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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO LER, ESCREVER E ORAR: UMA ANÁLISE HISTÓRICA E COMPARADA DOS DISCURSOS SOBRE A EDUCAÇÃO, O ENSINO E A ESCOLA EM MOÇAMBIQUE, 1850 1950 Ana Isabel Madeira DOUTORAMENTO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO (Educação Comparada) 2007

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO

LER, ESCREVER E ORAR: UMA ANLISE HISTRICA E COMPARADA DOS

DISCURSOS SOBRE A EDUCAO, O ENSINO E A ESCOLA EM MOAMBIQUE,

1850 1950

Ana Isabel Madeira

DOUTORAMENTO EM CINCIAS DA EDUCAO

(Educao Comparada)

2007

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO

LER, ESCREVER E ORAR: UMA ANLISE HISTRICA E COMPARADA DOS

DISCURSOS SOBRE A EDUCAO, O ENSINO E A ESCOLA EM MOAMBIQUE,

1850 1950

Ana Isabel Madeira

Dissertao orientada pelo Professor Doutor Antnio Nvoa

DOUTORAMENTO EM CINCIAS DA EDUCAO

(Educao Comparada)

2007

Para a Madalena

AGRADECIMENTOS

H cerca de alguns anos um amigo meu ofereceu-me um livrinho composto por vrias

entrevistas de Michel Foucault. A certa altura, numa das entrevistas, o autor afirmava

tranquilamente: The transformation of ones self by ones own knowledge is, I think,

something rather close to the aesthetic experience (Foucault, 1988:14). Esta frase

aparentemente simples produziu em mim um efeito prodigioso. Levou-me descoberta da obra

do historiador-filsofo, cuja leitura me devolveu o entusiasmo e a ingenuidade dos meus

primeiros tempos de estudante, e enraizou no meu esprito a convico de que, nas mais

improvveis conjugaes, h oportunidades que se podem sempre transformar em

possibilidades para reflectir sobre o sentido esttico da vida. Diz-me a experincia que essas

oportunidades nos so dadas, quase que invariavelmente, pelos livros e pelos amigos. Estas

linhas so, pois, dedicadas a todos aqueles que me tm permitido continuar essa transformao,

esse processo contnuo de experincia de mim atravs das palavras e dos afectos.

Comeo por quem, neste como em tantos outros trabalhos, se dedicou precisamente a este

exerccio exemplar de devolver o que lhe foi dado conhecer e aprender o Professor Antnio

Nvoa. Sabemos, todos os que com ele trabalham, o modo como a qualidade do ser, do saber e

do agir se conjugam com uma intensidade difcil de compreender, ainda menos de alcanar. E

de que forma essa conjuno transborda para o nosso crescimento e enriquecimento. Tudo

quanto possa aqui ser dito a respeito desta formidvel oportunidade de aprendizagem e de

partilha no poder nunca fazer justia s possibilidades que abriu para a minha

transformao, com toda a liberdade, afecto e generosidade.

Encontrei na Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao da Universidade de

Lisboa um ambiente de rara harmonia onde o trabalho acadmico pode decorrer sem

sobressaltos. Na Unidade de Investigao, na figura do seu ex-Director Professor Albano

Estrela, encontrei o apoio institucional que a informalidade do seu modo de ser transformou em

cumplicidade acadmica. O Professor Rogrio Fernandes com a sua longa experincia e saber

aconselhou-me em muitas ocasies, reconduzindo o trabalho para leituras e fontes muito

pertinentes. O Professor Justino Magalhes soube escutar e compreender as dificuldades de

percurso relativamente minha aproximao histria da educao, ajudando-me a colmat-

las. A socializao na rede internacional Prestige permitiu-me um contacto estimulante com

muitos investigadores europeus e norte-americanos com os quais pude discutir aspectos

pontuais, mas essenciais, do trabalho de tese, em particular Antoinette Errante, Yasemin

Soysal, Thomas Popkewitz, Robert Cowen e Jrgen Schriewer. Os meus colegas de trabalho,

Jorge Ramos do e Lus Miguel Carvalho, e todos os companheiros de estrada que

passaram pelo seminrio de doutoramento o Jos Braz, o Antnio Carlos Correia, a Maria

Antnia Luz, a Ana Lcia Fernandes, a Laura Giro, o Csar Rufino, a Maria Flr Dias

contriburam, com os seus comentrios oportunos e as suas crticas pertinazes, para reformular

ou aprofundar questes da investigao. Uma palavra muito especial Rita Fava, Lgia

Penim e Clara Freire da Cruz pelo esprito de incentivo que derramaram nos dias menos

bons e pela solidariedade indefectvel destes ltimos anos. Devo ao meu amigo Antnio Manuel

Silva, exemplar da consistncia e da lealdade beirs, ter-me facultado o acesso a uma imensa

rede de relaes, sem a qual muito do trabalho aqui feito nunca teria visto a luz do dia.

Para alm da FPCE-UL, o meu trabalho pde contar com muitas mos amigas, entre as

quais as do Miguel Bandeira Jernimo, da Lusa Teotnio Pereira, do Mrio Lima Ribeiro, do

Jos Miguel Lopes, da Marilda da Silva, da Vera Gaspar, da Carla Castelo, do Joo Carlos

Paulo e da Slvia Martinez. O Professor Franz-Wilhelm Heimer, o Engenheiro Jos Manuel

Prostes da Fonseca, o Professor Corsino Tolentino e o Professor Adelino Cardoso

interessaram-se pelo meu trabalho, lanando sobre ele um imprescindvel olhar exterior.

A David Justino tenho a agradecer o apoio de sempre ao meu percurso acadmico e a

disponibilidade permanente para as minhas dvidas e hesitaes mesmo quando, por vezes em

circunstncias pessoais muito difceis, elas poderiam parecer a qualquer um perfeitamente

secundrias. A Joo Cravinho quero agradecer o apoio institucional e, principalmente, o

cuidado com que acompanhou a minha permanncia em Moambique, reconhecimento

extensivo ao adido cultural da Embaixada Portuguesa em Maputo, Jos Flvio Teixeira e sua

mulher, Ins Alves.

A Sociedade Missionria da Boa Nova teve neste trabalho um papel fundamental. No s

recebi dos missionrios um acolhimento caloroso no seminrio de Cernache do Bomjardim,

onde realizei parte da pesquisa, como me acolheram na sua casa de Maputo, em Moambique,

articulao que o Pe. Martinho, em Lisboa, e o irmo Antnio Lopes, em Maputo, geriram na

perfeio. O reitor do seminrio de Cernache, o Pe. Carlos Fernandes e, em Moambique, o

Pe. lvaro Patrcio, ambos recentemente desaparecidos, estaro sempre no meu pensamento.

Sem o enquadramento logstico e, sobretudo, espiritual que me proporcionaram teria sido

impossvel contornar situaes por vezes prximas do absurdo e, tenho que diz-lo, foi com um

inexcedvel carinho que procuraram, por todos os meios, assegurar o meu bem-estar e

segurana. A respeito da minha passagem por Maputo devo ainda um agradecimento especial

ao Dr. Antnio Sopa, ex-Director do Arquivo Histrico de Moambique, que me encaminhou

sabiamente no labirinto intricado do arquivo e me facultou a aquisio da maior parte das

imagens que so reproduzidas na tese.

A minha permanncia em Inglaterra no teria sido igualmente fcil no fora o apoio dos

meus amigos Elizabeth e Patrick Powlling, que me ofereceram guarida e transformaram o

tempo londrino numa feliz sensao de dj-vcu. Nas pesquisas conduzidas na biblioteca da

School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres pude contar com o

profissionalismo de Mrs. Barbara Turfan, cujas diligncias me pouparam esforos e recursos

preciosos. Continuadas em Lisboa, pelo profissionalismo da Dra. Cristina Lopes, do Dr. Jorge

Revez e do Dr. Armando Jorge Silva, da biblioteca da FPCE-UL, apoios indispensveis at ao

ltimo momento. Um caloroso agradecimento ao Professor Moreirinhas Pinheiro, da Escola

Superior de Educao de Lisboa, pela sua amabilidade e disponibilidade permanentes.

Mnica Raleiras, um muito obrigada pela pacincia e pela ajuda no arranjo do texto.

Como em todas as viagens, a da nossa transformao impossvel de separar das pessoas

que encontrmos pelo caminho. O Christian Becker, o Carlos Soares, o Rafael Calado, a J, o

Pedro Luz, a Zulmira e o Antnio Novo, o Pedro Branco, a Ana Filipa Figueiredo, a Vera

Miranda, o Jos Fanha, a Carolien e o Ludger van der Eerden fazem parte dessa cadeia de

conjugaes improvveis que nos habitam e devolvem o sentido esttico da vida.

A amizade e o companheirismo esto, na vida pessoal e profissional, agarrados uns aos

outros pelas entranhas. Tenho para com o Jos Reimo Pinto, eterno mecenas da minha

carreira, a dvida de toda uma formao, pessoal e profissional. Sem ele nada teria sido

possvel. O amor da minha filha Madalena est, como um raio de luz e de bondade, em tudo o

que me acontece nos dias que passam e aqui, unindo todas as palavras, corre a graa da maior

das amizades.

