciliatria aos interesses das classes dominan tes, ciosas em manter suas posies e privilgios, revelia dos interesses das classes dominadas. Seria, pois, num contexto caracterizado pela conciliao e por um acentuado condensamento cultural, que a esttica romntica surge no Brasil. Ao se voltarem para esse contexto, Sousndrade (1995, p. 85) e Murilo Mendes (1995, p. 164) transformam em matria potica o jeitinho de nossa transio. Movidos por um impulso crtico irnico, tanto o poeta romntico quanto o poeta modernista problematizam a atipicidade de nossa autonomia. O primeiro se reportando ao conselho de D. Joo VI a D. Pedro; o segundo trazendo a sua poesia o fato pouco conhecido de que D. Pedro proclamara a nossa independncia, acometido de uma forte diarria, como sugere a poesia de Murilo Mendes: 24. LETRAS | 94 Tatuturema (fragmentos) (D. Joo VI, escrevendo a seu filho:) Pedro (credo! que sustos!) Se h de ao reino empalmar Algum aventureiro, O primeiro Sejas... toca a coroar! A pescaria Foi nas margens do Ipiranga, Em meio a uma pescaria. Sentindo se mal, D. Pedro Comera demais cuscuz Desaperta a barriguilha E grita, roxo de raiva: Ou me livro desta clica ou morro logo dua vez! O prncipe se aliviou, Sai no caminho cantando: J me sinto independente. Safa! vi perto a morte! Vamos cair no fadinho Pra celebrar o sucesso. A Tuna de Coimbra surge Com as guitarras afiadas, Mas as mulatas dengosas Do Club Flor do Abacate, Entram, firmes, no maxixe, Abafam o fado com a voz, Levantam, sorrindo, as pernas... E a colnia brasileira Toma a direo da farra. No obstante as diferenas apontadas entre as trajetrias de emancipao do Brasil e dos pa ses da America Latina, de gradao esttica entre as suas produes da nova potica, as manifestaes romnticas latino americanas expressam, contudo, uma gritante similaridade, conforme observa Anto nio Candido, em seu texto Literatura e subdesenvolvimento, que compe a obra, Amrica Latina em sua literatura (1972), coletnea crtica de autores latino americanos: O nosso cu era mais azul, as nossas flores mais viosas, a nossa paisagem mais inspi radora que a de outros lugares, como se l num poema que sob este aspecto vale como paradigma, a Cano do exlio, de Gonalves Dias, que poderia ter sido assina do por qualquer um dos seus contemporneos latino americanos entre o Mxico e a Terra do Fogo. A idia da ptria se vincula estreitamente de natureza e em parte ex traa dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o a traso material e a debilidade das instituies por meio da supervalorizao dos aspec tos regionais, fazendo do exotismo razo de otimismo social. No Santos Veja, do ar gentino Rafael Obligado, j quase no sculo XX, a exaltao nativista se projeta sobre o civismo propriamente dito, e o poeta distingue implicitamente ptria (institucional) e terra (natural), ligando as porm no mesmo movimento de identificao: La conviccin de que es ma / La patria de Echeverra, / La tierra de Santos Vega. Ptria do pensador, terra do cantador. Um dos pressupostos ostensivos ou latentes da literatura latino americana foi esta contaminao, geralmente eufrica, entre a terra e a ptria, con siderando se que a grandeza da segunda seria uma espcie de desdobramento natural da pujana atribuda primeira. As nossas literaturas se nutriram das promessas divi nas da esperana para citar um verso famoso do Romantismo brasileiro (CANDIDO, 1987, p. 141 142 grifos do autor). 25. LETRAS |95 O surgimento do Romantismo Costuma se assinalar, com preciso, o ano de 1836 como a data do surgimento do Romantis mo no Brasil. Nesse ano, editada, em Paris, a Niteri, revista brasiliense dirigida por Gonalves de Magalhes, Torres Homem e Arajo Prto Alegre. Constituindo se, em sua primeira edio, como um aglomerado de textos de temtica variada, essa Revista traz disputando um apertado espao entre artigos de Astronomia, Qumica, Economia um estudo de Gonalves de Magalhes, intitulado de En saio sobre a histria da literatura do Brasil. Este texto se tornaria o marco fundador da poesia romnti ca entre ns. De Paris, Magalhes lanava as sementes do Romantismo no Brasil. Em 1837, ao retornar, Gonalves de Magalhes recepcionado como o fundador da literatura brasileira, propriamente dita. No obstante as diferenas materiais e ideolgicas que separam o Brasil da Europa l, a mo dernidade, a mquina, o operrio, a explorao do trabalho; c, o latifndio, a escravido, a ideologia do favor o iderio esttico do Romantismo