LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS - sapientia.pucsp.br AMELIA... · Esboço teórico ... mundo...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP
LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS
O DISCURSO DA “VIDÊNCIA”: CRUZAMENTO VOCAL NA INTERLOCUÇÃO ENTRE “CÉU E TERRA”
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
1
2007
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP
LENICE AMÉLIA DE SÁ MARTINS
O DISCURSO DA “VIDÊNCIA”: CRUZAMENTO VOCAL NA INTERLOCUÇÃO ENTRE “CÉU E TERRA”
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo como exigência
parcial para a obtenção do grau de Doutor em Língua
Portuguesa, sob a orientação da Professora Doutora
Leonor Lopes Fávero
São Paulo
22007
BANCA EXAMINADORA
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Dedico: A meus pais, Waldemar e Libúrcia, “in memorian”, pelo amor que me dedicavam.
A Neuricléa Regina, filha muito amada, pelo afeto filial e apoio, nesta longa
caminhada acadêmica.
A Geovânia, filha do coração, por todo carinho que me consagra.
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A Paulo Cesário “in memorian”, a quem Deus me uniu pelo Sacramento do
matrimônio, pela admiração que por mim nutria.
Minha gratidão:
Ao Deus Uno e Trino, Criador, Salvador e Santificador, por ter me oportunizado
galgar a escada do edifício do saber até chegar a este degrau – o doutorado.
À Virgem Maria, Mãe amada e sempre presente em minha vida, cujo desvelo pela
Igreja de seu Filho constitui a razão deste trabalho.
À Professora Doutora Leonor Lopes Fávero, mestra sábia e dedicada, que me
orientou com zelo e profissionalismo, aclareando trevas, preenchendo vales e
aplainando montes.
À minha sempre mestra, Professora Doutora Vanda de Oliveira Bittencourt, que me
introduziu, com sabedoria e dedicação no mundo da pesquisa e do trabalho
científico, como orientadora do Mestrado, e grande incentivadora nesse processo de
Doutoramento.
Aos meus colegas, do Campus X – UNEB (Teixeira de Freitas), pela indiscutível
amizade e importante incentivo nesse árduo, mas prazeroso trajeto.
À Lúcia, grande colega e amiga, presente que recebi do céu, no período dos
créditos.
A Cacilda, bibliotecária do Campus em que trabalho (Campus X – UNEB) que,
dedicadamente fez a revisão das referências bibliográficas.
A Terezinha, irmã querida do meu Grupo de Oração (Jesus Eucarístico) que, com
muita habilidade digitou toda esta tese.
Aos meus primos Mário e Kátia e aos amigos Arnaldo e Jacira que durante esses
quatro anos me acolheram com muito carinho em suas casas.
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Ao Padre Tito, sacerdote da Congregação de São Vicente de Paula, que me fez
acreditar, desde o período da seleção, que eu estava iniciando uma obra sob a
proteção da Mãe de Jesus e nossa Mãe, a Virgem Maria.
Aos professores que me assistiram nesse processo acadêmico, ajudando-me, com
seu comprovado profissionalismo, a aprofundar mais neste mundo claro e obscuro,
simples e complexo; temível e fascinante conhecido como linguagem.
À Lourdes, secretária do Programa, pela notável delicadeza e, pelas vezes que
efetivou minha matrícula, colaborando para que eu pudesse evitar desgaste físico e
despesas com a longa viagem de Teixeira de Freitas à capital paulista.
A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo por ter me proporcionado um
estudo de qualidade, oferecendo-me profissionais de comprovada competência.
A Universidade do Estado da Bahia – UNEB que, além de me liberar das atividades
acadêmicas para a realização desse curso, agraciou-me com uma bolsa que ajudou
a minorar o peso das despesas com mensalidades e passagens.
Aos meus queridos irmãos da Renovação Carismática Católica da Diocese de
Teixeira de Freitas, por suas orações em prol do sucesso desse projeto que tem
como objetivo primordial a honra e a glória de Jesus Cristo, Homem e Deus,
Salvador e Senhor da História.
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Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares
provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de
diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de
ancoragem e de vestígios: isto é o ritual da palavra.
(Orlandi, 1999, p. 10)
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RESUMO Autor: Lenice Amélia de Sá Martins Título: O Discurso da “Vidência”: Cruzamento Vocal na Interlocução entre “Céu e Terra”
Este trabalho consiste numa análise do jogo polifônico instalado no discurso da
“vidência”. Para tal realização, procuramos alicerçar-nos nas propostas propugnadas
pela Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso que concebem a linguagem
como atividade executada por sujeitos concretos inseridos em determinado tempo e
espaço. As fontes documentais que forneceram o material para este exame são
obras carreiantes do produto deste “diálogo” entre céu e terra. O “corpus” extraído
de tais fontes compõe-se de quatro textos relativos às aparições de Fátima
(Portugal); dois referentes às de Angüera (Bahia); um alusivo às de Itaperuna (Rio
de Janeiro), e um último que faz menção às “vidências” de Jacareí (São Paulo). Com
este exercício, objetivamos, especialmente, mostrar, na materialidade lingüística, o
modo como é constituída a polifonia instaurada nessa interlocução entre
protagonistas de duas esferas diferentes: material e espiritual. Mergulhando nesta
ação discursiva, foi-nos possível perceber que ela é constituída de um
entrelaçamento vocal formado pela multiplicação de sujeitos (polifonia “stricto
sensu”, de acordo com Ducrot, 1987) e por vozes externas oriundas da Sagrada
Escritura e da Igreja Católica (intertextualidade). O estudo revelou ainda que esses
discursos apresentam uma perceptível identidade no tocante ao aspecto ideológico,
pois todos eles, os produzidos em território brasileiro e aqueles de além mar refletem
a ideologia da Igreja Católica, Apostólica Romana. O desvendar do imbricamento
das vozes ecoadas desses dois mundos dissimétricos encontra sua justificativa na
possibilização de ampliamento do estudo do discurso religioso em cuja abrangência
se insere o aqui contemplado, ou seja, o discurso da “vidência”.
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Palavras-chave: Discurso da vidência; Jogo polifônico; Intertextualidade
ABSTRACT
This paper consists of an analysis of the polyphonic interplay embodied in the
discourse of “clairvoyance”. In preparing it, we sought to use as a foundation the
propositions set out in Enunciation Theory and Discourse Analysis, which conceive of
language as an activity performed by concrete subjects within a particular time and
space. The documentary sources that furnished the material for this examination are
works representing the product of this “dialog” between heaven and earth. The
corpus taken from such sources is comprised of: four texts relating to the apparitions
at Fatima (Portugal); two relating to those at Angüera (Bahia); one about those in
Itaperuna (Rio de Janeiro); and the last one concerning the “incidents of
clairvoyance” in Jacareí (São Paulo).
With this exercise, we aim especially to demonstrate, in terms of linguistic materiality,
the way in which the polyphony is constituted in this interlocution between two
disparate spheres: the material and the spiritual. Going deeper into this discursive
action, we were able to perceive that it is made up of a vocal intertwining formed by
the multiplication of subjects (polyphony strictly speaking, according to Ducrot, 1987)
and by external voices originating with Holy Scripture and the Catholic Church
(intertextuality). The study further revealed that these discourses are marked by a
perceptible identity as regards ideological aspects since all of them, whether
produced in Brazilian territory or coming from abroad, reflect the ideology of the
Roman Catholic Apostolic Church. The unveiling of the intimate link between the
voices echoing from these two dissymmetric worlds finds justification in that they
make it possible to amplify the study of religious discourse, of which this topic is a
part, namely the discourse of “clairvoyance.”
Key words: Discourse of clairvoyance; polyphonic interplay; intertextuality
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PRINCIPAIS SIGLAS
AC - Alocutário Coletivo
AD - Análise do Discurso
AP - Alocutário enquanto Pessoa no mundo
D - Delocutário
DA - Delocutário Angelical
DC - Delocutário Coletivo
DCL - Delocutário Celeste
DE - Delocutário Eclesial
DH - Delocutário Humano
DV - Delocutário Divino
DEST - Destinatário
DESTC - Destinatário Coletivo
E - Enunciador
EB - Enunciador Bíblico
EC - Enunciador Coletivo
EE - Enunciador Eclesial
L - Locutor
LC - Locutor Coletivo
LP - Locutor enquanto Pessoa no mundo
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SE - Sui Enunciador
LISTA DE ILUSTRAÇÔES
FIGURA 1 – Estrutura polifônica do discurso da “vidência” ........................................................22
FIGURA 2 – Multiplicidade de sujeitos na descrição da Figura Celeste, na 1ª “aparição de Fátima”....................................................................................................................92
FIGURA 3 – Jogo polifônico na primeira ação discursiva das “Aparições de Fátima”................96
FIGURA 4 – Multiplicação de sujeitos no discurso da segunda “aparição” de Fátima. ............108
FIGURA 5 – Processo interlocutório no discurso da Terceira Aparição de Fátima. .................118
FIGURA 6 – Cruzamento vocal no processo enunciativo do primeiro discurso de Angüera. ...130
FIGURA 7 – Imbricamento vocal na mensagem de Angüera de nº 68. ....................................139
FIGURA 8 – Cruzamento vocal no discurso das mensagens de Itaperuna..............................150
FIGURA 9 – Multiplicação de sujeito nas mensagens de Nossa Senhora Rainha da Paz em Jacareí (São Paulo) ..............................................................................................158
FIGURA 10 – Níveis de interação no discurso da vidência ......................................................164
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S U M Á R I O
I N T R O D U Ç Ã O
Objeto de estudo - delimitação e justificativa ...............................................................................14 Objetivos ......................................................................................................................................22 Objetivo Geral ..............................................................................................................................23 Objetivos Específicos ...................................................................................................................23 Hipóteses .....................................................................................................................................23 Procedimentos metodológicos .....................................................................................................24 O “corpus” ....................................................................................................................................24 Esboço teórico..............................................................................................................................26 Estrutura do trabalho ....................................................................................................................27
C A P Í T U L O 1
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 Concepções a respeito da linguagem ....................................................................................30 1.2 A ideologia..............................................................................................................................38
1.2.1. Tipologia discursiva......................................................................................................40 1.3 A questão da polifonia ............................................................................................................41
C A P Í T U L O 2
O DISCURSO RELIGIOSO
2.1. Caracterização ......................................................................................................................50 2.2. Tipologia................................................................................................................................53 2.3. Discurso teológico e discurso religioso..................................................................................54 2.4. Maria no Contexto Bíblico-Eclesial ........................................................................................62
C A P Í T U L O 3
RELATO DAS PRINCIPAIS “APARIÇÕES” DA VIRGEM MARIA E ANÁLISE DA POLIFONIA DO DISCURSO DE FÁTIMA
3.1. Aparições da Virgem Maria: mito ou realidade?....................................................................66 3.2. Nossa Senhora de Guadalupe (México – 1531)....................................................................70 3.3. Nossa Senhora das Graças – Medalha Milagrosa (Paris - França - 1830) ...........................71 3.4. Nossa Senhora de Lourdes (França – 1858) ........................................................................72 3.5. Rainha da Paz (Medjugorje – 1981) ......................................................................................72 3.6. Condições de Produção ........................................................................................................73 3.7. As Mensagens de Fátima – Relato introdutório.....................................................................78 3.8. Jogo Polifônico das Mensagens de Fátima ...........................................................................89
3.8.1. Descrição da Figura Celeste .......................................................................................89 3.8.2. Primeira “Aparição”: 13 de maio de 1917....................................................................92 3.8.3. Segunda “aparição”: 13 de junho de 1917 ..................................................................99 3.8.4. Terceira “aparição”: 13 de julho de 1917 ..................................................................109
C A P Í T U L O 4
CRUZAMENTO VOCAL NOS DISCURSOS DE ANGÜERA, ITAPERUNA E JACAREÍ
4.1. Multiplicidade Vocal nas Mensagens de Angüera ...............................................................121 4.1.1. Mensagem nº 1 .........................................................................................................124 4.1.2 Mensagem nº 62 ........................................................................................................130
4.2. O Discurso das Mensagens de Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor – Rio de Janeiro .....140 4.3. A Discursividade das Mensagens da Rainha da Paz em Jacareí – São Paulo ...................150
CONCLUSÃO ............................................................................................................................162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS .........................................................................................168
12
ANEXOS ....................................................................................................................................176
13
I N T R O D U Ç Ã O
14
Objeto de estudo - delimitação e justificativa
Na Sagrada Escritura, não são raros os relatos de interatividade entre o
mundo espiritual e o temporal. Tanto o Antigo como o Novo Testamento contêm não
poucas referências de homens e mulheres que se comunicaram com Deus,
diretamente, ou através de seus embaixadores. Dentre tantos outros, merecem
destaque na Antiga Aliança:
a) O chamado a Abraão para deixar sua terra natal e partir para outra por ele
desconhecida, com a promessa de torná-lo pai de uma descendência tão
numerosa quanto a areia da praia e as estrelas do céu (cf.Gn 12,1-3);
b) A manifestação de Deus a Moisés numa sarça (em chamas, sem se
consumir) de onde lhe deu a ordem de libertar os israelitas escravizados
no Egito (Ex 3,5-8.10)
E a Bíblia Sagrada registra que o Senhor Deus libertou o povo da
escravidão dos egípcios, realizando prodígios, através de Moisés, e os
conduziu e alimentou, no deserto, durante quarenta anos (cf. Ex, Lv, Nm e
Dt).
c) A palavra dirigida aos profetas, sobressaindo-se dentre eles: Davi, Isaías e
Miquéias que tiveram “revelações” detalhadas sobre o futuro Messias (cf.
Sl 15,8-11; 21; Is 7,14; 53; Mq 5,1-4).
d) No liame entre a Antiga e a Nova Aliança, sobreleva-se a “visão” do
sacerdote Zacarias do Arcanjo Gabriel, que lhe anunciara sua breve
paternidade, embora ele e sua esposa Isabel, que era estéril, já
estivessem idosos. E como o “vidente” duvidou das palavras do Arcanjo,
foi punido com o mutismo até o nascimento de seu filho, João Batista, o
Precursor do Messias (cf. Lc 1,5-25. 57-79).
e) A revelação mais importante, porém, neste alvorecer do Novo Testamento,
foi aquela que tem como protagonistas o mesmo Arcanjo Gabriel e a
Virgem de Nazaré, pois a mensagem transmitida encerra o anúncio do
nascimento do Messias aguardado por Israel, segundo a fé dos cristãos.
No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da Virgem era
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Maria. Entrando o anjo, disse-lhe: “Não temas Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á filho do Altíssimo (...) – (Lc 1,26-32ª - Bíblia Sagrada: 1345.1346).
Nas páginas do Novo Testamento, deparamo-nos com várias manifestações
do Senhor Jesus, após ter deixado o sepulcro. A primeira é a que ocorreu, na manhã
do domingo da Ressurreição, quando foi visto por Maria Madalena e outras
mulheres que tinham ido ao sepulcro, naquela madrugada, com a intenção de
embalsamar o seu corpo, conforme Mt 28,1-10; Mc 16,1-10; Lc 24,1-12 e Jo 20,1-18.
Neste mesmo dia, ele caminha com dois discípulos que se dirigiam para a aldeia de
Emaús (que não o reconheceram) a quem explica as Escrituras durante o trajeto e,
chegando à aldeia, revela-se-lhes, na ceia, ao partir o pão (cf. Lc 24, 12-34). Ainda
no mesmo domingo, à tarde, o Ressuscitado atravessa as portas fechadas do
Cenáculo onde se encontravam os apóstolos e, apresentando-se a eles, (com
exceção de Tomé), mostrou-lhes as chagas das mãos e dos pés abertas pelos
cravos na crucificação (cf. Lc 24,36-49; Jo,20,19-23). No domingo seguinte a esse
da Ressurreição, Jesus se manifestou a seus discípulos novamente no mesmo
lugar, mas desta vez, com a presença de Tomé. Como este havia declarado que só
acreditaria na ressurreição do Senhor se lhe tocasse nas chagas, o Mestre ordena
ao discípulo incrédulo que realize a desejada comprovação:
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez no mesmo lugar e Tomé com eles. Estando trancadas as portas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”. Depois, disse a Tomé: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado, não sejas incrédulo, mas homem de fé”. Respondeu-lhe Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” Disse-lhe Jesus: “Creste porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto.” (Jo 20, 36-39 - Bíblia Sagrada, p. 1413).
Outra manifestação do Senhor Ressuscitado aconteceu às margens do lago
de Tiberíades, na Galiléia, quando confirmou o primado de Pedro, após tê-lo
conduzido a confessar que o amava, por três vezes (cf. Jo 21, 1-17).
Finalmente, decorridos quarenta dias após a Ressurreição, Jesus ascende
aos céus à vista de muitos discípulos, conforme a narração do autor de Atos dos
Apóstolos:
Assim, reunidos, eles o interrogavam “Senhor, é por ventura, agora que ides restaurar o reino de Israel?”. Respondeu-lhes ele: “Não vos pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou
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em seu poder; mas descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria e até os confins do mundo”. Dizendo isto, elevou-se (da terra) à vista deles, e uma nuvem o ocultou aos seus olhos. (At 1,6-9 - Bíblia Sagrada: P.1413/1414).
Com a ascensão do Senhor ao céu, porém, não cessaram as teofanias.
Assim é que, no capítulo nono do mesmo livro de Atos dos Apóstolos, encontramos
o relato da conversão de Paulo, perseguidor dos cristãos, após ouvir a voz: “Saulo,
Saulo, por que me persegues?... Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9,4 -
Bíblia Sagrada: p.1423/1424).
Nestes vinte e um séculos de Cristianismo, a igreja Católica tem reconhecido
inúmeras manifestações de Jesus Cristo e de sua mãe, a Virgem Maria,
oficializando, a partir delas, devoções, como por exemplo:
a) A devoção ao Sagrado Coração de Jesus que teve origem nas aparições
do Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque, em Paray-le-Monial, na
França. Essa devoção consiste especialmente, na participação da Santa
Missa nas primeiras sextas-feiras do mês e na comunhão reparadora, ou
seja, em desagravo ao Santíssimo Coração de Jesus pelos pecados da
humanidade. A prova mais autêntica do reconhecimento da Igreja dessa
teofania consiste na canonização da “vidente” pelo papa Bento XV, a 13
de maio de 1920, e na instituição da Festa do Sagrado Coração de Jesus,
celebrada, na primeira sexta-feira, depois de Corpus Christi.
b) O culto ao Imaculado Coração de Maria cuja gênese está na “aparição” do
dia 10 de dezembro de 1925 da Virgem Maria à Irmã Lúcia, em Pontvedra,
Espanha, no convento das Dorotéias. Esse culto, além de outras práticas,
envolve a comunhão eucarística nos primeiros sábados de cada mês e a
Festa Litúrgica celebrada pela Igreja, no sábado após a solenidade do
Sagrado Coração de Jesus.
c) A devoção à Misericórdia Divina que teve sua procedência nas
“revelações” de Jesus à santa Faustina, polonesa. O culto à Divina
Misericórdia, entre outros exercícios, compreende:
• A entronização da imagem da Divina Misericórdia, nos lares, na forma
como o Senhor se “apresentou” à Irmã Faustina, na noite de 22 de
17
fevereiro de 1931: de túnica branca, com uma das mãos erguidas no
gesto de bênção e a outra sobre o peito de onde saiam dois grandes
raios: um vermelho e outro pálido (cf Padres Marianos, 1987, p.107).