1

NDICE INTRODUO ................................................................................................................................... 13

Objecto............................................................................................................................................. 13 Campo .............................................................................................................................................. 13 Instrumentos de trabalho terico ..................................................................................................... 15 Problemtica.................................................................................................................................... 16 Argumentos ...................................................................................................................................... 19 O Arquivo......................................................................................................................................... 22

I P A R T E

CONSTRUO DE SABERES E PRTICAS DE COMPARAO............................................... 25

1. O tempo da experincia: a comparao que emerge do confronto ...............................................25

2. O tempo da cincia: a organizao das ordens empricas .............................................................34 A metfora mecnica: o racionalismo cartesiano.................................................................... 36 A metfora orgnica: a comparao da natureza..................................................................... 42

3. O tempo do homem: a emergncia das cincias humanas ............................................................47 Os viajantes naturalistas .......................................................................................................... 47 O saber sobre o homem: a construo de uma positividade especfica................................... 54 Colonialismo cientfico e colonialismo de estado................................................................... 61

4. A emergncia das cincias sociais e a constituio do campo das cincias da educao (sculos XIX XX) ..........................................................................................................................70

As cincias da educao.......................................................................................................... 74 Poder e saber: a pedagogia, a escola e o governo das almas................................................... 81 O quadro de emergncia da educao comparada................................................................... 87

5. As trajectrias do campo da educao comparada (sculos XX-XXI) .........................................95 A difuso do sistema escolar moderno e as lgicas do trabalho comparado........................... 95 A educao comparada face aos desafios do novo milnio .................................................... 99

6. Estudos comparados em histria da educao colonial ..............................................................105

6.1. Reconfiguraes no campo da histria da educao colonial .............................................105

6.2. A reconciliao da histria com a comparao ...................................................................111

6.3. Estudos comparados em histria da educao colonial: o espao lusfono ........................114 O objecto do discurso lusofonia........................................................................................ 114 A inscrio da lngua e a questo da identidade ............................................................... 120 Os usos da lngua e a retrica da uniformidade ................................................................ 130 A bandeira da lngua como arqutipo de ptria............................................................. 131 Lusofonia: espaos e modos de intercompreenso........................................................ 134

6. 4. A histria da educao colonial e o espao lusfono: a construo de um quadro intermdio de comparao..........................................................................................................136

A anlise do discurso colonial .......................................................................................... 144

2

I I P A R T E

OS DISCURSOS SOBRE A EDUCAO EM CONTEXTO COLONIAL: UMA ANLISE COMPARADA ENTRE A INGLATERRA, A FRANA E PORTUGAL (1890 1950)............... 149

1. Tipos nacionais, sistemas de governo e comparao de polticas educativas .........................149 O terceiro modelo .............................................................................................................. 150 Tipologias nacionais, polticas educativas e tipos de comparao........................................ 153

2. O colonialismo civilizador britnico: o discurso sobre a criao da comunidade africana.....158 O evangelho do trabalho.................................................................................................... 159 A redescoberta do indgena e a noo de bem-estar ...................................................... 163 Lord Hailey e a relativizao de An African Survey ............................................................. 167 A doutrina poltica da educao adaptada ......................................................................... 169 A educao adaptada e a revista Oversea Education ........................................................ 175

3. A misso civilizadora da Frana: cultivar a mente africana....................................................180 Governo indirecto e assimilao ........................................................................................... 184

4. A doutrina colonial da educao portuguesa: a verso portuguesa da civilizao ..................187

4.1. Projecto colonial e sistema de colonizao .........................................................................187

4.2. O regime de assimilao e as concepes sobre a poltica indgena ...................................189

4.3. A civilizao do indgena ....................................................................................................196 A lei do trabalho culto ....................................................................................................... 196 Salvar almas para Deus e educar corpos para o trabalho................................................... 204 A educao pelo trabalho: Freire de Andrade e a pedagogia do learning by doing .......... 210 Brito Camacho e a catequese do trabalho.......................................................................... 214 Norton de Matos: as escolas-oficinas ................................................................................ 216 O estatuto do assimilado e o estatuto da lngua..................................................................... 223 O jornal O Africano............................................................................................................... 225 Para concluir.......................................................................................................................... 229

4.4. Dinmicas metropolitano-coloniais e centro-periferia: o problema religioso, a questo do regime e os discursos sobre a educao.................................................................................233

As trs conferncias africanas ............................................................................................... 241 O esprito de simetria liberal e a laicizao do ensino .......................................................... 245 Frades ociosos, fervorosos missionrios ............................................................................... 246 O mtodo missionrio e a pedagogia da incorporao: a ameaa protestante ................... 253 A reforma do Colgio das Misses ....................................................................................... 257 A criao do Instituto de Misses Coloniais ......................................................................... 263 A criao das misses civilizadoras ...................................................................................... 266 O Boletim das Misses Civilizadoras ................................................................................... 268 O plano missionrio de Borges Granha: o livro e a enxada ............................................. 270

5. A difuso e apropriao de modelos e pedagogias de ensino adaptados s colnias africanas ..........................................................................................................................................276

A Fundao Phelps-Stokes e a educao do negro ............................................................... 276 As origens do conceito de educao adaptada................................................................... 279 Omer Buyse e Lducation dune race .............................................................................. 284 La main cultive: o currculo e a pedagogia do Instituto Hampton................................... 291 Os mtodos americanos e os discursos da educao pelo trabalho em Moambique ........... 294 O inqurito da African Education Commission..................................................................... 297 Os relatrios Phelps-Stokes sobre a educao na frica portuguesa: Angola e Moambique.......................................................................................................................... 301

3

A recepo portuguesa aos trabalhos da comisso de inqurito a Moambique................... 305

6. Dewey em frica ........................................................................................................................307 O movimento de reforma progressista .................................................................................. 307 As redes e os circuitos de circulao dos modelos pedaggicos em frica.......................... 312 O New Education Fellowship................................................................................................ 314 A conferncia Educational Adaptations in a Changing Society ........................................ 319 O impacto regional da conferncia ao nvel das polticas educativas ................................... 323 Dewey em frica: o autor e a conceptual personae ....................................................... 324 As apropriaes do discurso: Dewey no contexto colonial................................................... 327

I I I P A R T E

A CONSTRUO DOS ESPAOS DISCIPLINARES EM MOAMBIQUE (1849 1940/50)... 335

1. A instruo pblica na segunda metade do sculo XIX..............................................................336 Funcionamento das escolas de instruo pblica na provncia ............................................. 343 Mtodos de ensino e manuais escolares ................................................................................ 360 O impulso na instruo pblica na dcada de noventa.......................................................... 363

2. O ensino colonial durante a Repblica .......................................................................................373 Laicismo e educao : a Lei de Separao e o ensino em Moambique .............................. 378 A escola republicana e a instruo pblica em Moambique ............................................... 389

O culto da Ptria na Escola republicana colonial.............................................................. 394 O professor operrio e apstolo ................................................................................. 397 A harmonizao curricular ............................................................................................... 402 Manuais escolares ............................................................................................................. 403

A unificao do ensino e a segmentao da oferta escolar na transio da Repblica para o Estado Novo: lgicas contraditrias e estratgias de continuidade.................................... 408

O ensino rudimentar ......................................................................................................... 410

3. A competio pelas almas...........................................................................................................420 Colonialismo de estado e poder pastoral............................................................................... 420 O modelo missionrio republicano: as misses civilizadoras laicas ..................................... 432

BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................................. 459

1.Fontes...........................................................................................................................................459

1.1 Arquivos ...............................................................................................................................459

1.2 Livros, relatrios e artigos impressos ...................................................................................465

2. Bibliografia .................................................................................................................................474 ANEXOS.....507

4

NDICE DE DOCUMENTOS Documento I Categorias temticas dos artigos publicados na revista Oversea Education entre 1929 e 1949...................................................................................................................... 176

Documento II Programa do ensino das escolas para indgenas, 1908 ................................. 213

Documento III Planos de estudo do Colgio das Misses Ultramarinas aps as reformas de 1871 e 1884.............................................................................................. 262

Documento IV Plano de Estudos do curso complementar do Instituto de Misses Coloniais (1917)........................................................................................................................ 264

Documento V Hampton Institute. Programa de estudos da Escola Secundria Tcnica...... 294

Documento VI Redes e circuitos de difuso dos discursos sobre a educao adaptada ...... 314

Documento VII O Pragmatismo de Dewey e as suas apropriaes selectivas no contexto africano.................................................................................................................. 330

Documento VIII Proposta para a instalao de cadeiras de Instruo Pblica na provncia de Moambique pelo Governador Domingos Fortunato do Vale, em 1849 ........ 338

Documento IX Relao dos objectos que por no haver nenhuns para uso da Escola Principal de Instruo Primria da Provncia de Moambique se faz da maior urgncia que sejam mandados fornecer por Lisboa ................................................................. 345

Documento X Requisio de material anexa carta enviada pelo professor Alexandre das Dores Casimiro ao secretrio-geral da provncia de Moambique, em 1893 .. 347

Documento XI Comparao do nmero de escolas e de alunos da Colnia do Cabo, de Madagscar e de Moambique, 1879-1906 ......................................................................... 360

Documento XII: Escolas do ensino primrio em Moambique, 1909-1930............................. 378

Documento XIII Representao dos missionrios portugueses ao Governador-Geral de Moambique, em 1914.......................................................................................................... 382

Documento XIV Relao dos manuais recomendados pela Secretaria da Inspeco da Instruo Primria em Moambique, em 1919.................................................................... 405

Documento XV Currculo das escolas de artes e ofcios de Moambique (sexo masculino) 413

