Letras do Brasil

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e especial letras do brasil Campinas, domingo, 30 de janeiro de 2012 Correio Popular Oswald, Pagu e Mário. Transgressores, futuristas e antropofágicos. Eles mudaram a literatura brasileira

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Suplemento Cultural - Projeto Experimental de Conclusão de Curso

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eespecial letras do brasilCampinas, domingo, 30 de janeiro de 2012

Correio Popular

Oswald, Pagu e Mário. Transgressores, futuristas e antropofágicos. Eles mudaram a literatura brasileira

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carta das editoras

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Semana de Arte Moderna: fevereiro de 1922

Um estudioso chamado T.S. Eliot afirmou que a cultura inclui to-das as atividades e interesses de

um povo ou nação. Portanto, a cultura faz parte de tudo que nos define como brasileiros. As religiões, os costumes, os esportes, até mesmo a nossa língua defi-nem quem somos culturalmente. Partin-do deste princípio, nós acreditamos que a literatura é, também, parte de quem so-mos como contadores de histórias, aque-las que vivemos e as que imaginamos. É com este propósito que o tema central do suplemento que você tem em mãos é a literatura brasileira.

O Letras do Brasil pretende trazer para você, que é interessado em arte e li-teratura, um pouco da magia dos livros, das histórias e da vida dos autores bra-sileiros. Propomos aqui uma discussão sobre o patrimônio dos que falam a lín-gua portuguesa. Ao todo serão 12 exem-plares, veiculados no último domingo do mês.

Os temas abordados contemplam desde a história da literatura até o que

está sendo produzido hoje por todo o Brasil. Não pretendemos substituir apos-tilas e livros didáticos, nossa preocupa-ção é falar da literatura do Brasil para qualquer um que se interessar por ela.

Nesta primeira edição vamos mer-gulhar no movimento que lutou pela mudança da arte literária no Brasil, o Modernismo, a partir da vida e obra de três grandes autores: Oswald de Andra-de, Mário de Andrade e Patrícia Galvão, Pagu.

O modernismo brasileiro é um dos movimentos artísticos mais importantes da história do país, seus entusiastas fo-ram contra o academismo nas pinturas, as convenções da música e a poesia par-nasiana (com métrica rígida e vocabu-lário impecável). Foi criado o que pode ser considerado uma nova literatura com versos livres retratando temas brasileiros não somente nos enredos das histórias. Era a primeira vez que os autores busca-vam uma identidade nacional também no estilo, na maneira como as poesias e prosas eram escritas, sem buscar a seme-

lhança com o que era produzido somen-te na Europa.

A Semana de Arte Moderna de 1922, grande marco deste movimento, comple-ta 90 anos em 2012. Nove décadas nos se-param dos acontecimentos daquela se-mana de arte, mas seus ecos ainda soam por diversas iniciativas culturais con-temporâneas. Peças teatrais, exposições, workshops, palestras, livros, filmes e mú-sicas ainda retratam o acontecimento cuja causa permanece atual: a luta pela liberdade de expressão e a valorização da cultura nacional.

Oswald, Mário e Pagu. A escolha de três autores para representar sucinta-mente o Movimento Modernista não tem e nem poderia ter nenhuma pretensão de apresentar a você tudo que pode se saber sobre este período da literatura. Longe dessa ambição, o objetivo aqui foi reu-nir mais depoimentos, histórias e visões sobre aquele movimento para engrossar cada vez mais o caldo do debate sobre as Letras do Brasil. (Caroline da Silva Perei-ra e Yasmine Azevedo e Souza)

expediente

agendaculturalOswald de Andrade: o culpado de tudo Exposição até: 30 de janeiro de 2012Local: Museu da Língua Portuguesa, Praça da Luz, s/nº - Centro, São Paulo - SP Contato: (11) 3326-0775 [email protected] mais nas páginas 4 e 5

Feira do Livro de Poços de Caldas “90 Anos da Semana de Arte Moderna” – Patrono: Antonio CândidoData: 28 de abril a 06 de maio de 2012Local: Espaço Cultural da Urca, Praça Getúlio Vargas, s/nº - Centro, Poços de CaldasContato: (35) 3697-1551 www.feiradolivropoçosdecaldas.com.br

Oficina Cultural Oswald de AndradeEndereço: Três Rios, 363 - Bom Retiro, São Paulo - SP Contato: (11) 3222-2662 / 3221-4704 [email protected]  Horário de funcionamento: Segunda a sexta-feira das 9h às 22h e sábado das 10h às 18h

