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REVISTA MEMENTO V. 05, N. 2 (julho-dezembro de 2014)
REVISTA DO MESTRADO EM LETRAS LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA – UNINCOR ISSN 2317-6911
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LINGUAGEM, DISCURSO E PODER NA CONSTRUÇÃO DA AMÉRICA
Márcio Luiz Oliveira PINHEIRO1
Resumo: A capacidade de revisitar o passado para que se possa construir um futuro diverso das experiências pretéritas é o que deveria nortear o homem enquanto ser histórico. Nesta perspectiva, buscamos percorrer a linha entre o lembrar-se e o esquecer-se e as implicações que eles têm em nossa cultura. Deste modo, consideramos os aspectos jurídicos e culturais por meio da análise tanto de textos legais que conferem proteção às manifestações culturais quanto de obras literárias que se apropriam de tais manifestações para a reelaboração da visão que o ente social tem de si mesmo. Palavras- chave: Literatura. Discurso. Poder. Cultura.
Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura, sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso sofremos qualquer magoa? (BARRETO, 1997, p. 255).
Introdução
A mnemotécnica é um método que visa a ativação da memória para lembrar-se de fatos
passados, para isto ela impregna uma chocante imagem na mente no intuito de criar uma
sensação tão forte a ponto de ativar o trauma sofrido, criando, numa comparação com a
linguagem de programação, um ponto de recuperação do sistema. Deste modo, recupera-se o
sistema com a criação de uma imagem traumática que nos remete a lembrança do ocorrido e,
desta forma, ele – o trauma – passa a integrar o sistema não mais como um fator de queda ou
de bloqueio; mas sim, como um fator preponderante de depuração para fazer com que o
sistema funcione mais e melhor. A mnemotécnica, portanto, mobiliza o fator emocional da
plateia. 1 Especialista em Tradução Português-Espanhol pela Universidade Gama Filho – UGF, Mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP e Professor de Língua Espanhola do Instituto Federal do Amazonas – IFAM, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail: [email protected]
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No presente século, percebe-se a memória como uma continuidade conflitiva; mas, no
passado, ela era considerada como uma forma de melhorar a capacidade de se lembrar das
coisas. É bastante sabido que a memória tem sofrido o assédio daqueles que tentam
“corrompê-la”, como por exemplo, a tendência de alguns líderes políticos que negam a
existência do holocausto apesar das inúmeras provas históricas. Se, por um lado, a
mnemotécnica visa o não esquecimento; por outro lado, está a anistia que visa, justamente, o
esquecimento, uma vez que a palavra anistia deriva de amnésia.
O binômio lembrança versus esquecimento norteia as relações interpessoais e sociais no
mundo ocidental. Podemos exemplificá-la com quatro textos: o primeiro se refere a uma
passagem do livro do Profeta Miqueias, o segundo se refere a um trecho da Lei da anistia, o
terceiro diz respeito a uma sentença prolatada por uma câmara cível e o quarto se refere ao
artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
O texto mencionado acima se refere ao perdão Divino na cultura judaico-cristã seja
Católico-Romana, Protestante ou Ortodoxa. Ele está no livro do Profeta Miqueias capítulo
sete e versículo dezenove. “Tornará a apiedar-se de nós; sujeitará as nossas iniquidades, e tu
lançarás todos os seus pecados nas profundezas do mar” (MIQUEIAS, 1995, p. 633).
O segundo texto se refere ao perdão concedido pelo Estado, no caso em tela pelo Estado
brasileiro, para os “crimes” políticos ocorridos nas circunstâncias descritas na lei da anistia de
1979: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (BRASIL, 1979, p. 1).
O terceiro texto se refere à tendência que há nos tribunais brasileiros de julgar por uma
“norma” jurisprudencial de conceder direito ao esquecimento como se pode depreender da
apelação cível Nº 2003.70.00.058151-6/PR:
[...] 2. Embora se possa cogitar em tese sobre um direito ao esquecimento, impeditivo de que longínquas máculas do passado possam ser resolvidas e trazidas a público, tal segredo da vida pregressa relaciona-se aos aspectos da vida íntima das pessoas, não podendo ser estendido ao servidor público, ou pessoas exercentes ou candidatos à vida pública, pois mais do que meros
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particulares, devem explicações ao público sobre a sua vida funcional pretérita ou presente. Note-se que a matriz constitucional de onde se pode extrair o direito ao esquecimento radica no artigo 5º, inciso X, e inicia dizendo que são invioláveis a intimidade, a vida privada, etc., claramente afastando situação de vida funcional (BRASIL, 2009, p. 1).
Já o quarto texto diz respeito à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CRFB/88), referindo-se aos atos relativos da vida privada das pessoas com base em seu
artigo primeiro inciso terceiro da CRFB/88: “A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;” E no
artigo quinto inciso décimo da CRFB/88: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).
Desta forma, nota-se que o embate entre esquecer e recordar forma parte de um esforço
para a construção da memória histórica de uma sociedade. Assim, o conhecimento do passado
tem por função a formação de um elo que nos identifica com os fatos pretéritos, vinculando-
nos a uma trama social comum a todos. Tal conhecimento como parte de um conteúdo maior;
a saber, o conteúdo cultural deve seguir os parâmetros recomendados pela Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, cuja premissa maior no âmbito internacional está
preconizada no artigo quarto parágrafo único, objetivando a busca da integração econômica,
política, social e cultural dos povos da América Latina para a formação de uma comunidade
latino-americana de nações. Tal princípio sinaliza que o conhecimento da história como
integrante da cultura deve abranger o conhecimento do passado da América Latina –
hispânica e lusófona – como elementos formadores da latinidade no continente Americano.
