Les Choses

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georges perec As coisas Uma história dos anos sessenta Tradução Rosa Freire d’Aguiar

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  • georges perec

    As coisasUma histria dos anos sessenta

    Traduo

    Rosa Freire dAguiar

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  • Copyright 1965 by ditions Julliard, Paris

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalLes Choses

    CapaElisa v. Randow

    PreparaoAna Ceclia gua de Mello

    RevisoAdriana Cristina BairradaJane Pessoa

    [2012]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz ltda.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Perec, GeorgesAs coisas : uma histria dos anos sessenta / Georges Perec ;

    traduo Rosa Freire dAguiar. 1. ed. So Paulo : Companhia das Letras, 2012.

    Ttulo original: Les choses.isbn 978-85-359-2021-5

    1. Fico brasileira i. Ttulo.

    11-13895 cdd-869.93

    ndice para catlogo sistemtico:1. Fico : Literatura brasileira 869.93

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  • primeira parte

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    O olhar, primeiro, deslizaria sobre o carpete cinza de um corredor comprido, alto e estreito. As paredes seriam armrios de madeira clara, cujos ornamentos de cobre luziriam. Trs gravu-ras, representando, uma, Thunderbird, vencedor em Epsom, a segunda, um navio de ps, o Ville-de-Montereau, a terceira, uma locomotiva de Stephenson, levariam a um painel de couro, pre-so por argolas grossas de madeira preta com veios, e que um simples gesto bastaria para empurrar. Ento, o carpete daria lu-gar a um soalho quase amarelo, que trs tapetes de cores desbo-tadas cobririam parcialmente.

    Seria uma sala de estar, com cerca de sete metros de com-primento por trs de largura. esquerda, numa espcie de alcova, um grande sof de couro preto surrado teria de cada lado duas estantes de cerejeira clara nas quais livros se amontoariam, mis-turados. Acima do sof, um portulano ocuparia todo o compri-mento da parede. Mais para l de uma mesinha baixa, sob um tapete de orao, de seda, pendurado na parede por trs tachas de cobre de cabea grande, e que estaria em simetria com o

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    painel de couro, um outro sof, perpendicular ao primeiro, for-rado de veludo marrom-claro, levaria a um movelzinho alto sobre ps, laqueado de vermelho-escuro, guarnecido de trs pra-teleiras que sustentariam bibels: gatas e ovos de pedra, caixas de rap, bomboneiras, cinzeiros de jade, uma concha de madre-prola, um relgio de bolso de prata, um copo lavrado, uma pirmide de cristal, uma miniatura dentro de uma moldura oval. Mais adiante, depois de uma porta acolchoada, prateleiras su-perpostas, formando um ngulo, conteriam lbuns e discos, ao lado de um toca-discos fechado do qual s se veriam quatro botes de ao escovado, e que teria ao alto uma gravura repre-sentando o Grand dfil de la fte du Carrousel. Da janela, guar-necida com cortinas brancas e marrons imitando a estamparia de Jouy, se descobririam algumas rvores, um jardim minsculo, um pedao de rua. Uma escrivaninha de tampa de correr atulhada de papis, tinteiros, estaria acompanhada por uma poltroninha de vime. Uma mesinha ateniense sustentaria um telefone, uma agenda de couro, um bloquinho. Depois, para l de outra porta, depois de uma estante giratria, baixa e quadrada, sobre a qual estaria um grande vaso cilndrico de motivos azuis, cheio de ro-sas amarelas, dominado por um espelho oblongo dentro de uma moldura de mogno, uma mesa estreita, com duas banquetas es-tofadas de xadrez, levaria de novo ao painel de couro.

    Tudo seria marrom, ocre, fulvo, amarelo: um universo de cores meio desbotadas, em tons cuidadosamente, quase precio-samente dosados, no meio das quais surpreenderiam algumas manchas mais claras, o laranja quase berrante de uma almofada, alguns volumes coloridos, perdidos dentro de encadernaes. Em pleno dia, a luz que entraria abundantemente tornaria essa sala meio triste, apesar das rosas. Seria uma sala para a noite. Ento, no inverno, com as cortinas fechadas, alguns pontos de luz o canto das estantes, o dos discos, a escrivaninha, a mesi-

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    nha baixa entre os dois sofs, os vagos reflexos no espelho e grandes reas de sombras em que brilhariam todas as coisas, a madeira envernizada, a seda pesada e rica, o cristal trabalhado, o couro macio, ela seria refgio de paz, terra de felicidade.

    A primeira porta abriria para um quarto, de piso revestido por um carpete claro. Uma grande cama inglesa ocuparia todo o fundo. direita, de cada lado da janela, duas estantes estreitas e altas conteriam alguns livros incansavelmente retomados, l-buns, baralhos, vasos, colares, bugigangas. esquerda, um velho armrio de carvalho e dois cabideiros de madeira e cobre fica-riam defronte de uma poltroninha crapaud forrada de seda cinza com listras fininhas e de uma penteadeira. Uma porta entreaber-ta, dando para um banheiro, revelaria grossos roupes de banho, torneiras de cobre em forma de pescoo de cisne, um grande espelho regulvel, duas navalhas inglesas e seus estojos de couro verde, frascos, escovas de cabo de osso, esponjas. As paredes do quarto seriam forradas de algodozinho; a cama estaria coberta com uma manta escocesa. Uma mesa de cabeceira, cercada em trs faces por uma gradinha de cobre rendilhada, sustentaria um castial de prata rematado por uma cpula de seda cinza bem claro, um pequeno relgio quadrangular, uma rosa dentro de um copo de p e, sobre a prateleirinha inferior, jornais dobra-dos, algumas revistas. Mais adiante, ao p da cama, haveria um grande pufe de couro cru. Nas janelas, as cortinas de voile desli-zariam por trilhos de cobre; as cortinas duplas, cinza, de l gros-sa, estariam semipuxadas. Na penumbra, o quarto ainda estaria claro. Na parede, em cima da cama preparada para a noite, entre dois pequenos abajures alsacianos, a espantosa fotografia, preta e branca, estreita e comprida, de um pssaro em pleno cu sur-preenderia por sua perfeio um pouco formal.