• O Terço da Misericórdia, rezado, especialmente, às quinze horas;
• A Festa Litúrgica comemorada no primeiro domingo, após a Páscoa.
d) A devoção da Medalha Milagrosa cuja origem remonta às “aparições” da
Virgem (Nossa Senhora das Graças) a Catarina Labouré, na França, no
ano de 1830.
É do conhecimento de todos que a Igreja Católica jamais negou as revelações
pós-bíblicas (quando devidamente comprovadas) como apregoa a Comissão
Episcopal de Doutrina – CED - CNBB (2.000, p. 21): As manifestações extraordinárias não cessaram com a primeira geração do Cristianismo. Francisco de Assis recebeu a mensagem divina a partir de uma cruz. Santa Matilde de Magdeburgo diz ter tido várias visões de Jesus. Santa Gertrudes, como São Francisco, foi distinguida com os estigmas de Cristo e teve diversas visões e revelações. Santa Brígida, também, teve muitas revelações de Cristo, a favor da volta dos papas de Avinhão para Roma. O mesmo se diga de Santa Catarina de Sena.
As primeiras teofanias, ou seja, aquelas da Sagrada Escritura, são
denominadas pela Igreja de revelações públicas e as últimas, de revelações particulares.
Dentre as manifestações particulares, destacam-se as atribuídas à Virgem
Maria. Roman (2003) apresenta, do século I, aos nossos dias, setenta e oito dessas
revelações:
a) Do século I ao IX, doze, merecendo destaque, neste período, Nossa
Senhora do Pilar, no ano 41;
b) Do século X ao XII, seis;
c) Do século XIII ao XIV, oito;
d) Século XV: cinco;
e) Século XVI: sete. Dentre essas, sobressai a de Guadalupe, no México, em
1531;
18
f) Século XVII: nove. Nas manifestações desse século, destaca-se o milagre
ocorrido no ano de 1640, em Calanda (Espanha). O jovem Miguel Juan
Pellicer, que tivera uma das pernas amputada, em virtude de uma
gangrena, costumava ir ao Santuário de Nossa Senhora do Pilar de quem
era devoto. Nessas visitas, além das orações, o jovem passava no local
onde a perna fora mutilada, óleo das lamparinas que se acendiam na
Capela da Virgem. No dia 29 de março, deitou-se na sala de sua casa e
se cobriu com um manto. Ás 22:00h, porém, seus pais o acordaram
estupefatos, pois notaram que, debaixo do manto, apareciam os dois pés.
Exames posteriores comprovaram que a perna era a mesma que fora
amputada. (cf. Roman, 2003, p 51/52).
g) Século XVIII: quatro. Neste século, ocupam lugar de destaque as
manifestações que se iniciaram no ano de 1717, no Brasil. Os pescadores
Domingos Garcia, João Alves e Felipe Pedroso pescaram durante muitas
horas sem conseguirem um único peixe. Ao chegarem, porém, ao Porto
Itaguaçu, no Rio Paraíba, João Alves lançou a rede e, ao puxá-la, viram
nela uma imagem de Nossa Senhora da Conceição sem a cabeça. Mais
abaixo, arremessando novamente a rede, apanharam a cabeça da mesma
imagem. Depois disto, obtiveram tão grande quantidade de peixes que
decidiram voltar para casa. Em virtude das curas consideradas milagrosas
e de outros fatos extraordinários atribuídos a essa imagem, as autoridades
eclesiásticas viram nela um sinal da intervenção de Deus, por meio da
Virgem Maria, especialmente para o povo brasileiro. Assim, com o título de
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a Mãe de Jesus foi proclamada
em 1931, Rainha e Padroeira do Brasil.
h) Século XIX: nove. Neste século, sobrelevam-se a da Medalha Milagrosa,
em 1830; a de Nossa Senhora da Salete, em 1846, e a de Nossa Senhora
de Lourdes, em 1854;
i) Século XX: dezoito. Entre essas últimas, estão as de Fátima (que farão
parte do “corpus” deste trabalho), em 1917; a da Rosa Mística, que
“apareceu” em 1946, à enfermeira Pierina Gilli (Lombardia – Itália) e a de
Medjugorje, na Iugoslávia que teve início em junho de 1981.
19
Aqui, no Brasil, são várias as narrativas de aparições e outras manifestações
da Mãe de Jesus; por exemplo:
a) Em “locução interior” Fortaleza (Ceará), de 1985 a 1987 - Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças.
b) Em Piedade dos Gerais, (Minas Gerais), desde 1987, onde foi formada
uma comunidade composta por pessoas que decidiram viver radicalmente
as “mensagens” da Virgem – Imaculada Conceição.
c) Angüera (Bahia), a partir de 1987 (parte do “corpus”) - Nossa Senhora Rainha da Paz.
d) Jacareí (São Paulo), que teve início em 1991 (integrante do “corpus” -
Rainha da Paz.
e) Itaperuna (Rio de janeiro), de 1995 a 1996 (integrantes do “corpus”) -
Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor.
f) As revelações ao artista plástico Raymundo Lopes, em Belo Horizonte
(Minas Gerais), desde o ano de 1992 - Nossa Senhora do Rosário.
Quanto aos fatos extraordinários ocorridos no seio da Igreja Católica, alguns
deles já foram comprovados cientificamente, sendo os mais notáveis, o milagre de
Lanciano, o de Guadalupe, no México, e o Sudário. Em Lanciano, cidade da Itália,
um monge, ao celebrar a Missa, no ano de 1700, foi surpreendido por um fato
inédito: a hóstia que estava em suas mãos, repentinamente transformou-se em
carne e o vinho, no cálice, em sangue. Profundamente comovido, o sacerdote, volta-
se para os fiéis e lhes apresenta o milagre de que eles também eram testemunhas.
Essa carne e esse sangue foram submetidos a exames de laboratório cujos
resultados foram:
1°) A carne e o sangue são humanos.
2º) Não existe, neles, presença de qualquer elemento químico que os
tenha preservado da decomposição.
3º) Tanto a carne quanto o sangue são de pessoa viva.
20
4°) O grupo sanguíneo de ambos é do tipo AB (o comum na raça
judia) - (cf. Gambarini, 2005, p. 104 - 108).
No tocante a Guadalupe (cujo histórico será apresentado na introdução do
“corpus”), segundo pesquisas realizadas, os sinais mais evidentes são:
a) tipo de tinta da pintura da imagem que não tem similar na Terra;
b) os olhos da imagem fotografaram o “vidente” e outras pessoas
que estavam, na sala onde ele expôs sua tilma (espécie de
avental) com a pintura da Virgem (cf.
http://www.enignasonline.com/htm/passado121001.htm, 205 p: 1-
2).
O Sudário é um lençol de linho que contém a imagem de um homem morto
por crucificação, revelado no negativo de uma fotografia. As pesquisas realizadas,
nesse lençol, mostram que esse homem foi flagelado com 140 chicotadas, coroado
com espinhos, carregou aos ombros uma das partes da cruz e morreu por asfixia.
Após sua morte, teve o coração perfurado por uma lança. Seu corpo, além de não
conter sinais de putrefação, só permaneceu no lençol durante setenta e duas horas,
de onde saiu sem ser retirado por mãos humanas.
As ”revelações” em terras brasileiras têm sido acolhidas pelo povo que acorre,
em massa, aos locais onde se processam esses fenômenos, geralmente para
solicitar cura, conversão, libertação ou até mesmo por curiosidade. É também mais
uma expressão do carinho e da confiança que os filhos da Terra de Santa Cruz
depositam na Mãe do Senhor, pois as orações do Rosário (atualmente vinte Pai-
Nosso e duzentas Ave Maria), do Oficio da Imaculada Conceição e da Ladainha, os
inúmeros títulos atribuídos a ela como ainda a veneração de suas incontáveis
imagens, já atestam esta singular veneração.
A Igreja clerical, porém, sempre se tem mostrado cautelosa frente às
revelações particulares. Essa prudência da Igreja Católica vem sendo reconhecida
por membros de outras igrejas como assegura o seguinte excerto do Documento da
Igreja Luterana sobre Maria:
Em Lourdes, em Fátima e em outros Santuários marianos, a crítica imparcial se encontra diante de fatos sobrenaturais, que têm relação direta com a Virgem Maria, seja mediante as aparições, seja por causa das graças milagrosas solicitadas por sua intercessão. Estes
21
fatos são tais que desafiam toda a explicação natural. Sabemos ou deveríamos saber que as curas de Lourdes e Fátima são examinadas com elevado rigor científico por médicos católicos e não-católicos. Conhecemos a praxe da Igreja Católica, que deixa transcorrer vários anos antes de declarar uma cura milagrosa… (file://c:\home\afs15794\ art. relig \PROT.SENHORA.htm)
Este trabalho, porém, conforme já referido, não consiste no exame dos
fenômenos cuja verbalização foi tomada como “corpus”, sob o enfoque religioso,
uma vez que aqui não se trata de ciência da Religião e nem tão pouco de
Sociologia. Ele tem como alvo a análise da atividade lingüística que aí se processa,
polifonicamente, ou seja, o adentramento na superposição de vozes e na
multiplicação dos sujeitos dessa ação enunciativa. No dizer de Koch (1995, p. 107),
nesse tipo de discurso, instauram-se “diferentes processos de figuração”, uma vez
que a expressão verbal se amolda às peculiaridades ou objetivos de cada uma
dessas manifestações. Assim é que o discurso de Angüera, por exemplo, difere
consideravelmente do de Itaperuna, que, por sua vez, não é o mesmo de Jacareí,
embora os três sejam contemporâneos e produzidos no português do Brasil. Sendo
assim, só temos que concordar com Orlandi (1983, p 101), quando ressalta que,
mudadas as condições de produção, tem-se outra manifestação discursiva. Essas
mudanças implicam instauração de diferentes sujeitos discursivos, embora
materializados, diversas vezes, num mesmo falante ou ouvinte. Eis por que, no dizer
da autora (p. 176), “o sujeito da linguagem não é um sujeito em si, mas tal como
existe socialmente”.
O discurso da “vidência”, em sua própria estrutura interna, constitui um
entrelaçamento de vozes que formam uma orquestra dirigida, ora por maestros que
se revezam, ora por um único regente. Cabe, portanto, ao analista averiguar como
se processa a atividade lingüística no interior desse discurso de caráter místico.
Convém esclarecer, porém, que a materialidade lingüística dos textos
constituintes do corpus é que norteia a atividade aqui proposta. Concentrando-nos
na ação discursiva dessas “vidências”, temos como meta debruçar-nos sobre o
modo como esses sujeitos se introduzem e se entrelaçam na enunciação
constituindo a tessitura polifônica.
A estrutura desse concerto está representada na figura seguinte:
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Temporal Vidente
Celeste Virgem MariaCeleste
Virgem Maria
E N U N C I A Ç Ã O
ALOCUTÁRIO
DELOCUTÁRIO
Temporal Vidente
LOCUTOR
Espiritual Temporal FIGURA 1 – Estrutura polifônica do discurso da “vidência”
Por compreendermos que o lingüístico é o espaço que dá materialidade às
idéias e ás temáticas das quais o homem se faz sujeito, pretendemos usar esse
instrumento para melhor desvendarmos as características desse discurso que se
constrói na interação entre dois mundos assimétricos: o transcendental e o temporal.
Já que, como Brandão (1995: p. 62), consideramos que “o centro das relações não
está nem no eu nem no tu, mas no espaço discursivo criado entre ambos”,
entendemos que o discurso da “vidência”, tanto no tocante às estratégias de
manifestação e escamoteamento do sujeito, quanto no que se refere às vozes intra e
extra discursivas que, nele, ressoam, nos oferece uma valiosa oportunidade para
ampliarmos o conhecimento do discurso religioso no qual ele está inserido.
Objetivos
Centrando a nossa investigação na atividade de algumas “vidências”,
processadas em língua portuguesa, este estudo tem como objetivos:
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Objetivo Geral
Contribuir para a ampliação dos estudos do discurso religioso com a análise
do jogo polifônico instalado na interlocução que envolve sujeitos da esfera espiritual
e temporal, ou seja, o discurso da “vidência”.
Objetivos Específicos
a) buscar nas marcas lingüísticas, a rede polifônica construída pelos agentes
da enunciação:
b) apontar, por meio de índices lingüísticos presentes na superfície textual, a
multiplicidade de funções exercidas pelos sujeitos das variadas ações
discursivas;
c) indicar, via materialidade lingüística, o efeito de sentido provocado pela
incorporação de outros discursos (intertextualidade), na instância
enunciativa central;
d) mostrar que a intertextualidade, no discurso religioso, opera como
estratégia argumentativa, no sentido da difusão da ideologia por ele
veiculada.
Hipóteses
Para a Análise do Discurso todo “dizer” está necessariamente relacionado a
sua exterioridade, ou seja, às condições de produção. No discurso religioso uma
dessas exterioridades diz respeito à espiritualidade, pois ,segundo Orlandi (1987, p.
89), “o discurso religioso é a territorialização da espiritualidade”. E a forma como se
dá tal relação implica vários discursos religiosos, como apregoa a mesma autora (p.
8): Na multiplicidade de suas manifestações – há vários discursos religiosos e há
vários modos pelos quais esses discursos se configuram não só no discurso
cotidiano como em outros (...).
Essas manifestações (conforme deslindado no segundo capítulo), na
concepção adotada neste trabalho, constituem instâncias do discurso religioso: o
discurso bíblico, o discurso teológico, o discurso popular e o discurso da “vidência”.
24
Essas expressões de discursos caracterizam-se fundamentalmente pelo
interdialogismo, ou seja, cada um deles é atravessado pela voz do outro. Portanto,
uma de suas marcas altamente significativas é a intertextualidade. E, como, de
acordo com Koch (1998, p. 57), “todo caso de intertextualidade é um caso de
polifonia”, podemos asseverar que qualquer tipo de discurso religioso é um discurso
polifônico. Se nele essas vozes dialogam entre si, embora com suas peculiaridades,
é evidente que elas falam de um mesmo lugar. Mas como identificar esse lugar?
Ora, já que sabemos que a Igreja regula, determina e avalia o discurso religioso (cf.
Orlandi, 1996, p. 246), podemos entender que qualquer uma de suas micro-
instâncias constitui um eco dessa mesma Igreja. Assim sendo, consideramos que o
discurso da “vidência”, na incorporação das vozes bíblicas e teológicas como
também na multiplicação de seus sujeitos, reduplica a voz da Igreja Católica,
instituição que, de alguma forma, a delega.
Nesta linha de pensamento, assumimos, portanto, como hipótese, no
presente trabalho, que o discurso da “vidência”, embora tendo, como protagonistas
da esfera temporal, sujeitos sem conhecimento teológico (na maioria das vezes), no
processo enunciativo, tanto na polifonia “stricto sensu” (Ducrot, 1987) quanto na
intertextualidade, veicula a ideologia da Igreja Católica Apostólica Romana.
Procedimentos metodológicos
O “corpus”
Para a análise aqui proposta, procuramos compor uma amostra do “corpus”
que compreende os seguintes textos:
a) Quatro referentes às aparições de Fátima (o da descrição da Mulher,
objeto de visões das três crianças: Lúcia, Francisco e Jacinta e os três
primeiros que encerram a “interlocução” entre a Bela Senhora e Lúcia – 13
de maio, 13 de junho e 13 de julho de 1917, conforme Machado, (1983) e
Dias (1999).
b) Dois que dizem respeito aos fenômenos de Angüera – Bahia: 10 de
outubro de 1987 e 04 de janeiro de 2000, de acordo com a obra – Apelos
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Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia,
(1993).
c) Um alusivo às “aparições” em Itaperuna (Rio de Janeiro): 15 de junho de
1995, consoante a obra – Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor (2001).
d) Um relativo aos fenômenos místicos de Jacareí (São Paulo): 19 de março
de 1993, segundo Marcos Tadeu (2000).
De acordo com esses relatos, tais fenômenos acontecem quase sempre em
lugares, dias e horários determinados, como por exemplo, Fátima: na Cova da Iriia,
de 13 de maio a 13 de outubro, próximo ao meio dia (cf. Dias, 1999, p. 20), e,
geralmente, são acompanhados de sinais na natureza (sol, lua, árvores) (cf. as
obras citadas).
Quanto à figura contemplada pelos videntes, nos quatro casos, é descrita
como uma mulher extremamente bela, aparentando uns vinte anos de idade.
Apresenta-se, geralmente com veste branca, manto azul, descalça, envolta numa
intensa luz e traz às mãos um rosário. Sempre paira a pouca distância do solo sobre
uma nuvem luminosa.
No tocante à identidade dos videntes, no início dos fatos, eram crianças
(Fátima), adolescentes (Jacareí) e jovens (Angüera e Itaperuna) e de origem
humilde (cf. as obras mencionadas).
No que se refere aos fiéis que acorrem a esses locais são eles das mais
diversas profissões (médicos, padres, professores, operários) e de variados níveis
sociais e econômicos, mas há uma certa predominância das camadas populares.
Em relação ao registro dessas interações, com exceção de Fátima que
ocorreu vinte anos depois (conforme será explicado no item “condições de
produção), as três “processadas” em solo brasileiro foram consignadas no momento
mesmo de sua ocorrência, como será esclarecido na introdução de cada ação
analítica.
Cumpre esclarecer que a escolha dessas “vidências” não ocorreu de modo
aleatório: foi determinada por critérios, que apresentam real importância para os
objetivos deste trabalho.
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As aparições de Fátima, além de serem as únicas, fora do Brasil, em Língua
Portuguesa codificadas em livros, constituem discurso relatado e tem como
“videntes” três sujeitos, embora a interlocução aconteça apenas com um deles.
Essas singularidades em relação aos outros discursos contemplados determinam
uma análise, em certos aspectos, diferenciada.
Quanto às três últimas, a escolha foi motivada por acontecerem no Brasil e
ainda pela farta presença da intertextualidade bíblico-teológica em sua enunciação.
No tocante à seleção mais específica, ou seja, dos textos que constituem o
objeto de exame, seu norteamento está apresentado no prefácio de cada produção
analítica.
Esboço teórico
Em conseqüência do próprio objeto de análise, ou seja, a polifonia do
discurso da “vidência” e do empenho em adentrar a linguagem como ação que se
realiza entre dois sujeitos ou como “ritual social”, no dizer de Maingueneau (1989, p.
30), ação essa determinada pelas inter-relações e pelo contexto situacional,
elegemos como quadro de referência teórica a Análise do Discurso (AD) de origem
francesa e a Teoria da Enunciação (TE). Essa última, tendo Bakhtin (1929/1981,
1986) como precursor, desenvolveu-se no campo da Lingüística com os trabalhos de
Benveniste (a966/1988, 1974/1989) que aqui procuramos seguir com a devida
complementação e reorientação de estudos como os de Pêcheux (1969), Ducrot
(1987), Maingueneau (1984, 1989, 1997), Authier – Revuz (1982), Brandão (1995,
1998), Citelli (1995), Fiorin (1988, 1994, 1996), Koch (1995, 1996, 1997, 1998),
Orlandi (1983, 1986, 1987, 1988, 1999), dentre outros.
O cerne do pensamento dos analistas do discurso é que o enunciado
(produto) não se limita ao material lingüístico que o constitui, mas envolve o ato
enunciativo (produção) do qual é resultante.