Portanto, é a educação um direito de todos e dever do Estado e da Família conforme preconiza
a Constituição brasileira de 1988 em seu artigo duzentos e cinco (BRASIL, 1988).
Não basta que o direito ao conhecimento e a educação estejam assegurados por lei; mas
sim, deve-se considerar como tais direitos serão exercidos e o que se fará com a produção de
tais conhecimentos, para que se mobilize a força plástica de nossa civilização no intuito de se
promoverem as mudanças necessárias à manutenção de nossa sociedade, e das instituições,
através da reinterpretação de nossos mitos fundacionais e dos fatos pretéritos.
O conhecimento de tais valores culturais e históricos e a seleção de datas comemorativas
por parte do Estado são tão importantes para a coesão da tessitura social que a Constituição da
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República Federativa do Brasil de 1988, em seus artigos duzentos e dez, duzentos e quinze
caput e duzentos e quinze parágrafos primeiro e segundo, preconiza que os conteúdos
mínimos do ensino fundamental assegurarão uma formação básica comum a todos, o respeito
aos valores culturais e artísticos nacionais, além de assegurar também a valorização e a
difusão das manifestações culturais e a proteção das manifestações culturais populares,
indígenas e afro-brasileiras, além de dispor datas comemorativas para os diferentes segmentos
étnicos da nação (BRASIL, 1988).
Seguindo a análise do texto constitucional sobre cultura e educação, abordaremos a
seguir algumas constituições de países hispano-americanos. No entanto, quanto às questões
culturais, pode-se dizer que houve um grande avanço com a constitucionalização de tais
matérias que são consideradas pelo direito brasileiro como direito de segunda geração, porque
tais matérias estão vinculadas ao valor da igualdade. Deste modo, sua titularidade é coletiva e
seu caráter é positivo por exigir atuação do Estado (MORAES. 2009). No caso brasileiro,
entretanto, ainda há um descompasso no âmbito interno, pois apesar de os artigos duzentos e
trinta e um e duzentos e dez da CRFBB/88 reconhecerem aos índios o uso de suas línguas no
seu processo educativo (BRASIL, 1988) ela ainda preconiza a língua portuguesa como sendo
a única língua oficial do Estado Brasileiro segundo o artigo treze. Tal situação é bem diferente
da de outros países latino-americanos como Peru, Bolívia, Paraguai e Equador.
As Constituições e o Elemento Linguístico
Em 1967, o Paraguai foi o primeiro país hispano-americano que reconheceu
constitucionalmente um idioma originário como língua nacional. Desde então, o guarani é o
idioma oficial junto com o espanhol, pois parte da população paraguaia tem o guarani como
língua materna e, por causa disso, o ensino deve ser feito em ambos os idiomas como
prescrevem os artigos 77 (setenta e sete) e 140 (cento e quarenta) da Constituição paraguaia
(PARAGUAI, 1992).
O caso boliviano é sui generis, uma vez que muitos bolivianos falam o Aimara e há
uma estimativa de que um terço da população boliviana seja bilíngue. Em seu artigo 5º,
incisos primeiro e segundo; artigo 116, inciso décimo e artigo 171 inciso primeiro, a
Constituição da Bolívia protege os povos originários quanto ao reconhecimento das suas
línguas como sendo línguas de Estado, concedendo-lhes inclusive o direito de terem os textos
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legais traduzidos para os seus idiomas, além de lhes assegurar o direito a terra e a livre
manifestação de suas culturas (BOLIVIA, 1995).
A Constituição do Peru de 1993 reconhece em seu artigo 48 como línguas oficiais do
Estado peruano os idiomas originários, entre os quais o quéchua e o aimara nos territórios em
que são empregados. A Constituição do Equador de 1996 reconhece em seu artigo 1° como
patrimônio cultural os idiomas originários, sendo o espanhol o único idioma oficial. Já a
Constituição da Colômbia e a Constituição da Venezuela reconhecem como língua oficial
destes Estados apenas o espanhol, porém os governos da Colômbia e da Venezuela
reconhecem as línguas indígenas como oficias somente nas regiões em que elas são faladas, é
o que se pode depreender do artigo dez da Constituição da Colômbia de 1991 e do artigo nove
da constituição da Venezuela (PERU, 1993; EQUADOR, 1996; COLOMBIA, 1991;
VENEZUELA, 1999).
O reconhecimento das línguas indígenas como línguas oficiais de alguns estados latino-
americanos segundo suas Constituições assim como o reconhecimento por parte delas das
culturas indígenas são questões que norteiam nosso presente, sendo suas relações com o
passado do Continente fruto do renascimento, pois a ideia de Novo Mundo é uma criação
renascentista. No entanto, a partir de 1492, observar-se um duplo movimento contraditório,
pois na medida em que há uma perda da heterogeneidade na Espanha e em Portugal com a
expulsão de mouros e judeus, e, portanto das línguas e das culturas árabe e hebraica, há
também uma reintrodução irremediável de heterogeneidade através da conquista do Novo
Mundo e de sua gente. Fato este que encontra reflexos até os nossos dias.