Documento XVI Currculo das escolas profissionais de Moambique (sexo feminino) ....... 413

Documento XVII Currculo das Escolas de Habilitao de Professores Indgenas ............. 414

Documento XVIII Resumo das misses estrangeiras protestantes estabelecidas nesta colnia, de conformidade com os ofcios da Repartio Autnoma de Justia e Cultos, n 352, de 7 de Setembro de 1934 e n 125, de 1 de Abril de 1935............................ 430

5

NDICE DE FIGURAS Figura I A banda da Misso de So Jos, em Loureno Marques, incios do sculo XX....... 344

Figura II Escola de Artes e Ofcios de Moambique, incio do sculo XX............................. 349

Figura III Escola de So Boaventura de Xirara, em Manica, incio do sculo XX ................ 351

Figura IV Escola Municipal Paiva Manso, em Loureno Marques, incio do sculo XX...... 354

Figura V Escola Central 1. de Janeiro, em Lourenco Marques, incio do sculo XX .......... 354

Figura VI Instituto Rainha D. Amlia, em Loureno Marques, incio do sculo XX ............. 355

Figura VII Alunos e alunas da escola da Sociedade de Instruo e Beneficincia 1. de Janeiro, em Loureno Marques, em 1911 ................................................................................. 356

Figura VIII Misso de So LusGonzaga de Malatane, no Angoche (Nampula), em incios do sculo XX ........................................................................................................... 359

Figura IX Vista area da Misso do Boroma, meados do sculo XX .................................... 365

Figura X Misso catlica portuguesa da Malaa, no incio do sculo XX: curativos aos indgenas ............................................................................................................. 371

Figura XI A igreja e a escola da misso portuguesa de So Jos, em Loureno Marques, em 1929 .................................................................................................................................... 388

Figura XII Escola de instruo pblica, em Nova Lusitnia, Beira, em 1929....................... 402

Figura XIII Escola de instruo pblica na Macia, Gaza, incios do sculo XX................... 408

Figura XIV - Oficina de sapataria na misso da Beira, incio do sculo XX ........................... 411

Figura XV Alunos e professores da mais antiga escola de preparao de professores de posto escolar de Moambique, no Alvor, Arquidiocese de Loureno Marques, meados do sculo XX ................................................................................................................ 415

Figura XVI Irms-professoras da Escola Oliveira Martins, e alunas, incios do sculo XX .................................................................................................................. 417

Figura XVII Misso catlica de Balama, Cabo Delgado, em meados do sculo XX ............ 426

Figura XVIII Misso de So Paulo de Messano, no Chai-Chai, no incio do sculo XX ...... 427

Figura XIX Alunos da misso de So Paulo de Messano, no Chai-Chai, incio do sculo XX.................................................................................................................... 429

Figura XX A Misso Civilizadora Cames. ........................................................................... 436

Figura XXI A Misso Ptria.. ................................................................................................ 439

Figura XXII A Cartilha Experimental ................................................................................... 442

Figura XXIII Os novos agentes de civilizao da Misso Cames. ...................................... 444

6

NDICE DE ANEXOS

Anexo I: Misses estrangeiras em Angola, segundo o relatrio Phelps-Stokes, em 1922........ 509

Anexo II: Misses estrangeiras em Moambique, segundo o relatrio Phelps-Stokes, em 1924 ..................................................................................................................................... 511

Anexo III: Transcrio do Ofcio Confidencial enviado pelo administrador da circunscrio de Inharrime ao Governador de Inhambane, 14/07/1924 ........................................................ 513

Anexo IV: Transcrio do Ofcio Confidencial enviado pelo administrador da Circunscrio de Inharrime ao Governador de Inhambane, em 18/07/1924 ................................................... 514

Anexo V: Transcrio do ofcio confidencial do governador de Inhambane ao Governador-Geral da Provncia de Moambique, em 19/07/1924 ............................................................... 515

Anexo VI: Transcrio do Ofcio Confidencial do administrador de Vila Nova de Gaza ao Governador de Inhambane, em 31/07/1924.............................................................................. 516

Anexo VII: Transcrio do Ofcio Confidencial enviado pelo professor e superintendente das escolas da circunscrio ao administrador de Inhambane, em 9/08/1924 ........................ 517

Anexo VIII: Transcrio da carta enviada pelo Cnsul dos Estados Unidos da Amrica em Loureno Marques ao Governador do distrito de Inhambane, em 16/07/1924........................ 518

Anexo IX: Alunos Matriculados nas Escolas da Prelazia de Moambique, por distritos, de 1910 a 1925 .......................................................................................................................... 519

Anexo X: Profisses e aproveitamento dos alunos da Escola de Artes e Ofcios de Moambique, 1908-1909 ...................................................................................................... 522

Anexo XI: Raas, religio e Idades dos alunos dos alunos da Escola de Artes e Ofcios de Moambique, 1908-1909 ...................................................................................................... 523

Anexo XII: Relao nominal dos alunos que frequentam a aula de instruo primria deste Distrito, com declarao da religio a que eles pertencem, suas idades, comportamento, frequncia e seu estado de adiantamento ................................................................................. 524

Anexo XIII: Mapa do movimento escolar do Instituto de Educao Rainha D. Amlia, desde a sua fundao at ao ano lectivo de 1907 .................................................................................. 528

Anexo XIV: Movimento dos alunos inscritos nas escolas rgias, municipais e particulares em Cabo Verde, 1870-1897....................................................................................................... 529

Anexo XV: Populao das escolas primrias da Provncia de Angola, 1885-1897 ................. 530

Anexo XVI: Nmero total de escolas primrias, por distrito, na Provncia de Angola referidas ao ano escolar de 1896-97......................................................................................... 531

Anexo XVII: Populao das escolas primrias na Provncia de Moambique, 1875-1886 ..... 532

Anexo XVIII: Professores das escolas principais e das escolas primrias inscritas nos oramentos das provncias ultramarinas, 1854-1900............................................................... 533

Anexo XIX: Populao da Provncia de Moambique no ano de 1908 .................................... 534

Anexo XX: Sumrio geral dos censos de 1904, 1911, 1921 e 1926 .......................................... 535

Anexo XXI: Evoluo do oramento eclesistico da Prelazia de Moambique, entre 1864 e 1910...................................................................................................................... 536

Anexo XXII: Movimento escolar, por distritos, da Provncia de Moambique, referente ao ano de 1906 .......................................................................................................................... 537

7

Anexo XXIII: Escolas da Provncia de Moambique, por distritos, com indicao dos seus directores, regentes e professores, em 1908 ............................................................................. 541

Anexo XXIV: Escolas na Provncia de Moambique, por distritos, pblicas e privadas, das misses portuguesas e estrangeiras, em 1910 (a) ..................................................................... 545

Anexo XXV: Nmero de misses, parquias e institutos de educao e ensino portugueses existentes na Provncia de Moambique, em 1910 ................................................................... 550

Anexo XXVI: Nmero dos missionrios entrados na Prelazia, desde 1830 at 1910, segundo as associaes a que pertenciam ................................................................................ 551

Anexo XXVII: Pessoal de ordens e congregaes religiosas existentes na Provncia de Moambique, em 1910 .............................................................................................................. 552

Anexo XXVIII: Legislao Publicada no Boletim Oficial de Moambique entre 1850 e 1950 relativa a Estatstica ................................................................................................................. 554

Anexo XXIX: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria, nos vrios distritos da provncia, entre 1907 e 1919 ................................................................................. 555

Anexo XXX: Misses religiosas no distrito de Loureno Marques, 1916 ................................. 556

Anexo XXXI: Confidencial do Secretrio dos Negcios Indgenas dirigida ao Governador-Geral, em 24/5/1915.................................................................................................................. 559

Anexo XXXII: Legislao publicada no Boletim Oficial de Moambique entre 1850 e 1950 relativa Instruo Pblica, elementar e rudimentar .............................................................. 560

Anexo XXXIII: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Loureno Marques, desde 1907 a 1919................................................................................ 565

Anexo XXXIV: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Gaza, desde 1907 a 1919 .................................................................................... 566

Anexo XXXV: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Inhambane, desde 1907 a 1919.......................................................................... 567

Anexo XXXVI: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Quelimane, desde 1907 a 1919 ........................................................................... 568

Anexo XXXVII: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Moambique, desde 1907 a 1919........................................................................ 569

Anexo XXXVIII: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Tete, desde 1907 a 1919...................................................................................... 570

Anexo XXXIX: Escolas do ensino primrio na provncia de Moambique, com indicao do pessoal docente e auxiliar, em 1916 .................................................................................... 571

Anexo XL: Mapa geral dos estabelecimentos de Ensino Primrio, na Provncia de Moambique, em 1919 .............................................................................................................. 577

Anexo XLI: Legislao publicada no Boletim Oficial de Moambique, entre 1850 e 1950, relativa a misses religiosas, misses laicas e cultos ............................................................... 581

Anexo XLII: Nmero de escolas e de alunos matriculados no ensino primrio nas escolas da Provncia de Moambique entre 1850 e 1950...................................................................... 584

Anexo XLIII: Movimento dos alunos do ensino primrio, elementar e rudimentar, nas escolas pblicas e particulares da Provncia de Moambique, em 1930 ................................. 586

Anexo XLIV: Alunos matriculados no Ensino Primrio Elementar na Provncia de Moambique, em 1930 .............................................................................................................. 595

