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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO
LER, ESCREVER E ORAR: UMA ANLISE HISTRICA E COMPARADA DOS
DISCURSOS SOBRE A EDUCAO, O ENSINO E A ESCOLA EM MOAMBIQUE,
1850 1950
Ana Isabel Madeira
DOUTORAMENTO EM CINCIAS DA EDUCAO
(Educao Comparada)
2007
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO
LER, ESCREVER E ORAR: UMA ANLISE HISTRICA E COMPARADA DOS
DISCURSOS SOBRE A EDUCAO, O ENSINO E A ESCOLA EM MOAMBIQUE,
1850 1950
Ana Isabel Madeira
Dissertao orientada pelo Professor Doutor Antnio Nvoa
DOUTORAMENTO EM CINCIAS DA EDUCAO
(Educao Comparada)
2007
Para a Madalena
AGRADECIMENTOS
H cerca de alguns anos um amigo meu ofereceu-me um livrinho composto por vrias
entrevistas de Michel Foucault. A certa altura, numa das entrevistas, o autor afirmava
tranquilamente: The transformation of ones self by ones own knowledge is, I think,
something rather close to the aesthetic experience (Foucault, 1988:14). Esta frase
aparentemente simples produziu em mim um efeito prodigioso. Levou-me descoberta da obra
do historiador-filsofo, cuja leitura me devolveu o entusiasmo e a ingenuidade dos meus
primeiros tempos de estudante, e enraizou no meu esprito a convico de que, nas mais
improvveis conjugaes, h oportunidades que se podem sempre transformar em
possibilidades para reflectir sobre o sentido esttico da vida. Diz-me a experincia que essas
oportunidades nos so dadas, quase que invariavelmente, pelos livros e pelos amigos. Estas
linhas so, pois, dedicadas a todos aqueles que me tm permitido continuar essa transformao,
esse processo contnuo de experincia de mim atravs das palavras e dos afectos.
Comeo por quem, neste como em tantos outros trabalhos, se dedicou precisamente a este
exerccio exemplar de devolver o que lhe foi dado conhecer e aprender o Professor Antnio
Nvoa. Sabemos, todos os que com ele trabalham, o modo como a qualidade do ser, do saber e
do agir se conjugam com uma intensidade difcil de compreender, ainda menos de alcanar. E
de que forma essa conjuno transborda para o nosso crescimento e enriquecimento. Tudo
quanto possa aqui ser dito a respeito desta formidvel oportunidade de aprendizagem e de
partilha no poder nunca fazer justia s possibilidades que abriu para a minha
transformao, com toda a liberdade, afecto e generosidade.
Encontrei na Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao da Universidade de
Lisboa um ambiente de rara harmonia onde o trabalho acadmico pode decorrer sem
sobressaltos. Na Unidade de Investigao, na figura do seu ex-Director Professor Albano
Estrela, encontrei o apoio institucional que a informalidade do seu modo de ser transformou em
cumplicidade acadmica. O Professor Rogrio Fernandes com a sua longa experincia e saber
aconselhou-me em muitas ocasies, reconduzindo o trabalho para leituras e fontes muito
pertinentes. O Professor Justino Magalhes soube escutar e compreender as dificuldades de
percurso relativamente minha aproximao histria da educao, ajudando-me a colmat-
las. A socializao na rede internacional Prestige permitiu-me um contacto estimulante com
muitos investigadores europeus e norte-americanos com os quais pude discutir aspectos
pontuais, mas essenciais, do trabalho de tese, em particular Antoinette Errante, Yasemin
Soysal, Thomas Popkewitz, Robert Cowen e Jrgen Schriewer. Os meus colegas de trabalho,
Jorge Ramos do e Lus Miguel Carvalho, e todos os companheiros de estrada que
passaram pelo seminrio de doutoramento o Jos Braz, o Antnio Carlos Correia, a Maria
Antnia Luz, a Ana Lcia Fernandes, a Laura Giro, o Csar Rufino, a Maria Flr Dias
contriburam, com os seus comentrios oportunos e as suas crticas pertinazes, para reformular
ou aprofundar questes da investigao. Uma palavra muito especial Rita Fava, Lgia
Penim e Clara Freire da Cruz pelo esprito de incentivo que derramaram nos dias menos
bons e pela solidariedade indefectvel destes ltimos anos. Devo ao meu amigo Antnio Manuel
Silva, exemplar da consistncia e da lealdade beirs, ter-me facultado o acesso a uma imensa
rede de relaes, sem a qual muito do trabalho aqui feito nunca teria visto a luz do dia.
Para alm da FPCE-UL, o meu trabalho pde contar com muitas mos amigas, entre as
quais as do Miguel Bandeira Jernimo, da Lusa Teotnio Pereira, do Mrio Lima Ribeiro, do
Jos Miguel Lopes, da Marilda da Silva, da Vera Gaspar, da Carla Castelo, do Joo Carlos
Paulo e da Slvia Martinez. O Professor Franz-Wilhelm Heimer, o Engenheiro Jos Manuel
Prostes da Fonseca, o Professor Corsino Tolentino e o Professor Adelino Cardoso
interessaram-se pelo meu trabalho, lanando sobre ele um imprescindvel olhar exterior.
A David Justino tenho a agradecer o apoio de sempre ao meu percurso acadmico e a
disponibilidade permanente para as minhas dvidas e hesitaes mesmo quando, por vezes em
circunstncias pessoais muito difceis, elas poderiam parecer a qualquer um perfeitamente
secundrias. A Joo Cravinho quero agradecer o apoio institucional e, principalmente, o
cuidado com que acompanhou a minha permanncia em Moambique, reconhecimento
extensivo ao adido cultural da Embaixada Portuguesa em Maputo, Jos Flvio Teixeira e sua
mulher, Ins Alves.
A Sociedade Missionria da Boa Nova teve neste trabalho um papel fundamental. No s
recebi dos missionrios um acolhimento caloroso no seminrio de Cernache do Bomjardim,
onde realizei parte da pesquisa, como me acolheram na sua casa de Maputo, em Moambique,
articulao que o Pe. Martinho, em Lisboa, e o irmo Antnio Lopes, em Maputo, geriram na
perfeio. O reitor do seminrio de Cernache, o Pe. Carlos Fernandes e, em Moambique, o
Pe. lvaro Patrcio, ambos recentemente desaparecidos, estaro sempre no meu pensamento.
Sem o enquadramento logstico e, sobretudo, espiritual que me proporcionaram teria sido
impossvel contornar situaes por vezes prximas do absurdo e, tenho que diz-lo, foi com um
inexcedvel carinho que procuraram, por todos os meios, assegurar o meu bem-estar e
segurana. A respeito da minha passagem por Maputo devo ainda um agradecimento especial
ao Dr. Antnio Sopa, ex-Director do Arquivo Histrico de Moambique, que me encaminhou
sabiamente no labirinto intricado do arquivo e me facultou a aquisio da maior parte das
imagens que so reproduzidas na tese.
A minha permanncia em Inglaterra no teria sido igualmente fcil no fora o apoio dos
meus amigos Elizabeth e Patrick Powlling, que me ofereceram guarida e transformaram o
tempo londrino numa feliz sensao de dj-vcu. Nas pesquisas conduzidas na biblioteca da
School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres pude contar com o
profissionalismo de Mrs. Barbara Turfan, cujas diligncias me pouparam esforos e recursos
preciosos. Continuadas em Lisboa, pelo profissionalismo da Dra. Cristina Lopes, do Dr. Jorge
Revez e do Dr. Armando Jorge Silva, da biblioteca da FPCE-UL, apoios indispensveis at ao
ltimo momento. Um caloroso agradecimento ao Professor Moreirinhas Pinheiro, da Escola
Superior de Educao de Lisboa, pela sua amabilidade e disponibilidade permanentes.
Mnica Raleiras, um muito obrigada pela pacincia e pela ajuda no arranjo do texto.
Como em todas as viagens, a da nossa transformao impossvel de separar das pessoas
que encontrmos pelo caminho. O Christian Becker, o Carlos Soares, o Rafael Calado, a J, o
Pedro Luz, a Zulmira e o Antnio Novo, o Pedro Branco, a Ana Filipa Figueiredo, a Vera
Miranda, o Jos Fanha, a Carolien e o Ludger van der Eerden fazem parte dessa cadeia de
conjugaes improvveis que nos habitam e devolvem o sentido esttico da vida.
A amizade e o companheirismo esto, na vida pessoal e profissional, agarrados uns aos
outros pelas entranhas. Tenho para com o Jos Reimo Pinto, eterno mecenas da minha
carreira, a dvida de toda uma formao, pessoal e profissional. Sem ele nada teria sido
possvel. O amor da minha filha Madalena est, como um raio de luz e de bondade, em tudo o
que me acontece nos dias que passam e aqui, unindo todas as palavras, corre a graa da maior
das amizades.
