Limitar o limite (Alexandre Nodari)

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1 Limitar o limite: modos de subsistência Alexandre Nodari “lugar: here. à beira da selva. ao largo do civilized. juntar as coisas: fazer o presente: viver: construir o futuro.” (Hélio Oiticica) Montagem da proposição subterraneam TROPICALIA Hélio Oiticica (1969?) Alto: babylonests, Nova Iorque | Meio: colidouescapo, Augusto de Campos | Embaixo: Família no semi-árido nordestino (foto de Carlos Vergara)

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Texto apresentado no Colóquio Os Mil Nomes de Gaia

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    Limitar o limite: modos de subsistncia

    Alexandre Nodari

    lugar: here. beira da selva. ao largo do civilized. juntar as coisas: fazer o presente: viver: construir o

    futuro. (Hlio Oiticica)

    Montagem da proposio subterraneam TROPICALIA Hlio Oiticica (1969?)

    Alto: babylonests, Nova Iorque | Meio: colidouescapo, Augusto de Campos |

    Embaixo: Famlia no semi-rido nordestino (foto de Carlos Vergara)

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    Subterrnia 2 Hlio Oiticica (1969)

    Consumir o consumo

    Em 1968, os ltimos revolucionrios da modernidade (ou os primeiros da primavera por

    vir) entoaram mundo afora uma palavra de ordem: proibido proibir. A frmula no

    se confundia com a mera transgresso, na medida em que afirmava em um meta-nvel a

    proibio. Desse modo, o que se contestava era a lgica normativa em sua prpria raiz,

    pois, no fundo, obedecer e aplicar a lei uma mesma coisa: a transgresso est contida

    no prprio limite, o ultrapassamento da lei a confirma e a refora. O exemplo mais claro

    dessa estrutura normativa talvez seja o talio, uma norma de equivalncia: a pena tal

    qual o crime. A lei cria uma identidade entre dois atos distintos por meio de uma

    economia: um e outro olho (crime e castigo) tornam-se olho por olho: reciprocidade

    negativa. O famoso adgio no olho por olho por olho..., mas olho por olho, dente por

    dente no uma srie de acontecimentos, mas de equivalncias. Dito de outro modo, a

    lgica proibitiva e sua economia da transgresso produzem uma reduo daquilo que se

    pode ou no fazer a um dever positivo ou negativo e por isso Tarde comparou a lei a

    uma barragem dos possveis, das diferenas. Metfora instrutiva: os possveis so

    limitados pela lei, saindo do outro lado da barragem como obedecimento ou

    transgresso, assim como, numa hidreltrica, a potncia convertida em energia,

    metrificada em kW. Desse modo, o que estava em jogo no proibido proibir era o

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    acesso a outra economia e ecologia dos possveis, como um bordo conexo deixava

    claro: Sejamos realistas, demandemos o impossvel.

    Foi provavelmente inspirado nessa palavra de ordem que Hlio Oiticica

    formulou uma srie de proposies semelhantes, como experimentar o experimental e

    consumir o consumo. Essa ltima frmula, talvez mais atual do que nunca, aparece

    em Brasil Diarria, texto dos anos 1970. Ali, o artista o contrape a duas estratgias

    de consumo, dois lados de uma moeda: a negao do consumo, que gera priso de

    ventre; e o consumo desenfreado, que causa diluio, diarreia. Ambas seriam

    modalidades do que Oiticica chamava de super-: a represso e o excesso, ou, em

    termos psicanalticos, o super-eu paterno que castra e o super-eu materno que manda

    gozar; o limite e o ilimitado. Por sua vez, consumir o consumo seria uma operao do

    sub-sub que no visa nem conservar nem superar o subdesenvolvimento: enquanto

    forma ativa de sub-desenvolver, no era uma soluo de meio termo, mas a dissoluo

    dos termos: uma transformao radical no campo dos conceitos-valores vigentes, no

    comportamento-contexto, que deglute e dissolve a convi-conivncia lgica comum a

    ambas as posturas. Consumir o consumo, portanto, no consumir mais; consumir a

    lgica do consumo: se o consumo sempre uma transformao, uma digesto, ento o

    consumo do consumo uma digesto desse processo, a sua dissoluo e transformao

    em algo outro.

    Na arte de Oiticica, isso implicava estar livre das amarras do consumismo, ou

    seja, da demanda de produo de obras. Tratava-se, portanto, da passagem da obra e

    criao (mercadoria e produo) aos acontecimentos, ambientes, incluindo os ninhos.