Anexo XLV: Organizao do cadastro das misses estrangeiras, 1948................................... 596

8

Anexo XLVI: Nmero e localizao das sedes e sucursais das misses protestantes estrangeiras na Provncia de Moambique, em 1930 ............................................................... 597

Anexo XLVII: Nmero e nacionalidade do pessoal missionrio na Provncia, em 1930 ......... 598

Anexo XLVIII: Misses estrangeiras protestantes estabelecidas na colnia de Moambique, por circunscrio, em 1932....................................................................................................... 599

Anexo XLIX: Movimento das Misses Civilizadoras para Angola e Moambique, 1920-1925 ................................................................................................................................. 601

Anexo L: Movimento escolar das misses laicas ...................................................................... 606

Anexo LI: Nmero de escolas do ensino primrio, em Moambique, entre 1885 e 1909......... 607

Anexo LII: Mapa estatstico da frequncia dos alunos das escolas missionrias de ensino primrio, por distritos, na Provncia de Moambique, entre 1893 e 1909............................... 608

Anexo LIII: Mapa estatstico da frequncia dos alunos das escoals missionrias de ensino primrio, por distritos, na Provncia de Moambique, entre 1893 e 1909............................... 611

Anexo LIV: Alunos matriculados nas escolas da Prelazia de Moambique, por distritos, de 1910 a 1925 .......................................................................................................................... 612

Anexo LV: Nmero de alunos matriculados nas escolas das misses catlicas portuguesas segundo os dados fornecidos pelo Anurio de 1930 ................................................................. 614

Anexo LVI: Movimento escolar do ensino primrio na colnia de Moambique, 1931........... 615

Anexo LVII: Frequncia das escolas do distrito de Loureno Marques, 1931......................... 616

Anexo LVIII: Escolas do ensino primrio elementar e rudimentar, pblicas e privadas, no distrito de Loureno Marques, 1931 .................................................................................... 617

Anexo LIX: Frequncia das Escolas do distrito de Inhambane, 1931 ...................................... 618

Anexo LX: Populao da Provncia de Moambique no ano de 1908...................................... 619

Anexo LXI: Sumrio geral dos censos de 1904, 1911, 1921 e 1926 ......................................... 620

Anexo LXII: Distribuio da populao escolar, por sexos, na colnia de Moambique, 1931........................................................................................................................................... 621

Anexo LXIII: Representao das raas na populao escolar da colnia de Moambique, 1931........................................................................................................................................... 622

Anexo LXIV: Governos de Portugal e das Colnias, 1850-1950.............................................. 623

9

SIGLAS

ABFMS American Baptist Foreign Mission Society

ACEC - Advisory Committee on Education in the Colonies

AHM Arquivo Histrico de Moambique

AHU Arquivo Histrico Ultramarino

AMA - American Missionary Association

AOF frica Ocidental Francesa

BIE Bureau International dducation

BIEN Bureau International des coles Nouvelles

BM Banco Mundial

BMC Boletim das Misses Civilizadoras

BN Biblioteca Nacional

CMS Church Mission Society

COLP Coleco Oficial de Legislao Portuguesa

CPLP- Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa

GALM Grmio Africano de Loureno Marques

IJJR Instituto Jean-Jacques Rousseau

IMC International Missionary Council

IOE Institute of Education

IRM International Review of Missions

LIEN Ligue Internationale de lducation Nouvelle

LMS London Missionary Society

NEF New Education Fellowship

OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico

SDN Sociedade das Naes

SGL Sociedade de Geografia de Lisboa

SOAS - School of Oriental and African Studies

TC Teachers College

UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

WMMS Wesleyan Methodist Missionary Society

10

11

RESUMO

O objecto de anlise deste trabalho so os discursos produzidos em torno da educao,

do ensino e da escola no horizonte temporal que compreende as datas limite 1850-1950.

Estes discursos constituem parte integrante do empreendimento colonial, sendo

esboados em enunciados acerca das finalidades, objectivos e funes da socializao

escolar. O projecto de tese tem por horizonte a descrio destes enunciados para

analisar as transformaes e apropriaes de que so objecto os discursos sobre a

educao, o ensino e a escola nas colnias africanas. a partir dessa descrio que se

analisa a composio interna do saber construdo acerca da educao colonial e o modo

como ele d lugar a um conjunto de estratgias destinadas a regular as prticas dos

governos, das instituies, dos grupos, dos indivduos. Os enunciados sobre a educao,

o ensino e a escola referem-se regio de acontecimentos que liga entre si os espaos

metropolitanos aos coloniais envolvendo trs unidades lingusticas distintas: o universo

lusfono, o anglo-saxnico e o francfono. Eles planos de anlise, formalmente

distintos uns dos outros, encontram-se ligados entre si por dois processos dialogantes.

Por um lado, os mecanismos de difuso de modelos estandardizados de organizao

educacional escala global, que promovem a internacionalizao e a integrao supra-

nacional das estruturas educativas; por outro, os mecanismos de recepo especficos

associados indigenao destes pressupostos culturais, adaptando-os diversificao

intra-nacional e a configuraes regionais e locais particulares. O trabalho de tese

assenta no cruzamento da perspectiva histrica com a da educao comparada matriz

segundo a qual se procura construir um olhar alternativo onde os sentidos da histria

possam exprimir-se, no segundo uma nica e inexorvel direco, mas no registo da

contingncia e da descontinuidade.

PALAVRAS-CHAVE:

Educao Comparada, Histria da Educao, Histria da Educao Colonial, Anlise do

discurso educacional, Poltica educativa, Colonialismo, Ensino primrio, Educao

missionria, Educao vocacional.

12

ABSTRACT

This paper analyses the discourses produced with regard to education, teaching and the

school in the 1850-1950 time period. These discourses are an integral part of the

colonial enterprise, with carefully drawn up goals, objectives and functions of school

socialisation. This thesis aims to describe these policies and analyse the transformations

and appropriations that are the object of discourses concerning education, teaching and

the school in the African colonies. Based on this description an analysis is carried out of

the internal make-up of the constructed knowledge on colonial education and the way it

paves the way to a set of strategies put in place to regulate the practices of the

governments, institutions, groups and individuals. The policies on education, teaching

and the school refer to the region of events that link the mother country cities and the

colonies encompassing three different linguistic units: the Portuguese-speaking world,

the English-speaking world and the French-speaking world. These plans of analysis,

formally different from one another, are interconnected through two dialogue processes.

On the one hand the mechanisms of dissemination of standardised models of

educational organisation on a global scale, which promote the internationalisation and

supra-national integration of the educational structures; on the other hand, the

mechanisms of reception specifically associated with the indigenation of these cultural

presuppositions, adapting them to the intra-national diversification, regional set-ups and

local particularities. This thesis is based on cross-referencing the historical perspective

with the compared education perspective framework in order to seek an alternative look

whereby the meanings of history can be expressed not in accordance with a single and

inexorable direction, but rather in the register of contingence and discontinuity.

KEYWORDS:

Comparative Education, History of Education, History of Colonial Education;

Education discourse analysis, Educational policy, Colonialism, Elementary Education,

Missions Schools, Vocational Education.

13

INTRODUO Objecto

A matria-prima, objecto de todas as anlises deste trabalho, so os discursos

produzidos em torno da educao, do ensino e da escola no horizonte temporal que

compreende as datas limite 1850-1950. A estas dimenses correspondem um conjunto

de coordenadas espaciais e geogrficas. Os enunciados sobre a educao, o ensino e a

escola referem-se regio de acontecimentos que liga entre si os espaos

metropolitanos aos coloniais envolvendo trs unidades lingusticas distintas: o universo

lusfono, o anglo-saxnico e o francfono. No quadro do universo metropolitano-

colonial lusfono, Moambique constitui uma plataforma de observao privilegiada,

procurando estabelecer um dilogo comparativo com os outros espaos imperiais. O

projecto de tese tem por horizonte a descrio dos enunciados para analisar as

transformaes e apropriaes de que so objecto os discursos sobre a educao, o

ensino e a escola nas colnias africanas. a partir dessa descrio que se analisa a

composio interna do saber construdo acerca da educao colonial e o modo como ele

d lugar a um conjunto de estratgias destinadas a regular as prticas dos governos,

das instituies, dos grupos, dos indivduos.