1
NDICE INTRODUO ................................................................................................................................... 13
Objecto............................................................................................................................................. 13 Campo .............................................................................................................................................. 13 Instrumentos de trabalho terico ..................................................................................................... 15 Problemtica.................................................................................................................................... 16 Argumentos ...................................................................................................................................... 19 O Arquivo......................................................................................................................................... 22
I P A R T E
CONSTRUO DE SABERES E PRTICAS DE COMPARAO............................................... 25
1. O tempo da experincia: a comparao que emerge do confronto ...............................................25
2. O tempo da cincia: a organizao das ordens empricas .............................................................34 A metfora mecnica: o racionalismo cartesiano.................................................................... 36 A metfora orgnica: a comparao da natureza..................................................................... 42
3. O tempo do homem: a emergncia das cincias humanas ............................................................47 Os viajantes naturalistas .......................................................................................................... 47 O saber sobre o homem: a construo de uma positividade especfica................................... 54 Colonialismo cientfico e colonialismo de estado................................................................... 61
4. A emergncia das cincias sociais e a constituio do campo das cincias da educao (sculos XIX XX) ..........................................................................................................................70
As cincias da educao.......................................................................................................... 74 Poder e saber: a pedagogia, a escola e o governo das almas................................................... 81 O quadro de emergncia da educao comparada................................................................... 87
5. As trajectrias do campo da educao comparada (sculos XX-XXI) .........................................95 A difuso do sistema escolar moderno e as lgicas do trabalho comparado........................... 95 A educao comparada face aos desafios do novo milnio .................................................... 99
6. Estudos comparados em histria da educao colonial ..............................................................105
6.1. Reconfiguraes no campo da histria da educao colonial .............................................105
6.2. A reconciliao da histria com a comparao ...................................................................111
6.3. Estudos comparados em histria da educao colonial: o espao lusfono ........................114 O objecto do discurso lusofonia........................................................................................ 114 A inscrio da lngua e a questo da identidade ............................................................... 120 Os usos da lngua e a retrica da uniformidade ................................................................ 130 A bandeira da lngua como arqutipo de ptria............................................................. 131 Lusofonia: espaos e modos de intercompreenso........................................................ 134
6. 4. A histria da educao colonial e o espao lusfono: a construo de um quadro intermdio de comparao..........................................................................................................136
A anlise do discurso colonial .......................................................................................... 144
2
I I P A R T E
OS DISCURSOS SOBRE A EDUCAO EM CONTEXTO COLONIAL: UMA ANLISE COMPARADA ENTRE A INGLATERRA, A FRANA E PORTUGAL (1890 1950)............... 149
1. Tipos nacionais, sistemas de governo e comparao de polticas educativas .........................149 O terceiro modelo .............................................................................................................. 150 Tipologias nacionais, polticas educativas e tipos de comparao........................................ 153
2. O colonialismo civilizador britnico: o discurso sobre a criao da comunidade africana.....158 O evangelho do trabalho.................................................................................................... 159 A redescoberta do indgena e a noo de bem-estar ...................................................... 163 Lord Hailey e a relativizao de An African Survey ............................................................. 167 A doutrina poltica da educao adaptada ......................................................................... 169 A educao adaptada e a revista Oversea Education ........................................................ 175
3. A misso civilizadora da Frana: cultivar a mente africana....................................................180 Governo indirecto e assimilao ........................................................................................... 184
4. A doutrina colonial da educao portuguesa: a verso portuguesa da civilizao ..................187
4.1. Projecto colonial e sistema de colonizao .........................................................................187
4.2. O regime de assimilao e as concepes sobre a poltica indgena ...................................189
4.3. A civilizao do indgena ....................................................................................................196 A lei do trabalho culto ....................................................................................................... 196 Salvar almas para Deus e educar corpos para o trabalho................................................... 204 A educao pelo trabalho: Freire de Andrade e a pedagogia do learning by doing .......... 210 Brito Camacho e a catequese do trabalho.......................................................................... 214 Norton de Matos: as escolas-oficinas ................................................................................ 216 O estatuto do assimilado e o estatuto da lngua..................................................................... 223 O jornal O Africano............................................................................................................... 225 Para concluir.......................................................................................................................... 229
4.4. Dinmicas metropolitano-coloniais e centro-periferia: o problema religioso, a questo do regime e os discursos sobre a educao.................................................................................233
As trs conferncias africanas ............................................................................................... 241 O esprito de simetria liberal e a laicizao do ensino .......................................................... 245 Frades ociosos, fervorosos missionrios ............................................................................... 246 O mtodo missionrio e a pedagogia da incorporao: a ameaa protestante ................... 253 A reforma do Colgio das Misses ....................................................................................... 257 A criao do Instituto de Misses Coloniais ......................................................................... 263 A criao das misses civilizadoras ...................................................................................... 266 O Boletim das Misses Civilizadoras ................................................................................... 268 O plano missionrio de Borges Granha: o livro e a enxada ............................................. 270
5. A difuso e apropriao de modelos e pedagogias de ensino adaptados s colnias africanas ..........................................................................................................................................276
A Fundao Phelps-Stokes e a educao do negro ............................................................... 276 As origens do conceito de educao adaptada................................................................... 279 Omer Buyse e Lducation dune race .............................................................................. 284 La main cultive: o currculo e a pedagogia do Instituto Hampton................................... 291 Os mtodos americanos e os discursos da educao pelo trabalho em Moambique ........... 294 O inqurito da African Education Commission..................................................................... 297 Os relatrios Phelps-Stokes sobre a educao na frica portuguesa: Angola e Moambique.......................................................................................................................... 301
3
A recepo portuguesa aos trabalhos da comisso de inqurito a Moambique................... 305
6. Dewey em frica ........................................................................................................................307 O movimento de reforma progressista .................................................................................. 307 As redes e os circuitos de circulao dos modelos pedaggicos em frica.......................... 312 O New Education Fellowship................................................................................................ 314 A conferncia Educational Adaptations in a Changing Society ........................................ 319 O impacto regional da conferncia ao nvel das polticas educativas ................................... 323 Dewey em frica: o autor e a conceptual personae ....................................................... 324 As apropriaes do discurso: Dewey no contexto colonial................................................... 327
I I I P A R T E
A CONSTRUO DOS ESPAOS DISCIPLINARES EM MOAMBIQUE (1849 1940/50)... 335
1. A instruo pblica na segunda metade do sculo XIX..............................................................336 Funcionamento das escolas de instruo pblica na provncia ............................................. 343 Mtodos de ensino e manuais escolares ................................................................................ 360 O impulso na instruo pblica na dcada de noventa.......................................................... 363
2. O ensino colonial durante a Repblica .......................................................................................373 Laicismo e educao : a Lei de Separao e o ensino em Moambique .............................. 378 A escola republicana e a instruo pblica em Moambique ............................................... 389
O culto da Ptria na Escola republicana colonial.............................................................. 394 O professor operrio e apstolo ................................................................................. 397 A harmonizao curricular ............................................................................................... 402 Manuais escolares ............................................................................................................. 403
A unificao do ensino e a segmentao da oferta escolar na transio da Repblica para o Estado Novo: lgicas contraditrias e estratgias de continuidade.................................... 408
O ensino rudimentar ......................................................................................................... 410
3. A competio pelas almas...........................................................................................................420 Colonialismo de estado e poder pastoral............................................................................... 420 O modelo missionrio republicano: as misses civilizadoras laicas ..................................... 432
BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................................. 459
1.Fontes...........................................................................................................................................459
1.1 Arquivos ...............................................................................................................................459
1.2 Livros, relatrios e artigos impressos ...................................................................................465
2. Bibliografia .................................................................................................................................474 ANEXOS.....507
4
NDICE DE DOCUMENTOS Documento I Categorias temticas dos artigos publicados na revista Oversea Education entre 1929 e 1949...................................................................................................................... 176
Documento II Programa do ensino das escolas para indgenas, 1908 ................................. 213
Documento III Planos de estudo do Colgio das Misses Ultramarinas aps as reformas de 1871 e 1884.............................................................................................. 262
Documento IV Plano de Estudos do curso complementar do Instituto de Misses Coloniais (1917)........................................................................................................................ 264
Documento V Hampton Institute. Programa de estudos da Escola Secundria Tcnica...... 294
Documento VI Redes e circuitos de difuso dos discursos sobre a educao adaptada ...... 314
Documento VII O Pragmatismo de Dewey e as suas apropriaes selectivas no contexto africano.................................................................................................................. 330
Documento VIII Proposta para a instalao de cadeiras de Instruo Pblica na provncia de Moambique pelo Governador Domingos Fortunato do Vale, em 1849 ........ 338
Documento IX Relao dos objectos que por no haver nenhuns para uso da Escola Principal de Instruo Primria da Provncia de Moambique se faz da maior urgncia que sejam mandados fornecer por Lisboa ................................................................. 345
Documento X Requisio de material anexa carta enviada pelo professor Alexandre das Dores Casimiro ao secretrio-geral da provncia de Moambique, em 1893 .. 347
Documento XI Comparao do nmero de escolas e de alunos da Colnia do Cabo, de Madagscar e de Moambique, 1879-1906 ......................................................................... 360
Documento XII: Escolas do ensino primrio em Moambique, 1909-1930............................. 378
Documento XIII Representao dos missionrios portugueses ao Governador-Geral de Moambique, em 1914.......................................................................................................... 382
Documento XIV Relao dos manuais recomendados pela Secretaria da Inspeco da Instruo Primria em Moambique, em 1919.................................................................... 405
Documento XV Currculo das escolas de artes e ofcios de Moambique (sexo masculino) 413
Documento XVI Currculo das escolas profissionais de Moambique (sexo feminino) ....... 413
Documento XVII Currculo das Escolas de Habilitao de Professores Indgenas ............. 414
Documento XVIII Resumo das misses estrangeiras protestantes estabelecidas nesta colnia, de conformidade com os ofcios da Repartio Autnoma de Justia e Cultos, n 352, de 7 de Setembro de 1934 e n 125, de 1 de Abril de 1935............................ 430
5
NDICE DE FIGURAS Figura I A banda da Misso de So Jos, em Loureno Marques, incios do sculo XX....... 344
Figura II Escola de Artes e Ofcios de Moambique, incio do sculo XX............................. 349
Figura III Escola de So Boaventura de Xirara, em Manica, incio do sculo XX ................ 351
Figura IV Escola Municipal Paiva Manso, em Loureno Marques, incio do sculo XX...... 354
Figura V Escola Central 1. de Janeiro, em Lourenco Marques, incio do sculo XX .......... 354
Figura VI Instituto Rainha D. Amlia, em Loureno Marques, incio do sculo XX ............. 355
Figura VII Alunos e alunas da escola da Sociedade de Instruo e Beneficincia 1. de Janeiro, em Loureno Marques, em 1911 ................................................................................. 356
Figura VIII Misso de So LusGonzaga de Malatane, no Angoche (Nampula), em incios do sculo XX ........................................................................................................... 359
Figura IX Vista area da Misso do Boroma, meados do sculo XX .................................... 365
Figura X Misso catlica portuguesa da Malaa, no incio do sculo XX: curativos aos indgenas ............................................................................................................. 371
Figura XI A igreja e a escola da misso portuguesa de So Jos, em Loureno Marques, em 1929 .................................................................................................................................... 388
Figura XII Escola de instruo pblica, em Nova Lusitnia, Beira, em 1929....................... 402
Figura XIII Escola de instruo pblica na Macia, Gaza, incios do sculo XX................... 408
Figura XIV - Oficina de sapataria na misso da Beira, incio do sculo XX ........................... 411
Figura XV Alunos e professores da mais antiga escola de preparao de professores de posto escolar de Moambique, no Alvor, Arquidiocese de Loureno Marques, meados do sculo XX ................................................................................................................ 415
Figura XVI Irms-professoras da Escola Oliveira Martins, e alunas, incios do sculo XX .................................................................................................................. 417
Figura XVII Misso catlica de Balama, Cabo Delgado, em meados do sculo XX ............ 426
Figura XVIII Misso de So Paulo de Messano, no Chai-Chai, no incio do sculo XX ...... 427
Figura XIX Alunos da misso de So Paulo de Messano, no Chai-Chai, incio do sculo XX.................................................................................................................... 429
Figura XX A Misso Civilizadora Cames. ........................................................................... 436
Figura XXI A Misso Ptria.. ................................................................................................ 439
Figura XXII A Cartilha Experimental ................................................................................... 442
Figura XXIII Os novos agentes de civilizao da Misso Cames. ...................................... 444
6
NDICE DE ANEXOS
Anexo I: Misses estrangeiras em Angola, segundo o relatrio Phelps-Stokes, em 1922........ 509
Anexo II: Misses estrangeiras em Moambique, segundo o relatrio Phelps-Stokes, em 1924 ..................................................................................................................................... 511
Anexo III: Transcrio do Ofcio Confidencial enviado pelo administrador da circunscrio de Inharrime ao Governador de Inhambane, 14/07/1924 ........................................................ 513
Anexo IV: Transcrio do Ofcio Confidencial enviado pelo administrador da Circunscrio de Inharrime ao Governador de Inhambane, em 18/07/1924 ................................................... 514
Anexo V: Transcrio do ofcio confidencial do governador de Inhambane ao Governador-Geral da Provncia de Moambique, em 19/07/1924 ............................................................... 515
Anexo VI: Transcrio do Ofcio Confidencial do administrador de Vila Nova de Gaza ao Governador de Inhambane, em 31/07/1924.............................................................................. 516
Anexo VII: Transcrio do Ofcio Confidencial enviado pelo professor e superintendente das escolas da circunscrio ao administrador de Inhambane, em 9/08/1924 ........................ 517
Anexo VIII: Transcrio da carta enviada pelo Cnsul dos Estados Unidos da Amrica em Loureno Marques ao Governador do distrito de Inhambane, em 16/07/1924........................ 518
Anexo IX: Alunos Matriculados nas Escolas da Prelazia de Moambique, por distritos, de 1910 a 1925 .......................................................................................................................... 519
Anexo X: Profisses e aproveitamento dos alunos da Escola de Artes e Ofcios de Moambique, 1908-1909 ...................................................................................................... 522
Anexo XI: Raas, religio e Idades dos alunos dos alunos da Escola de Artes e Ofcios de Moambique, 1908-1909 ...................................................................................................... 523
Anexo XII: Relao nominal dos alunos que frequentam a aula de instruo primria deste Distrito, com declarao da religio a que eles pertencem, suas idades, comportamento, frequncia e seu estado de adiantamento ................................................................................. 524
Anexo XIII: Mapa do movimento escolar do Instituto de Educao Rainha D. Amlia, desde a sua fundao at ao ano lectivo de 1907 .................................................................................. 528
Anexo XIV: Movimento dos alunos inscritos nas escolas rgias, municipais e particulares em Cabo Verde, 1870-1897....................................................................................................... 529
Anexo XV: Populao das escolas primrias da Provncia de Angola, 1885-1897 ................. 530
Anexo XVI: Nmero total de escolas primrias, por distrito, na Provncia de Angola referidas ao ano escolar de 1896-97......................................................................................... 531
Anexo XVII: Populao das escolas primrias na Provncia de Moambique, 1875-1886 ..... 532
Anexo XVIII: Professores das escolas principais e das escolas primrias inscritas nos oramentos das provncias ultramarinas, 1854-1900............................................................... 533
Anexo XIX: Populao da Provncia de Moambique no ano de 1908 .................................... 534
Anexo XX: Sumrio geral dos censos de 1904, 1911, 1921 e 1926 .......................................... 535
Anexo XXI: Evoluo do oramento eclesistico da Prelazia de Moambique, entre 1864 e 1910...................................................................................................................... 536
Anexo XXII: Movimento escolar, por distritos, da Provncia de Moambique, referente ao ano de 1906 .......................................................................................................................... 537
7
Anexo XXIII: Escolas da Provncia de Moambique, por distritos, com indicao dos seus directores, regentes e professores, em 1908 ............................................................................. 541
Anexo XXIV: Escolas na Provncia de Moambique, por distritos, pblicas e privadas, das misses portuguesas e estrangeiras, em 1910 (a) ..................................................................... 545
Anexo XXV: Nmero de misses, parquias e institutos de educao e ensino portugueses existentes na Provncia de Moambique, em 1910 ................................................................... 550
Anexo XXVI: Nmero dos missionrios entrados na Prelazia, desde 1830 at 1910, segundo as associaes a que pertenciam ................................................................................ 551
Anexo XXVII: Pessoal de ordens e congregaes religiosas existentes na Provncia de Moambique, em 1910 .............................................................................................................. 552
Anexo XXVIII: Legislao Publicada no Boletim Oficial de Moambique entre 1850 e 1950 relativa a Estatstica ................................................................................................................. 554
Anexo XXIX: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria, nos vrios distritos da provncia, entre 1907 e 1919 ................................................................................. 555