A Cultura na Conquista
A conquista da América é o evento que funda nossa identidade presente. Sendo nossa
história marcada por conquistas, derrotas, colonizações e descobertas de outros. Assim,
descobrem-se os outros em si mesmo e percebe-se que não se é uma substância homogênea,
radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo, pois o eu é um outro; entretanto, cada
um dos outros é um eu também e um sujeito apesar de se poder conceber os outros com uma
abstração (FUENTE, 2001).
Antes de abordarmos a fala ritual como elemento de renovação cultural por meio da
valorização de práticas pretéritas, far-se-á uma digressão no tempo histórico para
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visualizarmos a relação existente entre fala ritual representante do mythos e a fala improvisada
representante do logos e o que resultou deste encontro para a história e o fazer cultural de
nossa América.
Na conquista da América, o logos venceu o mythos. Assim os espanhóis puderam se
valer de todos os estratagemas que uma sociedade baseada na escrita pode ter. A escrita, ao
materializar a memória coletiva, deixa o campo da expressão oral aberto para todo o tipo de
improvisação. Com isso, os índios, mesmo sendo grandes mestres na arte da fala ritual,
saíram-se muito mal em situação de improviso, ficando perplexos diante da invasão
espanhola. A referida improvisação criou uma situação radicalmente nova e completamente
inédita, em que a arte da improvisação passou a ser mais importante do que a do ritual. O que
era de certa forma impensável nas sociedades ágrafas do continente, porque estas sociedades
eram balizadas pela fala ritual que é a responsável pela materialização da memória coletiva.
Ao analisarmos a fala ritual, nos damos conta de que o principal elemento dela
compreende os huehuetlatolli que significam “palavras dos antigos”. Eles são discursos
aprendidos de cor, mais ou menos longos, que cobrem uma série de circunstâncias sociais:
rezas, cerimônias de corte e diversos ritos de passagem como, por exemplo, o nascimento, a
puberdade, o casamento, a morte, a partida, os encontros entre outros. Os huehuetlatolli
expressam um arraigado arcaísmo linguístico, por terem sido formulados em tempos
imemoriais. A função deles era a de materializarem a memória social, compreendendo leis,
normas e valores que deviam ser transmitidos de uma geração a outra, o que garantia a
identidade da coletividade. O traço essencial tanto desses discursos quanto da interpretação é
o fato de virem do passado (TODOROV, 2003).
Apesar de toda ação ter algo de rito e algo de improvisação, toda comunicação é,
necessariamente, paradigma e código. As três grandes civilizações ameríndias encontradas
pelos espanhóis não se situavam no mesmo nível de evolução da escrita. Desta forma, tem-se
que, na cultura maia, somente alguns sacerdotes e nobres eram iniciados na escrita. Os maias
também eram o único dos três grupos – maias, astecas e incas - que sofreram uma invasão
estrangeira, a dos mexicanos. Devido a isto, os maias sabiam o que era uma civilização
diversa da sua. As crônicas dos maias se contentavam, frequentemente, em inserir os
espanhóis na rubrica reservada para os invasores toltecas ao invés de considerá-los deuses
como fizeram os incas e os astecas. Apesar de os astecas terem acreditado nisso apenas num
primeiro momento (TODOROV, 2003).
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A ausência da escrita é um elemento importante da situação, talvez até o mais
importante, pois os desenhos estilizados, os pictogramas usados pelos astecas, não são um
grau inferior de escrita; mas sim, representam um registro da experiência e não da linguagem.
Entre os astecas havia uma associação entre o poder e o domínio da língua claramente
marcado. Por causa disto, o chefe de Estado é chamado de tlatoani, que quer dizer,
literalmente, “aquele que possui a palavra”; o que para nossa cultura equivale a “ditador”. A
perífrase que designa o sábio significa: “o possuidor da tinta vermelha e da tinta negra”, ou
seja, aquele que sabe pintar e interpretar os manuscritos pictográficos (TODOROV, 2003).
O importante aqui é a ausência da escrita que não pode assumir a função de suporte da
memória, cabendo esta função a palavra oral. No entanto, apesar de os incas serem totalmente
desprovidos de escrita, eles dispunham de um uso de cordões bastante elaborados; já os
astecas possuíam pictogramas; e entre os maias encontram-se rudimentos de uma escrita
fonética. Contudo, a função da língua entre maias e astecas era a de dar coerência ao grupo
que a falava, de promover intercâmbio dos homens com os deuses e o intercâmbio dos
homens com o mundo. A língua entre maias e astecas não tinha função de domínio de outrem
como mera imposição e tampouco era tida por instrumento sobre a ação de outrem. Uma
situação bem distinta da espanhola, pois, na Espanha, havia o entendimento de que a língua é
a companheira do Império. Desta forma, durante o processo da conquista, ao invés de ser um
reflexo fiel do mundo exterior, a palavra tinha por finalidade manipular as pessoas
(TODOROV, 2003).