Um dos aspectos polêmicos dos estudiosos da AD é a questão da
subjetividade lingüística concebida e apregoada por Benveniste (1988). Para ele, a
subjetividade seria a principal característica da linguagem, constituindo-se o sujeito-
locutor em fonte e centro de todos os atos lingüísticos. Assim sendo, ao apropriar-se
27
da linguagem, o locutor instaura-se como Eu, ou seja, como fonte de seu dizer, ao
mesmo tempo que institui o outro como TU, isto é, como seu interlocutor.
Para a AD, porém, o sentido produzido pela linguagem não se restringe aos
protagonistas (eu e tu) e ao ser referido (ele), mas leva em consideração o espaço
situacional imediato e o contexto histórico, social e cultural no qual os sujeitos se
acham inseridos.
Prosseguindo em seus estudos, os analistas do discurso passam a conceber
na ação enunciativa não um sujeito único, mas uma dispersão de sujeitos. Assim
sendo, a polifonia passa a ser concebida como a principal característica dos atos
discursivos.
A partir de uma visão mais ampla de polifonia, discutida cuidadosamente no
capítulo teórico, nesta pesquisa, procuramos examinar o modo como se constitui
esse processo polifônico no discurso da vidência.
Estrutura do trabalho
Além desta introdução, em que procuramos apresentar a delimitação do
objeto de estudo, os objetivos, os procedimentos metodológicos e a ancoragem
teórica da pesquisa aqui empreendida, este trabalho contém mais quatro capítulos.
O primeiro abrange os pressupostos teóricos que, conforme alusão anterior,
fundamentam-se na Teoria da Enunciação, abarcada e complementada pela Análise
do Discurso.
O segundo capítulo contém os aspectos teóricos que dizem respeito ao
Discurso Religioso em geral e aos da vidência, em particular, a partir das
concepções, principalmente, de Orlandi (1996, p. 239-262).
O terceiro capítulo abarca um breve relato das principais “aparições” da
Virgem Maria e a análise das Mensagens de Fátima.
O quarto compreende a apreciação analítica das mensagens de Angüera,
Itaperuna e Jacareí. Nesses dois últimos capítulos, que constituem o núcleo desta
tese, por serem aqueles que contêm a análise dos dados, procuramos averiguar
como se constrói o jogo polifônico detectado, nas “vidências” elencadas.
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Por fim, na conclusão que encerra um balanço geral da análise efetuada,
apontamos os princípios que regem a rede polifônica tecida no interior do discurso
da “vidência” e sua relação com a instância contenedora, a Igreja Católica.
Em anexo, são transcritos o “corpus” e todos os demais textos relativos a
“revelações” e “milagres” que, embora não-integrantes dos “dados”, foram citados
neste trabalho investigativo.
C A P Í T U L O 1
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
29
30
Neste capítulo buscamos apresentar as principais teorias que deram
embasamento à análise aqui empreendida. Já que o objeto selecionado para este
estudo é o modo como se processa a linguagem no cruzamento vocal instaurado
nas falas da “vidência”, procuramos guiar-nos, principalmente, pelos princípios da
Teoria da Enunciação e Análise do Discurso.
Antes de abordar esses princípios, tecemos algumas considerações a
respeito da concepção da linguagem, no decorrer dos estudos lingüísticos.
A seguir, fazemos alusão às linhas de pensamento acerca da ideologia,
fenômeno constante em todo ato discursivo.
Prosseguindo na reflexão dos pressupostos teóricos, procuramos deter-nos
especialmente naquele que constitui o fundamento principal deste trabalho analítico
que é a polifonia.
E como o discurso, aqui examinado, é o religioso, apresentamos também as
linhas de pensamento que dizem respeito a este tipo de discurso pertinentes a
especificidade dessa análise – cruzamento das vozes instaladas na “vidência”.
1.1 Concepções a respeito da linguagem
Segundo Koch (1992: p.09-10), no decorrer da história dos estudos
lingüísticos, as diversas concepções a respeito da linguagem podem ser sintetizadas
em três grandes vertentes:
a) de acordo com a tradição gramatical iniciada na antiguidade greco-latina, a
linguagem é vista como expressão do pensamento e como representação
do mundo exterior. Portanto, ela é considerada pelo homem como
“espelho” de seus pensamentos e do conhecimento que ele tem do
mundo;
b) na concepção de lingüistas como Jakobson, a linguagem é um instrumento
de comunicação. Neste caso, a língua é considerada um código, por meio
do qual um emissor transmite a um receptor uma ou várias mensagens;
c) segundo a Análise do Discurso, a linguagem é o lugar de interação entre os
membros de uma comunidade e os atos lingüísticos, um espaço onde
31
ocorre a heterogeneidade, ou seja, o cruzamento de vozes, uma vez que,
nesse espaço, os sujeitos da enunciação são atravessados por vozes
alheias.
Essa última concepção advogada pela AD, teve como pioneiro o francês
Benveniste (1988 e 1989). Esse lingüista entendia a linguagem como atividade
interacional que envolve protagonistas inseridos no contexto situacional e sócio-
cultural, co-responsáveis pela realização do ato lingüístico.
Nesta concepção de linguagem como atividade, a AD leva em conta as
manifestações lingüísticas produzidas por indivíduos reais, concretos, alocados em
determinado tempo e espaço e dotados de certas intenções. Assim sendo, a AD
considera não serem as condições sócio-históricas elementos secundários; ao
contrário, elas são constitutivas da própria significação do texto. Comungando
dessas mesmas idéias, Orlandi (1983, p. 106 – 107) assevera que o texto é uma
unidade cujo processo de significação se realiza não só pelos elementos lingüísticos
como também pelos contextos situacional e histórico-social que funcionam como
ingredientes de sua efetivação. No dizer de Koch (1992, p.13 -14): (...) as condições
de produção (tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores, imagens
recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução) são constitutivos do
sentido do enunciado.
Essa concepção de linguagem como ação que se realiza na interlocução e
pela interlocução, como já referido, começou a germinar, no terreno lingüístico, a
partir de Benveniste (1996/1988, 1974/1989), que, tomando-a de Bakthin inaugura a
Teoria da Enunciação. Seu princípio norteador é que, no estudo da linguagem, o
lingüista não pode parar no enunciado, ou seja, no produto, mas é necessário que
ele volva o seu olhar para a enunciação, uma vez que é no processo enunciativo
que se dá a determinação do sentido.
Nessa nova abordagem, Benveniste (1988) prioriza a subjetividade lingüística,
apresentando, como índice dessa subjetividade, os pronomes pessoais que, no
sistema pronominal francês, de acordo com a sua proposta, ramificam-se em dois
grupos distintos: os pronomes que exprimem pessoa (primeira e segunda) e os que
indicam não-pessoa (referenciais). Os primeiros expressam os sujeitos (emissor e
receptor) envolvidos na interlocução: eu e tu (dêiticos). Os de não pessoa: ele, ela,
32
eles, elas (anafóricos) indicam os referentes, ou seja, os elementos do mundo extra-
lingüístico, aqueles que se situam à margem da interlocução.
Na ação enunciativa, Benveniste distingue dois planos: o discurso e a história.
O primeiro é expresso pelo presente, pretérito perfeito composto (“passé composé”)
e futuro do presente, e o segundo, pelos pretéritos perfeito, imperfeito, mais que
perfeito e futuro do pretérito.
O discurso constitui uma enunciação caracterizada pela presença de um
locutor e um ouvinte. Já na história, tem-se um relato de fatos passados, mas sem o
envolvimento do locutor. É como se os fatos se narrassem a si próprios.
Mergulhando mais na questão da linguagem como atividade, o lingüista
francês aponta um tipo de verbo que, quando empregado na primeira pessoa do
presente do indicativo, não apenas descreve a ação que exprime, mas tem o poder
de realizá-la. São chamados verbos performativos. Como exemplos de
performativos, podem ser citados os verbos batizar e declarar. O primeiro realiza o
batismo, quando enunciado por pessoas abalizadas, na fórmula: “Eu te batizo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O segundo, quando inserido na fórmula
cristalizada: “Declaro aberta / fechada a sessão”. Assim como Benveniste, Austin
(1965) reconhece esses verbos executores da ação que nomeiam, em sua Teoria
dos Atos de Fala. Nela identifica três tipos de atos: ato locucionário (sempre que o
sujeito se apossa da língua); ato ilocucionário (atribui-se ao ato determinada força:
asserção, pergunta, ordem, etc); ato perlocucionário (exerce certos efeitos sobre o
interlocutor: convencê-lo, assustá-lo, etc). Segundo ele, o performativo ocorre
quando o ato ilocucionário se realiza de forma explícita (Ex: “Eu te louvo, Senhor!”)
ou quando, estando o performativo implícito, é possível recuperá-lo (Ex: No
enunciado “Louva ao Senhor”, há possibilidade de tal recuperação, na forma: “Eu te
ordeno que louves ao Senhor!”)
Nessa percepção da linguagem como interação, Benveniste (1988) distingue
dois sujeitos básicos: o “locutor” e o “receptor”. Para ele, o primeiro é a fonte da
linguagem, o centro do ato lingüístico. Nesse caso, o enunciado pode conter marcas
que denotam a relação do sujeito com o seu dizer e, por meio desse dizer, com o
mundo onde está inserido. Já que, para esse autor, a subjetividade é a marca
fundamental da linguagem, apropriando-se da língua, o sujeito-locutor instaura-se
33
como eu e institui, ao mesmo tempo, o seu ouvinte como tu. E é a partir do eu que
são caracterizadas as outras duas categorias do processo enunciativo: aqui e
agora, ou seja, o espaço e o tempo.
Nesse processo, eu e tu são sempre reversíveis, isto é, o eu pode passar a
ouvinte e o tu a locutor.
De acordo com Benveniste, conforme já referido (op. cit., p. 82), é o locutor
que instala a enunciação. Ao assumir a língua, “ele implanta o outro diante de si,
qualquer que seja o grau de presença que atribua a esse outro”. Para ele (1989, p.
84), “toda enunciação é, explicita ou implicitamente, uma alocução que postula um
alocutário” (grifo nosso).
Considerando que, na enunciação, a língua se acha empregada para a
expressão de uma certa relação com o mundo, Benveniste (op.cit., p.84), completa o
tripé de seu “aparelho formal” com a referência, que, segundo ele, significa “para o
locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-
referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-
locutor”.
Analisando a estrutura das relações de pessoa no verbo francês, Benveniste
(1988, p.247-249), mostra que esses três elementos possuem um estatuto locutório
diferente, o que implica tipos distintos de inter-relacionamentos. Num primeiro nível
de oposição denominado pelo autor de correlação de personalidade, evidenciam-se
a actorização (termo empregado por Fiorin, 1996, p.58) e a referência, ou pessoa x
não pessoa. A actorização envolve as pessoas do discurso: eu que, de acordo com
Benveniste, se faz sujeito na e pela apropriação da linguagem, instituindo, ao
mesmo tempo, o tu como seu parceiro. Esses dois sujeitos eu e tu são únicos e
irreversíveis no processo enunciativo. Já o referido ou terceira pessoa – ele – tem a
possibilidade de encarnar uma infinidade de seres e objetos(ou nenhum) e não é
passível de reversibilidade. No dizer de Fiorin (1996, p.60),
a terceira pessoa é a única com que qualquer coisa é predicada verbalmente. Com efeito, uma vez que ela não implica nenhuma pessoa, pode representar qualquer sujeito ou nenhum e esse sujeito, expresso ou não, não é jamais instaurado como actante da enunciação.
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O segundo nível de oposição ao qual Benveniste chama de correlação de
subjetividade abrange os sujeitos da interlocução. Segundo o autor, tal correlação
estabelece oposição entre a primeira pessoa, eu e a segunda, tu, ou seja, pessoa
subjetiva x pessoa não subjetiva. Por conseguinte, o autor confere ao eu uma
posição de transcendência em relação ao tu, o que fica bem patente no excerto
abaixo:
Quando o individuo se apropria dela, a linguagem se torna em instância de discurso, caracterizada por esse sistema de referências internas cuja chave é eu, e que define o indivíduo pela construção lingüística particular de que ele se serve quando se enuncia como locutor (Benveniste, 1988, p. 281) - (grifos do autor).
Alguns teóricos, como por exemplo, Brandão (1995), no entanto, insurgem-
se contra essa supervalorização do eu e a despessoalização do ele, na visão
benvenistiana, argumentando que a subjetividade está presente em qualquer tipo
de discurso, mesmo naquele em que o “eu” não está explicito, não se enuncia. De
acordo com essa autora (p.48), os “discursos que utilizam formas indeterminadas,
impessoais, como o discurso científico ou o esquizofrênico, em que o locutor
utiliza o ele para se referir a si mesmo, mascaram sempre o sujeito”. Para
Brandão,
(...) essa estratégia de mascaramento é também uma forma outra de constituição da subjetividade. Só que nela, o sujeito perde seu eixo então centralizado no eu todo poderoso, monalítico, descentralizando-se e dispersando-se ou para outras formas do paradigma da pessoa ou para outros papéis que assume no discurso (Brandão, 1995, p.48).
O próprio Bakhtin (1929/1986) assume uma concepção de sujeito diferente da
de Benveniste, atestando que, como produtor de sua fala, o sujeito se constitui como
elemento sócio-histórico. Assim, para os adeptos da AD, o sujeito, ao produzir o seu
discurso, projeta-se numa rede ininterrupta de interações, o que torna difícil a
fixação de limites radicais entre o eu e o outro ou entre um determinado discurso e
outros já produzidos no decorrer da história.
O estudo da ação discursiva, em virtude de sua unicidade, é feito através de
seu produto – o enunciado – cujas marcas de produção transparecem na superfície
verbal. Em face desse espelhamento, Ducrot (1987, p. 168), define a enunciação
como “acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado”.
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Partilhando desse mesmo pensamento, assumimos aqui que a linguagem se
constitui discurso por meio das categorias de pessoa, tempo e espaço, numa
intersubjetividade histórico-social. Por conseguinte, emissor e receptor interagem
simultaneamente na cena enunciativa. Assim sendo, a interação se realiza em
parceria, na especificidade de cada sujeito e numa articulação de forma cúmplice.
No tocante à “formação discursiva” em apreço, ou seja, o discurso da
“vidência”, podemos prever um complexo jogo de protagonistas. Dirigida (segundo a
fé), por um locutor celeste que fala em nome de Deus, ela tem seu processamento
agenciado por um sujeito que é, ao mesmo tempo, locutor, alocutário e enunciador.
Considerando que o locutor celeste é também enunciador de uma mensagem
“provinda” de Deus, como se constata na 44ª alocução, do dia 07 de junho de 1988,
em Angüera - Bahia (“Queridos filhos, vós ainda não compreendestes o significado
das mensagens que o Senhor vos transmite por meu intermédio...”) e que os
ouvintes são também referentes e co-alocutários, é certo que temos ai um quadro de
grande mobilização nesse processo interlocutório.
No que se refere ao produto da ação enunciativa desenvolvida na linguagem
e pela linguagem, Benveniste (1989, p. 58) estabelece uma distinção entre frase e enunciado. A primeira se caracteriza como uma unidade formal, estruturada em
consonância com os princípios da gramática e está sujeita a inúmeros modos de
realizações. Já o enunciado, este configura-se como a efetivação de uma ou mais
frases, no decorrer da interlocução.
Essa diferença entre frase e enunciado é apresentada por Ducrot (1987:
p.164):
O que eu chamo de frase é um objeto teórico, entendendo por isso que ele não pertence, para o lingüista ao domínio do observável, mas constitui uma invenção desta ciência particular que é a gramática; o que o lingüista pode tomar como observável é o enunciado, considerado como a manifestação particular, como a ocorrência hic et nunc de uma frase.
Alguns estudiosos da Língua consideram a frase suporte do enunciado,
atribuindo a esse último valor argumentativo. Para eles, as frases permitem prever o
valor argumentativo contido nos enunciados. Fávero e Koch (1988, p.48), por
exemplo, consideram que a orientação argumentativa realizada pelas frases (ou a
maioria delas) é freqüentemente veiculada por marcas lingüísticas explicitas, como:
36
ainda, aliás, também, mesmo, até, mas, embora, já que, logo, porque, etc. Como, de acordo com tais lingüistas, “as frases são entidades construídas para dar
conta dos enunciados” (p.48), sua função consiste em direcionar a descoberta do
sentido desses mesmos enunciados.
É mister, porém, não nos esquecermos de que, embora o ato discursivo se
realize na enunciação, esta não pode ocorrer sem o enunciado, visto ser ela o
evento que se constitui pela própria produção de um enunciado. Ambos são duas
faces da mesma instância lingüística. Impossível é que haja enunciação sem
enunciado, mas também é inevitável que seja produzido um enunciado sem que,
concomitantemente, seja desencadeado o processo enunciativo. O primeiro,
portanto, é fator imprescindível para a realização do segundo.De acordo com
Foucault (1979, p.247), o enunciado acontece sempre que um sujeito emite um
conjunto de signos, ao passo que a enunciação tem como característica a
singularidade, uma vez que ela jamais se repete. Esse conceito da enunciação
como ação irrepetível é compartilhado por Benveniste, Ascombre e Ducrot. O
primeiro (1974, p.80) diz que “a enunciação é essa colocação em funcionamento
da língua por um ato individual de utilização”. Já Ascombre e Ducrot (1976, p.18)
afirmam:
A enunciação será para nós a atividade linguageira exercida por aquele que fala no momento em que fala. Ela é, portanto, por essência histórica, da ordem do acontecimento e, como tal, não se reproduz nunca duas vezes idêntica a si mesma.
Analisando a visão dos discursivistas acerca do processo enunciativo, Ducrot
(1987, p. 164-168) distingue três grandes tendências:
a) a que o considera como atividade psicofisiológica que tem implicação na
produção do enunciado, acrescentando-lhe o jogo de influências sociais
que, eventualmente, o condiciona;
b) aquela que o toma como produto da atividade do sujeito falante, ou seja,
como um segmento do discurso;
a) outra que o vê como um acontecimento que se constitui pelo
aparecimento de um enunciado.
Tomando o ato enunciativo como uma atividade psico-fisiológica, a primeira
vertente opera fundamentalmente não apenas com a noção de enunciação como
37
também com a de frase e enunciado, uma vez que ela supõe o elemento formal, ou
seja, a frase (oral ou escrita) produzida por um falante constituído em sua
individualidade externa e psíquica. Na instância psíquica, a frase ultrapassa para o
nível do enunciado e, conseqüentemente, para a enunciação. Acrescentando-se
uma possível atuação das condições histórico-sociais que envolvem os sujeitos da
cena discursiva, leva-se tal conceito ao quadro da Análise do Discurso.