Campo

Sem dvida que as diferentes obras, a massa de textos, os livros dispersos que falam e

produzem este saber se encontram inscritos num conjunto de possibilidades. O arquivo

encontra-se desta maneira fundado num a priori histrico constitudo pelo sistema que

regula o surgimento de determinados enunciados, que agrupa as coisas em figuras

distintas, que compe quadros, que define o modo de actualizao dos objectos,

conceitos e problemas de que tratam os acontecimentos discursivos. A possibilidade de

descrever estes acontecimentos, como nos foi dado a perceber por Michel Foucault nas

obras As Palavras e as Coisas (1998 [1966]), A Arqueologia do Saber (2005 [1969]) e

A Ordem do Discurso (1977 [1971]), implica um conjunto de procedimentos a que farei

referncia no corpo do trabalho. Terei a oportunidade de explicitar os pressupostos que

estabelecem o compromisso com uma leitura particular do arquivo, enumerando os

14

procedimentos que me permitiram descrever os acontecimentos discursivos e chegar,

tanto quanto possvel, a um conjunto de regras, singularidades e relaes. Esse exerccio

de clarificao ter um momento principal na I Parte do trabalho, dedicada

Construo de saberes e prticas de comparao. O que aqui se procura pr a

descoberto , por um lado, o processo histrico de construo de um saber sobre a

comparao, entendido como um campo onde emergem discursos verdicos na

continuidade da cincia com a experincia, e, por outro, o conhecimento que

produzido por um conjunto de elementos (objectos, tipos de formulao, conceitos e

escolhas tericas) para formar uma determinada positividade (Foucault, 2001c). este

mesmo compromisso que atravessa o trabalho na ntegra, analisando, na II e na III

Partes, os diferentes domnios em que esse saber se constitui (outras cincias,

condies econmicas, sociais, polticas e histricas), produzindo, sob diferentes

ngulos, discursos acerca de um conjunto de objectos. Deste modo, a tese explora

diversos tipos de discursos de verdade; no apenas os enunciados doutrinrios

(filosofias, discursos religiosos e jurdicos) que falam de um conjunto de temas e

problemas, mas tambm os discursos cientficos que tornam possvel pens-los,

apresentando conceitos e mtodos para a sua abordagem num determinado espao-

tempo. O arquivo constitudo por este sistema de enunciados compreende, assim, uma

determinada regio de acontecimentos, delimitados por princpios de agrupamento, e a

sua materializao em temas, conceitos e problematizaes, que do origem a um

conjunto de prticas discursivas sobre a educao dos africanos. Estes princpios de

agrupamento so delimitados, na II Parte, segundo a funo de autor, os rituais de

palavra, as sociedades de discurso, os grupos doutrinrios e as apropriaes sociais; e,

na III Parte, pelo discurso estatstico e pelas formas jurdicas.

Os desenhos globais e as histrias locais que entrelaam estas narrativas

delimitam um feixe de problemas tericos e metodolgicos pertencentes ao campo da

Histria da Educao, cuja extenso para o domnio da histria da educao colonial

constitui um aprofundamento indispensvel. No entanto, no procurarei aqui oferecer

uma histria da educao em Moambique, nem uma resenha crnica acerca da

educao, do ensino ou da escola em contexto colonial. O territrio deste trabalho o da

arqueologia a descrio intrnseca do documento, a acumulao ou a rarefaco de

acontecimentos discursivos , todo um sistema de relaes que pressupe, para

respirar, o exerccio sistemtico da comparao.

15

Para a anlise arqueolgica a materialidade dos enunciados no independente

dos seus campos de utilizao, da circulao entre e dentro de redes, onde se oferecem a

transferncias e modificaes. Neste pressuposto, a tese explora um conjunto de

ligaes complementares, ainda que distintas umas das outras, sobre os modos de

produo, circulao e apropriao desse saber, quer entre as metrpoles e as colnias,

quer no interior dos espaos coloniais, quer, por ltimo, ao nvel regional e local.

Analisar os processos de produo, circulao e apropriao de discursos a partir de

uma perspectiva exterior oferece-nos um ponto de observao privilegiado para analisar

o modo como estes discursos se inscrevem em prticas de incorporao educativa, em

modelos de escola ou pedagogias de ensino. Contudo, no apenas nessa dimenso

vertical. Pela escala e amplitude aqui implicadas, a dimenso comparativa d-nos

acesso aos processos de mundializao educativa, no caso presente nas suas derivas

perifricas, assim como torna possvel ligar discursos produzidos a grande distncia a

conjuntos de regies coloniais pertencentes a diferentes naes.

O cruzamento da perspectiva histrica com a comparao faz parte de um

processo de renovao do trabalho em Cincias da Educao, matriz segundo a qual se

procura fazer uso deste instrumental terico, procurando construir um olhar alternativo,

uma outra narrativa, onde os sentidos da histria possam exprimir-se no segundo uma

nica e inexorvel direco, mas no registo da contingncia e da descontinuidade. Esta

ambio corresponde, como Foucault fez notar, tentativa de trabalhar no horizonte de

uma histria geral, empresa a que se dedicou na Histoire de la folie (1961), Naissance

de la clinique (1963) e Les Mots et les Choses (1966). No que me dado a trabalhar,

sob o seu exemplo e estmulo, a histria geral constitui o meu escopo metodolgico e,

ao mesmo tempo, a figura epistemolgica que lhe serve de utopia.

Instrumentos de trabalho terico

A opo pela linguagem conceptual de Foucault est presente neste trabalho a diversos

nveis. Na escolha da periodizao longa, na aposta de uma leitura atenta s

descontinuidades e rupturas, na importncia atribuda s transformaes-apropriaes e

aos deslocamentos, por vezes inverso dos acontecimentos. Quando a anlise se

desloca entre nveis e dimenses de interpretao formal, o esquema de decifrao

foucauldiano acolhe a contradio, ajuda a identificar os pontos de fuga, atende

16

difraco do campo enunciativo. A fragmentao do arquivo e a descrio arqueolgica

pareceram-me, desde o incio, formar uma articulao espontnea. A organizao da

leitura do arquivo e a prpria escrita da tese, expressamente escandida, resultaram dessa

opo quase natural. O meu Foucault , claramente, o dos primeiros trabalhos, o da

Arqueologia, o que confronta os documentos e os analisa nas suas justaposies,

contradies ou descontinuidades; e, ao mesmo tempo, o Foucault epistemlogo que

questiona o estatuto da cincia, da sua histria e dos seus conceitos. Todo este percurso

tem parte com a minha aprendizagem na rea das Cincias da Educao, suscitando

uma auto-reflexo crtica que encontra na histria das cincias e, em particular, nos

campos disciplinares da histria da educao e da educao comparada, um mundo

contguo de novas exploraes. Ao nvel das especificaes internas de cada um dos

campos disciplinares, o trabalho acolhe um conjunto de perspectivas tericas que so

mobilizadas, quer para a meso e micro escala, quer para a amplitude macro dos grandes

espaos mundiais. Uma vez que o meu objecto so os discursos nos seus

desdobramentos em formaes e prticas discursivas, funes enunciativas e

enunciados , preciso clarificar em que termos e condies aquelas perspectivas iro

ser incorporadas.

Problemtica

Os discursos sobre a educao, o ensino e a escola constituem parte integrante do

empreendimento colonial, sendo esboados em enunciados acerca das finalidades,

objectivos e funes da socializao escolar. Eles articulam dois planos de anlise,

formalmente distintos um do outro, mas ligados entre si por dois processos dialogantes.

Por um lado, os mecanismos de difuso de modelos estandardizados de organizao

educacional escala global, que promovem a internacionalizao e a integrao supra-

nacional das estruturas educativas; por outro, os mecanismos de recepo especficos

associados indigenao destes pressupostos culturais, adaptando-os diversificao

intra-nacional e a configuraes regionais e locais particulares (Schriewer, 1993). O

contexto colonial constitui uma destas configuraes particulares, um local onde, tanto

os processos de difuso global, como os de recepo, especficos, se inscrevem em

percursos histricos e processos scio-culturais de grande complexidade.

17

Para analisar estas relaes complexas, as perspectivas do sistema mundial

fornecem um quadro interpretativo estimulante acerca da difuso de modelos

estandardizados de organizao educacional escala global (Ramrez e Rubinson, 1979;

Ramrez e Boli, 1987; Meyer, Boli, Thomas e Ramrez, 1997). A noo de cultura

educativa mundial fundamental para problematizar a estruturao expansiva de um

modelo de sociedade, um fenmeno interpretado por estes autores como o imperativo

institucional e a estratgia de organizao mais consistente com o desenvolvimento de

um modelo de sociedade nacional na Europa ocidental. Contudo, o argumento que

defende a ligao dos indivduos construo de uma unidade unificada, representada

pelo Estado-nao, atravs da universalizao da escola moderna esse poder

homogeneizador que se exerce sobre o colectivo de alguma forma incompatvel com

a observao emprica que documenta a existncia de diferenas (institucionais e

organizacionais) entre os sistemas escolares metropolitanos e os coloniais (Altbach &

Kelly, 1978; Adick, 1989, 1992 e 1993). Poder-se-ia ento dizer que a cada desenho

global correspondem inmeras histrias locais, to diversas quanto complexas.

A anlise, a montante e a jusante, destas descontinuidades faz apelo a um

entendimento renovado acerca do encontro colonial, e da prpria cultura colonial que

produzida por intermdio deste encontro. De facto, a dimenso cultural dos processos

de colonizao, com as suas tecnologias de dominao simblica, vai muito alm da

transplantao dos projectos coloniais metropolitanos para o contexto colonial,

materializados na organizao de sistemas escolares destinados a criar unidades

polticas homogneas. O conceito colnias aqui entendido como uma configurao

cultural especfica onde hbitos, costumes e moralidade europeias se reconstituem numa

nova ordem social e cultural. Torna-se ento necessrio compreender os mecanismos,

mas tambm os mediadores (individuais e institucionais) que operam esta articulao

metropolitana-colonial, que traduzem os discursos doutrinrios, cientficos e religiosos,

em programas e prticas de governo destinadas criao de sujeitos coloniais, ou

melhor, de sujeitos colonizados. neste registo que se situam as perspectivas da nova

antropologia histrica (Comaroff & Comaroff, 1991 e 1992; Thomas, 1994; Cooper,

1994; Cooper & Stoler, 1999) e as teorias ps-coloniais (Bhabha, 1997; Spivack, 1990;

Loomba, 1994 e 1998; Said; 1993; Gandhi, 1998; Mignolo, 2000 e 2002). Trata-se de

duas correntes que convergem na crtica, quer das narrativas da historiografia

tradicional, quer das metanarrativas nacionalistas, propondo enquadramentos

conceptuais to distintos como os da crtica ps-estruturalista, os da antropologia

18

cultural e simblica, ou os do novo historicismo (Nvoa, 1997). Para alm do seu

ecletismo conceptual, estas perspectivas recuperam muitas das idealizaes de Foucault

materializando-as na anlise da nova ordem colonial.