Os espanhóis ganharam a guerra de conquista, pois foram superiores aos nativos na
comunicação inter-humana, uma vez que precisavam coletar informações e, sendo possuidores
de uma identidade tão diferente e com um comportamento tão imprevisível, eles foram
capazes de abalar todo o sistema de comunicação, porque se valeram da dissimulação,
mentira, contradição, falsidade e perfídia. Tal abalo ocorreu devido ao fato de os índios não
terem dado conta de que as palavras podem ser uma arma tão poderosa quanto as flechas, uma
vez que na cultura indígena por um lado as palavras pertenciam às mulheres e, por outro lado,
as armas pertenciam aos homens. Deste modo, a oposição existente entre guerreiro e mulher
tinha um papel estruturador no imaginário asteca como um todo, porém os guerreiros astecas
não sabiam que as mulheres ganhariam a guerra. Isto se deu porque o que se poderia chamar
de vertente feminina da cultura como sendo a improvisação em lugar do ritual e, as palavras
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no lugar das flechas, foi o modelo cultural que se impôs no Renascimento, apesar de ele ter
sido assumido por homens (TODOROV, 2003).
Cortez compreende muito bem o mundo dos astecas, porém essa compreensão superior
não impediu que os conquistadores destruíssem a civilização e a sociedade mexicanas; uma
vez que foi graças a esta tão alta compreensão que a destruição se tornou possível. Assim,
tem-se que a compreensão como julgamento de valor inteiramente negativo sobre o outro leva
a conquista a tal destruição. Cortez garante para si a compreensão da língua e o conhecimento
da política, daí deriva seu interesse pelas dissensões internas dos astecas. Cortez chega
inclusive a dominar a emissão das mensagens num código apropriado, fazendo-se passar por
Quetzalcoatl de volta a terra. Isto é a maior prova da superioridade de Cortez. Desta forma, os
europeus demonstram ter notáveis qualidades de flexibilidade e improvisação, que lhes
permitem impor ainda melhor, por toda parte, o seu modo de vida (TODOROV, 2003).
Apesar da ideia do retorno do Quetzalcoatl não desempenhar um papel essencial na
mitologia asteca, Montezuma considerou Cortez como sendo o Quetzalcoatl, que voltava para
recuperar seu reino. Esta identificação teria sido um dos motivos principais de sua passividade
diante do avanço dos espanhóis. A identificação entre Quetzalcoatl e Cortez pode ser
comprovada na repentina recrudescência da produção de objetos de culto ligados a
Quetzalcoatl após a conquista. Deste modo, Cortez forneceu o elo que faltava para a conquista
do mito. Os relatos que se encontram em Sahagun e Duran apresentam a identificação Cortez-
Quetzalcoatl como tendo sido produzida no espírito do próprio Montezuma (TODOROV,
2003).
Não foi a primeira vez em que os espanhóis usaram em benefício próprio os mitos
locais. Nas ilhas Bahamas, havia a crença de que, após a morte, os espíritos partiriam para
uma terra prometida, para um paraíso, onde poderiam gozar de todos os prazeres. Assim, mais
uma vez, os espanhóis, que precisavam de mão de obra e não conseguiam encontrar
voluntários, se aproveitaram de tal mito em benefício próprio, persuadindo os habitantes das
ilhas a abandonarem, por iniciativa própria, a terra natal e, a irem para as ilhas meridionais de
Cuba e Hispaniola. Os espanhóis diziam que, ao chegarem lá, eles encontrariam seus pais e
filhos mortos assim como, todos os parentes e amigos, desfrutando de todas as delícias nos
braços daqueles que tinham amado (TODOROV, 2003).
Depreende-se que a conquista do reino só foi possível após a conquista da informação.
Tal conquista só foi possível, porque o foco inicial de Cortez foi obter a compreensão dos
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signos e não dos referentes. Num primeiro momento, não era o ouro o que Cortez buscava,
mas sim, as informações. Por causa disto, empreende a busca por um intérprete. Nesta busca,
ouve falar de índios que empregam palavras espanholas, deduzindo que talvez houvesse
náufragos espanhóis de expedições anteriores entre eles. Intuição que se confirma na pessoa
de Jerônimo de Aguilar que se une às tropas. Cortez quase não o reconhece como espanhol.
Aguilar foi transformado em intérprete oficial de Cortez, prestando-lhe serviços inestimáveis.
Contudo, Aguilar só fala a língua dos Maias e não, a dos astecas (TODOROV, 2003).
Neste momento, é que surge a figura de Malintzin – Malinche – que foi dada de
presente aos espanhóis, durante um dos primeiros encontros com os maias. A língua materna
de Malinche é o nahuatl, a língua dos astecas. Ela também dominava a língua dos maias por
ter sido dada como escrava a eles. Malinche aprende o espanhol e teve a sua utilidade
potencializada, inclinando-se pela causa dos conquistadores. Ela, além de traduzir, adota os
costumes dos espanhóis e, com isto, contribuiu para a realização dos objetivos deles. Por um
lado, Malinche efetuou uma “conversão cultural”, o que a levou a interpretar tanto as palavras
quanto os comportamentos. Mesmo após a Tomada da cidade do México, Malinche continuou
a ser apreciada, porque Cortez, sem ela, não poderia entender os índios. Esta situação não
perdurou por muito tempo, pois vários espanhóis aprenderam o nahuatl. Isto beneficiou
Cortez, garantindo-lhe a compreensão da língua sem deixar escapar nenhuma oportunidade de
reunir informações e de se aproveitar da existência de divergência interna entre os índios. Tal
fato teve papel decisivo para a vitória final (TODOROV, 2003).