Oficina da Palavra Casa Mário de Andrade Endereço: Rua Lopes Chaves, 546 - Barra Funda, São Paulo - SP Contato: (11) 3666-5803 / 3826-4085 [email protected]  Horário de funcionamento: Segunda a sexta-feira das 13h às 22 h e sábados das 10h às 14h

Oficina Cultural PaguEndereço: Praça dos Andradas, s/nº - Centro, Santos - SP Contato: (13) 3219-2036 / 3219-1741 [email protected]  Horário de funcionamento: Segunda a sexta-feira das 13h às 22h e sábado das 9h às 18h

Edição: Caroline da Silva PereiraYasmine Azevedo e SouzaReportagem: Caroline da Silva PereiraYasmine Azevedo e SouzaProjeto gráfico: Caroline da Silva Pereira e Yasmine Azevedo e SouzaDiagramação: Priscila Simionato BelavenuteIlustração: Fabiano Eiras CarrieroTratamento de imagem: Leandro TorresColaborador: Amarildo CarnicelImpressão: MagicPaper 20 exemplares.

Projeto experimental da faculdade de jornalismo da PUC Campinas. Orientação: Rosemary Bars MendezDiretor da faculdade: Lindolfo Alexandre de SouzaDiretor do CLC: Rogério Bazi

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Sem amarras literáriasO movimento de 22 que completa 90 anos em fevereiro de

2012, reuniu intelectuais que romperam com padrões da época

o brasil em 22

4Epitácio Pessoa era presidente do Brasil, o período em que ficou no governo foi marcado por várias revoltas militares, como o 18 do Forte, a comemoração do centenário da independência, a inauguração da primeira estação de rádio no Brasil e a realização de obras contra a seca no nordeste.

4A revolta do Forte de Copacabana, conhecido como 18 do Forte, foi o primeiro movimento militar armado que pretendeu tirar o poder das elites tradicionais, defendendo princípios modernizadores, refletindo o descontentamento com a organização política e econômica da época.

4Fundado sob influência da Revolução Russa e da formação da III internacional, muitos de seus integrantes do Partido Comunista

Brasileiro eram militantes da causa sindica e do movimento anarquista. Os delegados que fundaram o Partido também elaboraram um estatuto e elegeram um Comitê Central, mas após o levante no Forte, o partido foi proibido de existir devido ao Estado de Sítio.

4A crise na política do “café com leite” reapareceu, em 1922, nas eleições para a sucessão de Epitácio Pessoa, quando Minas e São Paulo resolveram a questão indicando Artur Bernardes (mineiro) para a presidência e já acertando a candidatura de Washington Luís (paulista) como sucessor de Bernardes.Contra esse arranjo político os estados do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro se uniram formando a Reação Republicana, que apresentou Nilo Peçanha como candidato. Bernardes venceu.

Yasmine Azevedo e [email protected]

O que o sistema carcerário tem a ver com o Movi-mento Modernista?

Segundo Mário de Andrade, tudo!

O autor de Paulicéia Des-vairada, publicada em 1922, resumiu todo o prefácio deste livro, chamado Prefácio Interes-santíssimo, em um dos últimos parágrafos: “Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. ‘Toda canção de liberdade vem do cárcere’”. Nele, Mário explica que a arte de escrever vem do subconsciente, dos sentimentos, das dores, das alegrias, criticando a métrica e a academia. Ou seja, o autor cita Fock para esclarecer que o movi-mento modernista só pôde acon-tecer, pois os artistas estavam presos aos padrões estabelecidos na época. O modernismo é can-ção de liberdade.

Para saber o que foi a Sema-na de Arte Moderna de 1922, que completa o seu 90° aniversário em fevereiro de 2012, é preciso voltar no tempo e perceber que as mudanças já vinham acontecen-do. Nas primeiras duas décadas do século XX, artistas e intelec-tuais, ainda muito influenciados pelo academicismo e pela belle époque francesa, começaram a sentir necessidade de atualizar suas produções artísticas, assim como buscar uma identidade nacional. Segundo Tereza de Moraes, professora de literatura brasileira na PUC-Campinas, o período foi muito conturbado politicamente e socialmente, fa-tos como a Revolta de Canudos, o misticismo de Padre Cícero, a Guerra do Contestado, a campa-nha de vacinação contra a varíola e seus desdobramentos revolto-sos e as greves operárias fizeram deste cenário um momento tur-bulento no Brasil.