Anexo XXX: Misses religiosas no distrito de Loureno Marques, 1916 ................................. 556
Anexo XXXI: Confidencial do Secretrio dos Negcios Indgenas dirigida ao Governador-Geral, em 24/5/1915.................................................................................................................. 559
Anexo XXXII: Legislao publicada no Boletim Oficial de Moambique entre 1850 e 1950 relativa Instruo Pblica, elementar e rudimentar .............................................................. 560
Anexo XXXIII: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Loureno Marques, desde 1907 a 1919................................................................................ 565
Anexo XXXIV: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Gaza, desde 1907 a 1919 .................................................................................... 566
Anexo XXXV: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Inhambane, desde 1907 a 1919.......................................................................... 567
Anexo XXXVI: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Quelimane, desde 1907 a 1919 ........................................................................... 568
Anexo XXXVII: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Moambique, desde 1907 a 1919........................................................................ 569
Anexo XXXVIII: Alunos propostos para exame do 1 e 2 grau de instruo primria no distrito de Tete, desde 1907 a 1919...................................................................................... 570
Anexo XXXIX: Escolas do ensino primrio na provncia de Moambique, com indicao do pessoal docente e auxiliar, em 1916 .................................................................................... 571
Anexo XL: Mapa geral dos estabelecimentos de Ensino Primrio, na Provncia de Moambique, em 1919 .............................................................................................................. 577
Anexo XLI: Legislao publicada no Boletim Oficial de Moambique, entre 1850 e 1950, relativa a misses religiosas, misses laicas e cultos ............................................................... 581
Anexo XLII: Nmero de escolas e de alunos matriculados no ensino primrio nas escolas da Provncia de Moambique entre 1850 e 1950...................................................................... 584
Anexo XLIII: Movimento dos alunos do ensino primrio, elementar e rudimentar, nas escolas pblicas e particulares da Provncia de Moambique, em 1930 ................................. 586
Anexo XLIV: Alunos matriculados no Ensino Primrio Elementar na Provncia de Moambique, em 1930 .............................................................................................................. 595
Anexo XLV: Organizao do cadastro das misses estrangeiras, 1948................................... 596
8
Anexo XLVI: Nmero e localizao das sedes e sucursais das misses protestantes estrangeiras na Provncia de Moambique, em 1930 ............................................................... 597
Anexo XLVII: Nmero e nacionalidade do pessoal missionrio na Provncia, em 1930 ......... 598
Anexo XLVIII: Misses estrangeiras protestantes estabelecidas na colnia de Moambique, por circunscrio, em 1932....................................................................................................... 599
Anexo XLIX: Movimento das Misses Civilizadoras para Angola e Moambique, 1920-1925 ................................................................................................................................. 601
Anexo L: Movimento escolar das misses laicas ...................................................................... 606
Anexo LI: Nmero de escolas do ensino primrio, em Moambique, entre 1885 e 1909......... 607
Anexo LII: Mapa estatstico da frequncia dos alunos das escolas missionrias de ensino primrio, por distritos, na Provncia de Moambique, entre 1893 e 1909............................... 608
Anexo LIII: Mapa estatstico da frequncia dos alunos das escoals missionrias de ensino primrio, por distritos, na Provncia de Moambique, entre 1893 e 1909............................... 611
Anexo LIV: Alunos matriculados nas escolas da Prelazia de Moambique, por distritos, de 1910 a 1925 .......................................................................................................................... 612
Anexo LV: Nmero de alunos matriculados nas escolas das misses catlicas portuguesas segundo os dados fornecidos pelo Anurio de 1930 ................................................................. 614
Anexo LVI: Movimento escolar do ensino primrio na colnia de Moambique, 1931........... 615
Anexo LVII: Frequncia das escolas do distrito de Loureno Marques, 1931......................... 616
Anexo LVIII: Escolas do ensino primrio elementar e rudimentar, pblicas e privadas, no distrito de Loureno Marques, 1931 .................................................................................... 617
Anexo LIX: Frequncia das Escolas do distrito de Inhambane, 1931 ...................................... 618
Anexo LX: Populao da Provncia de Moambique no ano de 1908...................................... 619
Anexo LXI: Sumrio geral dos censos de 1904, 1911, 1921 e 1926 ......................................... 620
Anexo LXII: Distribuio da populao escolar, por sexos, na colnia de Moambique, 1931........................................................................................................................................... 621
Anexo LXIII: Representao das raas na populao escolar da colnia de Moambique, 1931........................................................................................................................................... 622
Anexo LXIV: Governos de Portugal e das Colnias, 1850-1950.............................................. 623
9
SIGLAS
ABFMS American Baptist Foreign Mission Society
ACEC - Advisory Committee on Education in the Colonies
AHM Arquivo Histrico de Moambique
AHU Arquivo Histrico Ultramarino
AMA - American Missionary Association
AOF frica Ocidental Francesa
BIE Bureau International dducation
BIEN Bureau International des coles Nouvelles
BM Banco Mundial
BMC Boletim das Misses Civilizadoras
BN Biblioteca Nacional
CMS Church Mission Society
COLP Coleco Oficial de Legislao Portuguesa
CPLP- Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa
GALM Grmio Africano de Loureno Marques
IJJR Instituto Jean-Jacques Rousseau
IMC International Missionary Council
IOE Institute of Education
IRM International Review of Missions
LIEN Ligue Internationale de lducation Nouvelle
LMS London Missionary Society
NEF New Education Fellowship
OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico
SDN Sociedade das Naes
SGL Sociedade de Geografia de Lisboa
SOAS - School of Oriental and African Studies
TC Teachers College
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
WMMS Wesleyan Methodist Missionary Society
10
11
RESUMO
O objecto de anlise deste trabalho so os discursos produzidos em torno da educao,
do ensino e da escola no horizonte temporal que compreende as datas limite 1850-1950.
Estes discursos constituem parte integrante do empreendimento colonial, sendo
esboados em enunciados acerca das finalidades, objectivos e funes da socializao
escolar. O projecto de tese tem por horizonte a descrio destes enunciados para
analisar as transformaes e apropriaes de que so objecto os discursos sobre a
educao, o ensino e a escola nas colnias africanas. a partir dessa descrio que se
analisa a composio interna do saber construdo acerca da educao colonial e o modo
como ele d lugar a um conjunto de estratgias destinadas a regular as prticas dos
governos, das instituies, dos grupos, dos indivduos. Os enunciados sobre a educao,
o ensino e a escola referem-se regio de acontecimentos que liga entre si os espaos
metropolitanos aos coloniais envolvendo trs unidades lingusticas distintas: o universo
lusfono, o anglo-saxnico e o francfono. Eles planos de anlise, formalmente
distintos uns dos outros, encontram-se ligados entre si por dois processos dialogantes.
Por um lado, os mecanismos de difuso de modelos estandardizados de organizao
educacional escala global, que promovem a internacionalizao e a integrao supra-
nacional das estruturas educativas; por outro, os mecanismos de recepo especficos
associados indigenao destes pressupostos culturais, adaptando-os diversificao
intra-nacional e a configuraes regionais e locais particulares. O trabalho de tese
assenta no cruzamento da perspectiva histrica com a da educao comparada matriz
segundo a qual se procura construir um olhar alternativo onde os sentidos da histria
possam exprimir-se, no segundo uma nica e inexorvel direco, mas no registo da
contingncia e da descontinuidade.
PALAVRAS-CHAVE:
Educao Comparada, Histria da Educao, Histria da Educao Colonial, Anlise do
discurso educacional, Poltica educativa, Colonialismo, Ensino primrio, Educao
missionria, Educao vocacional.
12
ABSTRACT
This paper analyses the discourses produced with regard to education, teaching and the
school in the 1850-1950 time period. These discourses are an integral part of the
colonial enterprise, with carefully drawn up goals, objectives and functions of school
socialisation. This thesis aims to describe these policies and analyse the transformations
and appropriations that are the object of discourses concerning education, teaching and
the school in the African colonies. Based on this description an analysis is carried out of
the internal make-up of the constructed knowledge on colonial education and the way it
paves the way to a set of strategies put in place to regulate the practices of the
governments, institutions, groups and individuals. The policies on education, teaching
and the school refer to the region of events that link the mother country cities and the
colonies encompassing three different linguistic units: the Portuguese-speaking world,
the English-speaking world and the French-speaking world. These plans of analysis,
formally different from one another, are interconnected through two dialogue processes.
On the one hand the mechanisms of dissemination of standardised models of
educational organisation on a global scale, which promote the internationalisation and
supra-national integration of the educational structures; on the other hand, the
mechanisms of reception specifically associated with the indigenation of these cultural
presuppositions, adapting them to the intra-national diversification, regional set-ups and
local particularities. This thesis is based on cross-referencing the historical perspective
with the compared education perspective framework in order to seek an alternative look
whereby the meanings of history can be expressed not in accordance with a single and
inexorable direction, but rather in the register of contingence and discontinuity.
KEYWORDS:
Comparative Education, History of Education, History of Colonial Education;
Education discourse analysis, Educational policy, Colonialism, Elementary Education,
Missions Schools, Vocational Education.
13
INTRODUO Objecto
A matria-prima, objecto de todas as anlises deste trabalho, so os discursos
produzidos em torno da educao, do ensino e da escola no horizonte temporal que
compreende as datas limite 1850-1950. A estas dimenses correspondem um conjunto
de coordenadas espaciais e geogrficas. Os enunciados sobre a educao, o ensino e a
escola referem-se regio de acontecimentos que liga entre si os espaos
metropolitanos aos coloniais envolvendo trs unidades lingusticas distintas: o universo
lusfono, o anglo-saxnico e o francfono. No quadro do universo metropolitano-
colonial lusfono, Moambique constitui uma plataforma de observao privilegiada,
procurando estabelecer um dilogo comparativo com os outros espaos imperiais. O
projecto de tese tem por horizonte a descrio dos enunciados para analisar as
transformaes e apropriaes de que so objecto os discursos sobre a educao, o
ensino e a escola nas colnias africanas. a partir dessa descrio que se analisa a
composio interna do saber construdo acerca da educao colonial e o modo como ele
d lugar a um conjunto de estratgias destinadas a regular as prticas dos governos,
das instituies, dos grupos, dos indivduos.