As idéias de Benveniste, no tocante à subjetividade, conforme comentamos,
vêm sendo revistas e até questionadas por vários teóricos da linguagem, dentre os
quais os estudiosos da Análise do Discurso que, como já foi aludido, tal qual o
lingüista francês, sustentam a relevância do processo da ação verbal sobre o
produto, ou seja, da enunciação sobre o enunciado. Dentre esses podem ser
citados: Maingueneau (1981, 1984, 1989 e 1997); Pêcheux (1979); Ducrot (1987);
Authier – Revuz (1982); Parrett (1988); Kerbrat-Orechioni (1980), no grupo dos
estrangeiros, e Brandão (1995), Orlandi (1983, 1986, 1987, 1988), Fiorin (1992,
1994, 1996) na ala dos lingüistas brasileiros. O questionamento desses autores à
subjetividade benvestiana fundamenta-se na realidade de que, no estudo da
linguagem, não se pode deixar à margem as condições de produção, uma vez que
elas são responsáveis não só pela constituição do sentido como também pela
identificação do sujeito em sua relação consigo próprio, com o outro e com o mundo
(natureza, cultura, animais, objetos, semelhantes, etc.). Orlandi (1983, 9. 19), por
exemplo, ressalta que não se pode estudar a linguagem sem se levar em
consideração a sociedade em que ela é produzida, pois os processos que entram
em sua constituição são processos histórico-sociais. Como Orlandi, Lopes (1988, p.
108) também apresenta posição contrária à centralização do ato lingüístico no
sujeito falante, conforme o seguinte enunciado:
Embora concorde com a noção de enunciação produzida por uma ação do enunciador e reconheça o grande salto efetuado na passagem de uma visão meramente estrutural da língua para uma percepção discursiva do fenômeno, penso que falta à teoria benvestiana a discussão do processo de instauração das enunciações que ocorre na interação entre as várias instâncias enunciativas no discurso.
38
1.2 A ideologia
Na opinião de Orlandi (1983, p. 121), o discurso é “o modo de existência
social da linguagem: lugar particular entre língua (geral) e fala (individual)”. O
discurso é, portanto, o espaço onde se encontram língua e fala, ou seja, o geral e o
individual. Nesse espaço se articulam saber e poder, uma vez que o indivíduo que
se apropria da linguagem não age isoladamente, mas fala de um lugar que lhe foi
concedido pela instituição que representa: Escola, Estado, Igreja, etc. Assim sendo,
todo discurso configura-se como ponto de articulação entre o ideológico e o
lingüístico, visto que, ao se inscreverem no espaço discursivo, os interlocutores
operam de acordo com a sua formação ideológica. Por conseguinte, todo discurso
gera poder. Por essa razão, para muitos estudiosos do discurso, esse discurso nada
mais é do que uma prática social que materializa uma ideologia. Ele é o espaço
onde toda ideologia é, ao mesmo tempo, formada e difundida.
Já que, segundo essa teoria, o sujeito não se apropria da linguagem
individualmente, mas o faz realizando um movimento social, ao produzir essa
linguagem, ele também está nela reproduzido. Isso quer dizer que, embora o sujeito
tenha a impressão de ser a fonte de seu discurso, na realidade, ele está retomando
discursos preexistentes. Esse fenômeno da linguagem, Orlandi (1988, p. 19) chama-
o de a “ilusão discursiva do sujeito”. No processo de interlocução, segundo essa
lingüista, o indivíduo é constituído eu pela língua, mas interpelado como sujeito pela
ideologia.
De acordo com essa concepção, todo sentido é determinado pelas posições
ideológicas dos interlocutores, ou, como afirma a autora (1988: p. 58): “as palavras
recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas”. Os sentidos,
portanto, são partes de um processo e se realizam dentro de um contexto sócio-
histórico.
Com base no fato de que é a ideologia que determina o discurso, Orlandi
(1986: p. 115) considera a linguagem como “ação transformadora, como mediação
entre o homem e sua realidade natural e social. Para ela, a palavra é um ato social e
todo discurso é um continuum. Assim sendo, não pode haver unicidade discursiva.
Todo discurso tem sua gênese em outro, chamado discurso “fundador” e se projeta
39
para um futuro, numa rede de inter-relações contínuas. Na língua, tem-se, pois, a
intertextualidade e jamais a unicidade textual.
Transportando essas idéias para o discurso da “vidência”, podemos
considerar os textos bíblicos como seu discurso fundador, o que denota ser o
discurso em apreço produto do entrelaçamento daqueles textos (os bíblicos) com a
atividade discursiva processada na interação entre o mundo espiritual e o temporal,
prática essa que implica uma ruptura dos limites de tempo e espaço, uma vez que o
passado presentifica-se no presente.
A ideologia não surge do vazio: ela é constituída pela realidade e, ao mesmo
tempo, é constituinte da realidade que envolve os grupos sociais. Essa ideologia,
porém, só pode ser identificada, através da “formação discursiva”, que, segundo
Orlandi e Guimarães (1988, p.58), pode ser definida como “aquilo que a partir de
uma certa posição em uma conjuntura sócio-histórica dada, determina o que pode e
deve ser dito”.
As “formações discursivas”, no dizer dos mesmos autores, são constituídas
por duas forças opostas: a paráfrase e a polissemia , De acordo com Brandão (1995,
p.39), na paráfrase “os enunciados são retomados e reformulados, num esforço
constante de fechamento de suas fronteiras”, enquanto que a polissemia, “opondo-
se a esse fechamento, rompe com a mesmice” e desloca-se da unicidade para a
pluralidade de sentido, gerando o movimento de tensão entre o mesmo e o novo;
entre o institucionalizado e o não-garantido; entre a estabilidade e a instabilidade, ou
como no dizer de Orlandi (1999, p. 36). (...) é nesse jogo entre paráfrase e
polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já-dito e o a se dizer que os sujeitos
e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se) significam.
No tocante ao discurso da “vidência” podemos inseri-lo na “formação
discursiva católica” que, por sua vez, consubtancia uma “ideologia católica”, mas ao
mesmo tempo, ele representa o novo, o não-institucionalizado, visto tal discurso
partir sempre do povo e não da Instituição.
40
1.2.1. Tipologia discursiva
Considerando a heterogeneidade discursiva, Maingueneau (1984) apresenta
um quadro que contém diferentes tipos de “matrizes” discursivas, a saber: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O primeiro é formado pelo
conjunto das formações discursivas que, numa conjuntura dada, estão em interação
(p.27). Esse universo discursivo serve apenas como um marco, a partir do qual são
construídas esferas que podem ser analisadas. Tais esferas constituem os campos
discursivos (p.28) que são organizados por um conjunto de formações discursivas.
Essas formações discursivas fixam limites dentro de um determinado espaço do
universo discursivo e se encontram em concorrência, como é o caso dos discursos
político, religioso, filosófico, etc.
Como um campo discursivo, em geral, não pode ser analisado em sua
totalidade, ele é recortado em subcampos, os quais constituem os espaços discursivos, nos termos de Maingueneau (1984, p.117):
O espaço discursivo delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando, pelo menos, duas formações discursivas que mantêm (supõe-se) relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados, sendo definido a partir de uma decisão do analista, em função de seus objetivos de pesquisa.
De acordo com esse autor, tanto o “campo discursivo” como o “espaço
discursivo” não resultam de uma divisão espontânea, mas são delimitados pelo
analista, a partir de hipóteses explicitadas segundo as metas visadas em sua
análise.
Trabalhando com o “espaço discursivo, o lingüista compreende que tem
diante de si não uma “formação discursiva”, mas uma interação entre “formações
discursivas”. Já que a linguagem é uma realidade heterogênea, o analista lida não
com um discurso, mas com a interdiscursividade. Eis por que, no dizer de
Maingueneau (1989, p. 119), “a identidade discursiva está construída na relação
com o outro”.
Tendo em vista o modo de relação entre os atores da cena discursiva e o jogo
entre polifonia e paráfrase, Orlandi (1983, p.32) identifica três tipos básicos de
discurso: o lúdico, o polêmico e o autoritário. É o grau de reversibilidade (troca
de papéis entre os interlocutores) que determina a caracterização desses tipos.
41
Caso a reversibilidade tenda a anular-se, há o predomínio da paráfrase, tendo-se um
discurso mais monossêmico. Se, porém, a reversibilidade ocorrer em grau maior, o
predomínio é da polissemia, em virtude de em tal discurso haver a possibilidade de
múltiplos sentidos. Mas se, no discurso, os interactantes exercem o controle da
reversibilidade, ter-se-á o jogo entre paráfrase e polissemia e tal discurso será, ao
mesmo tempo, monossêmico e polissêmico.
Eis como a respeito desse assunto se expressa Orlandi (1988, p.24):
Essa tipologia que elaborei (...) tem como critérios a interação (a reversibilidade, a troca de papéis ou de estatuto entre os interlocutores) e a relação entre polissemia e paráfrase (a possibilidade, ou não, de múltiplos sentidos).
Para Orlandi, portanto, no discurso autoritário, ocorre a polarização da
paráfrase; no lúdico, a da polissemia, mas, no discurso polêmico, existe uma
alternância entre o mesmo e o diferente, ou seja, o jogo entre paráfrase e
polissemia.
Segundo a mesma autora (op. cit), o discurso dominante em nossa sociedade
é o autoritário, uma vez que se trata de um discurso oficializado. Já o polêmico é
apenas tolerado e o lúdico só no escamoteamento da linguagem pode encontrar
espaço.
No tocante ao discurso da “vidência”, sendo ele um discurso religioso, dentro
dessa taxonomia, é possível considerá-lo com tendência ao autoritário, já que sua
voz é a voz de Deus, seu verdadeiro Sujeito, o qual se manifesta ora como
LOCUTOR, ora como ALOCUTÁRIO e ora como DELOCUTÁRIO, conforme será
mostrado na análise dos dados.
1.3 A questão da polifonia
No dizer de Maingueneau (1976, p. 39), “um discurso não vem ao mundo
numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já – dito em relação ao qual
toma posição”. Para ele, portanto, o intertexto é uma condição definitiva para que
haja produção.
42
De acordo com esse autor (1997, p. 78), “a problemática da polifonia põe em
causa a unicidade do sujeito falante, inscrevendo-se, pois, na problemática mais
geral da heterogeneidade discursiva”.
Nesta mesma linha de pensamento, Bakhtin (1929/1986) compreende a
atividade verbal quer oral, quer escrita, como essencialmente dialógica, divergindo,
portanto, de Benveniste para quem a ação do locutor é determinante no processo
enunciativo. Para Bakhtin (1986, p. 126):
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade da língua.
Constatamos, pois, que, para o autor, é na ação dialógica que acontece a
linguagem.
Essa concepção interativa da linguagem aparece de modo mais contundente,
no enunciado seguinte:
Qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores originando um diálogo social e funcionando como parte dele. (Bakhtin, 1986, p.123).
Autores, por exemplo, como Authier – Revuz (1982), Ducrot (1987), Foucault
(1971/1979), Maingueneau (1984) e Orlandi (1983/1986/1988), trilhando esse
mesmo caminho, sustentam a idéia de que a polifonia é a marca fundamental do
discurso. Maingueneau (1989, p.120), esclarecendo que nem sempre a
manifestação polifônica é marcada explicitamente, assevera:
Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade.
Nos lingüistas contemporâneos está muito presente esta noção de
heterogeneidade da linguagem. Barthes (1974), por exemplo, assegura que:
(...) o texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos que existiram ou existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; Todo
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texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.
Para esse autor, portanto, todo texto está relacionado com outros textos com
os quais dialoga aludindo, confirmando, ironizando ou simplesmente retomando-o.
Dentro deste raciocínio, Pêcheux (1969) afirma:
Deste modo, dado discurso envia a outro, frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do qual ele “orquestra” os termos principais, ou cujos argumentos destrói. Assim é que o processo discursivo não tem, de direito, um inicio: o discurso se estabelece sempre sobre um discurso prévio.
E Kristeva (1974, p. 60) é mais incisiva ao afirmar que “qualquer texto se
constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro
texto”.
Todas estas considerações apontam para o naipe vocal ou polifonia.
O conceito de polifonia foi introduzido na lingüística por Bakhtin (1929) para
caracterizar o romance de Dostoievski. No dizer desse autor,
(...) a palavra é o produto da relação recíproca entre falante e ouvinte, emissor e receptor. Cada palavra expressa o um em relação com o outro. Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço. EU se constrói constituindo o EU do outro e por ele é constituído.
Para ele, pois, a linguagem é constituída pelo dialogismo. Explorado,
principalmente por Ducrot (1980) e retomado por Koch (1984), o termo polifonia
designa a incorporação ao próprio discurso das vozes de outros enunciadores: os
interlocutores, terceiros, a opinião pública em geral ou o senso comum, ou seja, o
coro de vozes que se manifesta, normalmente, em cada ação discursiva. Já que o
pensamento do emissor é constituído do pensamento do receptor e vice-versa, a
produção do sentido é absolutamente condicionada à alteridade.
Nas palavras de Koch (1992, p.58), polifonia é o “fenômeno pelo qual, num
mesmo texto, se fazem ouvir ‘vozes’ que falam de perspectivas ou pontos de vista
diferentes com os quais o locutor se identifica ou não”. E para essa autora, todo
caso de intertextualidade o é de polifonia, conforme expressão seguinte:
44
a meu ver, o conceito de polifonia recobre o de intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de polifonia, não sendo, porém, verdadeira a recíproca: há casos de polifonia que não podem ser vistos como manifestações de intertextualidade (Koch: 1998, p.57).
Compartilhando o pensamento dessa autora , consideramos como polifônicas
as vozes que, provindas de outros textos incorporam-se ao discurso construído no
Encontro de Oração da Renovação Carismática Católica (cf. Martins, 1999, p.50) e,
por conseguinte, também o discurso da vidência.
Entendemos, pois, polifonia como interação verbal efetuada pelos sujeitos
discursivos: o do discurso relatado, o da multiplicação de sujeitos e o da
interdiscursividade.
Numa concepção oposta à de Benveniste (1988) e em conjunção com as
idéias de Bakhtin (1929, 1981 e 1986), Ducrot (1987, p. 142-188) já mencionado
nesta exposição, identifica a presença de várias vozes, na enunciação, vozes essas
executadas pelos seus protagonistas aos quais ele designa locutor e alocutário. O
primeiro é o ser que se identifica como eu e o segundo, o que é por este
reconhecido como tu.
Na emissão, esse lingüista apresenta o locutor desdobrado em: locutor – P,
pessoa do mundo empírico e locutor – L, ser interno ao discurso e um outro sujeito
que exprime as atitudes do locutor, enunciador (E).
Orlandi, Guimarães e Tarallo (1989, p. 46-47) apresentam uma taxonomia
complementar, identificando entre os sujeitos do discurso, três níveis de
processamento das interlocuções:
• O primeiro nível considera-os em sua dimensão física, na cadeia falante-ouvinte;
• o segundo pondera-os na relação entre as entidades do discurso: locutor (L) e alocutário (AL). O locutor, na enunciação, assume o paradigma do
eu e se representa como o ser responsável por ela. Já o segundo, o
alocutário, instaurado no discurso pelo locutor, exprime o tu e se
apresenta em correlação com esse mesmo locutor. Esses autores,
seguindo a trilha de Ducrot (1987), desdobram o locutor em locutor – L,
45
“que se representa como fonte do dizer” (p.46) e locutor – P, que se faz
representar como “o locutor-enquanto-pessoa-socialmente constituída”
(p.46). No plano da recepção, correlatamente ao locutor – L, há o
alocutário AL, e ao locutor-enquanto-pessoa-socialmente constituída,
corresponde o alocutário AL P (p.47);
• o terceiro nível representa a perspectiva do recorte enunciativo,
considerando os sujeitos discursivos na dimensão enunciador(E) e destinatário (D), o seu correlato (p.47).
Esses autores (1988, p. 48-49) estendem a sua análise em torno da
heterogeneidade vocal, apontando as seguintes possibilidades de expressão do
enunciador.
a) enunciador individual: que pode coincidir com o locutor (L ou LP);
b) enunciador genérico: é a representação da voz do senso comum e traz
para o texto as crenças historicamente constituídas;
c) enunciador universal: esse é a voz que se apresenta como se os fatos
falassem por si, podendo, portanto, serem enunciados por todos e pelo
indivíduo. É o enunciador representado, por exemplo, no discurso
científico e filosófico;
d) enunciador coletivo: representa a voz de uma comunidade específica,
como por exemplo, o discurso da “vidência”, objeto deste estudo.
Já Brandão (1988, p. 50-52), na análise da propaganda da Petrobrás,
apresenta o locutor num tríplice desdobramento:
a) L1 – responsável pela totalidade do discurso, voz delegada, isto é, porta-
voz da instituição (Petrobrás);
b) L2 – voz mencionada por L1, numa perspectiva genérica (E2 geo);
c) L0 – ser referido pelo discurso (= ela), mas que se identifica com o autor
empírico do enunciado (Petrobrás).
Quanto ao alocutário, ela o aponta, como um ser assujeitado pelo locutor,
que, ao trazê-lo para a sua esfera, produz representações nas quais o sujeito da
46
recepção se vê refletido. Assim, entre o locutor e alocutário demarca-se um espaço
comum onde as crenças são compartilhadas.
Nesse seu trabalho, Brandão faz alusão ao sujeito da referência ou
delocutário, que não foi contemplado pelos autores citados, enunciando-o como
desdobramento de L1: “quem fala e quem é falado constituem uma só identidade”
(p. 52-53). Temos aí, então, uma enunciação sui-referencial, pois a voz do locutor se
dobra sobre si mesma, ou seja, a Petrobrás fala de si mesma não como eu explícito,
mas como referente (= ela), criando assim uma ilusão de objetividade: L1 = L0 = D
(Delocutário).
Essa forma de funcionamento do delocutário, segundo a autora, contraria a
posição de Benveniste para quem o ele é não-pessoa. Diz ela (p. 53), textualmente:
“No nosso caso, o ele é pessoa e, mais do que isso, exerce o papel de locutor,
podendo nomear-se eu”.
Nessa linha de pensamento, Bittencourt (1950), em sua análise do discurso
do anúncio de videntes, identifica um delocutário que se assenhora do lugar de
locutor, confirmando, portanto, a posição de Brandão.
No discurso da “vidência”, tema deste trabalho, constatamos também casos
de su-referenciamento (como será mostrado na análise do “corpus”), visto que o
sujeito da esfera celeste, em algumas alocuções, fala de si mesmo como se fosse
outra pessoa, conforme podemos comprovar no exemplo abaixo:
Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário para obter a paz do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer (grifo nosso). (Terceira Aparição de Fátima – 13 de julho de 1917)
Nessa ação discursiva, tem-se, pois, um delocutário – D (Nossa Senhora do
Rosário) que é o mesmo locutor – L.
EU (L) = ELA (D)
Neste discurso, comprovamos, pois, o princípio de que é possível ao “ele”
estatuir-se pessoa uma vez que pode exercer a função de sujeito.
Conforme mostrado nesta seção, a linguagem é essencialmente heterogênea,
pois, além da plurivocalidade instaurada pelos protagonistas da cena interlocutória,
47
qualquer ação discursiva admite a incorporação de vozes provindas de outras
instâncias enunciativas – intertextualidade.
A esse caráter heterogêneo da linguagem Pires (1997, p. 156) faz a seguinte
alusão:
Cada discurso se revela heterogêneo, na medida em que, além da voz de seus enunciadores, incide vozes de outros enunciadores, de forma mais ou menos explícita. (...) Vale lembrar que todo discurso,por natureza plurivocal, pressupõe, no mínimo, um destinatário, que reconstitui as suas vozes heterogeneamente (...).
Já, de acordo com Orlandi (1999, p.31-33), o discurso tem duas dimensões:
“horizontalidade” e “verticalidade”. Para ela, a interdiscursividade se configura como
vertical por representar o pré-construído, o já-dito. Nele estão todos “os dizeres já
ditos — e esquecidos — em uma estratificação de enunciados que, em seu
conjunto, representa o dizível, enquanto.´no eixo horizontal, está o intradiscurso
que é o eixo da formulação”, ou seja, o que se diz naquele momento (p.33).