Os desejos de modernização tomam de forma significativo os artistas com a eclosão da 1° Guerra Mundial e a proximida-de do primeiro centenário da independência. Alguns eventos deram forma ao movimento mo-dernista brasileira, antecedendo a Semana. A exposição de Lasar Segall, em 1913, mesmo não cau-sando repercussão mostra o con-tato do pintor com vanguardas

alemãs. Já a exposição de Anita Malfatti, em 1917, influenciada pelas vanguardas européias foi o escândalo que serviu como esto-pim para que os artistas e jovens intelectuais começassem a se or-ganizar como um grupo, a fim de promover a arte moderna nacio-nal que em São Paulo foi embala-do pelo progresso e a industriali-zação. Em 1920, Victor Brecheret, recém chegado de Roma, é incor-

tivou a Semana”, explica Tereza.E o evento que pretendia

chocar e causar comoção popu-lar aconteceu nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal, em São Paulo. A Se-mana, patrocinada por parte da elite paulista enriquecida pelo café, que investia na indústria e está interessada em assimilar o ritmo e as novidades trazidas pela realizada urbano-industrial, representou uma verdadeira re-novação de linguagem artística, na busca pela experimentação e na liberdade em relação as escolas. Entre os vários artistas participantes, estavam no even-to Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Victor Brechet, Plí-nio Salgado, Anita Malfati, Me-notti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila de Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti e Rubens Borba de Moraes, que embora tenha organizado a Se-mana, não participou pois esta-va doente.

Várias passagens marcam as apresentações: espectadores lançando tomates nos artistas enquanto declamavam poesias, pessoas latindo e gritando na leitura de um poema de Manuel Bandeira por Ronald de Carva-lho e ainda a entrada de Villa--Lobos no palco de chinelos, o que foi visto como uma atitude futurista e vaiada pelo publico, enquanto na verdade tratava-se de um calo inflamado. Após a Semana, várias revistas e mani-festos, como a revista Klaxon, os Manifestos Pau-Brasil e Antro-pofágico, e o movimento Verde--Amarelo, surgem para difundir os ideais modernistas. Os artis-tas preferiram estes meios, pois os livros iriam assemelhar-se aos padrões conservadores. Em vá-rios estados brasileiros, muitas destas publicações combatiam o conservadorismo, dissemi-nando, por exemplo, na poesia o verso livre e o verso branco. “É importante ressaltar que além da importância para a época, o movimento modernista influen-ciou a produção artística cultu-ral durante todas as décadas se-guintes, e mesmo nas produções que recuperavam o passado, a métrica, as inovações não foram esquecidas” afirma Tereza de Moraes.

porado pelo movimento, devido ao vigor e a expressividade de suas esculturas.

A partir daí, este grupo de modernos artistas sentiu a ne-cessidade de um evento que acompanhado de escândalo marcasse as novas direções trazi-das por Segall, Anita e Brecheret.

Para Tereza de Moraes, a atitude de Monteiro Lobato, que pu-blicou duras criticas em um de seus artigos ao jornal Estado de S. Paulo, a exposição de Anita, foi uma atitude natural. “O novo precisa de atitude por parte das pessoas.Ou você aceita, ou você repudia. A reação de Lobato mo-

No alto, entre o grupo de modernistas: rené Thiollier, manuel bandeira, mário de andrade, manoel Vilaboin, rubens borba de moraes, Cândido motta Filho, Francesco Pettinati, Paulo Prado, oswald de andrade, luís aranha, Graça aranha, afonso schmidt, Goffredo da silva Telles, Tácito de almeida e Couto de barros. acima, panfleto feito por Di Cavalcante, distribuído aos frequentadores do Teatro municipal durante os eventos da semana

Fotos: Reprodução

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Nascido para provocarBoêmio e revolucionário, entre mulheres, política e filosofia, Oswald é fundamental na literatura brasileira

Caroline [email protected]

Oswald de Andrade era da-quele tipo de artista que, se vivesse hoje, encheria

as páginas de revistas e progra-mas de fofoca. Sua vida pessoal foi um desfile de belas e inte-ligentes mulheres, entre casa-mentos (sete no total) e amantes. Além da personalidade boêmia, financiada principalmente pela herança do pai Jose Oswald No-gueira de Andrade, dono de for-tuna conquistada graças à espe-culação imobiliária paulistana.

Oswald, cujo nome soa es-trangeiro, é um dos principais responsáveis pela valorização da cultura brasileira a partir da década de 1920. Participou in-tensamente da Semana de Arte Moderna e influenciou movi-mentos posteriores como o Tro-picalismo, que ocorreu nos anos 1960. Seu nome, obra e vida pes-soal até hoje são relevantes para qualquer um que se aventure pelas páginas da literatura bra-sileira.