Campo
Sem dvida que as diferentes obras, a massa de textos, os livros dispersos que falam e
produzem este saber se encontram inscritos num conjunto de possibilidades. O arquivo
encontra-se desta maneira fundado num a priori histrico constitudo pelo sistema que
regula o surgimento de determinados enunciados, que agrupa as coisas em figuras
distintas, que compe quadros, que define o modo de actualizao dos objectos,
conceitos e problemas de que tratam os acontecimentos discursivos. A possibilidade de
descrever estes acontecimentos, como nos foi dado a perceber por Michel Foucault nas
obras As Palavras e as Coisas (1998 [1966]), A Arqueologia do Saber (2005 [1969]) e
A Ordem do Discurso (1977 [1971]), implica um conjunto de procedimentos a que farei
referncia no corpo do trabalho. Terei a oportunidade de explicitar os pressupostos que
estabelecem o compromisso com uma leitura particular do arquivo, enumerando os
14
procedimentos que me permitiram descrever os acontecimentos discursivos e chegar,
tanto quanto possvel, a um conjunto de regras, singularidades e relaes. Esse exerccio
de clarificao ter um momento principal na I Parte do trabalho, dedicada
Construo de saberes e prticas de comparao. O que aqui se procura pr a
descoberto , por um lado, o processo histrico de construo de um saber sobre a
comparao, entendido como um campo onde emergem discursos verdicos na
continuidade da cincia com a experincia, e, por outro, o conhecimento que
produzido por um conjunto de elementos (objectos, tipos de formulao, conceitos e
escolhas tericas) para formar uma determinada positividade (Foucault, 2001c). este
mesmo compromisso que atravessa o trabalho na ntegra, analisando, na II e na III
Partes, os diferentes domnios em que esse saber se constitui (outras cincias,
condies econmicas, sociais, polticas e histricas), produzindo, sob diferentes
ngulos, discursos acerca de um conjunto de objectos. Deste modo, a tese explora
diversos tipos de discursos de verdade; no apenas os enunciados doutrinrios
(filosofias, discursos religiosos e jurdicos) que falam de um conjunto de temas e
problemas, mas tambm os discursos cientficos que tornam possvel pens-los,
apresentando conceitos e mtodos para a sua abordagem num determinado espao-
tempo. O arquivo constitudo por este sistema de enunciados compreende, assim, uma
determinada regio de acontecimentos, delimitados por princpios de agrupamento, e a
sua materializao em temas, conceitos e problematizaes, que do origem a um
conjunto de prticas discursivas sobre a educao dos africanos. Estes princpios de
agrupamento so delimitados, na II Parte, segundo a funo de autor, os rituais de
palavra, as sociedades de discurso, os grupos doutrinrios e as apropriaes sociais; e,
na III Parte, pelo discurso estatstico e pelas formas jurdicas.
Os desenhos globais e as histrias locais que entrelaam estas narrativas
delimitam um feixe de problemas tericos e metodolgicos pertencentes ao campo da
Histria da Educao, cuja extenso para o domnio da histria da educao colonial
constitui um aprofundamento indispensvel. No entanto, no procurarei aqui oferecer
uma histria da educao em Moambique, nem uma resenha crnica acerca da
educao, do ensino ou da escola em contexto colonial. O territrio deste trabalho o da
arqueologia a descrio intrnseca do documento, a acumulao ou a rarefaco de
acontecimentos discursivos , todo um sistema de relaes que pressupe, para
respirar, o exerccio sistemtico da comparao.
15
Para a anlise arqueolgica a materialidade dos enunciados no independente
dos seus campos de utilizao, da circulao entre e dentro de redes, onde se oferecem a
transferncias e modificaes. Neste pressuposto, a tese explora um conjunto de
ligaes complementares, ainda que distintas umas das outras, sobre os modos de
produo, circulao e apropriao desse saber, quer entre as metrpoles e as colnias,
quer no interior dos espaos coloniais, quer, por ltimo, ao nvel regional e local.
Analisar os processos de produo, circulao e apropriao de discursos a partir de
uma perspectiva exterior oferece-nos um ponto de observao privilegiado para analisar
o modo como estes discursos se inscrevem em prticas de incorporao educativa, em
modelos de escola ou pedagogias de ensino. Contudo, no apenas nessa dimenso
vertical. Pela escala e amplitude aqui implicadas, a dimenso comparativa d-nos
acesso aos processos de mundializao educativa, no caso presente nas suas derivas
perifricas, assim como torna possvel ligar discursos produzidos a grande distncia a
conjuntos de regies coloniais pertencentes a diferentes naes.
O cruzamento da perspectiva histrica com a comparao faz parte de um
processo de renovao do trabalho em Cincias da Educao, matriz segundo a qual se
procura fazer uso deste instrumental terico, procurando construir um olhar alternativo,
uma outra narrativa, onde os sentidos da histria possam exprimir-se no segundo uma
nica e inexorvel direco, mas no registo da contingncia e da descontinuidade. Esta
ambio corresponde, como Foucault fez notar, tentativa de trabalhar no horizonte de
uma histria geral, empresa a que se dedicou na Histoire de la folie (1961), Naissance
de la clinique (1963) e Les Mots et les Choses (1966). No que me dado a trabalhar,
sob o seu exemplo e estmulo, a histria geral constitui o meu escopo metodolgico e,
ao mesmo tempo, a figura epistemolgica que lhe serve de utopia.
Instrumentos de trabalho terico
A opo pela linguagem conceptual de Foucault est presente neste trabalho a diversos
nveis. Na escolha da periodizao longa, na aposta de uma leitura atenta s
descontinuidades e rupturas, na importncia atribuda s transformaes-apropriaes e
aos deslocamentos, por vezes inverso dos acontecimentos. Quando a anlise se
desloca entre nveis e dimenses de interpretao formal, o esquema de decifrao
foucauldiano acolhe a contradio, ajuda a identificar os pontos de fuga, atende
16
difraco do campo enunciativo. A fragmentao do arquivo e a descrio arqueolgica
pareceram-me, desde o incio, formar uma articulao espontnea. A organizao da
leitura do arquivo e a prpria escrita da tese, expressamente escandida, resultaram dessa
opo quase natural. O meu Foucault , claramente, o dos primeiros trabalhos, o da
Arqueologia, o que confronta os documentos e os analisa nas suas justaposies,
contradies ou descontinuidades; e, ao mesmo tempo, o Foucault epistemlogo que
questiona o estatuto da cincia, da sua histria e dos seus conceitos. Todo este percurso
tem parte com a minha aprendizagem na rea das Cincias da Educao, suscitando
uma auto-reflexo crtica que encontra na histria das cincias e, em particular, nos
campos disciplinares da histria da educao e da educao comparada, um mundo
contguo de novas exploraes. Ao nvel das especificaes internas de cada um dos
campos disciplinares, o trabalho acolhe um conjunto de perspectivas tericas que so
mobilizadas, quer para a meso e micro escala, quer para a amplitude macro dos grandes
espaos mundiais. Uma vez que o meu objecto so os discursos nos seus
desdobramentos em formaes e prticas discursivas, funes enunciativas e
enunciados , preciso clarificar em que termos e condies aquelas perspectivas iro
ser incorporadas.
Problemtica
Os discursos sobre a educao, o ensino e a escola constituem parte integrante do
empreendimento colonial, sendo esboados em enunciados acerca das finalidades,
objectivos e funes da socializao escolar. Eles articulam dois planos de anlise,
formalmente distintos um do outro, mas ligados entre si por dois processos dialogantes.
Por um lado, os mecanismos de difuso de modelos estandardizados de organizao
educacional escala global, que promovem a internacionalizao e a integrao supra-
nacional das estruturas educativas; por outro, os mecanismos de recepo especficos
associados indigenao destes pressupostos culturais, adaptando-os diversificao
intra-nacional e a configuraes regionais e locais particulares (Schriewer, 1993). O
contexto colonial constitui uma destas configuraes particulares, um local onde, tanto
os processos de difuso global, como os de recepo, especficos, se inscrevem em
percursos histricos e processos scio-culturais de grande complexidade.
17
Para analisar estas relaes complexas, as perspectivas do sistema mundial
fornecem um quadro interpretativo estimulante acerca da difuso de modelos
estandardizados de organizao educacional escala global (Ramrez e Rubinson, 1979;
Ramrez e Boli, 1987; Meyer, Boli, Thomas e Ramrez, 1997). A noo de cultura
educativa mundial fundamental para problematizar a estruturao expansiva de um
modelo de sociedade, um fenmeno interpretado por estes autores como o imperativo
institucional e a estratgia de organizao mais consistente com o desenvolvimento de
um modelo de sociedade nacional na Europa ocidental. Contudo, o argumento que
defende a ligao dos indivduos construo de uma unidade unificada, representada
pelo Estado-nao, atravs da universalizao da escola moderna esse poder
homogeneizador que se exerce sobre o colectivo de alguma forma incompatvel com
a observao emprica que documenta a existncia de diferenas (institucionais e
organizacionais) entre os sistemas escolares metropolitanos e os coloniais (Altbach &
Kelly, 1978; Adick, 1989, 1992 e 1993). Poder-se-ia ento dizer que a cada desenho
global correspondem inmeras histrias locais, to diversas quanto complexas.
A anlise, a montante e a jusante, destas descontinuidades faz apelo a um
entendimento renovado acerca do encontro colonial, e da prpria cultura colonial que
produzida por intermdio deste encontro. De facto, a dimenso cultural dos processos
de colonizao, com as suas tecnologias de dominao simblica, vai muito alm da
transplantao dos projectos coloniais metropolitanos para o contexto colonial,
materializados na organizao de sistemas escolares destinados a criar unidades
polticas homogneas. O conceito colnias aqui entendido como uma configurao
cultural especfica onde hbitos, costumes e moralidade europeias se reconstituem numa
nova ordem social e cultural. Torna-se ento necessrio compreender os mecanismos,
mas tambm os mediadores (individuais e institucionais) que operam esta articulao
metropolitana-colonial, que traduzem os discursos doutrinrios, cientficos e religiosos,
em programas e prticas de governo destinadas criao de sujeitos coloniais, ou
melhor, de sujeitos colonizados. neste registo que se situam as perspectivas da nova
antropologia histrica (Comaroff & Comaroff, 1991 e 1992; Thomas, 1994; Cooper,
1994; Cooper & Stoler, 1999) e as teorias ps-coloniais (Bhabha, 1997; Spivack, 1990;
Loomba, 1994 e 1998; Said; 1993; Gandhi, 1998; Mignolo, 2000 e 2002). Trata-se de
duas correntes que convergem na crtica, quer das narrativas da historiografia
tradicional, quer das metanarrativas nacionalistas, propondo enquadramentos
conceptuais to distintos como os da crtica ps-estruturalista, os da antropologia
18
cultural e simblica, ou os do novo historicismo (Nvoa, 1997). Para alm do seu
ecletismo conceptual, estas perspectivas recuperam muitas das idealizaes de Foucault
materializando-as na anlise da nova ordem colonial.