Segundo a autora, todo dizer parte desses dois eixos: o da memória
(constituição) e o da atualidade (formulação).
A verticalidade comprova que não existe unicidade discursiva, mas que todo
discurso tem sua gênese em outro (discurso fundador) e se projeta para um discurso
futuro. Isso significa que os sentidos de um texto não estão, necessariamente, na
superfície de seus enunciados, mas podem advir da alteridade nele manifestada.
É na intertextualidade que se estabelece a unidade textual. Nesse sentido, a
relação do sujeito com o texto (o produto) e com o discurso (a manifestação verbal)
é o responsável pelo alcance da completude do enunciado.
C A P Í T U L O 2
O DISCURSO RELIGIOSO
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49
Neste segundo capítulo, procuramos votar-nos à questão do discurso
religioso, tecendo preliminarmente, porém, uma abordagem a respeito da influência
da religião na vida das pessoas e das sociedades. Uma vez que este trabalho tem
sua centralização na esfera religiosa, julgamos oportuno mostrar como o sagrado
para os humanos parece ser algo vital.
Segundo o Catecismo da Igreja Católica, o ser humano é naturalmente
impelido para Deus, em virtude de ter sido criado por ele e para ele. (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1993: p.23). Essa mesma concepção tinha Santo Agostinho,
como testificam as palavras seguintes:
És grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder e incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação, quer louvar-te (...). Tu mesmo o incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso. (Confissões de Santo Agostinho, 2002, p. 29).
Para Israel, o povo da Antiga Aliança, não havia diferença entre história e
religião, pois, em cada fato histórico, ele via a ação de Deus protegendo-o ou
punindo-o por sua infidelidade.
Após a vinda de Jesus Cristo, o Deus que entrou na História pela
Encarnação, a força do Cristianismo tem movido indivíduos e sociedades. Basta
lançarmos um olhar para Francisco e Clara de Assis; Inácio de Loyola e Tereza
D´Ávila, dentre tantos outros homens e mulheres que renunciaram à riqueza e ao
conforto, a fim de se consagrarem inteiramente a Deus, para constatarmos essa
realidade. Ordens, instituições e comunidades religiosas têm surgido, nestes vinte e
um séculos de Cristianismo, com o objetivo de acolher, amparar e confortar os
excluídos, como por exemplo, os Vicentinos, as Irmãs de Caridade, os Salesianos, a
Congregação de Madre Tereza de Calcutá, a Pastoral da Criança, a Toca de Assis,
as Obras de Irmã Dulce, dentre outras.
Até mesmo nossa educação (no caso do Brasil) tem sido fortemente marcada
pelo caráter religioso. E essa inegável onipresença do Cristianismo na cultura
ocidental é assinalada por Orlandi (1987, p. 9):
Esse atravessamento da religião – eu ousaria dizer sob a forma paradigmática do cristianismo – atua em todas as nossas formas culturais. Não é por acaso que a primeira obra impressa foi a Bíblia. Nem se deve estar indiferente ao fato de que nossa educação, ou
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seja, a ação pedagógica em nossa cultura, está ligada, desde suas origens, à esfera do religioso.
Esse forte poder que a religião exerce sobre os indivíduos e as culturas tem
sido mais evidente, nos dias atuais, num movimento que surgiu na Igreja Católica,
em 1967, conhecido como Renovação Carismática Católica. Tendo como
características principais o Batismo no Espírito Santo e a prática dos carismas, essa
micro-instância, nesses seus trinta e nove anos de existência, tem transformado
pessoas e mobilizado multidões. Nele, pastores (bispos e padres) e fiéis; ricos e
pobres; profissionais liberais e operários; intelectuais e não-escolarizados formam
comunidades de caráter especialmente ideológico.
Os valores pregados pelo cristianismo, como por exemplo, o altruísmo; o
respeito ao próximo, aos animais e à natureza; a solidariedade e a igualdade, são
apregoados mesmo por aqueles que o criticam.
Partindo, pois, da constatação de que o discurso religioso atravessa todas as
nossas formas culturais, neste trabalho, debruçar-nos-emos sobre uma de suas
expressões – o discurso da vidência.
2.1. Caracterização
O discurso religioso, segundo Citelli (1995, p. 48) “é um dos mais
explicitamente persuasivos, pois a fala do enunciador se constrói não como verdade
sua, mas do Outro“ (Deus). É por isso que tal discurso tende para a não-reversibilidade, na concepção de Orlandi (1996: p. 240). E, como para essa autora,
a reversibilidade, ou seja, a troca de papéis, é condição para que haja discurso, na
formação discursiva religiosa, por ser inquestionável a voz do locutor, ocorre o que
ela chama de ilusão da reversibilidade.
Para Althusser (1974), Deus se define como sujeito por excelência, pois Ele é
aquele que É; aquele que nomeia e jamais é nomeado. Segundo esse autor, Deus é
o Sujeito, enquanto os homens são os sujeitos, seus interlocutores – interpelados,
seus espelhos. Althusser considera a ideologia da estrutura religiosa duplamente
especular: ela submete os sujeitos ao Sujeito e, nele, dá-lhes a certeza de que é de
ambos que se fala.
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Essa ideologia duplicada garante então:
a) a interpelação dos sujeitos e a submissão ao Sujeito;
b) a garantia de que o bem consiste no conhecimento do Sujeito pelos
sujeitos e no auto-reconhecimento dos últimos.
De acordo com o autor, o indivíduo é interpelado como sujeito para aceitar
livremente a sua submissão.
Partindo das idéias de Althusser, Orlandi (p.241), assinala que a definição de
sujeito aponta para duas direções:
a) uma subjetividade livre, ou seja, um ser autor, responsável por seus atos,
centro de iniciativa;
b) um ser assujeitado a uma autoridade superior e que desfruta de uma
única liberdade – aceitar a sua sujeição.
E essa relação de sujeitos submetidos, de acordo com os dois autores, é
próprio do discurso religioso. Para Orlandi, o discurso religioso é “aquele em que se
fala a voz de Deus”. Ela considera a voz do padre, do pregador ou de qualquer
pessoa que fale em nome de Deus como voz do próprio Deus (p. 243). Em virtude
de tal caracterização, no dizer de Orlandi (p. 243), no discurso religioso, há um
desnivelamento fundamental entre locutor e ouvinte, pois, enquanto o locutor (Deus)
é eterno, imortal, infalível, infinito e onipotente, os ouvintes (homens) são efêmeros,
mortais, falíveis, finitos e de poder limitado. Sendo assim, no discurso religioso, a
interlocução é caracterizada essencialmente pela assimetria.
Ora, se no discurso religioso é Deus quem fala pelo seu representante, nele
existe um mecanismo de incorporação de vozes a que Orlandi (p. 244) chama de
mistificação ou, em termos de discurso, subsunção, subsunção esta que, como
assinala a mesma autora, é regulamentada pela Sagrada Escritura e pela Igreja
Católica (no Catolicismo). Essa relação entre Criador e criatura pode se dar também
através dos mediadores: os anjos e santos e, principalmente, por Nossa Senhora.
Já Jesus Cristo, o mediador por excelência entre o homem e o Pai, ocupa um lugar
à parte, pois, embora sendo homem, é também verdadeiro Deus, a Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade (cf. Orlandi, p. 246), como mostra a Escritura Sagrada:
52
O Verbo era a verdadeira Luz, que vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no mundo, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam (...). E o Verbo se fez carne e habitou entre nós (...) – (Jo 1,9-11,14ª - Bíblia Sagrada: p. 1384)
Essa articulação, porém, entre o infinito (Deus) e o finito (homem) só é
possível mediante o dom da FÉ. É ela que possibilita a interlocução entre o plano
espiritual e plano temporal, ou seja, a ultrapassagem de um plano para o outro: a fé
eleva o homem a Deus e traz Deus até o homem.
A Escritura Sagrada, na carta aos Hebreus, apresenta uma definição de fé
assim:
A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê (...). Pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível. (Hb. 11, 1.3 – Bíblia Sagrada, p. 1335).
Segundo Orlandi, embora a fé seja a única via pela qual o ser humano pode
ter acesso ao sagrado, ela não altera a irreversibilidade do discurso religioso, uma
vez que essa mesma fé é um dom que vem de Deus.
Quanto às formas de ultrapassagem no dizer da autora (p. 251), são: a
visão, a profecia, a revelação, e a performatividade das fórmulas religiosas. É a
esses mecanismos de interação entre o plano divino e o humano que ela chama de
ilusão da reversibilidade. Para ela, essa ilusão pode direcionar-se em dois
sentidos: de cima para baixo (Deus vem até o homem) e de baixo para cima (o
homem alça até Deus).
Segundo a mesma autora, a profecia e a revelação constituem mecanismos
de ascensão do homem a Deus. No nosso entender, porém, pela profecia e pela
revelação, é Deus quem desce até o homem, pois, na primeira, é o próprio Deus
quem fala pela boca do profeta e, na revelação, ele se manifesta pelo dom de
ciência e pelos demais carismas.
No que diz respeito ao processo de ascendência do homem a Deus,
compreendemos que ele ocorre por meio da oração, da adoração, da meditação, da
contemplação e, principalmente, pela prática do mandamento do amor, conforme 1
Jo 3, 14: Nós sabemos que fomos transladados da morte para a vida, porque
53
amamos nossos irmãos. Quem não ama permanece na morte. (Bíblia Sagrada, p.
1551. 1552). Nestes casos sim, é a criatura que procura se elevar até o Criador.
Mas é na primeira forma de ultrapassagem, ou seja, na verticalidade, de cima
para baixo, que se pode conceber a possibilidade da “vidência”: “Deus vem ao
encontro do ser humano, seja diretamente na pessoa do Verbo Encarnado e
Ressuscitado, seja indiretamente, através da Virgem Maria, dos anjos e dos santos”.
E é exatamente na análise da variedade de vozes instaladas nesses discursos que é
nosso intento neste trabalho.
2.2. Tipologia
Orlandi (1996, p. 244) considera o discurso religioso como “uma voz que se
fala na outra da qual é representante”, e estabelece um paralelo entre esse discurso
e outros, como por exemplo, o político, o pedagógico, o terapêutico e o da história:
• no primeiro desses discursos é a voz do povo que ecoa no político;
• no pedagógico, a voz do saber fala no povo;
• no terapêutico, a voz da saúde se manifesta no médico;
• no da história, a voz dos fatos se exprime pelos historiadores;
• no religioso é a voz de Deus que faz eco no padre.
Acrescenta a autora que o apagamento da forma como o representante se
apropria da voz do “outro” é que constitui o que ela chama de mistificação ou de
subsunção. Segundo a mesma autora, essa apropriação é o “como se”, da ordem
do simbólico, diferente do “faz-de-conta” que pertence ao estatuto do imaginário.
No primeiro, ou seja, no simbólico, Orlandi (p. 245:246) distingue diferentes graus de
autonomia. Assim, no tocante ao discurso político, existe uma independência maior
em relação à voz do povo, uma vez que ele pode não só representar tal voz como
até mesmo criá-la, “desde que lhe seja atribuída legitimidade”.
Em referência ao professor, há uma autonomia relativa, pois, ao incorporar o
saber, ele “pode elaborar, manipular e modificar relativamente o saber estabelecido”.
No discurso religioso, porém, o grau de autonomia em relação à voz
representada é zero, pois esta voz jamais poderá ser modificada por aquele que
54
está no lugar de Deus. A subsunção, neste caso, é regulada pela Sagrada Escritura
e pelo magistério da Igreja. Até mesmo a interpretação dos textos bíblicos é
regulamentada pelas autoridades eclesiásticas e se constitui numa ciência chamada
hermenêutica. Esse princípio evidencia, portanto, que o discurso religioso tende para
a monossemia.
Considerando essa assimetria, Orlandi aponta duas espécies de agentes da
interpretação, no catolicismo: uma do plano temporal e outra, do espiritual. No
primeiro, figuram os representantes da Igreja: o Papa, os Bispos e os Presbíteros. Já
da esfera espiritual, fazem parte os mediadores: a Virgem Maria e os Santos. E a
estes, eu acrescento os anjos, pois de acordo com o ensinamento da Igreja, eles
também são intercessores, conforme consignado no Catecismo da Igreja Católica:
A existência dos seres espirituais, não-corporais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente de anjos, é uma verdade de fé (...). Desde a infância até a morte, a vida humana é cercada pela sua proteção e sua intercessão. Cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo à vida (...). (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 87.88).
Quanto a Jesus Cristo, no dizer da autora, não é nem representante e nem
mediador, pois “embora seja a parte acessível de Deus, ele é o próprio Deus1”.
2.3. Discurso teológico e discurso religioso
Discorrendo a respeito da possibilidade de caracterização dessas ações
enunciativas, Orlandi (p. 246-249) aponta possíveis marcas diferenciais entre o
discurso teológico e o religioso: o primeiro (o teológico) seria um discurso formal e
aquele em que a mediação entre o crente e o sagrado ocorreria por meio de “uma
sistematização das verdades religiosas e cujo mediador seria o próprio teólogo”. Já
no discurso religioso, o informal, a relação do sujeito com o sagrado dar-se-ia
espontaneamente, ou seja, sem sistematização e sem intervenção do teólogo.
No entanto, mais adiante (p. 247), ressalta a autora que não vê necessidade
de distinguir, para seus objetivos, entre discurso teológico e discurso religioso, uma
1 Por “parte acessível de Deus”, entenda-se, o Verbo Encarnado, a Pessoa da Trindade que assumiu a natureza humana sem deixar de ser Deus. Convém esclarecer ainda que no tocante à salvação do ser humano e o seu relacionamento com o Pai, Jesus é o único mediador (cf. Lumen Gentium (2003, p. 127), de acordo com a fé dos cristãos.
55
vez que a não-reversibilidade se mantém quer o eu-cristão fale diretamente com
Deus, quer a interação se processe de modo indireto. Se a própria informalidade é
ritualizada, no dizer de Orlandi, como acontece com as orações espontâneas que
apresentam formas mais ou menos cristalizadas, (como por exemplo: “Ó meu Deus”,
“Eu te louvo, Senhor”), tanto na interação direta quanto na indireta, o estatuto
jurídico do locutor não se altera. Nessa sua reflexão, Orlandi ainda comenta o
pensamento de Gramsci (1966) que, identificando na religião uma heterogeneidade
social e ideológica, assinala que, no âmbito de tal heterogeneidade, é possível
distinguir-se a teologia e a religião popular. A primeira, a teologia, no catolicismo, se
manifesta como a filosofia da religião: é a concepção dos intelectuais, da
hierarquia eclesiástica, enquanto da religião popular fazem parte o folclore e o
senso comum.
Prosseguindo nessas suas reflexões, a autora, porém, volta a afirmar (p. 249)
que não faz distinção entre discurso teológico e religioso ou popular, mas acentua
que a forma como um e outro lidam com os representantes e mediadores é
diferente: enquanto a religião popular tende à busca de milagres e à prática de
promessas e ex-votos, os teólogos têm posições diferentes. No entanto, não
esclarece qual seja essa posição.
Neste trabalho, consideramos todas as expressões verbais do sagrado como
sendo discurso religioso. Para tal posicionamento, baseamos nos elementos
caracterizadores do discurso religioso apresentados por essa mesma autora (p. 256-
259), que são:
a) Não-reversibilidade entre os planos espiritual e temporal, ou seja, o
representante de Deus jamais poderá apropriar-se do lugar de onde fala.
E é essa propriedade que gera dissimetria;
b) Antítese: traço textual; corresponde à forma semântica da dissimetria;
c) Negação: mecanismo gramatical; tem efeito invertido – negando-se o
pecado, afirma-se a adesão à graça, à salvação. A essa negação da
negação (pecado), Orlandi (p. 257) chama de a retórica da denegação.
Já que o pecado é o “não” a Deus, é preciso que esse pecado seja
rejeitado (negado) pelo homem, para que possa acontecer a interação
entre os dois mundos: espiritual e temporal;
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d) intertextualidade: um discurso faz sempre remissão a outros discursos;
e) Uso do imperativo e do vocativo;
f) Emprego de sintagmas cristalizados;
g) Uso de metáforas.
A não-reversibilidade e a retórica da denegação são marcas fundamentais
do discurso religioso: a primeira, em virtude de o estatuto jurídico do locutor jamais
se alterar, nesse tipo de enunciação (a voz de Deus); e a segunda, a denegação,
por que, conforme já explicado, a possibilidade de interação entre céu e terra só
existe na recusa ao pecado. Ora, já que todo discurso que envolve o sagrado é
afetado por essas marcas, todos eles podem ser considerados discurso religioso. No
nosso entender, discurso religioso, especialmente o católico, é uma macro-instância
que abrange outras expressões ou subtipos, quais sejam: o discurso bíblico ou
discurso fundador, o discurso teológico, o discurso popular e o discurso da “vidência”.
O primeiro deles, o discurso bíblico, é o único considerado em si mesmo pela
Igreja palavra de Deus, como podemos constatar no Concílio Vaticano II: Dei Verbum (1998, p. 355):
A Igreja sempre honrou as Escrituras como o corpo do Senhor, especialmente na santa liturgia (...) Inspiradas por Deus e definitivamente escritas, nos comunicam de maneira imutável a palavra do próprio Deus e nos fazem ouvir a voz do Espírito, através dos escritos proféticos e apostólicos (...) Nos livros Sagrados, o Pai que está no céu vem amorosamente falar a seus filhos.
O discurso bíblico é constituído pelos textos dos livros do Antigo Testamento
(Pentateuco, Históricos, Sapienciais e Proféticos) e do Novo Testamento
(Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Epístolas e Apocalipse).
A respeito da fé que a Igreja Católica deposita nas Sagradas Escrituras como
sendo palavra de Deus, eis como se expressa o Catecismo da Igreja Católica:
Na condescendência de sua bondade, Deus, para revelar-se aos homens, fala-lhes em palavras humanas (...) Através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus pronuncia uma só palavra, seu Verbo único, no qual se expressa por inteiro (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 39)
57
Nesse discurso, detectam-se a não-reversibilidade e a denegação, dentre
outras marcas, pois é sempre a voz de Deus que fala pelos autores bíblicos, e o
tema do pecado e da redenção, nele, é uma constante, como podemos observar nos
seguintes textos do Antigo Testamento:
a) Consolai, consolai meu povo, diz vosso Deus. Animai, Jerusalém, dizei-lhe
bem alto que suas lidas estão terminadas, que sua falta está expiada (...)
– (IS. 40, 1-2 – Bíblia Sagrada, p. 989).
b) Rejeitai, pois toda impureza e todo vestígio de malícia e recebei com
mansidão a palavra em vós semeada, que pode salvar as vossas almas
(Tg. 1, 21 – Bíblia Sagrada, p. 1539)
A segunda expressão do discurso religioso, o teológico, constitui-se dos livros
da Patrística (escritos dos antigos padres da Igreja), dos documentos conciliares,
das encíclicas papais, dos textos litúrgicos, dos livros doutrinários, etc. Tem suas
raízes no discurso bíblico, como afirma o Concílio Vaticano II: Dei Verbum (1998, p.