O professor da Universida-de de São Paulo (USP) e um dos curadores da exposição “Oswald, o culpado de tudo”, no Museu da Língua Portuguesa, Caca Macha-do concorda que a figura deste Andrade é quase sinônima de agitação cultural. “Ele pensava a cultura quebrando o academi-cismo, considerando as relações da rua, da vida. Um homem cul-to, mas que não colocava isso como uma distinção de valor”, descreve. Durante os levantes da semana de arte moderna, Oswald defendeu a queda da bu-

retrato de oswald de andrade, pintado em 1922 por uma das principais artistas do modernismo: Tarsila do amaral

E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. (Manifesto Antropofágico)

O culpado de tudo“Um escritor muito falado e pouco

lido”, inicia Caca Machado ao explicar suas intenções quando colaborou com a exposição sobre Oswald de Andrade no Museu da Língua Portuguesa. O primeiro andar do museu paulistano ocupará até janeiro de 2012 pedaços da história do conterrâneo autor. Quem passar pelas instalações do museu, que são sempre um show a parte, vai encontrar uma narrativa que contempla toda trajetória de Oswad com a literatura. “É uma exposição literária, com bastante texto, que é o mais importante. Incluímos series de trechos, de diversas faces de Oswald poesia, proza e obra ensaística”, detalha.

O fato de ser um escritor paulistano foi decisivo para a inclusão de Oswald no calendário de exposições. De acordo com a assessoria do Museu da Língua Portuguesa, o secretário de Estado da Cultura, Andrea Matarazzo considera um privilégio poder homenagear este autor “o mais paulista de nossos escritores”. Ao participar ativamente da semana, segundo Matarazzo, Oswald inseriu São Paulo no mapa mundial das artes.

Serviço: Até 30 de janeiro de 2012Museu da Língua PortuguesaPraça da Luz, s/nº, CentroTel.: (11) 3326-0775Ingressos: R$ 6.

exposição o culpado de tudo, museu da língua Portuguesa -sP

Reprodução

Divulgação

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Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.Tupi, or not tupi that is the question.Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.[...]Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.Só podemos atender ao mundo orecular.Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o

esquecimento das conquistas interiores.Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.O instinto Caraíba.Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. [...]Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.A alegria é a prova dos nove.[...]A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADEEm PiratiningaAno 374 da Deglutição do Bispo Sardinha(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

rocracia poética, da métrica e vocabu-lário raro, até então valorizadas pelos poetas parnasianos.

O grupo composto por ele trazia para o Brasil o reflexo do que acontecia na Europa e nos Estados Unidos. Futu-ristas, como eram chamados à época, de países como França e Itália influen-ciavam nossos jovens bem nascidos a provocar a revolução cultural. Oswald queria, contudo, que a nossa mudan-ça fosse mais além, lançando esforços para desenvolver a arte genuinamente verde e amarela. “Era tudo parte de um caldeirão de influências e estilos. Sem a métrica formal do século XIX, rom-pendo com tudo num contexto muito brasileiro” explica Machado.

Namorou, além de belas mulheres, a filosofia e a politica. No auge de sua expressão comunista chegou a chamar de burguês o movimento que ajudara a oficializar em 1922. Filiou-se ao parti-do comunista juntamente com uma de suas esposas, Patrícia Galvão, a Pagu, encorajando-a a seguir na luta, pela transformação social do país. Estando disposto a cuidar de seu filho, Rudá de Andrade, quando a esposa se ausentou pela causa comunista, atitude impen-sável para as famílias da época.

Em contato com a obra de auto-res como Marx, Freud e André Breton, Oswald publica, em 1928, o Manifesto Antropofágico. “Os manifestos eram muito comuns entre os modernistas na tentativa de passar suas ideias sem uti-lizar o livro, objeto considerado velho

e ultrapassado”, explica a professora de literatura brasileira da PUC Campinas, Teresa Moraes. A Antropofagia, disse-minada então através de um manifes-to, é um marco da trajetória vanguar-dista.

Abusando da linguagem irônica Oswald de Andrade ataca com sua an-tropofagia o “estrangeirismo”, ou seja, a demasiada valorização daquilo que vinha do exterior e a colonização pas-siva sofrida pela cultura brasileira. Não propondo uma negação pura e simples o autor defende a incorporação de in-fluências em prol de uma arte original e desprendida.

Criticando anos de história e a so-ciedade da época, absorve as influên-cias da psicanalise e do surrealismo para defender o primitivo criando um texto dinâmico, de leitura nem sempre simples e agradável. “Não havia fer-ramentas na época capazes de guiar os estudiosos a uma compreensão to-tal da obra de Oswald. Muito do que ele escreveu só ganhou pleno sentido muitos anos depois”, explica Teresa.