Se certo que os estudos culturais vieram oferecer solues para alguns

problemas existentes na anlise do encontro colonial, no menos certo que vieram

criar outros. A importncia do espao local e a aco de um discurso histrico

incorporado na historicidade do sujeito, fazem parte de um quadro de cepticismo ps-

moderno que tem tendncia a desvalorizar a interferncia dos processos sociais,

polticos e econmicos de alcance internacional ao nvel das periferias coloniais,

nomeadamente em frica. Os movimentos religiosos, os processos de dominao

imperialista modernos e a transformao do prprio sistema tcnico ocidental avultam

como alguns dos factores cujo impacte nas colnias europeias de frica no pode

certamente ser ignorado, tanto mais que eles se conjugaram para reconfigurar os

sistemas coloniais de acordo com lgicas de dominao incompatveis com engenharias

financeiras de curto prazo. Quero contudo esclarecer, desde j, que o meu trabalho no

partilha da tese antieconmica (Hammond, 1966), nem se coloca do lado das teses da

colonizao defensiva (Capela, 1974; Papagno, 1980), para tentar escamotear as

circunstncias econmicas de natureza estrutural e conjuntural que impulsionaram (ou

travaram) o colonialismo portugus em frica. Dito isto, facto que, nas ltimas

dcadas, a historiografia do colonialismo portugus teve tendncia a privilegiar, ora as

dimenses polticas, ora scio-econmicas, em detrimento de uma abordagem cultural

do encontro colonial. Informada pelas teorias da modernizao e da dependncia, a

investigao bifurcou-se em dois tipos de formulao: uma, ligada aos conceitos de

progresso e de civilizao; a outra, orientada para a anlise do colonialismo como um

processo de dominao imperialista. A partir destas teses desenvolveram-se duas

tradies na leitura dos processos de colonizao: a primeira, edificada sobre o

paradigma multissecular, mobilizou o arqutipo de cinco sculos de colonizao

africana para veicular uma concepo historicista/essencialista da colonizao

portuguesa. Em oposio ao paradigma da gesta civilizacional, a segunda deriva optou

pela dialctica dos ciclos de dominao/oposio, caracterstico das metanarrativas de

resistncia (Plissier, 1994; Clarece-Smith, 1985). Mobilizando retricas formalmente

opostas, ambas as explicaes no lograram ultrapassar duas questes epistemolgicas

fundamentais. Por um lado, a perspectiva dos processos de colonizao como um

movimento evolucionista teleolgico, quer rumo ao progresso e ao desenvolvimento,

19

quer conducente explorao e opresso; por outro, a construo de um conhecimento

assente na segmentao dos campos econmico, poltico e cultural, consagrando uma

distino entre as dimenses ditas materiais (o mercado, o Estado, as instituies) e as

dimenses consideradas simblicas (as questes da lngua, as experincias

intersubjectivas, as representaes sobre o outro, a identidade, etc.).

Creio que a leitura do projecto colonial portugus entendido como o reflexo

directo de interesses, causas, foras e bloqueios, tanto econmicos como polticos, nega

qualquer possibilidade de entender a dimenso plural dos processos de colonizao (nas

suas componentes econmicas, polticas, religiosas, militares, culturais) que se

encontram imbricados uns nos outros. Recusarei, portanto, explicar o cultural pelo

econmico, o social pelo poltico, o simblico pelo material (e vice-versa). A minha

proposta de trabalho outra e tem uma nica pretenso. Encontrar na anlise dos

discursos sobre a educao, o ensino e a escola algumas linhas de fora que permitam

compreender os princpios subjacentes construo do sujeito colonial. Dito de outra

forma, interessa-me sobretudo tornar inteligvel o processo de produo-apropriao de

conhecimento educacional, no plano metropolitano-colonial, e o modo como foi

possvel transformar este saber numa pedagogia de sujeio destinada construo, ao

nvel local, de estratgias de incorporao educativa.

Argumentos

Durante o sculo que alcana o conjunto de acontecimentos que so objecto deste

trabalho, produzem-se modificaes essenciais no sistema geral de saber, tambm ele

constitudo por um conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prtica

discursiva. Nesse sentido, considerei importante tentar definir o quadro de positividades

sobre o qual se estabeleceram as condies de possibilidade para o exerccio da

comparao. A I Parte do trabalho Construo de saberes e prticas de comparao

concentra-se na explorao do percurso histrico que assegura ao conhecimento

obtido atravs da comparao um estatuto verdico. A reconstituio dos discursos

sobre a comparao procurar demonstrar que, atravs da figura epistemolgica mtodo

comparativo, se estabeleceram relaes entre diversos campos de saber e que,

independentemente dos graus de formalizao prprios a cada cincia, a regularidade

com que esta figura atravessou as vrias disciplinas foi determinante para a

20

institucionalizao de novos domnios cientficos. Sublinharei, a este propsito, na

transio do sculo XVII para o sculo XVIII, a conjugao de efeitos que relacionaram

o desenvolvimento da investigao cientfica com a expanso do conhecimento

proporcionado pelas viagens de explorao. Defenderei que as prticas de representao

e as prticas de comparao, separadas umas das outras pelas questes de mtodo,

nunca deixaram de apoiar-se mutuamente para hierarquizar, classificar e ordenar, em

funo de teorias, doutrinas e filosofias, o homem e o seu devir. Tentarei mostrar que,

no quadro das cincias sociais e humanas, a comparao cientfica tem sobretudo

produzido, a expensas do seu poder descritivo e classificatrio, um saber estabilizador e

totalitrio, reconduzindo permanentemente a figura do outro ao mesmo. Estas questes

so objecto de aprofundamento nos sub-captulos O tempo da experincia, O tempo da

cincia e O tempo do homem. Este conjunto de ideias importante para compreender a

relao entre o conhecimento cientfico e o controlo poltico do conhecimento, saber

cujo domnio desempenhar, efectivamente, um papel essencial na misso do ocidente

para com os povos primitivos. As prticas discursivas apoiadas nos enunciados

cientficos constituram frequentemente prolongamentos das crnicas de conquista, das

narrativas religiosas, das doutrinas polticas, no devendo, portanto, ser consideradas

como elementos do discurso exteriores, ou analiticamente independentes, de uma

racionalizao, pura e simples, da representao.

No ponto A emergncia das Cincias Sociais e a constituio do campo das

Cincias da Educao, situarei a emergncia deste espao de problematizaes,

distinguindo-o dos que foram entretanto ocupados por outras disciplinas sociais a

psicologia, a sociologia, as cincias polticas analisando, simultaneamente, o conjunto

de dinmicas acadmicas, profissionais, polticas que atravessaram aquele campo de

produo de saberes. No sub-captulo seguinte, Poder e saber: a pedagogia, a Escola e

o governo das almas, discute-se a emergncia da escola moderna, no apenas como

componente central do modelo de Estado-nao, mas tambm como um novo

mecanismo de regulao social. Procuro a sublinhar a importncia da escola como um

mecanismo simultaneamente de integrao e de diferenciao, de legitimao simblica

e de modernizao, de cultura nacional e universalismo cientfico. No ponto que trata

das Trajectrias do campo da educao comparada, a problemtica incide na

emergncia de campos de especializao derivados, no caso, o da educao comparada.

Retomo a a questo da diferenciao funcional entre pedagogia e cincia da educao

para analisar o contexto de emergncia do cnone comparativo, polarizado entre uma

21

concepo praxeolgica e outra, axiolgica, da produo de conhecimentos. Serve esta

reflexo para analisar os prolongamentos no espao interno da disciplina, para

compreender os seus desenvolvimentos e identificar as suas possibilidades de

renovao. A I Parte Construo de saberes e prticas de comparao, encerra com

uma reflexo sobre os as condies que tornam possvel questionar, do ponto de vista

terico e metodolgico, os temas da educao, do ensino e da escola no espao

lusfono, a comear pelo questionamento do prprio conceito de lusofonia. A so

sugeridas questes de trabalho, problematizaes e estratgias de investigao,

susceptveis de integrar metodologias comparadas na anlise do colonialismo.