Deste modo, concluímos que para controlar a conquista é necessário analisar as armas
dela, pois a conquista não pertence só ao passado. No entanto, da referida análise, percebe-se
que quando o homem quer criar grandes coisas precisa do passado, fazendo uso da história
monumental. Quando quer perpetuar o que é há muito tempo venerado, ele encara o passado
como um antiquário e não como historiador (NIETZSCH, 2005). Mesmo que para isto se
corra o risco de ser taxado de anacrônico, sonhador ou visionário, como foi o personagem
Major Policarpo Quaresma. Por causa disto, ao invés de ser um acelerador do presente, o
Major Quaresma se tornou coveiro do presente, pois o agir dele não trouxe mudança alguma
para o momento da enunciação; mas sim, a extinção da vida que no romance é preanunciado
pelo título – O Triste Fim de Policarpo Quaresma (LIMA BARRETO, 1997).
Da digressão histórica retratada acima, percebe-se como ocorreu a imposição da fala
improvisada trazida pelos espanhóis durante o desenrolar do processo de conquista. Percebe-
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se, inclusive, a situação de superioridade que a fala improvisada desfrutou durante o referido
processo; assim como, a circunstância hegemônica que ela teve após o conquista da América,
constituindo o cenário político-social do continente. Esta circunstância histórica permitirá, no
âmbito da produção cultural, uma retomada da fala ritual representante do mythos usada por
maias, astecas e incas. Este uso da fala ritual ocorrerá numa perspectiva de improvisação
dentro da criação poética. Neste sentido, a criação poética atuará como construção de uma
identidade cultural formada por uma pluralidade de vertentes.
A Construção da Identidade
Aquele que visa mudar o presente através da análise do passado deve fazê-lo pelo
prisma da história crítica como fez o poeta peruano Mariano Melgar. Em seu fazer poético, ele
criou uma nova forma de expressão na poesia hispânica, os yaravíes (MELGAR, 1948; 1997).
Isto ocorreu ao voltar-se para o passado incaico do Peru em sua expressão poética, Melgar não
tinha a intenção de cristalizar o passado no presente, fazendo com que o presente revivesse o
passado, como fez Policarpo Quaresma ao adotar o hábito de chorar e de arrancar os cabelos,
expressando extrema alegria conforme os costumes dos tupinambás; mas sim, como forma de
renovar o presente para fazê-lo vivo e vibrante e, para tal, ao realizar sua criação poética,
Mariano Melgar o fez em espanhol ao contrário do major Quaresma que chegou a enviar à
Assembleia Nacional um projeto de lei redigido em tupi-guarani, sugerindo que a língua
nacional passasse a ser a mesma do referido projeto (LIMA BARRETO, 1997).
Para melhor compreendermos o fazer poético de Mariano Melgar, importa-nos conhecer
a circunstância cultural da sociedade inca no momento imediatamente posterior a conquista,
pois tal instante reflete em maior grau a essência do que fora a cultura inca da época
imediatamente anterior à conquista. Devido a isto, a seguir, exporemos as principais
manifestações poéticas da sociedade inca após o processo de conquista segundo as principais
crônica do período colonial: Los comentários reales de los incas, La relación de las Fábulas y
Ritos de los Incas, La Crónica de Juan de Santa Cruz Pachakuti Yamki Sallqamaywa e Nueva
Crónica y Buen Gobierno. Isto porque nelas é possível observar vestígios em quéchua do que
consideramos ser representativo da arte poética pré-hispânica.
Los comentários reales de los incas, do inca Garcilaso, nos apresenta dois poemas
em quéchua, sendo um muito curto e o outro conhecido pelo título de sumaq ñust’a (princesa
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bella) que tem uma dimensão mais notável, cujo valor estético é evidente e o cronista afirma
tê-lo copiado da obra do Jesuíta Blas Valera. La relación de las Fábulas y Ritos de los Incas,
do padre Cristóbal de Molina, cuja obra contém onze hinos religiosos dedicados a diversas
divindades andinas, que permite conhecer a espiritualidade dos povos andinos antes da
conquista, sendo também de caráter uniforme, não refletindo a arte pré-hispânica em sua
diversidade e sua riqueza (HUSSON, 1993).
La Crónica de Juan de Santa Cruz Pachakuti Yamki Sallqamaywa. Relación de
Antiguedades deste Reyno del Perú, cujos poemas quéchuas são também invariavelmente de
conteúdo mágico religioso. Em contrapartida, os poemas quéchuas que apresentam uma maior
diversidade quanto ao tema, assim como em relação à origem dialetal em cuja maioria se trata
de poemas profanos, são os que figuram na Nueva Crônica y Buen Gobierno, obra do cronista
indígena Felipe Waman Puma de Ayala, havendo neste autor uma tendência a laicizar a
poesia quéchua uma vez que segundo este cronista as festas indígenas são totalmente
desprovidas de práticas idólatras. Tendo em vista a diversidade de poemas apresentados por
Waman Puma quanto ao gênero – canções, bailes e regozijo – e regiões, sendo tais textos
representantes do alto grau de perfeição que alcançou a arte lírica no Peru que abrange alguns
gêneros conhecidos por “harawi – yaravie –, haylli, wankay e o waqaylli” (HUSSON, 1993).