A glória deste boêmio revolucioná-rio, no entanto, veio tarde, mais preci-samente depois de sua morte, ela tam-pouco com mais louros. Gavetas cheias de dividas, diabetes e ideias mal com-preendidas. Oswald de Andrade des-pertou incontáveis suspiros femininos e a ira outras dúzias de intelectuais, mas não falhou em ser aquilo que, bem ou mal, sempre defendeu: original, irô-nico, brasileiro e antropofágico.

HamleT TuPiNiquim

Manifesto Antropofágico

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E6 Correio PopularCampinas, 30 de janeiro de 2012

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O alto preço de ser PaguO lado emocional de Patrícia Galvão, aquela que contrariou regras sociais e se tornou heroína

Caroline [email protected]

Para entender Pagu é preciso voltar no tem-po. Esqueça a visão

das mulheres do século XXI, com seus escritórios e altas posições políticas. Para com-preender a mente e a im-portância de Patrícia Galvão é necessário um transporte para o mundo feminino na década de 1920. Nascer, cres-cer e se multiplicar, tudo isso com delicadeza e graça. Essas eram as palavras de ordem dadas às moças da elite pau-listana na época. Ter intimi-dade com a costura, cozinha e saber de cor as regras do lar estava entre os itens do cur-rículo para arrumar um bom casamento.

Política, tra-balho e produ-ção intelectual eram ativida-des mascu-linas que

não cabiam bem para as senho-ritas. No meio deste universo pouco feminista nasceu Patrícia Galvão. Desde pequena a bela garota sentia os incômodos de ter no corpo alma e mente de van-guarda. Pagu, como fora apelida-da pelo poeta Raul Bopp, jamais teve vocação para moça do lar. A dedicação de sua vida era para com seus ideais políticos, a arte e a cultura. Exercê-los, no entanto, não foi fácil.

Todas as suas escolhas foram contra o esperado (e permitido) para a época. Dois casamentos, filiação ao partido comunista, intensa luta política e dedicação

cultural. Por isso, é tão comum ver associados ao seu nome ad-jetivos como polêmica e aven-tureira. Dois livros e uma análise antropológica, no entanto, dão a esta personagem histórica inter-pretações diferentes, definindo--a, talvez ineditamente, como uma mulher sensível.

“Uma mulher ousada, mas ao mesmo tempo dilacerada”, defi-ne Heloisa Pontes antropóloga da Unicamp. Autora do artigo “Vida e obra de uma menina nada com-portada”, onde analisa a Biografia Precoce, livro baseado na carta que Pagu escreveu nos anos em que esteve presa. Heloisa defen-de o lado sensível e mártir desta mulher que, entregue de corpo e alma a militância política, so-freu as consequências sociais

e pessoais das escolhas que fez. “Ao mesmo tempo

em que ela é à frente do seu tempo, sofreu os

constrangimentos

que uma mulher da época viveria por ações como deixar o filho por sete meses com Oswald de An-drade (seu primeiro marido) para se dedicar a militância política”, completa.

De face “libertaria e transfor-madora”, Pagu é inegavelmente um ícone do movimento femi-nista no Brasil. Mas não só de política é composta sua história. Autora do livro Parque Industrial, primeiro romance proletário do país e responsável por muitos anos pelo Suplemento Literário do Diário de São Paulo, ao lado de seu segundo marido, o jorna-lista Geraldo Ferraz. “Ela também representou grande relevância no cenário cultural, acreditava na importância da arte como ele-mento de transformação social”, explica a pesquisadora.

Heloísa defende a importân-cia cultural de Patrícia Galvão, de-finindo-a como uma espécie de concretista antes do seu tempo.

“A pessoa que ela foi, muitas vezes, chama mais atenção do que sua produção cultural. Não dá pra dissociar uma coisa da outra. Ela é importante pelas duas coisas. Sua vida, na contra mão daquilo que era esperado para as mulheres da época, re-fletia na sua percepção artísti-ca”, detalha.

A heroína feminista brasi-leira, Patrícia Galvão, mostra até hoje que não é simples ab-dicar de todos os costumes e condutas sociais sem pagar um preço por isso. Sempre acla-mada e, muitas vezes, julgada erroneamente como inconse-quente, sua trajetória foi mar-cada por momentos de severa tristeza, que felizmente não fo-ram em vão. “Ela foi um ícone que condensava essas dimen-sões: cultura, política e rela-ções interpessoais. Muito mais do que uma mulher à frente do seu tempo”, conclui Heloisa.

O primeiro romance de Pa-trícia Galvão foi patrocinado e influenciado por Oswald de Andrade. A obra tinha como tema personagens, problemá-tica e ambientação ligados à classe operária. Ele representa um contraponto ao chamado “romance de 30”, de autores como Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. “O livro com maior repercussão foi o Parque Industrial. Porém, a sua obra literária e jornalística é muito vasta e com inúmeras fases”, explica Cláudia Busto, Coordenadora do Centro de Estudos Pagu Unisanta.