A II Parte da tese Os discursos sobre a educao em contexto colonial: uma

anlise comparada entre a Inglaterra, a Frana e Portugal consiste numa anlise do

discurso educativo em contexto colonial, desdobrada em diversos nveis. Os trs

primeiros captulos estabelecem, no plano das dimenses de comparao, os modelos

tipo que configuram o campo discursivo, procurando fazer ressaltar as regularidades e

descontinuidades inscritas nas polticas dos trs imprios coloniais. A se identificam os

principais temas, problemas e conceitos que atravessam as prticas discursivas e os

mediadores destinados a pr de p estratgias de governo, programas de aco e

tecnologias de incorporao educativa concretas. A referncia aos projectos educativos

britnico e francs procura situar as opes de poltica educativa lusfonas, associadas a

vises contraditrias acerca do papel do indgena (e do europeu) no processo de

colonizao. O quarto captulo, A doutrina colonial da educao portuguesa, atenta

precisamente no conjunto de estratgias metropolitano-coloniais que tecem uma malha

de argumentos caracterizados por uma multiplicidade de projectos polticos, concepes

pedaggicas e teorias cientficas. Tenta-se a demonstrar que os debates sobre a

educao colonial incorporaram doutrinas com origem em campos de produo

discursiva transversais aos da pedagogia, nomeadamente de ordem poltica e religiosa,

com efeitos pesados sobre o processo de expanso (e contraco) da oferta escolar e do

tipo de ensino destinado massa indgena. O processo de internacionalizao dos

discursos pedaggicos, nas primeiras dcadas do sculo XX, constitui objecto do

captulo sobre A difuso e apropriao de modelos e pedagogias de ensino adaptado s

colnias africanas. O meu propsito ser, ento, mostrar que a doutrina da educao

adaptada constitui como que uma lei geral dos discursos sobre a educao em

contexto colonial, transgredindo espaos nacionais, atravessando conjunturas temporais

e regimes de governo, sendo capaz de integrar, em simultneo, formulaes jurdicas,

22

doutrinas, filosofias e discursos cientficos. Defenderei que esta lei geral, nas suas

apropriaes particulares, contribuiu para a difuso de um modelo de educao, de

ensino e de escola destinado aos africanos, assente num conjunto de princpios

totalmente diferentes daqueles que haviam justificado a expanso da escola pblica nas

metrpoles. No ltimo captulo da II Parte Dewey em frica procurarei aprofundar

este argumento, assinalando a conjugao da doutrina da educao adaptada com o

evangelho progressista americano e com o pragmatismo. Defenderei a propsito que

esta articulao foi essencial para construir um discurso reformista colonial assente na

reverso dos princpios fundamentais da pedagogia e dos ideais democrticos do

prprio Dewey, no sentido de justificar um tipo de educao adaptado s comunidades

africanas.

A III Parte A construo dos espaos disciplinares explora a sobreposio

dos projectos coloniais, com os seus discursos prprios (polticos, jurdicos, filosficos,

pedaggicos), confrontando as intenes com as realizaes, expressas em produtos que

so, eles prprios, objecto de outros registos discursivos (regulamentaes sobre o

ensino, programas e orientaes curriculares, manuais escolares, mtodos de ensino,

demonstraes estatsticas, material iconogrfico, etc.). Este confronto tem por

finalidade comparar, em diversos planos de materializao, os projectos com a sua

concretizao, tendo em vista uma aproximao ao local, organizao funcional dos

espaos disciplinares (as escolas pblicas, as escolas das misses catlicas, protestantes

e laicas), descrevendo quadros sobre o quotidiano escolar no espao territorial

moambicano. Aqui se procura verificar um dos argumentos transversais a todo o

trabalho, segundo o qual as dificuldades estratgicas de ordem poltica, econmica,

geogrfica ou cultural configuram um conjunto de problemas predicados na noo de

governo distncia (Miller & Rose, 1990; Rose, 1999).

O Arquivo

Devo acrescentar s formas de problematizao que escolhi uma nota acerca da

constituio do arquivo. Os documentos que irei utilizar so na sua maioria textos

descritivos-prescritivos, textos que apresentam estratgias, que veiculam opinies, que

definem quadros e limites de actuao, que propem regras de conduta. Eles

constituem, na globalidade, programas de governao, que reflectem idealizaes e

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representaes, ao mesmo tempo que se constituem como demonstraes destinadas a

regular as prticas. Alguns documentos destinam-se a completar os quadros

prescritivos, oferecendo uma materializao iconogrfica de modelos de escola, de

ensino, e de aluno coexistentes no espao colonial. No sendo objecto de um tratamento

terico autnomo, as imagens so aqui consideradas como exemplares, como uma srie

de coisas dispostas e oferecidas comparao com a materialidade dos demais

discursos. Trata-se, em suma, de fornecer um conjunto de relaes entre enunciados e

de acontecimentos pertencentes a ordens diferentes, com o objectivo de identificar

regularidades (e descontinuidades), identidades (e diferenas) entre os prprios

enunciados. Ver-se-, por exemplo, que o debate em torno de alguns temas, como por

exemplo o das questes do ensino missionrio, se fragmentar em regies de rudo (no

caso das misses catlicas) e de silncio (no caso das misses protestantes), e que esses

territrios discursivos so acompanhados por excesso ou deficit de imagens que

promovem a memria dumas e o esquecimento das outras. Todo o arquivo est, como

adiante se ver, atravessado pela contingncia da rarefaco, facto que condicionou o

arranjo de sries documentais estveis e a organizao dos acontecimentos discursivos

em argumentos inteligveis. A rarefaco dos materiais prolongou-se na sua disperso

espacial, obrigando repartio da pesquisa em trs espaos-tempos principais. O

primeiro, realizado em Portugal, centrou-se no acervo do Arquivo Histrico

Ultramarino (AHU), na Biblioteca Nacional (BN) e na Sociedade de Geografia de

Lisboa (SGL). As consultas realizadas na biblioteca do Seminrio das Misses, em

Cernache do Bonjardim, completaram esta primeira fase da pesquisa documental. Numa

segunda fase, as consultas prosseguiram em Moambique, no Arquivo Histrico de

Moambique, em Maputo (AHM). A recolha foi concluda na Universidade de Londres,

no Institute of Education (IOE) e na School of Oriental and African Studies (SOAS).

Diga-se, a propsito, que a coreografia da tese foi de algum modo condicionada

pela inexistncia de estatsticas normalizadas para este perodo, em especial com

origem em organismos internacionais. Apesar de considerar que a rarefaco do arquivo

compensa os riscos de trabalhar no quadro de um horizonte espcio-temporal para o

qual existem poucos trabalhos de investigao em histria da educao colonial, a

ousadia no justifica a pertinncia do trabalho que aqui se apresenta. Por esse motivo,

na continuidade da anlise empreendida na II Parte, a organizao dos documentos

includos em anexo procura ilustrar a coexistncia de racionalidades discursivas

divergentes no plano dos discursos jurdico e estatstico e, simultaneamente, oferecer a

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outras anlises e tratamentos, matria susceptvel de interessar narrativas e

desenvolvimentos alternativos.

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I P A R T E

CONSTRUO DE SABERES E PRTICAS DE COMPARAO

1. O TEMPO DA EXPERINCIA: A COMPARAO QUE EMERGE DO CONFRONTO

Quanto ao que Vosa merc diz se so muito estimados e se fazem muita homra aos homens de letras e letrados e se tem valia e se per suas letras vem ser fidallguos e senhores gramdes, diz que na China no h outros fidallguos seno os letrados, e o que mais letras sabe he mais homrrado no reino e estimado del Rei e que por esta causa toda a gemte se lama apremder, asi gramdes como pequenos, e dizem que he desta maneira: como sabem bem ler e escrever, o moo que h dapremder que se vai com h m letrado da sua terra, que so os que mando a terra, e diz: Eu quero aprender as leis pera ser letrado; emto este mandarim o manda ensinar com o tal moo, paguar a despesa do comer e vestir, porque o mais o da o Rei, e se, depois de ter idade, sae bo letrado das leis do reino, mamdamno examinar e, se acho que he soficiemte, emcarregamno em carguos pequenos e depois, se ho faz bem, em carguos gramdes ate que ho fazem gramde e tanto pode sobir que mamda aos outros todos () (Enformao das Cousas da China, 1989: 60).

O excerto da Enformao que acima se transcreve, da autoria do Pe. Francisco

Xavier com base no testemunho de um mercador de Sancho1, constitui o captulo XIX

do Livro que Trata das Cousas da ndia e do Japo (1548), colectnea quinhentista

organizada pelo Governador da ndia Garcia de S (1548-1549). Resultado de uma

observao pretensamente directa das sociedades que descrevem, as enformaes

satisfazem a curiosidade europeia sobre os Chins, ao mesmo tempo que sugerem aos

olhos europeus uma reconfortante imagem de um reino alm-islmico, acenando com a

possibilidade de uma aliana crist na Etipia, no Sul da ndia e no Cataio. Ao

1 Sancho (tambm designada por Shangchuan ou Sancian) o nome de uma ilha da costa a sul da China, pertencente provncia de Guangdong situada a 6 milhas do continente e a 60 de Macau. Foi local de estabelecimento dos portugueses nos meados do sculo XVI para negociarem com os mercadores chineses de Canto, antes da organizao definitiva da feitoria de Macau, em 1557 (Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, vol. XXVII: 23).