O harawi – yaravie – é definido por Gonçalvez Holguín como uma canção lastimosa
ou uma peça nostálgica. Assim, o haraui ou yuyaycucuna ou huaynaricuna ttaqui é
considerado como o cantar dos feitos de outros, memória dos amados ausentes ou cantar de
amor ou de aflição (GONÇALVEZ HOLGUÍN apud HUSSON, 1993. p, 74).
O haylli se caracteriza por ser uma peça cheia de ardor e alegria, o que se confirma
pelo seu próprio significado que quer dizer alegria. O próprio soberano o entoava com os seus
parentes ao lavrar uma parte de seu campo sagrado denominado qullqampata como parte de
uma cerimônia sagrada. Tal ato simbolizava o início da plantação em todo o império. Durante
tais cerimônias, que eram festas em que se costumava dar louvor ao Sol e aos seus reis, os
homens acrescentavam louvores a suas companheiras enquanto elas os animavam ao dizerem
a palavra haylli – triunfo (HUSSON, 1993).
O wankay se caracterizava por contar as façanhas dos incas e de seu império. O que era
feito no contexto de puru qaylla que, constituía um único rito, dentro da celebração de quatro
meses. Esta festa se dava dentro do calendário comemorativo do estado inca. Entretanto,
havia também ritos de índole fúnebre de recordação dentro de uma conjectura mortuária que
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se celebrava nos funerais de um monarca, cuja celebração estava a encargo de parentes do
sexo feminino do inca que são a quya, as consortes do inca – as pallas e as donzelas da corte
inca – as nustakuna. Em 1533, após a morte do inca Atawalpa em Cajamarca, houve a
celebração de tal rito funerário, cujo testemunho pode ser visto nos gestos rituais presenciados
por Pizarro no canto lamurioso – harawi e no wankay usado pelas pallas e a quya para
comemorar e relembrar os principais feitos da vida do inca (HUSSON, 1993).
O waqaylli é a poesia sagrada que se distingue por ter um objeto mais preciso, como por
exemplo, “a caída da chuva para a obtenção de uma colheita suficiente para alimentar a
todos”. E por ter uma circunstância particular na qual era executada – uma procissão em que
participavam os incas, chorando, gemendo e com o rosto pintado de preto. No waqaylli, há a
presença de estrutura dual, classificando-as, portanto, irremediavelmente como gênero lírico.
Em tais procissões, através da poesia quéchua sagrada, se invocavam duas divindades: a Lua e
Pacha Kamaq, cujo significado é “o que anima o universo” (HUSSON, 1993).
Nos textos referentes ao “Harawi – yaravie –, haylli, wankay e waqaylli”, aparecem
com uma maior nitidez os procedimentos constitutivos da poesia quéchua pré-hispânica. Tais
procedimentos compreendem o uso de morfemas gramaticais, abertura, paralelismos, e
duplicações. Os morfemas gramaticais na linguagem literária quéchua pré-hispânica tinham
um sentido diferente do que possuíam na linguagem cotidiana. Desta forma, percebe-se que
havia um uso “ordinário” e um uso literário dos referidos morfemas gramaticais, lançando
mão de regras gramaticais distintas para os diferentes usos.
Tal assertiva atesta um alto grau de elaboração poética; no aspecto lexical, há o uso de
clichês, os quais são tidos como termos ou expressões reconhecidas por pertencerem à
linguagem poética e que, por conseguinte, atuam mais pela sua simples presença do que por
seu sentido próprio. E, por último, ainda no que se refere ao aspecto lexical, há a presença
sistemática de uma abertura que é uma introdução ritual caracterizadora do texto como sendo
um texto poético e, ao mesmo tempo, que o situa dentro de um gênero determinado
(HUSSON, 1993).
A poesia quéchua pré-hispânica difere da poesia ocidental no que concerne a estrutura.
A poesia ocidental é constituída de caráter fonético – rima ou assonância - e de características
prosódicas – cômputo de sílabas. A poesia quéchua pré-hispânica era formada por
paralelismos semânticos, duplicações semânticas, morfemas gramaticais de uso corrente com
um sentido diverso do que possuem na língua cotidiana – havendo, ao mesmo tempo, na
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linguagem quéchua comum, outro registro especificamente literário com regras gramaticais
distintas das que regem a língua cotidiana.
Tal ocorrência atesta um alto grau de elaboração poética e, por último, clichês – termos
ou expressões reconhecidos como pertencentes à linguagem poética e que, por conseguinte,
atuam mais por sua simples presença do que por seu sentido próprio. Contudo, ao analisarmos
a poesia quéchua após a conquista – já no período colonial – encontraremos nela o
aproveitamento do recurso fonético por influência da poesia do ocidente europeu. Em língua
quéchua o uso da rima fonética só se fazia possível através do uso nas palavras de um mesmo
morfema – final – a mesma partícula gramatical, o que produz uma inevitável impressão de
monotonia (HUSSON, 1993).
No que se refere ao aspecto lexical, há a presença sistemática de uma “abertura” que
além de ser uma introdução ritual fortemente marcada por aspectos musicais, coreográficos,
mágicos, religiosos e lúdicos, é caracterizadora do texto como sendo um texto poético, ao
mesmo tempo, que o situa dentro de um gênero determinado – o gênero lírico. Isto ocorre
porque tais expressões também são um clichê, pois funcionam independentemente de seu
significado próprio. O que caracteriza, portanto, mais uma afirmação da inclusão de tais obras
ao gênero lírico como marca não apenas da poesia quéchua, mas também como essência da
linguagem poética em oposição irredutível a linguagem do cotidiano (HUSSON, 1993).