356): O fundamento inabalável da teologia é, juntamente com a tradição, a palavra
de Deus escrita. Ela tira sua força e constante rejuvenescimento desse fundamento.
Também o discurso teológico é fortemente marcado pela irreversibilidade e
pela denegação, como podemos observar na Oração pela Paz que integra o Rito da
Comunhão, na Missa:
Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja; daí-lhes, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo.
Outro traço marcante do discurso teológico é a intertextualidade com o
discurso bíblico, como exemplifica o texto acima onde aparecem explicitamente, as
palavras de Jesus, em Jo. 14, 27: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz”. É esse
traço que move Orlandi (p. 259), a definir o discurso teológico como “um discurso
sobre outro discurso”, ou seja, “como um comentário ao texto de origem”.
E já que, no presente trabalho, estamos tomando o discurso teológico como
uma micro-instância do discurso religioso, consideramo-lo discurso da Igreja,
enquanto instituição, ou seja, ele é a voz da autoridade eclesiástica (Papa, Bispos,
Presbíteros, etc). É essa, portanto, a sua especificidade: a característica que o
identifica, na sua instância abrangedora – o discurso religioso.
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Quanto ao discurso religioso popular2, considero-o, aquele expresso pelo
povo, mas que tem sua gênese nos discursos bíblico e teológico. Ele é constituído
pelas orações do rosário, o ofício da Imaculada Conceição, as ladainhas, certas
novenas, as orações espontâneas, o exercício dos carismas, etc. É a voz da Igreja
Povo, ou seja, a voz das ovelhas, voz essa reconhecida e incentivada pelos
pastores, conforme se lê na Lumen Gentium:
O povo de Deus participa da função profética de Cristo (...) Mas não é só pelos sacramentos e pelos mistérios que o
Espírito Santo santifica, dirige e fortalece o povo de Deus. “Distribuindo os seus dons a cada um conforme quer” (1 Cor. 12, 11), o Espírito Santo distribui graças especiais aos fiéis das mais variadas condições, tornando-os aptos e dispostos a assumir os trabalhos e funções úteis à renovação e ao maior desenvolvimento da Igreja, de acordo com o que está escrito: “cada um recebe o dom de manifestar o Espírito, para utilidade de todos” (1 Cor. 12, 7). (Concílio Vaticano II: Lumem Gentium, 1998, p. 196).
Como exemplo de discurso religioso popular, podemos apresentar a oração
espontânea seguinte gravada na Igreja Santa Luzia, na cidade de Teixeira de Freitas
(Bahia),
Eu quero te louvá, Senhor, por cada uma das pessoas que vieram aqui hoje, Jesus! Por cada participante dessa comunidade. Senhô Jesus, tome posse dos corações das pessoas, restaura os corações (...) Hoje tu falaste conosco que muitos põem a confiança em seus carros, no trabalho, mas nós temos você, Jesus, e nós podemos confiar em você, Jesus! Todo brilho que vai acontecê ainda aqui, hoje, Jesus é para honra e glória do teu nome, porque só tu mereces glória e louvô (...)
Podemos destacar as seguinte características:
a) não-reversibilidade: é Jesus, o centro e o autor da participação dos fiéis,
de sua restauração e de “todo brilho que acontece”;
b) denegação: a idéia da negação ao pecado está implícita na palavra
“restauração”;
c) intertextualidade bíblica: por exemplo, Apo. 5, 12b: Digno é o Cordeiro
Imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a glória, a
honra e o louvor.
2 Estamos considerando aqui discurso popular, aquele que é a voz do povo (não apenas dos intelectuais da Igreja).
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Mas aí estão bem vivas certas marcas do discurso popular, como
espontaneidade e forma de linguagem não-padrão.
Convém que se ressalte que os próprios eclesiásticos quando se apossam da
língua, na informalidade, produzem discurso popular, pois, nestas circunstâncias,
eles falam como povo e não como autoridade. É o caso do excerto, abaixo, extraído
de um ensinamento proferido por um sacerdote, na Igreja São Francisco de Assis de
Teixeira de Freitas (Bahia):
A primeira coisa que devemos reconhecê que somos pecadores. Mas, por nós mesmos, nada podemos. Se Jesus, diante da multidão disse: “Eu sou o Pão vivo que desci do céu”, muitos vacilaram, e nós quantas vezes falhamos em nossa fé, diante de Jesus que vem a nós? Por isso, eu peço a vocês abrirem seus corações (...), vocês vão agora escancarar os portões de seus corações (...) para pedir todo perdão a Jesus pelos seus pecados e também dos outros (...)
O discurso popular é, pois, a voz da Igreja Povo de Deus, mas que reflete a
voz da Igreja hierárquica.
O último discurso aqui considerado como religioso é o da “vidência”, tema
deste trabalho analítico.
Antes, porém, de iniciarmos a reflexão sobre essa instância do discurso
religioso, convém apresentarmos a visão da Igreja Católica a esse respeito, que
difere daquela adotada por outros credos. Por exemplo, para o espiritismo, a
“revelação” ocorre por meio de pessoas falecidas cujo espírito, incorporado pelo
“médium” fala, escreve, cura, através desse “médium”; na cartomancia, os fatos e as
pessoas são mostradas à cartomante através das cartas (baralho); na quiromancia,
a mesma percepção é obtida pelas linhas da palma das mãos.
Mas, para a Igreja Católica, “vidente” é aquele que tem uma experiência com
o sobrenatural, através da visão e audição, no pleno domínio de sua consciência. O
objeto dessa percepção: Jesus, Nossa Senhora, anjo ou santo fala e age fora
dele. Mesmo no caso da “locução interior” em que só a voz celeste é perceptível,
não ocorre “transe” ou incorporação, pois de acordo com a doutrina católica,
nenhum espírito que não sejam as pessoas da Santíssima Trindade pode penetrar
no ser humano. E mesmo Deus jamais se apossa de sua criatura, tirando-lhe a
consciência para agir no lugar dela.
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Este é o ensinamento da Igreja Católica e devemos esclarecer que é segundo
esta concepção que, neste trabalho, compreendemos “discurso de vidência”, ou
seja, a interlocução sensível (no dizer dos videntes) entre dois sujeitos de planos
diferentes (céu e terra), e absolutamente distintos.
No Antigo Testamento, os profetas eram chamados videntes, como pode ser
comprovado em 1 Sm 9, 9: Antigamente, em Israel, todo que ia consultar a Deus,
dizia: “Vinde, vamos ao vidente”. Chamava-se, então, vidente ao que hoje se chama
profeta. (Bíblia Sagrada, p. 312).
Tal denominação explica-se pelo fato de o profeta sempre proclamar o que
“via” e “ouvia”. É o que nos mostra Is. 6, 18:
No ano da morte do rei Ozias, eu vi o Senhor sentado num trono bem elevado (...) Ouvi, então, a voz do Senhor que dizia: “Quem enviarei eu? E quem irá por nós? “Eis-me aqui, disse eu, envia-me” (...). (Bíblia Sagrada, p. 947).
Como as demais instâncias de discurso religioso, o da “vidência” é afetado
pela não-reversibilidade, pela denegação e pela intertextualidade.
A primeira característica é nele claramente percebida, pois, mesmo quando o
locutor é da esfera celeste, ele fala do lugar de Deus, mas não é Deus, (com
exceção de Jesus Cristo), conforme revela o episódio do anúncio do nascimento de
João Batista: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado para te falar
e te trazer esta feliz nova. (Lc. 1, 19 – Bíblia Sagrada, p. 1345), e as mensagens de
Angüera cujo fechamento quase sempre é: Esta é a mensagem que hoje vos
transmito em nome da Santíssima Trindade.
Quanto à segunda característica, a denegação, ela é facilmente identificável,
visto o tema do pecado e da salvação ser uma presença forte em toda essa micro-
instância discursiva como podemos exemplificar pela mensagem de Itaperuna, do
dia 24 de março de 1996:
Filhos, convertam-se com urgência! Venho a vocês, para que a conversão de fato aconteça. Quero que procurem converter-se diariamente, confessando os seus pecados (...). Filhos, quero que sejam perfeitos na santidade (...)
No tocante à intertextualidade, esta é uma característica inerente a todo
processo enunciativo, uma vez que nele se imiscuem, naturalmente, o discurso
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bíblico e o teológico, como podemos constatar, no exemplo citado, onde aparecem
os temas da conversão e da confissão (ambos bíblico e teológico).
Mas qual a especificidade do discurso da “vidência”? Em que ele se distingue
dos demais discursos religiosos?
Em relação ao discurso bíblico, a diferença consiste em ser este do âmbito
das revelações normativas, além de ser a raiz de qualquer discurso religioso,
enquanto o da “vidência” pertence às revelações particulares e constitui,
essencialmente, uma atualização do primeiro.
No que se refere ao discurso teológico, além de ser este produzido pelos
intelectuais da religião (cf. Orlandi, 1996, p. 248), independe do contexto imediato; já
o da “vidência”, em sua enunciação, tem sujeitos escolarizados e não-escolarizados
e, esta mesma enunciação, é dependente também do contexto imediato.
Do discurso popular ele também se distingue porque, enquanto este é
produzido por sujeito do plano temporal (Igreja militante), que interage com o céu,
espiritualmente apenas, o da “vidência” traz em sua ação dialógica sujeitos de dois
mundos (Igreja militante e Igreja triunfante3) que têm os sentidos também como
canal de interação (sempre sob o ponto de vista do sujeito vidente).
Dentro dessa visão, as aparições do Ressuscitado a seus discípulos também
estão inseridos, no discurso da vidência, uma vez que em tal condição, Jesus não
pertencia mais ao mundo temporal.
Como micro-instância que é do discurso religioso, o da “vidência” traz marcas
de sua instância contenedora e mais aquelas que lhe são peculiares.
Dentro da concepção aqui adotada, podem ser apontadas como
peculiaridades do discurso da “vidência” as seguintes características:
1º o sujeito da esfera terrestre (vidente) tem percepção visual e auditiva de
seu interlocutor, ou seja, o sujeito da esfera celeste;
2º o discurso da “vidência” é uma atualização do discurso bíblico, sua
gênese;
3 Conforme a sua própria doutrina, a Igreja é constituída de três estâncias: Igreja Militante formada pelos fiéis que ainda estão neste mundo; Igreja Padecente integrada pelos mortos que expiam suas faltas no Purgatório e Igreja Triunfante composta pelos santos, ou seja, por aqueles que estão no céu. (cf. O caminho, 1986, p. 192).
62
3º as mensagens sempre contêm a doutrina e a moral ensinadas pela Igreja
Católica (Eucaristia, confissão, santidade, obediência à Igreja, caridade);
4º essas mensagens têm, na maioria das vezes, um certo cunho
apocalíptico: punição dos pecados , a volta de Jesus, etc;
5º trilogia sintetizadora: persuasão a respeito da santidade e do amor de
Deus, convite à oração e chamado à penitência;
6º a enunciação depende do contexto mediato (Sagrada Escritura, católicos,
hierarquia eclesiástica) e imediato(“vidente”, diocese, paróquia,
peregrinos, etc);
7º os interlocutores, no dizer dos “videntes”, ocupam espaço físico;
8º além dos sujeitos envolvidos na interlocução (locutor e alocutário), no
processo enunciativo, sempre aparece o da referência (delocutário);
9º a multiplicação dos sujeitos da ação dialógica ocorre freqüentemente,
nesse tipo de discurso.
De acordo com a concepção aqui adotada, o discurso da “vidência” interage,
em seu processo enunciativo, com os discursos bíblico e teológico e é caracterizado,
em sua essência, pela interlocução entre sujeitos da esfera espiritual e terrestre,
mas dentro de circunstâncias que envolvem o plano temporal, uma vez que, no dizer
dos videntes, eles vêem e ouvem (sensivelmente) o seu interlocutor. Em termos de
fé, seria a Jerusalém Celeste que desce a Jerusalém Terrestre, ou seja, a Igreja
triunfante interagindo com a Igreja militante.
É o cruzamento de duas vozes que estão em esferas dissimétricas: a do céu
e a da terra.
2.4. Maria no Contexto Bíblico-Eclesial
Segundo Murad (2006, p. 21), “os textos no Novo Testamento sobre Maria
foram escritos com os olhos centrados em Jesus”. Portanto, só podemos encontrá-
la, nos Evangelhos, no contexto cristocêntrico. Marcos, o primeiro evangelista, fala
de Maria colocando-a no meio dos familiares de Jesus (Mc 3,31-35/6,1-6). Já
Mateus, apresenta-a como a mãe virginal do Senhor (Mt 1,18-23;2,11.13-14.20),
63
profundamente unida a seu Filho. Em Lucas, Maria é apresentada como perfeita
discípula de Jesus, uma vez que ela ouve, com fé, a Palavra de Deus, guarda-a no
coração e a põe em prática (Lc 1,26-38;2,19.51). No quarto evangelho, João
apresenta Maria como uma figura especial. No casamento em Caná da Galiléia, ela
aparece como a mãe atenta às necessidades dos filhos, pronta a buscar a solução
naquele que pode oferecê-la (Jo 4) e, no Calvário, ela é apresentada como a mulher
forte e corajosa que assiste de pé o martírio do filho (Jo 19).
De acordo ainda com o autor citado, os textos bíblicos norteiam a descoberta
dos traços básicos de Maria. Auxiliam a manter a centralidade cristológica da
experiência de Deus, pois Jesus é o autor e realizador de nossa fé (...). A reflexão
sobre ela, no entanto, vai além dos dados bíblicos, ao incorporar a memória coletiva
e seletiva da Tradição. (Murad, 2006, p. 91.92).
No dizer do mesmo autor, para a maioria dos exegetas é legítimo aceitar
interpretações que extrapolem os dados bíblicos, uma vez que o sentido originário
do texto não esgota o seu processo de interpretação e a produção de sentido
continua com a história. É preciso, porém, que tais interpretações sejam analisadas
com senso crítico.
Portanto, com base no texto bíblico, o povo realiza processos de interpretação
da Palavra de Deus. Dentro dessa perspectiva, é que a figura de Maria vem sendo
ampliada na comunidade eclesial. Os católicos a respeitam como rainha, amam-na
como mãe e nela confiam. Expressam esse amor, por exemplo, pela oração do
terço, a coroação de suas imagens no mês de maio, a romaria aos santuários a ela
dedicados.
A mãe de Jesus tornou-se tão importante para os católicos que muitos a
chamam de “Nossa Senhora”.
Quanto às aparições, no dizer de Murad (p. 151), não constituem uma nova
revelação, mas são uma experiência mística vivida pelo vidente, na qual é recordada
a única revelação de Deus em Jesus Cristo.
A Igreja Católica, porém, na sua sabedoria, apresenta critérios rígidos e
objetivos que ajudam no discernimento das revelações particulares ou aparições,
que serão mostradas no próximo capítulo.
64
Nestes dois primeiros capítulos, no intuito de desvendar as marcas
constitutivas da linguagem construída na “interlocução” entre os chamados videntes
e a Virgem Maria (não-reversibilidade, denegação, intertextualidade, emprego do
imperativo e do vocativo, argumentatividade, estratégias de persuasão e
heterogeneidade subjetiva), procuramos apresentar os postulados e conceitos
propugnados pela Teoria da Enunciação e pela Análise do Discurso, linhas de
abordagem adotadas neste trabalho.
Nesta trilha teórica, foi mencionada a proposta de Benveniste (1988, 1989)
que advoga a incorporação do estudo da enunciação como parte fundamental dos
estudos lingüísticos. Os trabalhos desse autor, embora amplamente questionados
por sua centralização no eu, continuam importantes para as atuais pesquisas sobre
a linguagem.
Foram também apresentados os pilares teóricos relativos à rede polifônica na
constituição das instâncias enunciativas engendradoras da ação dialógica realizada
na “vidência”, seguindo as esteiras principalmente de teóricos como Ducrot (1987),
Brandão (1995, 1998) e Orlandi (1983, 1986, 1988 e 1996). Partilhando, em linhas
gerais, do pensamento da última autora sobre o discurso religioso, especialmente o
católico, objeto específico desse seu estudo, mostramos os princípios por ela
abordados, princípios esses que, para a análise aqui proposta, representam um
significante embasamento.
Por fim, já que o foco desta tese é a “interação” entre um ser temporal e a
Mãe de Jesus, consideramos conveniente fechar essa abordagem teórica mostrando
os traços da personagem celeste consignados nos Evangelhos e na Tradição da
Igreja. Nesse aparato teórico, ressaltamos que é na Tradição que se inserem os
estudos da vidência, no âmbito da Teologia Católica, especialmente aquelas
constitutivas da tipologia selecionada para a composição de nosso “corpus”, ou seja,
as relativas à Virgem Maria.
C A P Í T U L O 3
RELATO DAS PRINCIPAIS “APARIÇÕES” DA VIRGEM MARIA E ANÁLISE DA POLIFONIA DO
DISCURSO DE FÁTIMA
65
66
3.1. Aparições da Virgem Maria: mito ou realidade?
De acordo com a Sagrada Escritura e a doutrina da Igreja, no Senhor Jesus,
existem duas naturezas: a divina e a humana, mas uma única Pessoa – a do Verbo
Encarnado, conforme esclarece a Carta aos Colossenses:
Ele é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação. Nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as invisíveis(...). Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 1, 15-16ª; 2, 9 – Bíblia Sagrada, p. 1508. 1509).
Essa unidade, chamada união hipostática, tem implicação na maternidade de
Maria, pois sendo Mãe de uma Pessoa que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem,
ela é, conseqüentemente, mãe do homem e também Mãe de Deus.
A maternidade divina é o mais alto privilégio concedido à Virgem Maria. Por
ser constituída Mãe de Deus, ela ultrapassa em dignidade todas as outras criaturas,
inclusive os próprios anjos, conforme declara a Lumen Gentium (2003, p. 118).
A Virgem Maria, que na anunciação do anjo recebeu o Verbo de Deus no seu coração e no seu corpo (...) é reconhecida Mãe de Deus e do Redentor (...). Com este dom de graça sem igual, ultrapassa de longe todas as criaturas celestes e terrestres.
Para investi-la de tal dignidade, segundo a doutrina da Igreja, Deus ornou a
sua eleita de prerrogativas excepcionais. A primeira delas é a isenção de toda culpa,
até mesmo do pecado original, como ressalta o dogma da Imaculada Conceição,
proclamado no ano de 1854, pelo Papa Pio IX:
A Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado. (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 122;491).
Outro dom concedido a Maria, segundo os Padres da Igreja, é a sua perpétua
virgindade. Para eles, a Mãe de Jesus que era virgem antes do parto, conservou
essa integridade biológica durante e após o parto. Nesta linha, afirma o mesmo
Catecismo (p. 124; 499) o aprofundamento de sua fé na maternidade virginal levou a
Igreja a confessar a virgindade real e perpétua de Maria, mesmo no parto do Filho
de Deus feito homem.
67
Por ser Mãe de Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, esta mesma Igreja ensina que
Maria é mãe também de todos os seres humanos. Por isso, no Corpo Místico, ela
ocupa o lugar mais alto depois de Cristo e o mais perto de nós (cf. Lumen Gentium,
2003, p. 119).
Na condição de Mãe de Jesus, o Salvador, e mãe dos membros de seu
Corpo, Maria, afirma a Igreja, também participa da obra salvífica do Filho de Deus.