encontraria correspondncia em nosso contexto de autono mia poltica. ramos um povo em busca de nao e de sua correspondente expresso. Os artistas brasi leiros aproveitavam se da chancela romntica. A acolhida foi geral. Nossos escritores dialogaram com todas as correntes romnticas e lograram realizar obras de valor notvel, comparveis em elaboraes mentais s europeias, como aprecia em geral a crtica brasileira, como ilustra Bosi: Assim, apesar das diferenas de situao material, pode se dizer que se formaram em nossos homens de letras configuraes mentais paralelas s respostas que a intelign cia europia dava a seus conflitos ideolgicos. Os exemplos mais persuasivos vm dos melhores escritores. O romance colonial de Alencar e a poesia indianista de Gonalves Dias nascem da aspirao de fundar em um passado mtico a nobreza recente do pas, assim como mutatis mutandis as fices de W. Scott e de Chateaubriand rastrea vam na Idade Mdia feudal e cavaleiresca os brases contrastados por uma burguesia em ascenso. De resto, Alencar, ainda fazendo romance urbano, contrapunha a mo ral do homem antigo grosseria dos novos ricos; e fazendo romance regionalista, a co ragem do sertanejo s vilezas do citadino. A correspondncia faz se ntima na poesia dos estudantes bomios, que se entregam ao spleen de Byron e ao mal du sicle de Musset, vivendo na provncia uma existncia doentia e artificial, desgarrada de qual quer projeto histrico e perdida no prprio narcisismo: lvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela. Como os seus dolos europeus, os nossos romnticos exibem fundos traos de defesa e evaso, que os leva a posturas regressivas: no plano da rela o com o mundo (o retorno me natureza, refgio no passado, reinveno do bom selvagem, exotismo) e no das relaes com o prprio eu (abandono solido, ao so nho, ao devaneio, s demasias da imaginao e dos sentidos) [...] Enfim, o paralelo al cana a ltima fase do movimento, j na segunda metade do sculo, quando vo ces sando as nostalgias aristocrticas, j sem funo na dinmica social, e se adensam em torno do mito do progresso os ideais das classes mdias avanadas. Ser o Romantis mo pblico e oratrio de Hugo, de Carducci, de Michelet, e do nosso Antnio Castro Alves (BOSI, 1980, p.101 grifos do autor). 26. LETRAS | 96 A carncia da nao Na verdade, os anos que se seguem a 1822 se caracterizam por uma notvel atmosfera de o timismo e de entusiasmo, em face de nossa recente autonomia poltica. Nesse contexto, marcado pela euforia da dissoluo dos laos que nos prendiam a Portugal, surge o Romantismo. Essa nova sensibili dade potica nos caa, como em toda a Amrica Latina, como uma luva, posto que s voltas com a defi nio da nossa prpria nacionalidade, misso delegada pela Independncia, autonomia, esta, que se desejava estender ao campo da expresso do artstico. Nessa pretenso, o Romantismo se afigurava como o caminho favorvel. Esttica particularis ta, seu amplo mosaico de concepes e de modelos, em contramo ao Classicismo, facultava a liberda de de expresso aos pases recm sados da tutela da colonizao, enquanto propiciava o aparecimento das escolas nacionais, num processo de democratizao da literatura, como anota Antonio Candido, ao acentuar a enorme importncia do Romantismo nas configuraes de nossas identidades culturais: Um elemento importante nos anos de 1820 e 1830 foi o desejo de autonomia literria, tornado mais vivo depois da Independncia. Ento, o Romantismo apareceu aos pou cos como caminho favorvel expresso prpria da nao recm fundada, pois forne cia concepes e modelos que permitiam afirmar o particularismo e, portanto, a iden tidade, em oposio Metrpole, identificada com a tradio clssica [...] O desejo de autonomia encontrou, como vimos, apoio slido na esttica particularista aplicada aos pases do Novo Mundo. Ela foi importante na medida em que propunha o caractersti co em lugar do genrico, levando a valorizar o pitoresco, na paisagem e nas popula es. Levava tambm a privilegiar a singularidade do sentimento individual, que deve ria procurar expresses nicas, e no se acomodar no discurso tpico dos clssicos [...] Sob este aspecto, as diferentes formas de particularizao foram importantes como fa tor de democratizao da literatura, inclusive atenuando um pouco o abismo que an tes separava a literatura erudita da literatura popular [...] Sendo mais acessvel, a lite ratura do tempo do Romantismo pde popularizar se mais e dar voz aos que no ti nham