    A arte deixaria, assim, de ser a produo infinita de objetos, pra passar a ser a

    formulao de uma possibilidade de vida. Todavia, Oiticica no estava falando apenas

    de arte, ou melhor, estava falando s de arte, isto , de tcnica: se a guerra move as

    inovaes tcnicas ocidentais, poderamos dizer que a arte, vanguarda militar em outro

    sentido, tambm um manancial de inventos tecnolgicos. Desse modo, a arte

    ambiental dos anos 1960 adiantava a indistino entre natureza e cultura, ao se focar

    no prazer interessado do corpo, nos efeitos e no fazer que Kant atribua natureza em

    oposio ao prazer desinteressado do julgamento, as obras e ao agir que caracterizariam

    a arte. Por isso, Oiticica afirma no se referir cultura em sentido estrito, mas a uma

    coisa mais global, que envolve um contexto maior de ao (incluindo os lados tico-

    poltico-social), e, ao final do texto, postula que No existe arte experimental, mas o

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    experimental. O que seria tal experimental? No que consistiria a tcnica de consumir o

    consumo para alm do que costumeiramente atribumos esfera da arte?

    A escassez do excesso: gasto e indigesto

    Oiticica parece se guiar pela mxima de Oswald de Andrade, segundo a qual Nada

    existe fora da Devorao. O ser a Devorao pura e eterna, ou seja, de que nada se

    cria, nada se perde, tudo se devora: como suas metforas deixam claro, a economia

    geral analisada por ele de acordo com seu modo de digesto. O que interessa no a

    produo e sim o consumo: toda produo j consumo, digesto e transformao, ou

    seja, produz tambm restos, dejetos, que permitem entende-la, pois, como afirma

    Canetti, No excremento, que o que resta de tudo, deixa-se reconhecer tudo quanto

    matamos. Poderamos assim arriscar dizer que a verdadeira face da sociedade

    globalizada est no seu lixo, no que ela gasta.

    Como se sabe, o capitalismo se funda sobre uma limitao do acesso aos

    recursos, por meio do cercamento de terras, da reduo propriedade dos inmeros

    direitos reais (das coisas), e da criao da forma jurdica vazia do sujeito de direito. Mas

    o fundamento ontolgico do consumo capitalista foi a converso das coisas do mundo

    em recursos, a metafsica da utilidade, enunciada, entre outros, por Hegel: Como

    tudo til ao homem, assim tambm o homem til a tudo sendo medida de todas as

    coisas, o homem o animal que mede todas as coisas. Nas palavras de Oswald, tratava-

    se da reduo do mundo no-mtrico ao mundo mtrico. O sentido das coisas

    reduziu-se drasticamente a um projeto de instrumentalizao humana, e elas puderam,

    assim, se tornar equivalentes por meio de uma unidade que as media.

    Talvez nada demonstre melhor a reduo unidimensional e unilateral de sentido

    que as embalagens das mercadorias, os limites que marcam seus contornos e que tentam

    preservar o pouco de sentido que restou nelas (a utilidade), ou ento buscar suplement-

    lo com uma camada nova (por meio da propaganda), demarcando a fronteira entre

    sujeito e objeto. O consumo capitalista comea, portanto, j nessa transformao de

    coisas em mercadorias, no esvaziamento de sentido que marca o modo de produo

    globalizante. O consumo propriamente dito apenas consuma esse processo, ao converter

    as mercadorias em lixo (waste), a saber, justamente aquilo que teve seu sentido gasto,

    esvaziado completamente, incluindo a utilidade. No Hollowcene [EVC], das palavras

    s coisas, tudo se gasta, incluindo aqueles homens considerados sem-sentido

    trancafiados entre os muros de prises e manicmios. Segundo um boato corrente nos

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    anos 1990, alm da Muralha da China, a outra construo humana visvel do espao

    era o Aterro Sanitrio de Fresh Kills, em Nova Iorque: sintomaticamente, um limite e

    uma wasteland. Esse boato trazia consigo uma profunda verdade: depositado no mar,

    deslocado para as periferias, o lixo a grande obra da modernidade, e sua maior

    produo, a Ilha de Lixo do Pacfico. Ou seja, o mundo foi contaminado pela indigesto

    consumista:

    Srie Midway: Message from the Gyre Chris Jordan (2009-) Entranhas repletas de lixo de albatrozes mortos no atol homnimo localizado no oceano Pacfico, a 2000

    km do continente: seus pais os alimentaram com dejetos que flutuavam no mar, tomando-os por comida

    E, nesse processo, ignorou-se a reciprocidade da transformao envolvida em toda

    digesto, a sua via de mo dupla: a transformao daquilo que se consome sempre

    acompanhada pela transformao daquele que consome: o projeto humano se tornou a

    sombra de seu lixo e no apenas o contrrio:

    Dirty White Trash (with Gulls) Tim Noble e Sue Webster (1998)

    Equivalente a 6 meses de lixo dos artistas; duas gaivotas

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    A quantidade de lixo acumulada no mundo amplifica o alcance de uma mxima

    benjaminiana: no s que teremos que nos virar com pouco, teremos tambm que nos

    virar com os restos. Teremos que consumir o consumo.

    Metrificao e desmetrificao

    Em um curso sobre Spinoza, Deleuze props uma distino entre dois tipos de limite:

    Limite-contorno (limite externo, extenso)

    1) por um lado, o limite contorno, externo, enquanto forma que limita e informa os

    corpos, sendo independente deles, marcando uma extenso, e cujo movimento do

    contentor ao contedo, da circunferncia ao centro limite mtrico, da lei;

    Limite-dinmico (limite imanente, intenso)

    2) por outro, o limite-dinmico, interno e imanente, que, na verdade, a tenso dos

    corpos, a sua tendncia ou inclinao, e, portanto, intensivo e no chega a uma

    circunferncia extensa determinada, sendo um movimento de contrao-dilatao a

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    partir de um centro; limite no-mtrico que se expressa no por um contorno, mas por

    uma maneira de ser, por um modo (de vida), um hbito: no um lugar determinado, mas

    uma maneira de habitar o mundo, uma posio relacional.

    Todavia, os dois tipos de limites no so de ordem puramente objetiva nem

    subjetiva, mas se referem a duas experincias do limite e o mesmo se passa com a

    distino entre mundo mtrico e no-mtrico, que Oswald tomava do fsico Thomas

    Eddington. Semelhante diferena entre espaos lisos e estriados, ela no diz respeito a

    pores distintas do mundo, o material e o espiritual, mas sim a modos diferentes da

    relao eu com ambiente que caracteriza toda experincia. Portanto, as coisas no so

    em si mtricas ou no-mtricas; tampouco nossa percepo (mesmo cultural) que v

    limites internos ou externos: trata-se de uma relao entre a perspectiva e as coisas, ou

    seja, do sentido. O que h so linhas de fora, processos de metrificao e

    desmetrificao que se sobrepem, se revertem, se antecipam e se conjuram uns aos

    outros. Por isso, numa cultura interessa o seu consumo, o sentido de sua transformao.

    Se estamos corretos, podemos arriscar dizer que o processo digestivo de metrificao do

    mundo se d pela transformao do limite imanente em um limite-contorno, dos corpos

    em formas (olho por olho; embalagem), ou seja, constitui um processo de delimitar o

    limite, colocar por extenso, ex-tenso, uma tenso interna (a utilidade, p.ex.). Trata-se

    de uma experincia do perito, em que mede-se o espao a fim de ocupa-lo. Por outro

    lado, teramos a operao inversa: a transformao do mtrico em no-mtrico, uma

    operao de limitar o limite, incorpor-lo, fazendo da forma, corpo, convertendo o

    limite-contorno em limite intenso, o que pode se dar pela introduo de um limite

    extenso sobre outro um meta-limite , perfurando-o e dando acesso intensidade:

    Ocupao de Belo Monte: Xingu +23 14 e 15 de junho de 2012 (Foto: Atossa Soltani) Limitar o limite: libertar o fluxo dos possveis.

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    Ocupao de Belo Monte: Xingu +23 14 e 15 de junho de 2012 (Foto: Mitchell Anderson)

    . O limite inserido no limite de outra ordem que o limite barrageiro: agua, no terra.

    Devolver terra terra (Oiticica) tambm remover o aterramento dos rios.

    Ocupao de Belo Monte: Xingu +23 14 e 15 de junho de 2012 (Foto: Atossa Soltani) Contra a metrificao da potncia pela energia: produzir um efeito contra a obra.