Tais características nos remontam ao significado da palavra harauec que além de
denominar o poeta, também significa, em sua gênese, inventor. Deste modo, tal palavra nos
revela o exercício criativo do ofício de poeta. Fato confirmado pelo seu análogo grego que é
poiesis que também significa “criação” dela tendo derivado a palavra poeta. E como,
exemplo, de tais “aberturas” há as seguintes expressões: a) Haray harawi que abre os poemas
do gênero harawi; b) Ayaw haylli, yaw haylli que marca a abertura do poema do gênero
haylli; e c) aya uya waqaylli que marca a abertura do poema de gênero waqaylli (HUSSON,
1993).
A expressão cultural incaica apresenta duas facetas claramente distintas: uma
política ou oficial e a outra íntima de viés coletivo. A manifestação poética auspiciada pelo
poder político e por ele controlada teve nos “harawi – yaravie –, haylli e o waqaylli” sua
expressão lírica mais refinada, representando o alcance da arte lírica no Peru pré-hispânico. A
faceta popular de caráter intimista e coletivo teve nos wawku e qachwa a sua manifestação um
pouco mais livre quanto ao controle exercido pelo estado da manifestação cultural. Wawku e
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qachwa compartem com a expressão cultural oficial “harawi – yaravie –, haylli e o waqaylli”
dos mesmos elementos que caracterizam a arte poética quéchua (HUSSON, 1993).
Os traços que diferenciam wawku e qachwa dos demais gêneros são o caráter popular
de sua criação, manifestação e difusão. Isto porque eles estão fora da ceara oficial no que diz
respeito a servir a uma ideologia especifica ou a servir como instrumento de Estado para reger
a vida civil. Assim como a questão da língua, pois a língua quéchua usada para transcrevê-los
é muito distinta das variantes sulistas do mesmo idioma. Sendo constituintes do que se chama
“a língua geral” durante o período colonial, cujos traços guardam semelhanças com as
variantes atuais do Peru central. A terceira marca diferenciadora dos wawku e qachwa é a
perfeita adequação entre aspectos poéticos e coreográficos (HUSSON, 1993).
No canto wawku, há uma perfeita adequação entre os papéis dos músicos e dos
dançarinos que são seguidos pelo dualismo semântico que rege o texto. O dualismo semântico
ocorre entre dois cervos andinos respectivamente – taruscha – (taruka – na variante sulista do
quéchua) e – lluychu. O taruscha não corre mais por ser sua pata empregada como flauta –
wanku ou como baqueta – wanka que as mulheres usam para tocar o tambor. Já o lluychu não
é mais usado para tocar o tambor, por ter sido empregado como apito pelos músicos. Isto pode
ser observado na cena imortalizada pela ilustração de Wamam Puma, cuja interpretação
sugere um canto propiciatório para que se obtenha uma boa caça (HUSSON, 1993).
No canto qachwa há, devido as suas palavras, a invocação de um jogo, em que os
participantes formam um fila. Nela, se alternam homens e mulheres. O guia da fila é um
homem provido de uma faixa ou turbante, o qual procura laçar uma mulher que esteja no final
da fila, terminando então por romper a fila. No aspecto lúdico do baile, há um simbolismo
sexual latente. Tal simbolismo ocasionou sua proibição por parte do clero durante o período
colonial (HUSSON, 1993).
A atitude de Mariano Melgar de se apropriar de um modelo de discurso poético, os
yaravíes, e de expressá-lo em um novo código, a língua espanhola – que é totalmente diverso
daquele que o originara, a língua quéchua – forma uma síntese entre o passado remoto incaico
e o presente histórico de Melgar na tentativa de conformar um futuro histórico, o século
dezenove, totalmente diverso, em que fosse possível combinar o elemento cultural do passado
inca com o elemento cultural do mundo hispânico para se formar uma nova sociedade livre e
independente, capaz de fazer uso de suas tradições incas e hispânicas sem se sentir culpada
pelos erros destas e tampouco se sentir descriminada ao vincular-se àquela.
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Entre os elementos que conformam o gênero poético yaravíes, encontramos, por
exemplo, o paralelismo, duplicações e abertura, entre outros. Esses elementos cumpriam
determinadas funções na poesia inca como visto outrora, considerando o sentido poético que a
língua quéchua lhes imprimia. A abertura, no mundo incaico, representava uma “cerimônia”
ou um “ritual”. Ela permitia conhecer o gênero poético que se enunciaria por meio da seguinte
expressão: Harawi Harawui (HUSSON, 1993).
Na poesia de Mariano Melgar, os yaravíes representam a capacidade poética de se
constituir uma síntese entre o mundo do mythos e do mundo do logos. Isto porque o ambiente
sócio-cultural que deu origem ao fazer poético de Melgar apresenta em si os componentes
formadores da sociedade hispano-inca, a saber: a fala ritual e a fala improvisada. Dentro dos
yaravíes de Melgar, encontrarmos o improviso caracterizado, por exemplo, pelo logos –
língua espanhola – e o ritual caracterizado, principalmente, pelo elemento abertura. Desta
forma, Melgar demonstrou poeticamente ser perfeitamente possível uma identidade cultural
hispano-inca.