meios de exprimir se em nvel erudito. Por isso ela contribuiu para a idia que o brasileiro ia formando de si mesmo, ou seja, para os sentimentos de identidade, por meios de mecanismos que ampliaram e tornaram mais comunicativa a mensagem. Ao mesmo tempo, implantou a noo ideologicamente importante que a nossa literatura prpria. (CANDIDO, 2002, p. 20; 88 95) No Brasil, a viso europeia da ptria/lar, vivida em estado de perda ou de exlio, se tor naria em experincia fundamental de nossa literatura, frequentando lhes todas as tendncias e modali dades, ao ponto de Mrio de Andrade al la ao status ficcional de entidade nacional dos brasileiros, segundo observa Leyla Perrone Moiss (2007, p. 17). Na verdade, essa entidade, criada e propagada pela esttica romntica, se espalharia, como temtica de recorrncia, por todos os nossos discursos culturais estruturados, no mais das vezes, pelas mais dspares ideologias. A fora literria do nacionalismo seduziria at mesmo os autores arredios a 27. LETRAS |97 essa temtica, como lvares de Azevedo no poema Na minha terra, Sousndrade em seu Harpas selvagens, fornecendo, ainda, matria potica para a poesia abolicionista de Castro Alves, como se verifica em sua Cano do africano. Tal literatura, qual lngua? Os sculos iniciais da colonizao no Brasil se caracterizaram, linguisticamente, pelo predom nio das lnguas gerais, ou seja, do tupi misturado ao portugus, graas ao trabalho de desapropriao do cdigo lingustico indgena, efetuado pelos jesutas. Na segunda metade do sculo XVIII, esse quadro se modifica. Portugal, sob a tutela do Marqus de Pombal, alteraria a sua poltica lingustica. As lnguas gerais so banidas de nosso territrio e os seus usos criminalizados. No obstante esse golpe fatal, as expresses indgenas e populares h muito internalizadas pelo uso persistem em permanecer mesmo no discurso culto das recm fundadas Academias literrias de timbre neoclssico. No Arcadismo, tanto a paisagem, quanto a temtica e as expresses lingusticas locais enformam as suas obras. Essas presenas, contudo, se afiguraram como subitens do Neoclassicis mo, sem nenhuma pretenso reformista, programtica ou formulao conscientemente planejada. Em face dessa cor local, muitos crticos tm avaliado o Arcadismo no Brasil como o nosso proto romantismo, como exemplifica Slvio Romero: Antes de iniciar se francamente a reao romntica que, em geral com pouca justia, se faz da tar de 1836 com a publicao dos Suspiros Poticos, j havia muitos sinais de que a revoluo entre ns comeada pelos mineiros, que podemos chamar os proto romnticos, j se tinha consumado numa srie de poetas que precederam a Gonalves de Magalhes, ainda que muitas das produes daqueles s viessem luz em livros muito mais tarde. A estes poetas que devemos assinalar um modesto lugar na fase de transio para o romantismo (ROMERO, 2001, p. 192 grifos do autor). Apesar do timbre brasileiro de nossas produes rcades, com o Romantismo que a questo da lngua no Brasil cresce em importncia e urgncia. O acento brasileiro, antes reconhecido pelo uso oral passa a ser usado, estrategicamente, como a lngua literria nacional. Assim, os romnticos brasilei ros, na esteira de nossa tradio lingustica, elegem a lngua oral de origem indgena e popular como seu snscrito, por direito e legitimidade. Desse arranjo, a lngua oral e popular no Brasil alada con dio de lngua literria. Essa perspectiva, de quebra de purismo lingstico lusitano em nossa arte escri ta, alcanaria uma enorme visibilidade com o Modernismo. Do Modernismo aos dias atuais, essa tem tica continua a espicaar nossa inteligncia, a inspirar nossa literatura, mobilizando linguistas e poetas, estes ltimos aqui representados por Jos Paulo Paes, autor do Lisboa: aventuras, poema dilogo entre Paulo Paes (1988) e Gonalves Dias: 28. LETRAS | 98 LISBOA: AVENTURAS tomei um expresso cheguei de foguete subi num bonde desci de um eltrico pedi cafezinho serviram me uma bica quis comprar meias s vendiam pegas fui dar descarga disparei um autoclisma Gritei cara! responderam me p! positivamente as aves que aqui gorjeiam no gorjeiam como l A traduo na lngua da nao Em Posfcio primeira edio de Iracema, Jos de Alencar, ao criticar duramente a linguagem pica de Gonalves de Magalhes, chama a ateno para o grande desafio do gnio brasileiro: traduzir, para a compreenso nacional, as idias fora e a viso de mundo da inteligncia europeia, como se v na epgrafe que abre essa unidade: Sem dvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua lngua as idias [...] mas nesta traduo est a grande dificuldade (ALENCAR, 1994, p. 98). Atravs desse comentrio, Alencar aponta para a grande questo que circunda a criao liter ria, e das artes em geral, na Amrica Latina, e mais particularmente no Brasil: o da dependncia cultural s Metrpoles europeias, herana de nossa fatalidade histrica. Desse desconforto latino americano se origina a busca incessante de nossa natureza cultural, persistente at os nossos dias, como explicita o crtico brasileiro, Roberto Schwarz e Rubn Bareiro Saguier, escritor paraguaio: Brasileiros e latino americanos fazemos constantemente a experincia do carter pos tio, inautntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa experincia tem sido um dado formador de nossa reflexo crtica desde os tempos da Independncia. Ela pode 29. LETRAS |99 ser e foi interpretada de muitas maneiras, por romnticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas etc., o que faz supor que corresponda a um problema durvel e de fundo. Antes de arriscar uma explicao a mais, digamos portanto que o mencionado mal estar um fato (SCHWARZ, 1987, p.21 grifos do au tor). Dada a diversidade de componentes, um problema latino americano essencial foi, e continua sendo, encontrar sua identidade cultural, situao que a literatura reflete, ao procurar apropriar se de uma linguagem e concretizar um contedo, num idioma em certa medida emprestado, e dentro de um contexto poltico no unificado. A procura se intensifica, e o conflito torna se evidente, em certos momentos crticos de tomada de conscincia: a emancipao romntica, o modernismo, o romance social e a litera tura de nossos dias (BAREIRO SAGUIER, 1979, p.3). Para essa reflexo, se volta Antonio Candido, em seu estudo sobre a relao entre as nossas manifestaes romnticas e as matrizes europias. Em sua anlise, o crtico examina com ateno as estratgias de acomodao das letras europias em nosso corpus romntico, identificando trs meca nismos de fatura textual, aos quais denominar de transposio, de substituio e de inveno. Segundo Candido, os processos de transposio e substituio definem a nossa relativa diferena, enquanto pro picia a conscincia prpria. Neles, conforme ressalta o crtico, reside a nossa originalidade, segundo lemos abaixo: A transposio consiste em passar para o contexto brasileiro as expresses, concep es, lendas, imagens, situaes ficcionais, estilos das literaturas europias, numa a propriao (perfeitamente legitima) que se integra e d ao leitor a impresso de algu ma coisa que muito nossa, e ao mesmo tempo faz sentir a presena das razes cultu rais. No poemeto Juvenlia, de Fagundes Varela, a atmosfera encantadora de magia obtida por meio de um arsenal que exprime outros contextos: prola de Ofir, fada, sifilo. Mas como isso expresso numa totalidade sentimental que nos habituamos a considerar como prpria, os elementos transpostos funcionam a modo de ingredientes de um universo familiar, o que no surpreende se considerarmos que, apesar das ale gaes rituais do nacionalismo literrio mais extremado, a nossa cultura dominante a mesma que gerou aquelas imagens e entidades. Por isso, em geraes anteriores, Silva Alvarenga transpusera esquemas estrficos e rtmicos tomados a Paolo Rolli e Metas tasio para elaborar os seus melodiosos ronds, que sempre pareceram corresponder ao que h de mais autentico na sensibilidade brasileira. Mas h casos em que a trans posio parece inassimilvel, como quando Bernardo Guimares coloca flocos de ne ves nas rvores de certas paisagens de seus versos, sabendo se que a sua experincia se refere natureza tropical. No entanto, eles acabam funcionando, porque evocam a paisagem dos pases de onde nos veios a civilizao e que, portanto, a imaginao dos brasileiros incorpora como parte de um patrimnio que afinal de contas est nas suas razes. 