Se certo que os estudos culturais vieram oferecer solues para alguns
problemas existentes na anlise do encontro colonial, no menos certo que vieram
criar outros. A importncia do espao local e a aco de um discurso histrico
incorporado na historicidade do sujeito, fazem parte de um quadro de cepticismo ps-
moderno que tem tendncia a desvalorizar a interferncia dos processos sociais,
polticos e econmicos de alcance internacional ao nvel das periferias coloniais,
nomeadamente em frica. Os movimentos religiosos, os processos de dominao
imperialista modernos e a transformao do prprio sistema tcnico ocidental avultam
como alguns dos factores cujo impacte nas colnias europeias de frica no pode
certamente ser ignorado, tanto mais que eles se conjugaram para reconfigurar os
sistemas coloniais de acordo com lgicas de dominao incompatveis com engenharias
financeiras de curto prazo. Quero contudo esclarecer, desde j, que o meu trabalho no
partilha da tese antieconmica (Hammond, 1966), nem se coloca do lado das teses da
colonizao defensiva (Capela, 1974; Papagno, 1980), para tentar escamotear as
circunstncias econmicas de natureza estrutural e conjuntural que impulsionaram (ou
travaram) o colonialismo portugus em frica. Dito isto, facto que, nas ltimas
dcadas, a historiografia do colonialismo portugus teve tendncia a privilegiar, ora as
dimenses polticas, ora scio-econmicas, em detrimento de uma abordagem cultural
do encontro colonial. Informada pelas teorias da modernizao e da dependncia, a
investigao bifurcou-se em dois tipos de formulao: uma, ligada aos conceitos de
progresso e de civilizao; a outra, orientada para a anlise do colonialismo como um
processo de dominao imperialista. A partir destas teses desenvolveram-se duas
tradies na leitura dos processos de colonizao: a primeira, edificada sobre o
paradigma multissecular, mobilizou o arqutipo de cinco sculos de colonizao
africana para veicular uma concepo historicista/essencialista da colonizao
portuguesa. Em oposio ao paradigma da gesta civilizacional, a segunda deriva optou
pela dialctica dos ciclos de dominao/oposio, caracterstico das metanarrativas de
resistncia (Plissier, 1994; Clarece-Smith, 1985). Mobilizando retricas formalmente
opostas, ambas as explicaes no lograram ultrapassar duas questes epistemolgicas
fundamentais. Por um lado, a perspectiva dos processos de colonizao como um
movimento evolucionista teleolgico, quer rumo ao progresso e ao desenvolvimento,
19
quer conducente explorao e opresso; por outro, a construo de um conhecimento
assente na segmentao dos campos econmico, poltico e cultural, consagrando uma
distino entre as dimenses ditas materiais (o mercado, o Estado, as instituies) e as
dimenses consideradas simblicas (as questes da lngua, as experincias
intersubjectivas, as representaes sobre o outro, a identidade, etc.).
Creio que a leitura do projecto colonial portugus entendido como o reflexo
directo de interesses, causas, foras e bloqueios, tanto econmicos como polticos, nega
qualquer possibilidade de entender a dimenso plural dos processos de colonizao (nas
suas componentes econmicas, polticas, religiosas, militares, culturais) que se
encontram imbricados uns nos outros. Recusarei, portanto, explicar o cultural pelo
econmico, o social pelo poltico, o simblico pelo material (e vice-versa). A minha
proposta de trabalho outra e tem uma nica pretenso. Encontrar na anlise dos
discursos sobre a educao, o ensino e a escola algumas linhas de fora que permitam
compreender os princpios subjacentes construo do sujeito colonial. Dito de outra
forma, interessa-me sobretudo tornar inteligvel o processo de produo-apropriao de
conhecimento educacional, no plano metropolitano-colonial, e o modo como foi
possvel transformar este saber numa pedagogia de sujeio destinada construo, ao
nvel local, de estratgias de incorporao educativa.
Argumentos
Durante o sculo que alcana o conjunto de acontecimentos que so objecto deste
trabalho, produzem-se modificaes essenciais no sistema geral de saber, tambm ele
constitudo por um conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prtica
discursiva. Nesse sentido, considerei importante tentar definir o quadro de positividades
sobre o qual se estabeleceram as condies de possibilidade para o exerccio da
comparao. A I Parte do trabalho Construo de saberes e prticas de comparao
concentra-se na explorao do percurso histrico que assegura ao conhecimento
obtido atravs da comparao um estatuto verdico. A reconstituio dos discursos
sobre a comparao procurar demonstrar que, atravs da figura epistemolgica mtodo
comparativo, se estabeleceram relaes entre diversos campos de saber e que,
independentemente dos graus de formalizao prprios a cada cincia, a regularidade
com que esta figura atravessou as vrias disciplinas foi determinante para a
20
institucionalizao de novos domnios cientficos. Sublinharei, a este propsito, na
transio do sculo XVII para o sculo XVIII, a conjugao de efeitos que relacionaram
o desenvolvimento da investigao cientfica com a expanso do conhecimento
proporcionado pelas viagens de explorao. Defenderei que as prticas de representao
e as prticas de comparao, separadas umas das outras pelas questes de mtodo,
nunca deixaram de apoiar-se mutuamente para hierarquizar, classificar e ordenar, em
funo de teorias, doutrinas e filosofias, o homem e o seu devir. Tentarei mostrar que,
no quadro das cincias sociais e humanas, a comparao cientfica tem sobretudo
produzido, a expensas do seu poder descritivo e classificatrio, um saber estabilizador e
totalitrio, reconduzindo permanentemente a figura do outro ao mesmo. Estas questes
so objecto de aprofundamento nos sub-captulos O tempo da experincia, O tempo da
cincia e O tempo do homem. Este conjunto de ideias importante para compreender a
relao entre o conhecimento cientfico e o controlo poltico do conhecimento, saber
cujo domnio desempenhar, efectivamente, um papel essencial na misso do ocidente
para com os povos primitivos. As prticas discursivas apoiadas nos enunciados
cientficos constituram frequentemente prolongamentos das crnicas de conquista, das
narrativas religiosas, das doutrinas polticas, no devendo, portanto, ser consideradas
como elementos do discurso exteriores, ou analiticamente independentes, de uma
racionalizao, pura e simples, da representao.
No ponto A emergncia das Cincias Sociais e a constituio do campo das
Cincias da Educao, situarei a emergncia deste espao de problematizaes,
distinguindo-o dos que foram entretanto ocupados por outras disciplinas sociais a
psicologia, a sociologia, as cincias polticas analisando, simultaneamente, o conjunto
de dinmicas acadmicas, profissionais, polticas que atravessaram aquele campo de
produo de saberes. No sub-captulo seguinte, Poder e saber: a pedagogia, a Escola e
o governo das almas, discute-se a emergncia da escola moderna, no apenas como
componente central do modelo de Estado-nao, mas tambm como um novo
mecanismo de regulao social. Procuro a sublinhar a importncia da escola como um
mecanismo simultaneamente de integrao e de diferenciao, de legitimao simblica
e de modernizao, de cultura nacional e universalismo cientfico. No ponto que trata
das Trajectrias do campo da educao comparada, a problemtica incide na
emergncia de campos de especializao derivados, no caso, o da educao comparada.
Retomo a a questo da diferenciao funcional entre pedagogia e cincia da educao
para analisar o contexto de emergncia do cnone comparativo, polarizado entre uma
21
concepo praxeolgica e outra, axiolgica, da produo de conhecimentos. Serve esta
reflexo para analisar os prolongamentos no espao interno da disciplina, para
compreender os seus desenvolvimentos e identificar as suas possibilidades de
renovao. A I Parte Construo de saberes e prticas de comparao, encerra com
uma reflexo sobre os as condies que tornam possvel questionar, do ponto de vista
terico e metodolgico, os temas da educao, do ensino e da escola no espao
lusfono, a comear pelo questionamento do prprio conceito de lusofonia. A so
sugeridas questes de trabalho, problematizaes e estratgias de investigao,
susceptveis de integrar metodologias comparadas na anlise do colonialismo.