    Mesclise Andr Vallias (2013) Barrar a barragem: um corte oblquo contra a ubiquidade do humano

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    Limitar o limite: manifestantes fazem o Caveiro recuar (Foto: Fernando Rabelo, 2013)

    Talvez no seja um acaso que Plato invoque a medida como arma contra as variaes

    do ponto de vista exploradas pelos poetas: a poesia talvez seja a figura da transformao

    no no-mtrico. Pois o que a poesia seno o dar corpo a um limite externo, internaliz-

    lo como via de acesso a uma experincia de intensidade? A cesura do verso, o branco da

    pgina, os pixels do monitor: a poesia, em todos os seus modos, uma experimentao

    de medidas que atinge o no-mtrico por meio da introverso de uma mtrica e sua

    converso em um modo, em uma inclinao: limitando a extensividade que se d a

    intensificao potica. Assim, por exemplo, o encavalgamento do verso barra a cesura

    (representado justamente por uma barra). E da a relevncia da isomorfia na poesia a

    reciprocidade entre limite e contedo, a sua imanncia. Mas a poesia no designa s

    aquela forma que atende por esse nome, sendo esta apenas o ndice de todo fazer

    (poeisis) que transforma a limitao em intensidade. No por acaso, comum, na

    linguagem popular, que uma formulao ou prtica concisa e intensa seja chamada de

    potica, de uma frase de efeito a uma jogada de Garrincha. Desse modo, poderamos

    diferenciar chamar as tcnicas que transformam o mtrico em no-mtrico, seguindo

    uma sugesto de Viveiros de Castro, de poesia do mundo, a prtica experimental da

    vida situacionista, em suma, uma experincia do perigo, ocupao desmetrificadora.

    O exemplo oswaldiano de consumo que transforma o mtrico em no-mtrico

    era a antropofagia ritual tupi, relao sujeito-sujeito, em que a devorao do corpo

    extenso do inimigo estava associado adoo de um novo nome pelo devorador. Aqui,

    o consumo no esvazia de sentido: pelo contrrio, o sentido provm dele, do consumo.

    Alm disso, Oswald costumava associar o mtrico com a autoridade exterior, as

    interdies climatricas. Agora, talvez fique mais claro que essa absoro do

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    ambiente no era a superao de tais interdies, o ultrapassamento de limites

    materiais, mas sua transformao em inclinao intensiva. Da o sentido profundo de

    um trecho do Manifesto Antropfago: Da equao eu parte do Cosmos ao axioma

    Cosmos parte do eu. Subsistncia. Conhecimento. Antropofagia. Tratava-se de

    transformar um regime no qual o eu uma poro delimitada do mundo, uma extenso,

    em outro no qual o mundo o efeito da com-posio de sujeitos e suas intensidades,

    uma circunferncia (inexistente) que resulta das (in)tenses combinadas de cada eu. Isso

    que Oswald chamava de subsistncia antropofgica era, portanto, um contato com a

    exterioridade: O cosmos parte do eu, mas S me interessa o que no meu. Dito de

    outro modo, o mundo aquilo que est entre os seres, o inter-esse, a resultante de suas

    transformaes recprocas, o efeito de suas devoraes. E poderamos arriscar dizer que

    o nome adquirido por aqueles que absorvem Gaia, fazendo dela uma experincia no-

    mtrica, seja gaiatos, e que a gaia cincia de Gaia, o conhecimento da subsistncia, se

    chame gaiatologia.

    Modos de subsistncia

    Se a expresso mxima da economia da metrificao o capitalismo, a sua contraparte

    no o socialismo, mas as economias de subsistncia das sociedades contra o Estado.

    Pierre Clastres mostrou como a ausncia de Estado nas chamadas sociedades

    primitivas, que era considerado uma falta, constitui na verdade uma recusa deliberada:

    um no ao no. Para Clastres, o princpio da autoridade exterior, do limite e da

    hierarquia, negado por meio de sua incorporao: a sociedade primitiva

    internaliza o Estado na figura do chefe para melhor exorciz-lo, limitando o limite: o

    chefe no manda e, atravs dele, as sociedades contra o Estado ativamente constroem