Pagu usava vários pseu-dônimos, prática comum entre autores, principalmente, em períodos de ditaduras e repressões militares. No caso

de Pagu, ele age como uma proteção pessoal. “Muitas vezes, [o uso do pseudônimo] foi exigida pelo partido Comu-nista” afirma Cláudia. Entre mais de 20 codinomes, ela ficou conhecida como Mara Lobo, Pats, Gim, Solange Sohl e Ariel.

Segundo Cláudia, a importância de Pagu para a arte e a literatura brasileira está no fato de que durante o desenvolvimento de sua obra, ela não foi ouvida, lida e estudada, como a grande maioria dos modernistas da época foram. Grande parte de seu trabalho ainda exige dos pesquisadores e do espectador uma leitura dedicada e ampla, além, é claro, da atemporali-dade dos textos e desenhos.

Mara Lobo, Pats, Solangel... páginas de Pagu

“Pagu era uma mulher linda”, Heloísa Pontes

Reprodução

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E7Correio PopularCampinas, 30 de janeiro de 2012

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Inquietações do pai de MacunaímaPeça de teatro “O Grande Grito” traz criador e criatura num debate sobre a cultura nacional

Yasmine Azevedo e [email protected]

Exu, Macunaíma, Mário de Andrade. Personagens que fazem de O Grande Grito

muito mais que uma peça des-tinada ao público jovem. Ela é o brado de desespero ao ver um país em que a cultura se perde, um país sem alma. A autora Ga-briela Rabelo baseia o enredo em fatos reais. Ao contar sobre o tema da peça que pretendia es-crever a um amigo, ele lhe disse que há alguns anos havia sido chamado para ver um mate-rial que estava na Biblioteca da Lapa, totalmente abandonado, largado as traças e as goteiras. Era o acervo da Missão de Mário de Andrade. A partir deste relato, Gabriela deu forma para as suas idéias. A história se move em dois mundos, o real e o sobrena-tural, que caminham pareados do início ao fim, se entrelaçando através de poderes místicos.

Defensor da cultura popular brasileira, Mário de Andrade, então diretor do Departamen-to de Cultura do Estado de São Paulo, orientou em 1937/38, a Missão de Pesquisas Folclóricas, excursão ao Norte e ao Nordeste do país. Preocupado com a mo-dernidade e a crescente urbani-zação do Brasil, Mário pretendia reunir o maior número de mani-festações populares e capturá-las em registros, fotos, vídeos e discos. Mário acabou afastado do cargo no governo de Getúlio Vargas e, para sua tristeza, seu trabalho ficou estagnado e es-quecido. Gabriela Rabelo recu-perou em sua obra inquietações de Mário, que diz também ser as dela.

Na peça, o acervo abandona-do na Lapa é uma parte daquilo que Mário encontrou durante suas viagens. Entre os milhares de objetos e registros há uma escultura de Exu que ganha vida nesse cenário e aprisiona ‘o es-pírito’ de Mário àquele depósito até que se cumpra a promessa dê lhe dar um lugar de destaque e honrado. Para a autora, a en-

tidade está relacionada com os ancestrais femininos e masculi-nos e com suas representações coletivas; é o elemento dinâmi-co de tudo o que existe, não só de todos os seres sobrenaturais. Por isso, o personagem vem com força total na obra e traz consigo um misticismo que aproxima o espectador cada vez mais da cul-tura popular brasileira.

Mas, este não é o único per-sonagem que coloca o público em contato com a cultura popu-lar. Macunaíma, o personagem do modernista Mário de Andra-de, que erroneamente é caracte-rizado como o herói de caráter indigno, apresenta ao público um anti-herói aposentado, que agora, mais do que nunca, pode aproveitar de toda sua pregui-ça sem se preocupar. Afinal, ele está a salvo de qualquer desgra-ça, já desfrutou do seu final feliz e agora visita seu criador, ou po-de-se dizer seu pai, já que o per-sonagem age como uma criança indefesa e sem malícia, exata-mente como Mário o descreve: herói sem nenhum caráter, ou seja, um ser livre.