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    A segunda porta revelaria um escritrio. As paredes, de alto a baixo, estariam cobertas de livros e revistas, tendo aqui e acol, para quebrar a sucesso de encadernaes e livros de capa mole, algumas gravuras, desenhos, fotografias o So Jernimo, de An-tonello de Messina, um detalhe do Triunfo de so Jorge, uma pri-so de Piranese, um retrato de Ingres, uma pequena paisagem pluma de Klee, uma fotografia amarelada de Renan em seu gabi-nete de trabalho no Collge de France, uma loja de departamen-tos de Steinberg, o Melanchthon de Cranach presos em pai-nis de madeira encastrados nas estantes. Um pouco esquerda da janela e levemente enviesada, uma mesa comprida em estilo loreno estaria coberta por uma grande pasta vermelha. Uns copi-nhos de madeira, tinteiros compridos, potes de todos os tipos con-teriam lpis, clipes, grampos, colchetes. Um tijolo de vidro servi-ria de cinzeiro. Uma caixa redonda, de couro preto, decorada com finos arabescos de ouro, estaria cheia de cigarros. A luz viria de uma velha luminria de escritrio, dificilmente regulvel, guarnecida de uma cpula de opalina verde em forma de viseira. De cada lado da mesa, quase uma defronte da outra, haveria duas poltronas de madeira e couro, com encostos altos. Ainda mais esquerda, ao longo da parede, uma mesa estreita estaria abarro-tada de livros. Uma poltrona Club de couro verde-garrafa levaria a arquivos metlicos cinza e a fichrios de madeira clara. Uma terceira mesa, menor ainda, sustentaria uma luminria sueca e uma mquina de escrever coberta por uma capa de oleado. L no fundo, haveria uma cama estreita, estofada de veludo azul-mari-nho, guarnecida de almofadas de todas as cores. Um trip de madeira pintada, quase no meio do escritrio, sustentaria um mapa-mndi de alpaca e papelo grosso, ingenuamente ilustra-do, falsamente antigo. Atrs da mesa, semiescondida pela cortina

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    vermelha da janela, uma escadinha de madeira encerada poderia deslizar por um trilho de cobre que daria a volta pelo aposento.

    A vida, ali, seria fcil, seria simples. Todas as obrigaes, todos os problemas decorrentes da vida material encontrariam uma soluo natural. Uma empregada l estaria toda manh. A cada quinze dias, viriam entregar o vinho, o leo, o acar. Ha-veria uma cozinha ampla e clara, com ladrilhos azuis ornados de brases, trs pratos de loua decorados de arabescos amarelos com reflexos metlicos, armrios por todo lado, uma bela mesa de madeira natural no centro, tamboretes, bancos. Seria agrad-vel ir sentar ali, toda manh, depois de um banho, parcialmente vestido. Haveria sobre a mesa uma grande manteigueira de cer-mica, potes de geleia, mel, torradas, pomelos cortados ao meio. Seria cedo. Seria o incio de um longo dia de maio.

    Eles rasgariam os envelopes das cartas, abririam os jornais. Acenderiam um primeiro cigarro. Sairiam. O trabalho deles s os ocuparia algumas horas, pela manh. Eles se reencontrariam para almoar, um sanduche ou um grelhado, dependendo do estado de esprito; tomariam um caf num terrao, depois volta-riam para casa, a p, devagar.

    O apartamento deles raramente estaria em ordem, mas a pr-pria desordem seria seu maior charme. Mal se ocupariam da casa: viveriam ali. O conforto do ambiente lhes pareceria uma obvieda-de, um dado inicial, um estado da natureza. A ateno de ambos estaria em outra coisa: no livro que abririam, no texto que escreve-riam, no disco que ouviriam, no seu dilogo reiniciado a cada dia. Trabalhariam muito tempo. Depois jantariam ou sairiam para jantar; encontrariam os amigos; dariam uma volta juntos.

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    s vezes pensariam que uma vida inteira poderia harmonio-samente transcorrer entre aquelas paredes cobertas de livros, entre aqueles objetos to perfeitamente domesticados que eles acaba-riam acreditando terem sido criados desde sempre unicamente para uso deles, entre aquelas coisas belas e simples, suaves, lumi-nosas. Mas no se sentiriam acorrentados aos objetos: certos dias, sairiam para a aventura. Nenhum projeto lhes seria impossvel. No conheceriam o rancor, nem a amargura nem a inveja. Pois seus recursos e seus desejos se harmonizariam em todos os pon-tos, em todos os tempos. Chamariam a esse equilbrio felicidade e saberiam, por sua liberdade, por sua sabedoria, por sua cultura, preserv-la, descobri-la a cada instante de vida em comum.

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