    uma poltica anrquica, desmetrificada. Como se sabe, essa operao demanda impedir

    a formao de uma esfera econmica autnoma, ou seja, demanda a manuteno de uma

    economia de susbsistncia, entendida no enquanto defeito, mas como recusa de um

    excesso de produo, de trabalho. Em um artigo clssico, Sahlins mostrou como os

    caadores-coletores, exemplo tpico de economias de subsistncia nos manuais de

    economia, no tm um modo de produo no qual se trabalha o mximo para conseguir

    o mnimo; sua economia de abundncia, cio e prodigalidade: o mnimo de trabalho

    para o mximo de cio. As economias de subsistncia no so determinadas

    exteriormente pelo ambiente, nem o superam, pois ele no constitui um limite externo: a

    limitao da produo, assim, , na verdade, a limitao da metrificao econmica,

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    dando lugar a uma experincia no-mtrica com as coisas do mundo: uma das maiores

    dificuldades daqueles que pesquisam economias de subsistncia determinar

    quantitivamente sua renda, sua produo e a diferena entre estas e suas necessidades.

    Excesso e necessidade, trabalho e cio, utilidade e inutilidade, produo e consumo:

    quando limitado o limite que separa os dois lados, eles ganham outro sentido.

    Mas se a subsistncia designa uma experincia com o mundo, ela no se reduz

    poltica e economia: enquanto forma de conhecimento, ela se deixa ver tambm no

    que Lvi-Strauss definiu como pensamento selvagem, em oposio ao pensamento

    domesticado, a bricolagem em oposio engenharia. Enquanto esta se caracteriza por

    uma capacidade ilimitada guiada por um projeto, aquela, fazendo uso de meios-

    limites, trabalha por uma com-posio de materiais heterclitos. Em relao s

    limitaes que resumem um estado da civilizao, afirma Lvi-Strauss, o engenheiro

    sempre procura abrir uma passagem e situar-se alm, ao passo que o bricoleur

    permanece aqum. De novo, aqui, estamos diante de duas experincias do limite. Por

    um lado, o engenheiro quer ultrapass-los por meio de um projeto, informando a

    matria-prima, metrificando-a. Por outro, o limite da bricolagem imanente a sua

    matria-prima, s prprias coisas. Pois ao operar com resduos de construes e

    destruies anteriores, ou seja, coisas aparentemente gastas, testemunhos fsseis da

    histria de um indivduo ou de uma sociedade, o bricoleur no lida com formas vazias,

    pelo contrrio: as possibilidades de composio dos elementos esto limitadas pela

    histria particular de cada pea e por aquilo que nela subsiste, a saber, o conjunto de

    relaes ao mesmo tempo concretas e virtuais, e tal limitao justamente a condio

    da imprevisibilidade da composio. Ao intensificar aquilo que subsiste nas coisas, a

    bricoleur um reciclador radical, que no se limita a simplesmente devolver a utilidade

    s coisas, mas compor o seu sentido: como aqueles personagens de fices apocalpticas

    que mobilizam os restos de um mundo devastado no apenas para novos fins, novos

    usos, mas tambm para uma nova relao com as coisas, inclusive para uma nova

    esttica para um devir-mundo por mais trash que seja.

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    Mad Max George Miller (1979) Mobilizao dos restos contra o resto de Estado (Estado Total)

    A catadora de lixo Estamira resumiu essa subsistncia potente do sentido ao afirmar

    Tudo que a gente pensa existe, , frmula que talvez seja a melhor traduo para a

    ontologia de Meinong. Como se sabe, ao atacar frontalmente o que chamava de

    preconceito a favor do atual, Meinong optou por no tomar o real, o extenso, como

    par-metro. Antes de toda existncia, indiferente ela, tudo subsistiria objetivamente

    (com a mesma dignidade do atual): as qualidades, as relaes, os modos, mas tambm

    os objetos impossveis como o crculo quadrado, figura similar aos metamorfos dos

    mitos. Toda essa fauna e flora ontolgica ficou conhecida como a selva de Meinong,

    modo de subsistncia do quase-ser, do ser-como, do ser-fora, da pseudoexistncia: a

    realidade virtual, poderamos dizer e a internet tambm comporta uma dimenso

    potica: nela, pra usar uma frmula de Marcos Matos, a riqueza material existente

    infinitamente inferior riqueza semitica subsistente: descemos verdade das primeiras

    sociedades de afluncia.