O mundo real fica por con-ta da história de Seu Nilton, um funcionário da biblioteca que se preocupa com o acervo e pro-cura um amigo que trabalha na Secretaria de Cultura para salvar tudo aquilo, causando grande alegria aos personagens ‘sobre-naturais’. O que seu Nilton não esperava é que a própria filha roubaria a chave do depósito e levaria o namorado até lá em busca de um tesouro para pagar dívidas com traficantes. Ele ao perceber, vai até a biblioteca e descobre que o namorado vicia-do de sua filha era filho de seu colega da secretaria. E em uma cena angustiante, de descober-tas, tiros, gritos e desespero, entende-se que o acervo está a salvo. Exu receberá seu lugar de honra e Mário poderá ir para o campo vasto do céu junto com Macunaíma. O autor cumpriu, enfim, o seu trabalho, aquele que se propôs a fazer quando viajou

ao Norte e Nordeste: mostrar ao mundo a cultura brasileira.

A autora do texto é brilhante, pois consegue unir o passado ao contemporâneo, agregando a temática das drogas sem gerar semelhanças as obras de cons-cientização infantil. A peça que esteve em cartaz no ano passado é direcionada aos jovens, mas não pelo apelo do combate as drogas, e sim por trazer uma car-ga histórica que surpreende. Afi-nal, foram anos de estudos sobre vida e obra de Mário de Andrade até que a peça fosse escrita. Ele não era somente moderno em seus textos, cartas, livros, Mário estava à frente de seu tempo, se opunha à forma como a política era feita em seu país e como ela levaria cada vez mais a popula-ção brasileira para longe de seus laços, de suas raízes. Ele queria mais que um Brasil de progresso, era preciso dar alma ao Brasil.

Para Gabriela, o personagem Mário de Andrade potencializa o pessimismo que pode ser per-cebido nos últimos anos de vida do escritor, que é nítido na con-ferência que resulta no livro O Movimento Modernista. “Mário de Andrade viveu durante duas guerras mundiais. Continuamos a viver ao lado de muitas guer-ras, algumas declaradas outras disfarçadas, mas ainda não raiou um possível sol. Há sempre, pe-quenos raios de luz, mas não um sol de verão”, avalia Gabriela.

Sobre a peça: ‘O Grande Gri-to’ ficou em cartaz na capital paulista durante março e abril do ano passado, no Centro Cul-tural São Paulo, sendo uma das apresentações da Virada Cultu-ral de 2011. A peça também per-correu várias cidades do interior de São Paulo como Araraquara, na 23ª. Semana Luiz Antônio Martinez Correa, em São Roque e no 3º. Encontro de Teatro de Mauá, em setembro de 2011. Os interessados em assistir a peça podem ficar atento a programa-ção no blog ‘O Grande Grito’, no endereço http://ograndegrito.blogspot.com/ .

Fotos: Caroline Pereira

De cima para baixo: exu, mário e macunaíma

Page 8: Letras do Brasil

E8 Correio PopularCampinas, 30 de janeiro de 2012

letras do brasil

Baú de imagensA representação da fotografia nas cartas de Mário de Andrade

Amarildo Carnicel

Boêmios e transeuntes ca-suais que passam por vol-ta das duas da manhã em

frente ao número 108 da Rua Lo-pes Chaves, no bairro paulistano da Barra Funda, com certeza fi-cam curiosos ao ver a claridade de uma lâmpada projetando-se ja-nela afora. Vêm também de lá uns acordes de Bach. É com certeza Mário de Andrade numa de suas incontáveis noites de insônia, ora dedilhando um instrumento mu-sical, ora lendo Machado de Assis, sempre envolto em muita fumaça de cigarro. À espera do sono, o escritor garatuja uma carta a Ma-nuel Bandeira ou viaja pelo Brasil e pelo mundo afora através de fo-tografias.

Não foram poucas as oportu-nidades oferecidas a Mário para cruzar as fronteiras brasileiras. Porém, ele sempre encontra uma razão para recusar o convite. Mascarando uma provável inse-gurança e um temor pelo desco-nhecido, contenta-se em se trans-portar para outros povos e outras culturas através de fotografias.

A satisfação de conhecer um lugar por meio de retrato pode ser vista em carta de junho de 1925, quando comenta com Camara Cascudo: “Você nem imagina o gosto que me deu o campeiro ves-tido de couro que você me man-dou. Andei mostrando pra toda gente e mais a fotografia do ma-ravilhoso cacto. As três fotografias já estão bem guardadinhas na minha coleção. Se lembre sempre de mim quando vir fotografias da nossa terra aí dos seus lados.”

Essa incontida emoção Má-rio divide primeiramente com as pessoas que estão a seu redor. Sai percorrendo os corredores da confortável casa onde vive em São Paulo e logo mostra a foto-grafia para a primeira pessoa que encontra: ora sua mãe, dona Ma-riquinha, ora a tia Nhanhã, ora a irmã Lourdes ou a cozinheira Se-bastiana, “querida como pessoa da casa”, afirma Mário.