30. LETRAS | 100 A substituio um processo mais profundo do ponto de vista da linguagem e da in terpenetrao cultural. Nele, o escritor brasileiro pe de lado a terminologia, as enti dades, as situaes da literatura europia e os substitui por outros, claramente locais, a fim de que desempenhem o mesmo papel. Por exemplo: substituem o cavaleiro pelo ndio, o fidalgo pelo fazendeiro, o torneio pela vaquejada, como se pode ver em O ser tanejo, de Jos de Alencar. Assim, na introduo ao poema Os timbiras o gosto pelas runas substituindo pela descrio da aljava rota que pende dos ombros do vencido e vai deixando cair as flechas inteis, simbolizando o fim da sua sociedade. No mesmo sentido, o poeta declara que no quer mais se inspirar na fonte Castlia nem subir ao Parnaso, mas, encostado num tronco de palmeira, tenciona traduzir a melodia selva gem dos ventos, que so a voz de uma outra realidade. Ao fazer isso, no deseja como prmio a coroa clssica de louros, mas outra, feita de flores brasileiras, que j mencio namos antes neste escrito. Em tal caso, a situao pica e os moldes de composio permanecem ajustados a prtica das literaturas matrizes, mas os temas e as imagens foram substitudos, de maneira a produzir uma espcie de duplicao, que correspon de ao novo mundo natural e cultural. Podemos falar em inveno quando o escritor parte do patrimnio europeu para criar variantes originais, como ocorrer num poema de lvares de Azevedo, Meu sonho, no qual ele fecunda o modelo da balada macabra de tipo alemo (como a Lenora, de Brger), deformando o a fim de obter algo diferente. A baldada se caracteriza, pelas suas prprias origens populares, por ser uma narrativa de personagens exterior ao po eta; mas a de lvares de Azevedo descreve o drama interior, elaborando imagens que projetam as tenses do ser, de modo a resultar um tipo novo de composio potica. Essa transformao de um gnero narrativo em gnero intimista pode ser considerado inveno, que todavia no apaga o lao orgnico em relao s literaturas da Europa, das quais (nunca demais repetir quando se fala do Romantismo com a sua forte componente nativista) a brasileira um ramo Foi, portanto, por meio de emprstimos ininterruptos que nos formamos, definimos a nossa diferena relativa e conquistamos conscincia prpria. Os mecanismos de adap tao, as maneiras pelas quais as influncias forma definidas e incorporadas que constituem a originalidade, que no caso a maneira de incluir em contexto novo os elementos que vm de outro (CANDIDO, 2002, p.96 101 grifos do autor). No tocante viso de originalidade, o texto de Antonio Candido se aproxima das reflexes do ensasta Silviano Santiago. Estudioso da questo da dependncia cultural, Silviano Santiago considera as tradues ou desvios dos textos latino americanos, como forma essencial de assinalar a sua presena e particularidade no acervo literrio ocidental e como contribuio da Amrica Latina cultura do Ociden te, como exprime a seguir: A maior contribuio da Amrica Latina para a cultura ocidental vem da destruio sis temtica dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contor no exato do seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, medida que o trabalho de contaminao dos latino americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A Amrica Latina institui seu lugar no mapa da civilizao o cidental graas ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura 31. LETRAS |101 os elementos feitos e imutveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo [...] A passividade reduziria seu papel efetivo ao desaparecimento por analogia. Guardando seu lugar na segunda fila, no entanto preciso que assinale sua diferena, marque sua presena, uma presena muitas vezes de vanguarda. O silncio seria a resposta dese jada pelo imperialismo cultural (SANTIAGO, 1978, p. 18 19 grifos do autor). Longe da passividade, Jos de Alencar expressa um deliberado propsito de transgresso ao modelo europeu, acalentando o desejo de uma criao original, nunca sonhada pela velha literatura de um velho mundo (ALENCAR, 1994, p. 158). Esse projeto de afirmao de nossa particularidade expressi va, de nosso gnio, porquanto, passa, necessariamente, pelo rduo trabalho de traduo ou rearranjo dos textos europeus, como sinaliza Alencar, ao descrever o trajeto que precedeu feitura de As asas de um anjo (1858), sua primeira obra sobre o mundo da cortes. Num exerccio de leitura, comparao e remodelao do tema teatral francs, Alencar reescreve o destino da mulher decada, afastando se, assim, da mera transposio, desbotada e macilenta (ALENCAR, 1994, p.152), da temtica europia. Desse torcer o molde europeu, para dar lhe outra configurao, deriva a diferena entre Carolina, per sonagem cortes de Alencar, e suas predecessoras europeias, como ressalta o prprio autor: Assistindo A Dama das Camlias, ou As Mulheres de Mrmore, cada um se figura que Margarida Gautier e Marco so apenas duas moas um tanto loureira [...] assistindo a As asas de um anjo, o espetculo encontra a realidade diante