A seguir apresentamos três trechos de poemas de Melgar (1948; 1997) que
exemplificam os elementos abordados anteriormente: o paralelismo, duplicações e abertura. O
paralelismo estrutural é exemplificado com um trecho do poema esa crueldad tan constante,
as duplicações por sinonímia são apontadas no trecho do poema lloraré mi desventura e a
abertura é exemplificada com um trecho do poema oh, tirana pesadumbre.
No trecho do poema, esa crueldad tan constante transcrito abaixo há a presença de
paralelismo estrutural como enunciado acima. O paralelismo estrutural se caracteriza por
apresentar uma simetria de estrutura gramatical em dois versos contíguos conforme pode ser
percebido nas palavras sublinhadas dos dois primeiros versos do referido poema.
ESA CRUELDAD TAN CONSTANTE Esa crueldad tan constante Ese rigor tan severo, Con que tratas tu amante, Cuándo tendrás fin, oh cielo.
A continuação, temos que no trecho do poema lloraré mi desventura transcrito
abaixo, há a ocorrência da duplicação por sinonímia. A duplicação por sinonímia se
caracteriza por apresentar uma simetria de significados em decorrência de uma duplicação
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léxica pertencente ao mesmo campo semântico em dois versos contíguos conforme se pode
depreender das palavras sublinhadas nos versos abaixo transcritos.
LLORARÉ MI DESVENTURA Lloraré mi desventura, Lamentaré mis pesares. Porque ya no tengo vida Con mis males, con mis males
Por último, temos a representação da abertura que está exemplificada no trecho do
poema oh, tirana pesadumbre abaixo transcrito. A abertura é um dos aspectos mais
representativos da cultura inca marcada pela fala ritual. Isto porque a abertura cumpria dois
papeis: um era concernente a um ritual específico que poderia ser, por exemplo, o início da
plantação ou o lamento pela morte do soberano. E o outro papel era o de determinar um
gênero poético específico que no caso se refere aos yaravíes. Esta abertura, no mundo inca,
era conhecida por Haray harawi. Em parte de sua produção poética, Melgar tentou reproduzir
este conceito, dando como título aos seus poemas o primeiro verso de cada um deles. Isto
pode ser observado nas palavras sublinhadas dos versos abaixo transcritos do referido poema.
OH, TIRANA PESADUMBRE Oh,tirana pesadumbre, Tan estable a mis martirios, Que de continuo me tienen Con suspiros, con suspiros. Considerações Finais
A relação entre lembrança e esquecimento se faz presente na história de nossa América
como consequência de um contato traumático entre duas culturas e dois mundos que não
puderam conviver contiguamente, mas uma delas teve que se desmontar estruturalmente para
que fosse possível a constituição de uma nova ordem em que os elementos da cultura
estruturalmente desconstruída não fossem apagados e tampouco esquecidos de vez.
A cultura estruturalmente desmontada apenas teve que mudar a forma exterior de sua
essência para em novos tempos reencontrar o caminho de uma convivência mais conflituosa
do que pacífica, visando à construção de uma síntese por um lado e, por outro, pretendendo a
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sua própria reconstrução estrutural para se autoafirmar num ato de autodeterminação cultural
como prova de capacidade de sobrevivência plástica e estética confirmada no reconhecimento
constitucional e, pela expressão das letras na busca de uma expressão cultural autêntica em
que se encontrem as vozes outrora antagônicas, a saber: a fala ritual e a fala improvisada
numa síntese em que a convivência de mundos diversos seja possível.
Ressaltamos, deste modo, o uso que fazemos dos elementos que compõem nossa
tradição cultural, porque ele sinaliza os caminhos percorridos entre memória e esquecimento
por nossa sociedade na conformação de uma nova ordem jurídica e cultural. Esta nova ordem
nos assegura tanto o direito ao esquecimento – sem que isto comprometa ou apague parte de
nossa memória cultural – quanto o direito a uma nova ordem cultural constitucional que nos
assegure o reconhecimento e a proteção mais amplos, abrangendo todos os elementos
formadores de nossa sociedade, em especial àqueles pertencentes aos povos originários.
Desta forma, usamos os elementos culturais de nossa tradição para reconstruirmos a
visão que temos de nós mesmos como síntese de todo processo histórico cultural. Esta síntese
pode ser vista como um peso do passado, porém, por mais que o peso deste passado nos
perturbe, não deixamos de ser fruto das gerações passadas. Entretanto, podemos condenar os
erros dos que nos antecederam e crer que somos isentos aos erros deles, mas isto não revoga
nossa origem naquelas gerações, considerando que somente aquele que constrói o futuro tem
o direito de julgar o passado (NIETZSCHE, 2005).
LANGUAGE, SPEECH AND POWER IN BUILDING OF AMERICA
Abstract: The ability to revisit the past for building a new future totally different of ancient experiences. It should guide the men as historic being. In this away, we research to cross the away between remember and forget and its implications in our culture. Therefore, we consider different aspects as law and cultural through analysis legal texts that give protection to cultural expressions and literature works. Someone takes these expressions to remaking view about yourself. Keywords: Literature. Discourse. Power. Culture. Referências BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Scipione Cultural. Espanha, 1997 BRASIL. Lei da anistia nº 6.683 de 28 de agosto de 1979. Disponível em: <http:// www. planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L6683compilada.htm> Acessado em: 28 abr. 2011.
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