Assim, em vez de arrumar as malas e partir em busca de um Brasil que a todo instante exala cultura popular, o escritor vai se satisfazendo com uma geogra-fia de livros, meticulosamente dispostos nas estantes e de foto-grafias, que começam a chegar

vata, tampouco os sapatos feitos sob medida na Sapataria Guarani.

Nas fotos enviadas a amigos ele procura também escolher aquela que melhor reflete o mo-mento que está vivendo. Através de uma fotografia aparentemente simples ele encontra elementos que permitem realizar uma sínte-se de sua vida e descobrir todo o sofrimento de que até então não havia se dado conta. Essa análise fica evidente em carta de feve-reiro de 1944 a Newton de Frei-tas, quando remete um retrato pessoal e esboça um lamento de quem está a menos de um ano da morte: “Lhe mando o retrato que mais gosto, mas exijo troca. Gosto mais porque marca no meu rosto os caminhos do sofrimento, você repare, cara vincada, não de rugas ainda, mas de caminhos, de ruas, praças, como uma cidade. Às ve-zes, quando espio esse retrato, eu me perdôo e até me vem um vago assomo de chorar. De dó. Porque ele denuncia todo o sofrimen-to dum homem feliz. Porque de fato desde muito cedo eu atingi a transcendência da felicidade... As lutas, os insultos, os erros, as difi-culdades, as derrotas (a cada der-rota, eu dizia alegre: “Um a zero, vamos principiar outro jogo!”) eram pra mim motivos de tanta, não alegria, mas dinâmica do ser e superação até física, que me es-queci que sofria. Até que me tira-ram essa fotografia. E fiquei hor-rorizado de tudo o que sofri. Sem saber.”

Amarildo Carnicel é jornalis-ta, Professor do Departamento de Jornalismo da Pontifícia Uni-versidade Católica de Campinas, Pesquisador do Centro de Memó-ria-Unicamp e autor do livro O Fotógrafo Mário de Andrade

às suas mãos principalmente em envelopes com as cartas.

Ele guarda em seu acervo cer-ca de 2.500 fotos (incluindo os registros das duas grandes via-gens feitas ao Norte, em 1927 e ao Nordeste, em 1928-29) que re-velam temas ligados a seu campo de interesse. Nesse espólio há um conjunto de 246 cartões-postais recebidos de amigos durante via-gens a diferentes partes do Brasil e do mundo.

Em sua coleção há uma parti-cularidade. Ao longo de sua pro-fusa epistolografia, ele mantém o hábito de trocar fotografias, conforme escreve a Prudente de Moraes Neto em junho de 1925: “Agora estou muito vadiando pra copiar besteiras inúteis. Retrato também. Não dou, troco. Quando chegar a S. Paulo, me lembrando, mando. Você terá que me mandar o seu também pra minha coleção”. O acervo consta ainda de inúme-ros retratos com dedicatórias re-cebidos de amigos como Manuel Bandeira e Camara Cascudo, de quem Mário solicita insistente-mente uma foto de recordação, como se vê em carta enviada ao folclorista em fevereiro de 1926: “E seu retrato, homem!” Essa prática é uma constante na vida do escritor. Não por acaso, fotos dos escritores Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Jorge de Lima, entre outros, foram encontradas entre seus pertences. Todas com dedicatória.

Mário oferece, com freqüên-cia, sua contrapartida ao presen-

tear os amigos com fotos suas, como se observa em carta de fevereiro de 1944 a Fernando Sa-bino, quando manda ao então jo-vem escritor uma lembrança: “Es-tou cumprindo a promessa das fotos. Lhe dediquei a que prefiro.”

Preocupado com sua imagem, Mário procura sempre enviar aos amigos a foto que mais lhe agra-da. Reflexo de sua vaidade, afinal, para um simples almoço ou lan-che frugal no restaurante Palhaço ou no Carlino, não dispensa a gra-

Capibaribe. recife – ii-29

recife – ii-29. rua Nova (tirada da janela do Hotel Glória)

“suspiro nesta ponte. a vida é um sonho. o canal é um mar de rosas contendo todos os perfumes da arábia. um gesto saudoso anita. Procurei um cartão ainda mais bonito; colorido Catita; mas não encontrei por isso vai assim mesmo. (isto tudo é para fazer o mário morrer de inveja) Yan”. anita malfatti e Yan de almeida Prado (Veneza, 7 de julho de 1924)

“mario, tenha paciência, isto é melhor que o rio Grande do Norte... Tenho visto coisas ótimas. esta semana vou ao balé russo. Não há tempo para escrever cartas...” rubens borba de moraes (Paris, 23 de abril de 1929)