de seus olhos [...] Victor Hugo poetizou a perdio na sua Marion Delorme; Alexandre Dumas Filho enobreceu a nA Dama das Camlias; eu moralizei a nAs Asas de um Anjo; o amor que poesia de Marion, e a regenerao de Margarida, o martrio de Carolina; eis a nica diferena, no falando do que diz respeito arte, que existe entre aqueles trs tipos (ALENCAR, 1977, p.257) Nessas tradues, de cunho temtico e formal, os romnticos brasileiros fundam a literatura nacional, instituem nosso lugar no acervo literrio ocidental, criando assim um pequeno mundo, unica mente nosso, em meio aos mundos europeus, como deseja e realiza Jos de Alencar, (1951, p. 74, v. 3). Partindo dessa compreenso, procederemos a uma leitura dos textos sugeridos, levando em considera o as anlises e os comentrios crticos, discutidos ao longo deste Curso. 32. LETRAS | 102 UNIDADE III AUTORES E OBRAS GONALVES DE MAGALHES Domingos Jos Gonalves de Magalhes, visconde do Araguaia (1811 1882) Obras: Suspiros poticos e saudades (1836); Antnio Jos ou O poeta e a Inquisio (1839); A Confederao dos Tamoios, poema pico (1857); Os Mistrios (1857); Fatos do Esprito Humano, tratado filosfico (1858); Urnia, poesias (1862); Cnticos fnebres, poesias (1864); A alma e o crebro, ensaios (1876); Comentrios e pensamentos (1880). Comentrio crtico Domingos Jos Gonalves de Magalhes publicou, retomando Ferdinand Denis, o Ensaio sobre a histria da litera tura brasileira, no qual traava o programa renovador, completado pelo do prefcio do livro que publicou no mesmo ano, Suspiros poticos e saudades, considerado pelos contemporneos o ponto de partida da transforma o literria e iniciador da literatura propriamente brasileira. Magalhes foi um caso interessante de renovador sem fora renovadora. O seu medocre livro de estria, Poesias (1832), rotineiramente neoclssico, mas tem o toque nacionalista do tempo: patriotismo aceso e celebrao da liberdade poltica, banhada na embriagus da cidadania recente (CANDIDO, 2002, p. 26). Saudao ptria vista do Rio de Janeiro no meu regresso da Europa Em 14 de maio de 1837 Eis o ptreo gigante majestoso, Sobre as cerleas ondas ressupino, Guardando a entrada do meu ptrio Rio! Ei-lo co p assinalando a barra Do golfo ingente, que do mundo as naves Todas pode conter no mbito imenso, Sem par na Natureza!... Ei-lo!... do sol nascente os primos raios J lhe douram a nobre, altiva fronte; E ele como que acorda do seu sono, O cobertor de nvoa sacudindo! Terras da minha ptria, eu vos sado, Depois de longa ausncia! Eu te sado, oh sol da minha infncia! Inda brilhar te vejo nestes climas, Da Providncia esmero, Onde se apraz a amiga liberdade To grata aos coraes americanos! Minha terra saudosa, Terra de minha me, como s to bela. Se em ti no venho achar da Europa o fausto, Pelo suor dos sculos regado, Tambm no acharei suas misrias, Maiores que o seu brilho. Verdes montanhas que cercais meu bero, Como sublime sois, como sois grande! Por vs so estas lgrimas de jbilo Que em xtase minha alma aos olhos manda, Ao respirar teus ares! Por vs agora o corao palpita Com desusado impulso Do inefvel prazer em que me inundo. Ah nunca, nunca apaixonado amante Com mais transporte viu por entre a selva Brilhar o rosto do querido objeto, Que ele em seus braos apertar deseja. Aqui meu corpo est, ali minha alma! Ah se eu asas tivesse, Nem mais umhora no baixel ficara! Disparando os mares Precipitado, Rompendo os ares Qual veloz guia A ti voara Oh ptria cara! E apavonado, Todo garboso Soltando iria Nova harmonia, Que o cu formoso Grato escutara. Mas nesse adejo, Onde o desejo Me transportara? Onde?... Eu no sinto Pressgio triste. Meu pai existe, E a me querida Tambm respira; E o mesmo instinto Me conduzira Ao tugrio de meus pais, A quem envio meus ais. 33. LETRAS |103 GONALVES DIAS Antnio Gonalves Dias (1823 1864) Obras: Meditao (1845 6); Primeiros cantos (1846); Segundos Cantos e Sextilhas de Frei Anto (1848); ltimos Cantos (1851); O Brasil e Oceania (1852); Cantos (1857); Os timbiras (1857); Dicionrio da Lngua Tupi chamada lngua geral dos indgenas do Brasil (1858). Comentrio crtico Gonalves Dias se destaca no medocre panorama da primeira fase romntica pelas qualidades superiores de inspi rao e conscincia crtica. Contribui ao lado de Jos de Alencar para dar literatura, no Brasil, uma categoria perdida desde os rcades maiores e, ao modo de Cludio Manuel, fornece aos sucessores o molde, o padro a que se referem como inspirao e exemplo [...] A Cano do Exlio (banalizada a ponto de perder a magia que no entanto a percorre de ponta a ponta) representa bem o seu ideal literrio; beleza na simplicidade, fuga ao adjeti vo, procura da expresso de tal maneira justa que outra seria difcil [...] A maioria dos poetas e mesmos jornalistas considerava Gonalves Dias, desde meados do sculo, o verdadeiro criador da literatura nacional. Em 1849, lva res de Azevedo via nele a fonte de inspirao para os novos e, por meio do livro renovador, Os Primeiros Cantos, regenerador da rica poesia nacional de Baslio da Gama e Duro (CANDIDO, 1993, p. 71). Cano do Exlio Kennst du das Land, wo die Citronen blhen, Im dunkeln Laub die Gold-Orangen, glhen? Kennst du es wohl? Dahin, dahin! Mcht ich ... zie- nh. Goethe Conheces o pas onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ou- ro... Conhec-lo? Para l, para l quisera eu ir! Traduo de Manuel Bandeira Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabi; As aves, que aqui gorjeiam, No gorjeiam como l. Nosso cu tem mais estrelas, Nossas vrzeas tm mais flores, Nossos bosques tm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, noite, Mais prazer encontro eu l; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabi. Minha terra tem primores, Que tais no encontro eu c; Em cismar sozinho noite Mais prazer encontro eu l; Minha terra tem palmeiras, No permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para l; Sem que desfrute os primores Que no encontro por c; Sem qinda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabi. 34. LETRAS | 104 LVARES DE AZEVEDO Manuel Antnio lvares de Azevedo (1831 1852) Obras: Lira dos Vinte Anos (1853); Noite na Taverna (1855); O Conde Lopo (1866). Comentrio crtico lvares de Azevedo foi um dos poetas mais lidos e queridos do Brasil, enquanto estiveram em voga as cadncias melodiosas, o tom sentimental ou satnico e o entrechoque abrupto das paixes, peculiares ao Romantismo. Boa parte de suas poesias se refere noite, onde decorrem todas as suas narrativas e aes dramticas. tambm a hora do sonho e do pesadelo, como em Macrio, Meu sonho e na viso macabra do Conde Lopo galopando entre esqueletos, a caminho de um ritual pavoroso (CANDIDO, 2001, p. 9 13). Meu Sonho EU Cavaleiro das armas escuras, Onde vais pelas trevas impuras Com a espada sanguenta na mo? Por que brilham teus olhos ardentes E gemidos nos lbios frementes Vertem fogo do teu corao? Cavaleiro, quem s? O remorso? Do corcel te debruas no dorso... E galopas do vale atravs... Oh! da estrada acordando as poeiras No escutas gritar as caveiras E morder-te o fantasma nos ps? Onde vais pelas trevas impuras, Cavaleiro das armas escuras, Macilento qual morto na tumba?... Tu escutas... Na longa montanha Um tropel teu galope acompanha? E um clamor de vingana retumba? Cavaleiro, quem s? que mistrio... Quem te fora da morte no imprio Pela noite assombrada a vagar? O FANTASMA Sou o sonho de tua esperana, Tua febre que nunca descansa, O delrio que te h de matar!... 35. JUNQUEIRA FREIRE Lus Jos de Junqueira Freire (1832 1855) Obras: Inspiraes do Claustro (1855); Poesias Completas (1944 edies pstumas). Comentrio crtico Em Junqueira Freire precisamente esse convvio tenso entre eros e thanatos que sela a personalidade do religioso artista malogrado. Contrrio a si mesmo, cantando por aspiraes opostas, aparece nos o homem atrs do poeta, disse Machado de Assis; e nessas palavras ia um elogio, mas tambm uma restrio [...] cujas Inspiraes do Cla podemos ler como um documento pungente de um moo enfermio, dividido entre a sensualidade, os terrores da c e os ideais religiosos, mas no como uma obra de poesia (BOSI, 1980, p. 124 125 grifos do autor). Martrio Beijar-te a fronte linda: Beijar-te o aspecto altivo: Beijar-te a tez morena: Beijar-te o rir lascivo: Beijar o ar que aspiras: Beijar o p que pisas: Beijar a voz que soltas: Beijar a luz que visas: Sentir teus modos frios: Sentir tua apatia: Sentir at repdio: Sentir essa ironia: Sentir que me resguardas: Sentir que me arreceias: Sentir que me repugnas: Sentir que at me odeias: Eis a descrena e a crena, Eis o absinto e a flor, Eis o amor e o dio, Eis o prazer e a dor! Eis o estertor de morte, Eis o martrio eterno, Eis o ranger dos dentes, Eis o penar do inferno! CASSIMIRO DE ABREU Casimiro Jos Marques de Abreu (1839 1860) Obras: Cames e o Ja (1856); As Primaveras (1859); Obras Completas (1940); Poesias Completas (1948). Comentrio