Essa visão está patente no Catecismo da Igreja Católica (idem p. 233):
De modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela (Maria) cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas. Por este motivo, ela se tornou para nós, Mãe na ordem da graça.
É em virtude dessa missão de “colaboradora na obra do Salvador”, que
podem ser entendidas as suas constantes “intervenções”. Crendo que a Virgem
Maria se encontra no céu em corpo e alma e que como Mãe, procura sempre o bem
dos filhos, os católicos aceitam, com muita tranqüilidade, as suas “aparições”, como
esclarece Roman (2003, p. 5):
Se Nossa Senhora apareceu certamente não foi para brincar. Ela veio porque nós tínhamos necessidade de seu auxílio. Nossa Senhora é Mãe. Sempre acompanha seus filhos. Por isso, temos aparições, desde o início da era cristã.
As “aparições” de Nossa Senhora e outras (Jesus, Santos, Anjos), a Igreja
denomina-as de Revelações Particulares. Nessas revelações não há
obrigatoriedade de aceitação, pois toda a verdade necessária à salvação está
centrada na Bíblia Sagrada, nas chamadas Revelações Normativas, que se
encerraram com a morte do apóstolo São João, autor do quarto Evangelho. As
primeiras têm como finalidade recordar aos crentes o que já foi revelado em Jesus
Cristo e por Jesus Cristo, a Palavra Encarnada, conforme asseveram os Membros
da Comissão Episcopal de Doutrina da CNBB (1990, p. 17).
Jesus Cristo, plenitude da Revelação, é o único mediador. As muitas mediações adquirem sentido a partir dele e nele. Revelações e aparições particulares nada acrescentam à revelação pessoal e insuperável do Pai, em Cristo, pelo poder do Espírito.
O Concílio Vaticano II, na Constituição Dei Verbum (sobre a revelação divina),
declara:
68
Quis Deus na sua bondade e sabedoria revelar-se a si mesmo e manifestar o mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9): os homens têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina por Cristo, Verbo encarnado, no Espírito Santo (Concílio Vaticano II: Dei Verbum, 1998, p. 345)
É nessa perspectiva que se fundamenta a possibilidade de aparições, do
milagre.
A tradição judaico-cristã está repleta de relatos que dizem respeito à
experiência do homem com o mistério de Deus.
A história do Cristianismo registra, desde os seus primórdios, especiais e
particulares teofanias. Por exemplo: antes de entrar em Damasco, conforme já
aludido, Paulo tem “um encontro com Jesus Ressuscitado” que o transforma
radicalmente: de ferrenho perseguidor dos cristãos, passa a ardoroso pregador e
defensor da doutrina que tanto combateu (cf. At 9, 3-9). Ao ser apedrejado, Estevão,
o primeiro mártir do Cristianismo, tem a “visão” da glória de Deus e do Senhor Jesus
à direita do Pai. (cf. At. 7,55).
Essas manifestações extraordinárias, porém, não aconteceram apenas com a
primeira geração de cristãos. Nesses vinte e um séculos da Igreja, elas têm
“ocorrido” até com uma certa freqüência. Como exemplo, podemos citar: Francisco
de Assis, Santa Brígida, Santa Catarina de Sena, Santa Margarida Maria Alacoque
e, mais recentemente, Santa Faustina e São Pio. Todos esses afirmaram ter
recebido mensagens diretas de Jesus e de sua Mãe. (cf CED – CNBB, 1990, p. 21).
Mas como o nosso propósito, neste trabalho, é o estudo da linguagem contida
nas mensagens que alguns usuários de língua portuguesa dizem ter recebido da
Mãe de Jesus, não nos deteremos em outras “revelações”.
Para a avaliação da autenticidade das revelações particulares, a Comissão
Episcopal de Doutrina da CNBB apresenta uma síntese dos critérios estabelecidos
pelo Papa Bento XIV, no século XVIII. (p. 52-54):
a) O primeiro deles diz respeito à pessoa do vidente. É necessário que seja
examinada a sua saúde psicofísica por profissionais competentes, a fim de
que não se confunda “visão” com alucinação. Sua conduta também é
altamente importante. Embora compreenda o Papa que Deus pode se
revelar a pecadores, considera improvável a persistência no erro, após as
69
“aparições”. Bento XIV julga ainda fundamental para o discernimento, em
tais questões, a obediência à Igreja e afirma que se o fato for verídico, o
vidente será, ao mesmo tempo, obediente, humilde e firme.
b) As mensagens não podem contradizer nem a razão humana, nem a
revelação bíblica e nem a doutrina da Igreja.
c) Um outro critério apontado é a forma da “aparição”. Já que Deus é
perfeição, jamais se manifestará com uma imagem deformada, imperfeita.
d) A finalidade da revelação é também, de acordo com Bento XIV, outro
critério de discernimento: a vivência do Evangelho, conversões, amor à
Igreja são elementos que não podem faltar na autêntica “aparição”.
e) O critério decisivo, no dizer do mesmo Papa, são os milagres. Esses,
quando comprovados pela Igreja, asseguram a autenticidade das
revelações particulares.
A CED-CNBB (p. 220) esclarece que “o fenômeno das revelações particulares
parece fazer-se notar, no quadro de uma religião popular, como forma de um
profetismo possível no mundo cristão”. E acrescenta que algumas dessas
revelações obtiveram o reconhecimento das autoridades eclesiásticas, como no
caso de Guadalupe, Lourdes, Fátima e outras.
Roman (2001, p. 5) postula que as aparições da Virgem Maria constituem
novos comandos para chamar os homens à conversão, à prática do Evangelho.
Gambarini (s.d. p. 61) diz que a primeira “aparição” de Nossa Senhora de que
temos conhecimento, ocorreu em Saragoça (Espanha), na noite do dia 2 de janeiro
do ano de 40 d.C. quando a Mãe do Senhor teria aparecido a São Tiago Maior,
irmão de João Evangelista. Tanto o apóstolo como seus discípulos teriam ouvido
vozes de anjos que cantavam Ave-Maria gratia plena e, ao mesmo tempo, viram a
Virgem de pé, sobre um pilar de mármore. Ela pedira a Tiago que lhe construísse
uma igreja naquele local, o que foi imediatamente realizado pelo apóstolo e seus
discípulos. Em virtude de a Virgem Santíssima ter-se manifestado aí sobre um pilar,
ficou sendo chamada Nossa Senhora do Pilar.
A CED-CNBB (p. 22) atesta que, “entre os séculos XIX e XX, contam-se cerca
de 310 aparições de Nossa Senhora”. Mas, como já foi dito, nosso objetivo neste
70
trabalho não é propriamente a análise das aparições, e sim da linguagem das
“mensagens” proferidas em língua portuguesa. Assim sendo, nesta introdução,
faremos uma breve abordagem das “revelações” da Santíssima Virgem de maior
repercussão no mundo, como Guadalupe, Medalha Milagrosa, Lourdes e
Medjugorje. As “aparições” de Fátima serão incluídas no corpus do trabalho, já que
constituem objeto de estudo desta tese.
3.2. Nossa Senhora de Guadalupe (México – 1531)
Em 1531, um índio asteca chamado Juan Diego, passava pela colina de
Tepeyac, quando “viu” uma Senhora bela, em pé, majestosa e cercada de luz, que
lhe falou:
Juanito, menor dos meus filhos, fica sabendo que sou Maria, sempre Virgem, Mãe de Deus verdadeiro (...). Eu desejo que seja construído um templo para mim neste lugar, onde o teu povo possa experimentar a minha compaixão, auxílio e proteção. Todos os que sinceramente pedirem a minha ajuda em suas tribulações e dores conhecerão meu Coração Maternal neste lugar (...). Por isso, corre agora a Tenochtittan e conta ao Bispo tudo o que aqui viste e ouviste.
Solícito ao pedido da bela Senhora, o índio foi imediatamente transmiti-lo ao
Senhor Bispo, Frei Juan de Zummarroga. Esse, porém, não deu crédito às palavras
do mensageiro, embora o tenha recebido delicadamente. Retornando à colina, Juan
Diego teve nova experiência com a Virgem que o instruiu a voltar a D. Frei Juan e
repetir o pedido. Obedecendo à ordem da Senhora, Juan Diego foi novamente à
presença do prelado. Nesta segunda audiência, o Bispo diz-lhe para solicitar um
sinal Àquela que lhe aparecia. Relatando à Santa Virgem o pedido do Bispo, num
terceiro encontro, Ela lhe ordena para cortar rosas na colina e colocá-las em seu
avental. Era inverno e, portanto, seria impossível que houvesse essas flores na
região. No palácio, diante do Bispo e de vários de seus assessores, Juan Diego
abriu o manto, deixando cair as rosas. Tanto o Prelado quanto todos os presentes
caíram de joelhos não diante das flores, mas da imagem da Santíssima Virgem
impressa no manto do mensageiro.
A capela que ela pedira foi construída e inaugurada em 26 de dezembro de
1531. (cf. Gambarini, s.d. p. 68-71).
71
3.3. Nossa Senhora das Graças – Medalha Milagrosa (Paris - França - 1830)
Às 22h30 de 18 de julho de 1830, Catarina Labouré, Filha da Caridade de
São Vicente de Paulo, “é acordada” por alguém que a chama: “Irmã, irmã, irmã”.
Olhando para o lado de onde vinha a voz, “viu” um menino vestido de branco que lhe
dissera: “Venha à capela; a Santa Virgem te espera.” Catarina vestiu-se rapidamente
e seguiu a criança em quem identificara seu Anjo da Guarda. Durante o trajeto da
cela à capela, as luzes se acendiam à medida que a Irmã e o Anjo iam passando. Ao
chegarem à Capela, a porta se abriu, mal o mensageiro lhe tocou com o dedo. E, em
seu interior, todas as luzes estavam acesas. Catarina aguardou por meia hora, no
Santuário para onde o Anjo a conduzira. Após esse tempo, o Anjo exclamou: “Eis a
Santíssima Virgem”. Catarina “viu”, então a Virgem Maria que descia do altar. Após
ajoelhar-se diante do Santíssimo Sacramento, sentou-se na cadeira do sacerdote.
Num ato repentino, a religiosa atirou-se aos seus pés, apoiando os braços nos
joelhos da Mãe, que lhe falou de uma missão que Deus queria a ela confiar.
A segunda “aparição” ocorreu no dia 27 de novembro do mesmo ano, às
17h30, no momento em que a Irmã Catarina fazia meditação na capela. Nessa
ocasião, a Virgem Maria “aparece” de pé, vestida de uma seda branca como a
aurora. Tinha nas mãos um globo de ouro encimado por uma cruz. Esse globo
desaparece depois de suas mãos que se enchem de raios. Ao mesmo tempo, em
torno da Santíssima Virgem, formou-se uma figura oval na qual se lia: Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós.
A Virgem Maria “solicitou” à religiosa que mandasse fazer uma medalha
conforme o modelo apresentado: Manda cunhar uma medalha por este modelo. As
pessoas que a trouxerem receberão grandes graças; as graças serão abundantes
para as pessoas que tiverem confiança.
Catarina transmitiu esse pedido ao seu confessor, o Padre Gian Maria Abdel
que, por sua vez, levou-o ao Bispo da Diocesse. Em 1832, foi, então, cunhada a
medalha de acordo com as “instruções” da Mãe de Jesus que, em virtude das
inúmeras graças das quais tem sido instrumento, recebeu o título de Medalha Milagrosa. (cf. Roman, 2001, p. 57-58; Gambarini, s.d. p. 73-75).
72
3.4. Nossa Senhora de Lourdes (França – 1858)
Bernadette Soubirous, menina pobre e analfabeta, no dia 11 de fevereiro de
1858, numa quinta-feira, buscava lenha para o fogo de sua casa, quando “viu” à
entrada da gruta de Massabielle, às margens do rio Gave, uma “Senhora nova e
bela, bela mais que todas as criaturas”. A Senhora trazia um terço no braço direito
que o passou para as mãos. Em seguida, fez o sinal da cruz, gesto que Bernadete
interpretou como um convite à oração do terço o que foi imediatamente posto em
prática. E, assim, “ambas”, a Bela Senhora e sua privilegiada, rezaram a terça parte
do rosário. A primeira, porém, só orava o Pai Nosso e o Glória. Terminada a oração,
a Virgem desapareceu, mas volta a se revelar a Bernadette muitas vezes, como por
exemplo, no dia 25 de março de 1858, na festa da Anunciação, quando confirma o
dogma da Imaculada Conceição, dizendo: Eu sou a Imaculada Conceição.
A mensagem de Nossa Senhora, em Lourdes, resume-se em: convite à
oração pela conversão dos pecadores; chamado à penitência e amor à Igreja. (cf.
Gambarini, s.d. p. 75-77).
3.5. Rainha da Paz (Medjugorje – 1981)
No dia 24 de janeiro de 1981 a Virgem Maria “aparece” a seis pessoas: quatro
moças e dois rapazes. São: Vicka Ivankovic, filha de colonos; nasceu no dia 3 de
julho de 1964; Mirjana Drajicevic que nasceu no dia 18 de março de 1965 e é filha
de médico; Marija Pavlovic que, como Vicka é filha de colonos e nasceu no dia 1º de
abril de 1965; Ivanka Ivankovic que viera ao mundo no dia 21 de abril de 1966 e
cuja mãe falecera dois meses antes das aparições; Ivan Dragicevic, também filho de
colonos. Seu nascimento ocorrera no dia 25 de maio de 1966; Jakov Colo, órfão de
mãe, como Ivanka, nascido em 3 de junho de 1971.
Essas “aparições” são as mais longas e as mais intensas de que temos
registro e ocorrem diariamente, às 17h40.. No princípio duravam 30 minutos e até
mais, mas atualmente têm a duração de três a quatro minutos. A esses videntes,
Maria “se apresenta” trajando uma longa veste de cor cinza argênteo, tendo na
cabeça um véu branco que lhe cai até os pés. Os cabelos são pretos e um pouco
ondeados. Seus olhos têm a cor azul; as faces são róseas, os lábios vermelhos e a
73
boca pequena. À altura da cabeça, vê-se um círculo de doze estrelas. Sua altura é
de aproximadamente 1,65m e a idade de mais ou menos 20 anos.
De março de 1984 até janeiro de 1987, Nossa Senhora deixava uma curta
mensagem todas as quintas-feiras. A partir de 1987, porém, as mensagens são
transmitidas apenas no 25º dia de cada mês.
Em Medjugorje a Virgem Santíssima “apresenta-se” como Rainha da Paz.
Suas mensagens são um apelo à paz, à conversão, oração, jejum e vida
sacramental.
Atualmente essas mensagens são divulgadas em todos os países, inclusive
no Brasil, através de diversos boletins e jornais. (cf. Roman, 2001, p; 99-113).
Roman (2001, p. 15) acentua que os videntes da Nova Aliança têm como
missão recordar aos homens o compromisso com esta Aliança selada com o
Sangue do Filho de Deus e, ao mesmo tempo, avivar a fé na sua segunda vinda.
Feitas essas considerações, daqui em diante passaremos à análise dos
textos que compõem o corpus, análise essa que será precedida da apresentação
das condições de produção dos discursos veiculados em tais textos (Fátima,
Angüera, Itaperuna e Jacareí).
3.6. Condições de Produção
Na exposição dos “episódios” de Fátima, temos um discurso relatado, uma
vez que os fenômenos que ali se processaram têm como protagonista (terrestre)
uma criança de 10 anos e não-alfabetizada. Embora os textos que encerram a fala
dos sujeitos envolvidos na ação discursiva sejam uma transcrição dos manuscritos
de Lúcia, como testifica o seguinte enunciado:
Os diversos relatos redigidos pela Irmã Lúcia são habitualmente designados como memórias I, II, III e IV (...). Para satisfazer o desejo dos leitores de uma maior autenticidade quanto ao conteúdo das mensagens de Fátima, revimos a versão anterior deste trabalho com base nos manuscritos da Irmã Lúcia ora publicados (...) (Machado, 1983, p. 23-28),
é certo que ela só teve condições de registrar suas experiências, após ter sido
alfabetizada. Portanto, trata-se de uma enunciação enunciada que tem como sujeito
74
da emissão um locutor que relata fatos por ele “vivenciados” e um enunciador que se
apresenta na perspectiva desse mesmo locutor.
Já nos discursos das “vidências” ocorridas em terras brasileiras, temos uma
produção “em se fazendo” (cf. Koch, 1995, p. 69), pois eles são escritos ou
enunciados durante o processo mesmo da “alocução”.
Em todos eles, porém, há um processo enunciativo onde figura um locutor da
esfera celeste que interage, no plano da fé, com um alocutário do plano terrestre
cujo “objeto de dizer” é um sujeito ou delocutário, ora do plano temporal, ora do
plano espiritual.
No que se refere ao perfil sócio-cultural e religioso dos “videntes” de Fátima,
urge esclarecer que:
1º. As três crianças eram filhas de camponeses, como atesta o seguinte
enunciado:
As três crianças moravam (...) em Aljustrel, lugarejo da freguesia de Fátima. As aparições se deram numa pequena propriedade dos pais de Lúcia, chamada Cova da Iria, a dois quilômetros e meio de Fátima, pela estrada de Leiria (Machado, 1983, p. 35).
2º. Além de analfabetas levavam uma vida de muita simplicidade, segundo o
depoimento abaixo:
Antes de mais nada, a própria vida e cultura dos pastorinhos depõe a favor deles. Seu nível de instrução era nulo. Nenhum deles aprendera a ler e escrever e nem sequer sabiam quem era o papa. Ademais, eram um tanto tímidos e ressabiados pela falta de contacto com gente estranha. (Dias, 1999, p. 61)
3º. No tocante ao grupo familiar, existe indicação de que, pelo menos no
início, as crianças não desfrutavam de credibilidade quanto aos fenômenos em que
se diziam envolvidas. É o que atesta o seguinte excerto:
A Irmã Lúcia pôs-se a escrever, entre os dias 7 e 21 de novembro daquele ano (1937) – após nova ordem de D. José Alves Correia da Silva – a história de sua vida (...); as críticas e zombarias surgidas (...) e as repreensões severas de sua mãe, induziram-na sempre a uma grande cautela e discrição. (Machado, 1983, p. 25).
4º. Tiveram de enfrentar desconfianças e perseguições não só da família
como também de autoridades religiosas, civis e militares, de acordo com Dias (1999,
p. 58):
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Embora já fossem boas, normais e piedosas, essas crianças após as aparições do Anjo e da Virgem, têm tal maturidade espiritual (...) que tiveram fortaleza para fazer frente aos familiares, sacerdotes, policiais, autoridades e, inclusive, estiveram dispostas ao martírio; prudência para saber o que responder ou calar nos múltiplos interrogatórios que suportaram.
5º. Considerando que os três videntes (especialmente Lúcia que já estava
com a idade de 10 anos) ainda não estavam alfabetizados, não é difícil inferir que
seus pais eram também analfabetos, algo comum nas famílias camponesas da
época.
6º A devoção ao Imaculado Coração de Maria surgiu, na Igreja Católica, a
partir dos episódios de Fátima (Segunda Aparição).