A II Parte da tese Os discursos sobre a educao em contexto colonial: uma
anlise comparada entre a Inglaterra, a Frana e Portugal consiste numa anlise do
discurso educativo em contexto colonial, desdobrada em diversos nveis. Os trs
primeiros captulos estabelecem, no plano das dimenses de comparao, os modelos
tipo que configuram o campo discursivo, procurando fazer ressaltar as regularidades e
descontinuidades inscritas nas polticas dos trs imprios coloniais. A se identificam os
principais temas, problemas e conceitos que atravessam as prticas discursivas e os
mediadores destinados a pr de p estratgias de governo, programas de aco e
tecnologias de incorporao educativa concretas. A referncia aos projectos educativos
britnico e francs procura situar as opes de poltica educativa lusfonas, associadas a
vises contraditrias acerca do papel do indgena (e do europeu) no processo de
colonizao. O quarto captulo, A doutrina colonial da educao portuguesa, atenta
precisamente no conjunto de estratgias metropolitano-coloniais que tecem uma malha
de argumentos caracterizados por uma multiplicidade de projectos polticos, concepes
pedaggicas e teorias cientficas. Tenta-se a demonstrar que os debates sobre a
educao colonial incorporaram doutrinas com origem em campos de produo
discursiva transversais aos da pedagogia, nomeadamente de ordem poltica e religiosa,
com efeitos pesados sobre o processo de expanso (e contraco) da oferta escolar e do
tipo de ensino destinado massa indgena. O processo de internacionalizao dos
discursos pedaggicos, nas primeiras dcadas do sculo XX, constitui objecto do
captulo sobre A difuso e apropriao de modelos e pedagogias de ensino adaptado s
colnias africanas. O meu propsito ser, ento, mostrar que a doutrina da educao
adaptada constitui como que uma lei geral dos discursos sobre a educao em
contexto colonial, transgredindo espaos nacionais, atravessando conjunturas temporais
e regimes de governo, sendo capaz de integrar, em simultneo, formulaes jurdicas,
22
doutrinas, filosofias e discursos cientficos. Defenderei que esta lei geral, nas suas
apropriaes particulares, contribuiu para a difuso de um modelo de educao, de
ensino e de escola destinado aos africanos, assente num conjunto de princpios
totalmente diferentes daqueles que haviam justificado a expanso da escola pblica nas
metrpoles. No ltimo captulo da II Parte Dewey em frica procurarei aprofundar
este argumento, assinalando a conjugao da doutrina da educao adaptada com o
evangelho progressista americano e com o pragmatismo. Defenderei a propsito que
esta articulao foi essencial para construir um discurso reformista colonial assente na
reverso dos princpios fundamentais da pedagogia e dos ideais democrticos do
prprio Dewey, no sentido de justificar um tipo de educao adaptado s comunidades
africanas.
A III Parte A construo dos espaos disciplinares explora a sobreposio
dos projectos coloniais, com os seus discursos prprios (polticos, jurdicos, filosficos,
pedaggicos), confrontando as intenes com as realizaes, expressas em produtos que
so, eles prprios, objecto de outros registos discursivos (regulamentaes sobre o
ensino, programas e orientaes curriculares, manuais escolares, mtodos de ensino,
demonstraes estatsticas, material iconogrfico, etc.). Este confronto tem por
finalidade comparar, em diversos planos de materializao, os projectos com a sua
concretizao, tendo em vista uma aproximao ao local, organizao funcional dos
espaos disciplinares (as escolas pblicas, as escolas das misses catlicas, protestantes
e laicas), descrevendo quadros sobre o quotidiano escolar no espao territorial
moambicano. Aqui se procura verificar um dos argumentos transversais a todo o
trabalho, segundo o qual as dificuldades estratgicas de ordem poltica, econmica,
geogrfica ou cultural configuram um conjunto de problemas predicados na noo de
governo distncia (Miller & Rose, 1990; Rose, 1999).
O Arquivo
Devo acrescentar s formas de problematizao que escolhi uma nota acerca da
constituio do arquivo. Os documentos que irei utilizar so na sua maioria textos
descritivos-prescritivos, textos que apresentam estratgias, que veiculam opinies, que
definem quadros e limites de actuao, que propem regras de conduta. Eles
constituem, na globalidade, programas de governao, que reflectem idealizaes e
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representaes, ao mesmo tempo que se constituem como demonstraes destinadas a
regular as prticas. Alguns documentos destinam-se a completar os quadros
prescritivos, oferecendo uma materializao iconogrfica de modelos de escola, de
ensino, e de aluno coexistentes no espao colonial. No sendo objecto de um tratamento
terico autnomo, as imagens so aqui consideradas como exemplares, como uma srie
de coisas dispostas e oferecidas comparao com a materialidade dos demais
discursos. Trata-se, em suma, de fornecer um conjunto de relaes entre enunciados e
de acontecimentos pertencentes a ordens diferentes, com o objectivo de identificar
regularidades (e descontinuidades), identidades (e diferenas) entre os prprios
enunciados. Ver-se-, por exemplo, que o debate em torno de alguns temas, como por
exemplo o das questes do ensino missionrio, se fragmentar em regies de rudo (no
caso das misses catlicas) e de silncio (no caso das misses protestantes), e que esses
territrios discursivos so acompanhados por excesso ou deficit de imagens que
promovem a memria dumas e o esquecimento das outras. Todo o arquivo est, como
adiante se ver, atravessado pela contingncia da rarefaco, facto que condicionou o
arranjo de sries documentais estveis e a organizao dos acontecimentos discursivos
em argumentos inteligveis. A rarefaco dos materiais prolongou-se na sua disperso
espacial, obrigando repartio da pesquisa em trs espaos-tempos principais. O
primeiro, realizado em Portugal, centrou-se no acervo do Arquivo Histrico
Ultramarino (AHU), na Biblioteca Nacional (BN) e na Sociedade de Geografia de
Lisboa (SGL). As consultas realizadas na biblioteca do Seminrio das Misses, em
Cernache do Bonjardim, completaram esta primeira fase da pesquisa documental. Numa
segunda fase, as consultas prosseguiram em Moambique, no Arquivo Histrico de
Moambique, em Maputo (AHM). A recolha foi concluda na Universidade de Londres,
no Institute of Education (IOE) e na School of Oriental and African Studies (SOAS).
Diga-se, a propsito, que a coreografia da tese foi de algum modo condicionada
pela inexistncia de estatsticas normalizadas para este perodo, em especial com
origem em organismos internacionais. Apesar de considerar que a rarefaco do arquivo
compensa os riscos de trabalhar no quadro de um horizonte espcio-temporal para o
qual existem poucos trabalhos de investigao em histria da educao colonial, a
ousadia no justifica a pertinncia do trabalho que aqui se apresenta. Por esse motivo,
na continuidade da anlise empreendida na II Parte, a organizao dos documentos
includos em anexo procura ilustrar a coexistncia de racionalidades discursivas
divergentes no plano dos discursos jurdico e estatstico e, simultaneamente, oferecer a
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outras anlises e tratamentos, matria susceptvel de interessar narrativas e
desenvolvimentos alternativos.
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I P A R T E
CONSTRUO DE SABERES E PRTICAS DE COMPARAO
1. O TEMPO DA EXPERINCIA: A COMPARAO QUE EMERGE DO CONFRONTO
Quanto ao que Vosa merc diz se so muito estimados e se fazem muita homra aos homens de letras e letrados e se tem valia e se per suas letras vem ser fidallguos e senhores gramdes, diz que na China no h outros fidallguos seno os letrados, e o que mais letras sabe he mais homrrado no reino e estimado del Rei e que por esta causa toda a gemte se lama apremder, asi gramdes como pequenos, e dizem que he desta maneira: como sabem bem ler e escrever, o moo que h dapremder que se vai com h m letrado da sua terra, que so os que mando a terra, e diz: Eu quero aprender as leis pera ser letrado; emto este mandarim o manda ensinar com o tal moo, paguar a despesa do comer e vestir, porque o mais o da o Rei, e se, depois de ter idade, sae bo letrado das leis do reino, mamdamno examinar e, se acho que he soficiemte, emcarregamno em carguos pequenos e depois, se ho faz bem, em carguos gramdes ate que ho fazem gramde e tanto pode sobir que mamda aos outros todos () (Enformao das Cousas da China, 1989: 60).
O excerto da Enformao que acima se transcreve, da autoria do Pe. Francisco
Xavier com base no testemunho de um mercador de Sancho1, constitui o captulo XIX
do Livro que Trata das Cousas da ndia e do Japo (1548), colectnea quinhentista
organizada pelo Governador da ndia Garcia de S (1548-1549). Resultado de uma
observao pretensamente directa das sociedades que descrevem, as enformaes
satisfazem a curiosidade europeia sobre os Chins, ao mesmo tempo que sugerem aos
olhos europeus uma reconfortante imagem de um reino alm-islmico, acenando com a
possibilidade de uma aliana crist na Etipia, no Sul da ndia e no Cataio. Ao
1 Sancho (tambm designada por Shangchuan ou Sancian) o nome de uma ilha da costa a sul da China, pertencente provncia de Guangdong situada a 6 milhas do continente e a 60 de Macau. Foi local de estabelecimento dos portugueses nos meados do sculo XVI para negociarem com os mercadores chineses de Canto, antes da organizao definitiva da feitoria de Macau, em 1557 (Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, vol. XXVII: 23).