crtico Ainda na linha de compreenso do pblico mdio que se deve apreciar a popularidade de Casimiro de Abreu, que operou uma descida de tom em relao poesia de Gonalves Dias, lvares de Azevedo e Junqueira Freire. Na verdade pouco deferiria destes se o critrio de comparao se esgotasse na escolha dos temas, valorizados em si mesmos: a saudade da infncia, o amor natureza, os fogachos de adolescente, a religio sentimental, o patrio tismo difuso. Mas o que singulariza o poeta o modo de compor, que remonta, em ultima anlise, ao seu modo de conhecer a realidade na linguagem e pela linguagem. Casimiro reduzia a natureza e o prximo a um ngulo visual menor: o do seu temperamento sensual e menineiro. Compare se a Cano do exlio que abre as Primaveras com a pea homnima dos Primeiros Cantos de Gonalves Dias: nesta o tom sbrio at ausncia absoluta de adjetivos; naquela, apesar da imitao dos dados naturais (palmeiras, sabi, cu...), o tom lnguido e os motivos da ptria distante se diluem ao embalo das rimas seguidas e dos pleonasmos (BOSI, 1980, p.127 grifos do autor). 36. LETRAS | 106 MINHA TERRA Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabi. G. Dias Todos cantam sua terra, Tambm vou cantar a minha; Nas dbeis cordas da Lira Hei de faz-la rainha. Hei de dar-lhe a realeza Nesse trono de beleza Em que a mo da natureza Esmerou-se em quanto tinha. Correi pras bandas do sul; Debaixo dum cu de anil Encontrareis o gigante Santa Cruz, hoje Brasil: uma terra de amores Alcatifada de flores Onde a brisa fala amores Nas belas tardes de abril. Tem tantas belezas, tantas, A minha terra natal, Que nem as sonha um poeta E nem as canta um mortal! uma terra encantada Mimoso jardim de fada Do mundo todo invejada, Que o mundo no tem igual, No, no tem, que Deus fadou-a Dentre todas a primeira: Deu-lhe esses campos bordados, Deu-lhe os leques da palmeira, E a borboleta que adeja Sobre as flores que ela beija, Quando o vento rumoreja Na folhagem da mangueira. um pas majestoso Essa terra de Tup, Desdo Amazonas ao Prata, Do Rio Grande ao Par! Tem serranias gigantes E tem bosques verdejantes Que repetem incessantes Os cantos do sabi. Ao lado da cachoeira, Que se despenha fremente, Dos galhos da sapucaia Nas horas do sol ardente, Sobre um solo daucenas, Suspensa a rede de penas Ali nas tardes amenas Se embala o ndio indolente. Foi ali que noutro tempo sombra do cajazeiro Soltava seus doces carmes O Petrarca brasileiro; E a bela que o escutava Um sorriso deslizava Para o bardo que pulsava Seu alade fagueiro. Quando Dirceu e Marlia Em ternssimos enleios Se beijavam com ternura Em celestes devaneios Da selva o vate inspirado, O sabi namorado, Na laranjeira pousado Soltava ternos gorjeios. Foi ali, foi no Ipiranga, Que com toda a majestade Rompeu de lbios augustos O brado da liberdade; Aquela voz soberana Voou na plaga indiana Desde o palcio choupana, Desde a floresta cidade! Um povo ergueu-se cantando Mancebos e ancios E, filhos da mesma terra, Alegres deram-se as mos; Foi belo ver esse povo Em suas glrias to novo, Bradando cheio de fogo: Portugal! somos irmos! Quando nasci, esse brado J no soava na serra, Nem os ecos da montanha Ao longe diziam guerra! Mas no sei o que sentia Quando, a ss, eu repetia Cheio de nobre ousadia O nome da minha terra! 37. SOUSNDRADE Joaquim de Sousa Andrade (1833 1902). Obras: Harpas Selvagens (1857); O Guesa (1871). Comentrio crtico A poesia brasileira, em pelo menos trs momentos, representa os centros financeiros como o local infernal e a fonte de seus males, inclusive os da poesia. A mais contundente e direta o canto X, Inferno de Wall Estreet, de 1877/1888, do grande poema O Guesa, de Sousndrade, poeta maranhense [...] O que torna o canto mais surpre endente a inteno crtico satrico, ou seja, o modo pelo qual julga a cidade de Nova York, um centro prspero equivalente s mais modernas capitais europias. O poeta, em vez de se embasbacar com as maravilhas da tcnica e da vida moderna, o que seria o mais provvel como acontece com D. Pedro II e sua comitiva, que, na poca, visita a Exposio do Centenrio da Independncia dos Estados Unidos , ele faz uma crtica aguda da vida americana e que vai bem alm da moralista. Sousndrade aprecia os movimentos de subida e decida das Bolsas e como, com eles, as riquezas se formam e se desfazem. Ao mesmo tempo, observa como os valores morais e espirituais acom panham esses movimentos, mas somente em trajeto de descendimento e