    Subsistncia dos modos

    Tentemos sintetizar. Todos os modos de subsistncia que descrevemos sub-

    desenvolvem, sub-tendem, tendem para um baixo que, porm, muito mais rico que o

    alto, muito mais intenso, ao contrrio da imagem de pobreza, isolamento, e secura

    costumeiramente associada ao termo. A subsistncia designa, aqui, uma dimenso

    material e ontolgica baixa, que no pode ser quantificada: no se confunde com a mera

    existncia enquanto distinta de uma existncia autntica. No constitui, portanto, o

    domnio da necessidade, mas de todas as categorias modais, em especial a virtualidade:

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    tudo que existe tambm subsiste assim como tudo que no existe. A subsistncia o

    sub-solo da existncia, seu adubo, a existncia em devir. Se h uma imagem para a

    subsistncia, a da putrescncia da matria orgnica (Bataille, Baixo materialismo)

    em toda sua riqueza vital, na qual, como plantas, tudo que existe e no existe planta suas

    razes: humus lama, no lixo: no a Wasteland esterilizada pela monocultura

    padronizadora, mas uma fora putrefascente, como disse Felipe Vicari de Carli. Desse

    modo, o que a catstrofe ambiental em curso ameaa destruir no s a existncia na

    Terra, mas a prpria subsistncia, em suas dimenses material e imaterial: consumando-

    se o fim do mundo, no apenas os mortos no estaro seguros, mas at mesmo aqueles

    que nem existiram.

    Da a importncia de cultivar a subsistncia, pois no sendo um estado, ela

    constitui uma dimenso que se acessa ativamente pelo fazer, por uma subverso

    intensa, um efeito de revirar que faz algo sub-vir de dentro pro mundo. O fazer

    potico da subsistncia um adubamento da existncia, um cultivo de possveis, uma

    cultura das virtualidades e suas diferentes consistncias, que no tem como parmetro o

    real, nem se guia pelo privilgio do atual e da obra, e tampouco concede primazia

    produo e realizao, mas sim aos efeitos e aos afetos um tornar palpvel o

    possvel: uma permacultura semitica, na definio de Marcos Matos. E enquanto

    movimento para baixo, os modos de subsistncia se colocam contra o super-, o alto, seja

    do excesso seja da represso: um fazer contra a forma-Estado, o Estado e a forma. O

    desafio que a catstrofe ambiental nos coloca, portanto, no s escolher entre obedecer

    resignadamente os limites materiais do planeta, mantendo nossa forma de existncia, ou

    ento ultrapass-los esperando uma superao dialtica. Antes, ela possibilita ou obriga

    uma soluo ao mesmo tempo mais simples e mais drstica: lidar com os limites de

    outro modo; fazer deles uma inclinao subvert-los, vert-los para baixo, in-tend-

    los, tend-los para dentro: incorporar e transform-los em um modo intenso de vida,

    descobrindo toda a riqueza do baixo; fazer uma experincia do limite de mxima

    intensidade: uma experincia-limite do limite. Subsistir, portanto, inserir o sub- na

    existncia, ou seja, descer para o mundo, devolver terra terra para descer terra,

    para re-infiltrar diversidade no subsolo, para faz-la emergir, para inventar outros

    modos de vida, para comear de novo [Flvia Cera]. E os artistas, sismgrafos

    sensibilssimos dos desvios fsicos da massa, so, segundo Lygia Clark, justamente

    aqueles que inoculam a sociedade com o vrus de um novo modo de existir: enquanto

    experimentao de modos, a arte tambm uma moda, a reinveno de hbitos, de

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    modos no-mtricos de habitar o mundo, de costumes, i.e., como nos vestimos, nos

    enfeitamos, como damos sentido ao mundo. No por acaso, Oiticica dizia querer

    estender o sentido de apropriao s coisas do mundo (...) nas ruas, terrenos

    baldios, campos, o mundo ambiente. Apropriar antropofagicamente o ambiente

    ocupa-lo de sentido: e, por isso, uma ferramenta poltica fundamental a ocupao

    desmetrificadora: consumir o consumo no apenas apropriar para um uso, mas

    apropriar para cultivar o sentido e os possveis. A guerra de Gaia tambm uma guerra

    esttica e imaginria.

    Oiticica dizia que subsisto era um grito-afirmao hoje, mais do que

    nunca, um grito de guerra subversivo. Grito baixo, abafado pelo lixo semitico

    antropodesenvolvimentista. Todavia, como dizia Clarice Lispector, um primeiro grito

    desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida, se eu

    gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de

    gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existncia a existncia de qu? A

    existncia do mundo. Mundo que ainda subsiste mas no por muito tempo. Sejamos

    simplistas: demandemos o mais intenso.