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retomarem a figurao medieval do Oriente, nos seus aspectos mticos e utpicos, as
representaes inscritas nas enformaes tero constitudo um impulso digno de nota
ao projecto dos descobrimentos portugueses (Enformao das Cousas da China, 1989,
p. xx). A admirao pela grandeza, riqueza e abundncia deste reino no novidade
para os europeus setentrionais, tratando-se de um aspecto bem patente na literatura
portuguesa dos Descobrimentos do sculo XVI: na Relao de Duarte Barbosa (1946) e
na Suma Oriental de Tom Pires (1978); na historiografia de Joo de Barros e de Ferno
Lopes de Castanheda (1928); no Tratado de Frei Gaspar da Cruz (1569) e na
Peregrinao de Ferno Mendes Pinto. Todos estes textos reflectem a admirao pelos
Chins e projectam neste lugar geogrfico a crena no mundo perfeito descrito na
Carta do Preste Joo, onde a abundncia e a riqueza naturais coexistem com a ideia de
justia e felicidade terrena2. Mas os elementos de novidade contidos nas enformaes
a utilizao do relato na primeira pessoa e a nfase que atribuem aos aspectos
antropolgico-sociais afastam-nas do modelo fantstico medieval, repleto de imagens
mirabulantes, antecipando a exaltao chinesa que os Philosophes utilizaro para
criticar aspectos das sociedades ocidentais suas contemporneas (Cardoso, 1991;
Voltaire, 1963, Diderot e DAlembert 1751-65)3. O prolongamento do mito medieval da
existncia de um mundo de maravilhas a Oriente coexiste, portanto, com uma tentativa
de aproximao s situaes do quotidiano fazendo eco da esperana renascentista
numa sociedade alternativa. Esta duplicidade corresponde, no jogo do imaginrio,
criao de uma alteridade mtica que se projecta num lugar distante e utpico, o que
coloca as enformaes a par das construes utopistas de autores como Tommaso
Campanella, Francis Bacon ou Toms Moro.
necessrio dizer-se, contudo, que o conhecimento da rea que hoje se designa
por prximo Oriente tem incio alguns sculos antes, com as grandes cruzadas e com a
expanso do comrcio, no sculo XII, em resultado das quais nos chegam as primeiras
2 A popularidade do nome e da lenda veio sobretudo com uma carta apcrifa que circulou a partir de 1165, supostamente escrita pelo Preste Joo, em que se relata o reino do mais poderoso monarca da terra, suserano de dezenas de reis, senhor das trs ndias, rodeadas e atravessadas pelos rios que nascem no paraso terreno. O Preste, dono de fabulosos tesouros, habita um palcio fabuloso ornado de bano, pedras preciosas e ouro, ainda que a todos os pobres e alheios d de comer. Apesar da lenda sugerir a sua localizao em diversas regies (na ndia, na Tartria e na Abissnia), a partir do sculo XV a localizao adoptada por Portugal para a localizao do reino do sacerdote-rei foi na frica Oriental (Godinho, 1968). 3 De referir que a corrente sinlifa que atravessou todo o sculo XVII e se prolongou at Enciclopdia teve como principais inspiradores os jesutas e, entre os filsofos, Leibniz, principal responsvel pelo deslocamento de perspectiva sobre o outro, construdo, no como objecto, mas como ponto de partida do seu espao de dilogo filosfico.
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observaes sobre os grandes espaos civilizacionais que a tradio literria greco-
romana tinha vulgarizado junto dos europeus. So delas exemplo os relatos de viagens
dos missionrios Frei Giovanni Carpine (1182-1252) (Historia Mongolorum, 1247) e
Willelm de Rubruck (1220-1290) (De moribus Tartarorum. Itinerarium Orientis, 1256)
ao Imprio Mongol, do mercador Marco Plo (1254-1324) China, ou do historiador
rabe Ibn Khaldoun (1332-1406) no seu priplo pelo Islo. Estes primeiros contactos
que acompanham a intensificao da actividade mercantil, das viagens de explorao e
do trabalho missionrio, multiplicam os relatos e as compilaes etnogrficas e tornam
possvel difundir pela Europa um manancial de informaes reveladoras de uma
imagem do mundo at a praticamente inacessvel.
Trabalhos recentes no mbito dos cultural studies, perspectiva de investigao
que tem sido central na renovao dos estudos histrico-antropolgicos, vm
contestando a utilizao de uma abordagem historicista-essencialista relativamente
anlise deste tipo de narrativas4. Esta crtica faz todo o sentido se nos situarmos no
campo da histria da educao. Apesar de se tratar de um conjunto de textos
pertencentes a um mesmo gnero, o contributo de um Ibn Khaldoun5 dificilmente
poder considerar-se a par de obras de vulgarizao centradas na aventura, como o
caso das Viagens de Joo de Mandeville (1300-1372), pseudnimo de um autor ingls
annimo que se socorreu dos mais diversos escritos em circulao no Ocidente para
compilar a sua obra, ou mesmo da Orbis terrae concordia de um Guillaume Postel
(1510-1581) cujo interesse pelo Mdio Oriente no pretendia seno anunciar ao mundo
a sua posio visionria sobre o futuro da humanidade. A questo do estatuto do autor,
ou mesmo a do gnero literrio, so importantes para a anlise histrico-sociolgica do
personagem autor, mas pouco relevantes para a anlise do discurso. Para esta ltima,
o autor deve ser entendido, no como o indivduo que pronuncia, escreve ou inventa
um texto, mas o autor como princpio de agrupamento do discurso, como unidade e
origem das suas significaes e como foco da sua coerncia. O autor que escreve,
continua Foucault, aquele que d linguagem da fico as suas unidades, os seus ns
de coerncia e a sua insero no real (Foucault, 1977 [1971]: 22-23). Por
consequncia, o indivduo que escreve produz um conjunto de enunciados intimamente 4 Ver, a propsito, o trabalho de Pratt (1992); para o universo francfono, ver Defert (1982); de salientar ainda o trabalho de Rama (1982). 5 Cabe aqui referir que o conceito de sociologia e o termo rabe que o designa (ilm al-ijtim: cincia da sociedade ou da associao) foram termos inventados por Ibn Khaldoun cinco sculos antes de Auguste Comte. O prprio Ibn Khaldoun se apresentava como fundador de uma cincia da civilizao e da sociedade humana (Achcar, 1999; Ibn Khaldoun, 1997).
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relacionados uma estrutura autnoma com leis de construo prprias de acordo,
no com a sua biografia individual, mas com as condies de possibilidade da sua poca
e com a sua insero numa configurao epistemolgica prpria. Ainda que o sujeito
esteja presente na obra atravs da escrita, ele f-lo num horizonte de possibilidades
(epistemolgicas) e segundo configuraes (ideolgicas, filosficas e religiosas)
determinadas (Foucault, 2001e [1971])
Recuperando a distino feita por Clifford Geertz (1996)6 entre a funo de
escrevedor e escritor, conceitos que ele prprio toma de emprstimo a Roland
Barthes (1964) para diferenciar aquele que escreve daquele que descreve, diramos que
as narrativas de viagem constituem, pela sua riqueza, um gnero de autor multiforme e
compsito em que os viajantes-escrevedores e os viajantes-escritores se constituem
principalmente como viajantes-mediadores entre diversos mundos. Segundo este
entendimento, a literatura de viagens oferece pontos de entrada privilegiados acerca do
olhar e dos juzos de valor que so formulados sobre o outro acerca das concepes
filosficas e ideolgicas de alteridade, no tempo e no espao e, em particular, sobre as
condies sociais de produo dessa relao. Na realidade, muito do que era descrito na
literatura de viagens correspondia, no ao que os viajantes viam mas s expectativas do
pblico ocidental, respeitando um estilo que ia ao encontro de uma realidade tal qual
este a imaginava.
Poderamos ento dizer que as representaes inscritas nos textos dos viajantes
eram a expresso, no da realidade, mas de uma realidade apercebida e construda com
base numa realidade observada (ou imaginada) segundo a perspectiva de autor. As
narrativas de viagem constituem-se, por isso mesmo, como um lugar de expresso
privilegiado sobre as percepes sobre o outro e, por isso mesmo, de si prprio, um
jogo de espelhos onde o reflexo de um reflecte o reflexo do outro. neste sentido que
Gohard-Radenkovic defende que les rcits de voyage sont donc une exprience de
lalterit qui en dit plus long sur soi que sur lautre (Gohard-Radenkovic, 1999: 94).
A par do saber que se encontra inscrito nas narrativas de viagem e da relao de
continuidade que estabelecida entre gneros muito diferentes (o romance geogrfico, a
crnica de viagem, as enformaes, os relatos, as cartas, etc.) importa analisar estes
factos do discurso relativamente s suas prprias condies de existncia. Neste plano, a
construo da alteridade mtica como figura central das narrativas de viagem
6 Ver, em particular, o captulo "L-bas. Lanthropologie et le monde de la littrature".
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indissocivel de uma cartografia coeva que no permitia identificar com preciso a
localizao dos vrios povos. A sobrevivncia da lenda do Preste Joo nos pases
setentrionais da Europa at ao sculo XV mostra at que ponto o desenvolvimento do
conhecimento geogrfico, nutico ou cartogrfico se articula com as concepes
filosficas e ideolgicas prevalecentes, com consequncias na manuteno (ou
substituio) de gneros literrios uns pelos outros e, igualmente, na conservao (ou
transformao) de lendas e mitos h muito consagrados7.
De qualquer das formas, se facto que o alargamento das rotas terrestres ao Islo,
ao Mediterrneo e ao Extremo-Oriente, at ao sculo XIII, constituiu um contexto
favorvel para uma intensificao dos contactos com outras civilizaes, a ascenso do
domnio islmico no mar Roxo, da Sria ao Egipto, entre os sculos XI e XIV, torna
cada vez mais vago o conhecimento da Abissnia, tornando-o um territrio isolado e
inacessvel (Braudel, 1999). Na ausncia de um contacto directo e de experincias
sistemticas com a vida dos povos orientais, dominavam as representaes que a
tradio literria grega vinha divulgando desde o sculo XI e, nessa circunstncia, as
imagens sobre os confins do mundo reproduziam um imaginrio herdado da
Antiguidade Clssica. De facto, a circulao dos textos