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retomarem a figurao medieval do Oriente, nos seus aspectos mticos e utpicos, as

representaes inscritas nas enformaes tero constitudo um impulso digno de nota

ao projecto dos descobrimentos portugueses (Enformao das Cousas da China, 1989,

p. xx). A admirao pela grandeza, riqueza e abundncia deste reino no novidade

para os europeus setentrionais, tratando-se de um aspecto bem patente na literatura

portuguesa dos Descobrimentos do sculo XVI: na Relao de Duarte Barbosa (1946) e

na Suma Oriental de Tom Pires (1978); na historiografia de Joo de Barros e de Ferno

Lopes de Castanheda (1928); no Tratado de Frei Gaspar da Cruz (1569) e na

Peregrinao de Ferno Mendes Pinto. Todos estes textos reflectem a admirao pelos

Chins e projectam neste lugar geogrfico a crena no mundo perfeito descrito na

Carta do Preste Joo, onde a abundncia e a riqueza naturais coexistem com a ideia de

justia e felicidade terrena2. Mas os elementos de novidade contidos nas enformaes

a utilizao do relato na primeira pessoa e a nfase que atribuem aos aspectos

antropolgico-sociais afastam-nas do modelo fantstico medieval, repleto de imagens

mirabulantes, antecipando a exaltao chinesa que os Philosophes utilizaro para

criticar aspectos das sociedades ocidentais suas contemporneas (Cardoso, 1991;

Voltaire, 1963, Diderot e DAlembert 1751-65)3. O prolongamento do mito medieval da

existncia de um mundo de maravilhas a Oriente coexiste, portanto, com uma tentativa

de aproximao s situaes do quotidiano fazendo eco da esperana renascentista

numa sociedade alternativa. Esta duplicidade corresponde, no jogo do imaginrio,

criao de uma alteridade mtica que se projecta num lugar distante e utpico, o que

coloca as enformaes a par das construes utopistas de autores como Tommaso

Campanella, Francis Bacon ou Toms Moro.

necessrio dizer-se, contudo, que o conhecimento da rea que hoje se designa

por prximo Oriente tem incio alguns sculos antes, com as grandes cruzadas e com a

expanso do comrcio, no sculo XII, em resultado das quais nos chegam as primeiras

2 A popularidade do nome e da lenda veio sobretudo com uma carta apcrifa que circulou a partir de 1165, supostamente escrita pelo Preste Joo, em que se relata o reino do mais poderoso monarca da terra, suserano de dezenas de reis, senhor das trs ndias, rodeadas e atravessadas pelos rios que nascem no paraso terreno. O Preste, dono de fabulosos tesouros, habita um palcio fabuloso ornado de bano, pedras preciosas e ouro, ainda que a todos os pobres e alheios d de comer. Apesar da lenda sugerir a sua localizao em diversas regies (na ndia, na Tartria e na Abissnia), a partir do sculo XV a localizao adoptada por Portugal para a localizao do reino do sacerdote-rei foi na frica Oriental (Godinho, 1968). 3 De referir que a corrente sinlifa que atravessou todo o sculo XVII e se prolongou at Enciclopdia teve como principais inspiradores os jesutas e, entre os filsofos, Leibniz, principal responsvel pelo deslocamento de perspectiva sobre o outro, construdo, no como objecto, mas como ponto de partida do seu espao de dilogo filosfico.

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observaes sobre os grandes espaos civilizacionais que a tradio literria greco-

romana tinha vulgarizado junto dos europeus. So delas exemplo os relatos de viagens

dos missionrios Frei Giovanni Carpine (1182-1252) (Historia Mongolorum, 1247) e

Willelm de Rubruck (1220-1290) (De moribus Tartarorum. Itinerarium Orientis, 1256)

ao Imprio Mongol, do mercador Marco Plo (1254-1324) China, ou do historiador

rabe Ibn Khaldoun (1332-1406) no seu priplo pelo Islo. Estes primeiros contactos

que acompanham a intensificao da actividade mercantil, das viagens de explorao e

do trabalho missionrio, multiplicam os relatos e as compilaes etnogrficas e tornam

possvel difundir pela Europa um manancial de informaes reveladoras de uma

imagem do mundo at a praticamente inacessvel.

Trabalhos recentes no mbito dos cultural studies, perspectiva de investigao

que tem sido central na renovao dos estudos histrico-antropolgicos, vm

contestando a utilizao de uma abordagem historicista-essencialista relativamente

anlise deste tipo de narrativas4. Esta crtica faz todo o sentido se nos situarmos no

campo da histria da educao. Apesar de se tratar de um conjunto de textos

pertencentes a um mesmo gnero, o contributo de um Ibn Khaldoun5 dificilmente

poder considerar-se a par de obras de vulgarizao centradas na aventura, como o

caso das Viagens de Joo de Mandeville (1300-1372), pseudnimo de um autor ingls

annimo que se socorreu dos mais diversos escritos em circulao no Ocidente para

compilar a sua obra, ou mesmo da Orbis terrae concordia de um Guillaume Postel

(1510-1581) cujo interesse pelo Mdio Oriente no pretendia seno anunciar ao mundo

a sua posio visionria sobre o futuro da humanidade. A questo do estatuto do autor,

ou mesmo a do gnero literrio, so importantes para a anlise histrico-sociolgica do

personagem autor, mas pouco relevantes para a anlise do discurso. Para esta ltima,

o autor deve ser entendido, no como o indivduo que pronuncia, escreve ou inventa

um texto, mas o autor como princpio de agrupamento do discurso, como unidade e

origem das suas significaes e como foco da sua coerncia. O autor que escreve,

continua Foucault, aquele que d linguagem da fico as suas unidades, os seus ns

de coerncia e a sua insero no real (Foucault, 1977 [1971]: 22-23). Por

consequncia, o indivduo que escreve produz um conjunto de enunciados intimamente 4 Ver, a propsito, o trabalho de Pratt (1992); para o universo francfono, ver Defert (1982); de salientar ainda o trabalho de Rama (1982). 5 Cabe aqui referir que o conceito de sociologia e o termo rabe que o designa (ilm al-ijtim: cincia da sociedade ou da associao) foram termos inventados por Ibn Khaldoun cinco sculos antes de Auguste Comte. O prprio Ibn Khaldoun se apresentava como fundador de uma cincia da civilizao e da sociedade humana (Achcar, 1999; Ibn Khaldoun, 1997).

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relacionados uma estrutura autnoma com leis de construo prprias de acordo,

no com a sua biografia individual, mas com as condies de possibilidade da sua poca

e com a sua insero numa configurao epistemolgica prpria. Ainda que o sujeito

esteja presente na obra atravs da escrita, ele f-lo num horizonte de possibilidades

(epistemolgicas) e segundo configuraes (ideolgicas, filosficas e religiosas)

determinadas (Foucault, 2001e [1971])

Recuperando a distino feita por Clifford Geertz (1996)6 entre a funo de

escrevedor e escritor, conceitos que ele prprio toma de emprstimo a Roland

Barthes (1964) para diferenciar aquele que escreve daquele que descreve, diramos que

as narrativas de viagem constituem, pela sua riqueza, um gnero de autor multiforme e

compsito em que os viajantes-escrevedores e os viajantes-escritores se constituem

principalmente como viajantes-mediadores entre diversos mundos. Segundo este

entendimento, a literatura de viagens oferece pontos de entrada privilegiados acerca do

olhar e dos juzos de valor que so formulados sobre o outro acerca das concepes

filosficas e ideolgicas de alteridade, no tempo e no espao e, em particular, sobre as

condies sociais de produo dessa relao. Na realidade, muito do que era descrito na

literatura de viagens correspondia, no ao que os viajantes viam mas s expectativas do

pblico ocidental, respeitando um estilo que ia ao encontro de uma realidade tal qual

este a imaginava.

Poderamos ento dizer que as representaes inscritas nos textos dos viajantes

eram a expresso, no da realidade, mas de uma realidade apercebida e construda com

base numa realidade observada (ou imaginada) segundo a perspectiva de autor. As

narrativas de viagem constituem-se, por isso mesmo, como um lugar de expresso

privilegiado sobre as percepes sobre o outro e, por isso mesmo, de si prprio, um

jogo de espelhos onde o reflexo de um reflecte o reflexo do outro. neste sentido que

Gohard-Radenkovic defende que les rcits de voyage sont donc une exprience de

lalterit qui en dit plus long sur soi que sur lautre (Gohard-Radenkovic, 1999: 94).

A par do saber que se encontra inscrito nas narrativas de viagem e da relao de

continuidade que estabelecida entre gneros muito diferentes (o romance geogrfico, a

crnica de viagem, as enformaes, os relatos, as cartas, etc.) importa analisar estes

factos do discurso relativamente s suas prprias condies de existncia. Neste plano, a

construo da alteridade mtica como figura central das narrativas de viagem

6 Ver, em particular, o captulo "L-bas. Lanthropologie et le monde de la littrature".

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indissocivel de uma cartografia coeva que no permitia identificar com preciso a

localizao dos vrios povos. A sobrevivncia da lenda do Preste Joo nos pases

setentrionais da Europa at ao sculo XV mostra at que ponto o desenvolvimento do

conhecimento geogrfico, nutico ou cartogrfico se articula com as concepes

filosficas e ideolgicas prevalecentes, com consequncias na manuteno (ou

substituio) de gneros literrios uns pelos outros e, igualmente, na conservao (ou

transformao) de lendas e mitos h muito consagrados7.

De qualquer das formas, se facto que o alargamento das rotas terrestres ao Islo,

ao Mediterrneo e ao Extremo-Oriente, at ao sculo XIII, constituiu um contexto

favorvel para uma intensificao dos contactos com outras civilizaes, a ascenso do

domnio islmico no mar Roxo, da Sria ao Egipto, entre os sculos XI e XIV, torna

cada vez mais vago o conhecimento da Abissnia, tornando-o um territrio isolado e

inacessvel (Braudel, 1999). Na ausncia de um contacto directo e de experincias

sistemticas com a vida dos povos orientais, dominavam as representaes que a

tradio literria grega vinha divulgando desde o sculo XI e, nessa circunstncia, as

imagens sobre os confins do mundo reproduziam um imaginrio herdado da

Antiguidade Clssica. De facto, a circulao dos textos