Em relação a Angüera, o “vidente” tinha 18 anos, quando do início dos
“acontecimentos”. Fez o curso de magistério e nunca estudou teologia. Seu nível de
linguagem não é o padrão, como comprova o seguinte excerto de uma entrevista
gravada no dia 21 de abril de 2001:
Falá pra professores, já pensou? Pobre de Pedro, né? Mais uma vez eu fui convidado pra falá na Universidade Federal de Aracaju, parece. É Federal aquela Universidade, né? Aí eu fui lá falá de muitos professores. É interessante porque depois de todo o meu falá, depois de duas horas e meia ou três, rezamos o terço e Nossa Senhora apareceu... Ajudem a divulgá os apelos de Nossa Senhora... Nosso maior valô, a gente descobrirá olhando pra Jesus na cruz.
Num cotejo deste discurso com outro que o “vidente” diz ser da Mãe de
Jesus, produzido no mesmo dia, percebemos que os dois apresentam notáveis
diferenças.
Queridos filhos, vós sois importantes para a realização dos meus planos. Sois os maiores tesouros de Deus na terra. E se soubésseis o quanto sois amados, choraríeis de alegria. Peço-vos que fujais do pecado por menor que seja, e se vos acontecer cair, chamai por Jesus, que é a vossa força e salvação. Deus não quer condenar a humanidade, mas peço-vos que estejais atentos para não cairdes nas mãos do inimigo. Hoje o pecado se alastrou como a pior de todas as epidemias, causando estragos em muitas almas. Arrependei-vos depressa. Confiai na misericórdia do Senhor. Ele deseja o vosso retorno. Não recueis. Pedirei ao meu bom Jesus por vós e pelas vossas necessidades. Coragem! Esta é a mensagem que hoje vos transmito em nome da Santíssima Trindade. Obrigada, por me terdes permitido reunir-vos aqui por mais uma vez. Eu vos abençôo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ficai em paz.
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Esse último discurso, no dizer dos compiladores das mensagens não é
escrito, mas ditado, como testifica, Apelos Urgentes de Nossa Senhora de Angüera
Rainha da Paz em Angüera, Bahia (2000, p. 05):
Como Nossa Senhora pediu, todos os sábados Pedro volta ao lugar das aparições, onde foi erguida uma cruz a pedido Dela, e Maria dita uma mensagem. No início não tinha energia, mas a luz que irradiava de Nossa Senhora possibilitava que Pedro enxergasse o papel em que ele escrevia as mensagens ditadas pela Mãe de Jesus.
Vendo por esse prisma, tal discurso, pode ser considerado como língua oral
com as peculiaridades do registro culto padrão.
Quanto aos pais do “vidente”, trata-se de pessoas simples, donos de uma
pequena fazenda agropecuária – a Fazenda Malhada – palco das “aparições”, e
residência da família (pais e filhos), conforme consignado na mesma obra (p. 06):
Pedro tem 14 irmãos, todos católicos praticantes que foram sempre orientados pelo seu pai, Sr. Jonas e sua mãe, Dona Amália. São pessoas simples, acolhedoras que vivem do cultivo do feijão, do milho, da mandioca e da providência divina. (Alves, 2000, p. 06)
Do “vidente” de Itaperuna, podemos assinalar que é filho de pais católicos,
mas sem significantes conhecimentos teológicos. Seu pai é pequeno comerciante e
a mãe, professora, conforme testifica o excerto abaixo:
Rodrigo Ladeira Carvalho, 18 anos, solteiro, estudante e escriturário (...) Pais: Roberto da Silva Carvalho (comerciante) e Nilva de Pinho Ladeira Carvalho (professora). Tudo começou numa manhã nublada, do dia 24 de maio de 1995, quando o Rodrigo ia para o trabalho de bicicleta. Em locução interior (sem saber o que era), ouviu algo que lhe afirmava (não era intuição): “Hoje o sol irá raiar”. (Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor, 2001, p. 9).
Já o “vidente” de Jacareí, na época em que os acontecimentos tiveram início,
tinha apenas 14 anos. É de família pobre e não possuía nenhuma inclinação para
qualquer intensidade espiritual, pois segundo sua própria afirmação, só sabia rezar o
Pai Nosso e a Ave Maria (cf. Marcos Tadeu, 2000, p. 130).
No tocante à direção espiritual dos “videntes”, é importante ressaltar que ela
não interfere no conteúdo das mensagens. Sua função é exatamente ajudar essas
pessoas que se dizem depositárias de revelações particulares, no discernimento
desses fenômenos.
77
Em sua autoridade (Papa, Bispos, Presbíteros), a Igreja Católica sempre age
com muita cautela diante desses casos, como testemunham as palavras abaixo:
Os critérios de veracidade para se discernir se os fenômenos místicos são de origem divina ou meramente humana, há que se usar de certas normas imprescindíveis: Quando tais manifestações se apresentam com imposições, com datas marcadas para algum acontecimento, com elementos evasivos e alheios mesmo à própria revelação, elas são de origem diabólica, assinaladas pelo orgulho e soberba dos que as impõem aos outros. Quando são doentias, causadas por desvios psíquicos, falta-lhe objetividade, falta-lhes o senso do real e do realizável; são vagas, muito vagas. Quando são de procedência divina, elas são lindas, harmônicas, causam paz e gozo interiores (...); combinam com perfeição ao evangelho, e submissas á autoridade religiosa, seguem os critérios de santidade da Igreja. Nada acrescentam à Revelação, mas com agudeza e luminosidade incríveis aclaram partes de doutrina que nem mesmo bons teólogos chegam a intuir. (DELFINA, Gilberto Maria. As revelações particulares. São Paulo, 24/02/93. IN GOMES, Dr. Luiz. O terceiro segredo de Fátima, 1993, p. 10).
Esses depoimentos atestam que nem a família dos “videntes” e nem as
autoridades eclesiásticas têm qualquer responsabilidade no conteúdo ou na
estrutura lingüístico-discursiva das mensagens que integram o “corpus” deste
trabalho. No que se refere à Igreja, notamos que é examente o especular dos
ensinamentos bíblicos e eclesiásticos que a Igreja toma como um dos critérios de
julgamento da autenticidade das Revelações Particulares, conforme já mostrado na
introdução desse capítulo (p 69). Quanto às famílias, trata-se de pessoas simples,
sem qualquer profundidade no campo da teologia.
Antes de proceder à atividade analítica, convém esclarecer que todos os
textos que constituem o “corpus” desta tese foram coletados das obras:
1. As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã
Lúcia (MACHADO, Antônio Agusto Borelle (1993) – Fátima.
2. Apelos urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera, na Bahia
(CERCHIAARI, Maria do Socorro Chaves, 1993) – Angüera.
3. Jesus e Maria nas aparições de Jacareí (MARCOS TADEU, 2000) –
Jacareí.
4. Nossa senhora Mãe do Infinito Amor (2001) – Itaperuna.
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3.7. As Mensagens de Fátima – Relato introdutório
Era o dia 13 de maio do ano de 1917. Em Ajustrel, lugarejo da freguesia de
Fátima, Portugal, três crianças, que cuidavam de ovelhas da família, Lúcia de Jesus
de 10 anos (prima), Francisco de 9 e Jacinta de 7 (Irmãos), brincavam numa
propriedade do pai da primeira, quando, de acordo com a própria Lúcia, avistaram
dois clarões semelhantes a relâmpagos. Após este fenômeno, as três crianças
“visualizaram” sobre um arbusto, conhecido por azinheira, uma mulher de extrema
beleza.
Fascinados por essa visão, os três aproximaram-se da azinheira, “entrando”
no circulo de luz que envolvia a Bela Senhora. Foi esta quem “deu início” à
interlocução, dizendo:
Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.
Essas palavras tornaram os “videntes” repletos de paz e alegria. Assim, Lúcia
toma a iniciativa de interrogar a Senhora a respeito de sua procedência:
Donde é Vossemecê?
A resposta veio imediatamente:
Sou do céu.
De posse dessa resposta, Lúcia quer saber o que deseja deles a Figura
Celeste.
E que é que eVossemecê me quer?
E dos lábios da “mulher do céu”, veio o esclarecimento:
Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta
mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero.
79
Após essa alocução, estabeleceu-se uma “interação dialógica” entre os dois
protagonistas:
- E eu também vou para o céu?
- Sim, vais.
- E a Jacinta?
- Também.
- E o Francisco?
- Também, mas tem que rezar muitos terços.
- A Maria das Neves está no céu?
- Sim, está.
- E a Amélia?
- Estará no purgatório até o fim do mundo. Quereis oferecer a Deus para
suportar todos os sofrimentos que ele quiser enviar-vos em ato de
reparação pelos pecados com que ele é ofendido e de súplica pela
conversão dos pecadores?
- Sim, queremos.
- Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.
Ao enunciar “mas a graça de Deus será o vosso conforto”, de acordo com a
mesma Lúcia, algo de muito singular aconteceu. Eis como o descreve a testemunha:
Foi ao pronunciar estas últimas palavras, que abriu pela primeira vez as mãos, comunicando-nos uma luz tão intensa, que penetrando-nos no peito e no mais íntimo da alma, fazia-nos ver a nós mesmos em Deus, que era essa luz, mais claramente do que nos vemos no melhor dos espelhos. (...) (cf. Machado, 1783, p. 38.39).
Em seguida, disse ainda a “Senhora do Céu”:
- Rezem o terço todos os dias para alcançarem a paz para o mundo e o fim
da guerra.
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Terminando esse discurso, relata Lúcia: Começou a elevar-se, serenamente,
subindo em direção ao nascente, até desaparecer na imensidade da distância. A luz
que a circundava ia como que abrindo um caminho no cerrado dos astros.
No mês seguinte, junho, dia 13, fiéis ao pedido da Virgem, os três escolhidos
voltaram ao local da “aparição”, isto é, à Cova da Iria, vale situado na pequena
propriedade do pai de Lúcia, como já foi dito. Desta vez, porém, as crianças estavam
acompanhadas de cerca de umas cinqüenta pessoas, pois a “novidade” já se
divulgara por toda a região. Como da primeira vez, o clarão parecido com
relâmpago, anunciou a “chegada” da ilustre visitante. Mas desta vez, a ação
dialógica foi iniciada por Lúcia:
- Vossemecê que me quer?
- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço todos
os dias, e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.
À intercessão de Lúcia pela cura de uma pessoa doente, a resposta foi:
- Se converter-se, curar-se-á durante o ano.
Após essa resposta, a vidente intervém com outra solicitação que reatou o
diálogo:
- Queria pedir-lhe para nos levar para o céu.
- Sim, a Jacinta e o Francisco, levo-os em breve. Mas tu ficas cá mais algum
tempo. (...)
E novamente, ao enunciar as últimas palavras, diz Lúcia, que, pela segunda
vez, comunica-lhes a luz misteriosa.
Desvanecida esta visão, segundo a relatora, a Senhora envolta numa luz que
dela própria irradiava, elevou-se da azinheira, na direção do leste, até desaparecer
completamente.
A terceira “visita” da Senhora do Céu em Fátima, ocorreu no dia 13 de julho. Os
sinais de sua aproximação foram: uma nuvenzinha acinzentada que pairava sobre a
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azinheira; a ofuscação solar e o sopro suave de uma aragem, embora fosse época de
verão. As crianças “viram” a costumeira luz e, logo em seguida, a Bela Senhora.
Como da segunda vez, agora também é Lúcia que dá início à
interlocução.
- Vossemecê que me quer?
- Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o
terço todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário para obter a paz
do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer.
- Queria pedir-lhe para nos dizer quem é, e fazer um milagre com que todos
acreditem que vossemecê nos apareceu.
- Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o que
quero, e farei um milagre que todos hão de ver para acreditarem.
Após Lúcia ter-lhe apresentado vários pedidos de conversões, de curas e de
outras graças, a Virgem “prosseguiu”.
- Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes e em especial sempre
que fizerdes algum sacrifício: “Ó, Jesus, é por vosso amor, pela conversão
dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado
Coração de Maria”.
Ao final dessa última alocução, a Senhora apresenta-lhes a “visão” do inferno,
conforme comenta Lúcia.
Assustadas, as crianças ergueram os olhos para a Senhora, que lhes disse:
- Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as
salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado
Coração. (...)
- Vossemecê não quer mais nada?
- Não, hoje não te quero mais nada.
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Assim, terminava a terceira “visita” da Mãe de Jesus aos três pastores de
Fátima. E, como de costume, foi-se elevando em direção ao nascente, até
desaparecer na imensidão do firmamento.
O quarto “encontro” da Senhora com os pequenos pastores não aconteceu no
dia 13 de agosto como estava determinado, pois, tendo sido, neste dia,
seqüestrados pelo Administrador de Ourém, não puderam comparecer à Cova da
Iria. No entanto, muita gente dirigiu-se ao local e presenciou vários fenômenos, no
momento costumeiro das aparições como: um trovão seguido de um relâmpago;
uma pequena nuvem que pairou, durante alguns minutos, sobre a azinheira; cores
diversas no rosto e nas roupas das pessoas e nas folhagens das árvores.
No dia 15 do mesmo mês, Lúcia e Francisco encontravam-se em Valinhos,
propriedade de um de seus tios, quando às 16 horas, notaram as alterações
atmosféricas que precediam as aparições: a brisa suave e a redução da luz solar.
Identificando tais fenômenos como sinais da vinda da Virgem, Lúcia mandou chamar
Jacinta, às pressas, a qual chegou a tempo do “celeste encontro”. A Senhora
aparecera sobre uma azinheira, pouco maior do que aquela da Cova da Iria.
Ainda foi Lúcia a tomar a iniciativa do diálogo.
- Que é que Vossemecê me quer?
- Quero que continueis a ir à Cova da Iria, no dia 13 e que continueis a rezar o
terço todos os dias. (...)
Em seguida, voltou ao céu, elevando-se em direção ao nascente, como das
outras vezes.
A Quinta “visita” da Virgem a Fátima, aconteceu no dia 13 de setembro,
conforme ela mesma determinara. Desta vez, compareceram ao local, de quinze a
vinte mil pessoas. Os fenômenos que anunciaram a chegada da ilustre Senhora
foram: o frescor da atmosfera, o diminuir da luz solar, a tal ponto que as estrelas
puderam ser vistas, flocos de neve em forma de pétalas e um globo luminoso que,
lentamente, se movia pelo céu, do nascente para o poente, no início da aparição e,
em sentindo contrário, no final.
Desta vez, foi a nobre Senhora quem deu inicio à interlocução:
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- Continuem a rezar o terço para alcançarem o fim da guerra. Em outubro, virá
também Nosso Senhor, Nossa Senhora das Dores e do Carmo, São José
com o Menino Jesus, para abençoarem o mundo. Deus está contente com os
vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda, trazei-a só
durante o dia.
- Têm-me pedido para lhe pedir muitas coisas: cura de alguns doentes, de um
surdo-mudo.
- Sim, alguns curarei, outros não. Em outubro farei um milagre para que todos
acreditem.
Depois, como de costume, começou a elevar-se rumo ao céu.
Como anunciara, a Virgem “voltara” a Fátima pela sexta vez, no dia 13 de
outubro ainda do ano de 1917. Sua chegada, assim como aconteceu nas outras
aparições, foi anunciada pelo reflexo de uma luz intensa. E o local exato de sua
presença continuou sendo a azinheira.
- Que é que Vossemecê me quer?
- Quero dizer- te que façam aqui uma capela em minha honra, que sou a
Senhora do Rosário, que continuem a rezar o terço todos os dias. A guerra
vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.
- Eu tinha muitas coisas para lhe pedir. Se curava uns doentes e se convertia
uns pecadores.
- Uns sim, outros não. É preciso que se emendem, que peçam perdão de
seus pecados, não ofendam mais a Deus, Nosso Senhor, que já está muito
ofendido.
Em seguida, abrindo as mãos, Nossa Senhora “fez” que elas fossem
refletidas no sol e, enquanto se elevava, o reflexo de sua própria luz continuou a
projetar-se no astro-rei.
Após a figura da Virgem Maria “desaparecer” no firmamento, aos olhos das
três crianças, desenrolaram-se, sucessivamente, três quadros representando os
mistérios gozosos, os dolorosos e os gloriosos.
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Ao lado do sol, “apareceram” também São José, o Menino Jesus e Nossa
Senhora do Rosário. A Virgem Maria trajava um vestido branco e um manto azul.
São José também se vestia de branco e o Menino Jesus, de vermelho claro. O
Menino Jesus e São José traçaram o sinal da cruz, abençoando o povo.
Após estas imagens, apareceram o Senhor Jesus e Nossa Senhora das
Dores, acabrunhados no caminho do calvário. Nesta visão, Jesus abençoou
novamente seu povo, traçando sobre ele o sinal da cruz.
A seguir, surgiu Nossa Senhora do Carmo, gloriosa, como Rainha do Céu e
da Terra, tendo em seu colo, o Menino Jesus.
Durante todo o tempo em que a virgem Maria conversava com Lúcia, chovia.
Quando ela começou a ascender ao céu, gritou Lúcia: “Olhem para o sol!”
Este se apresentava como um imenso disco de prata e, apesar de exibir um brilho
jamais visto, não cegava. Em seguida, a grande bola, semelhante a roda de fogo,
começou a girar rapidamente. Suas bordas tornaram-se escarlates e, como um
redemoinho, deslizou no céu, espargindo chamas vermelhas. Sua luz refletia-se no
rosto e nas roupas dos presentes, nas árvores e nos arbustos, que tomavam cores
brilhantes e diversificadas. Houve um momento em que o globo de fogo pareceu que
tremia e ia precipitar-se, em ziguezague sobre a multidão que já estava aterrorizada.
Finalmente, em ziguezague, o sol voltou ao seu brilho e tranqüilidade normais.
Este milagre foi testemunhado também por várias pessoas residentes em
locais distantes da Cova de Iria, até 40 quilômetros. (cf. Machado, 1983, p. 58/59)
E assim, terminava este ciclo das visitas da Mãe de Jesus à Terra.
No entanto, segundo depoimentos de Lúcia, as três crianças continuaram a
vê-la isoladamente, conforme o enunciado:
No pouco tempo que passaram na terra, depois das aparições, e mesmo no período abrangido por estas, Francisco e Jacinta, mas sobretudo esta última, tiveram isoladamente diversas visões. (cf. Machado, 1983, p. 61)
Nestes “encontros” individuais, de acordo com o mesmo autor, Jacinta foi
agraciada com visões relativas a fatos futuros.
Certa vez, junto ao poço dos pais de Lúcia, Jacinta perguntou à prima:
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- Não viste o Santo Padre?
- Não
- Não sei como foi, eu vi o Santo Padre numa casa muito grande, de joelhos
diante de uma mesa, com as mãos no rosto a chorar. Fora de casa, estava
muita gente e uns atiravam-lhe pedras, outros rogavam-lhe pragas e diziam-
lhe muitas palavras feias. Coitadinho do Santo Padre; temos que pedir muito
por ele. (p. 62)
Em fins de outubro do ano de 1918, Francisco e Jacinta adoeceram. Lúcia ia
visitá-los freqüentemente. Numa dessas visitas, encontrou Jacinta irradiando alegria.
A causa de tanta felicidade foi explicada.
- Nossa Senhora veio-nos ver e disse que vem buscar o Francisco muito
breve para o céu. E a mim perguntou-me se queria ainda converter mais
pecadores. Disse-lhe que sim. Disse-me que ia para um hospital, que lá
sofreria muito. Que sofresse pela conversão dos pecadores, em reparação
dos pecados contra o Imaculado Coração de Maria e por amor de Jesus.
Perguntei-lhe se tu ias comigo. Disse que não. Isto é o que me custa mais.
Disse que ia minha mãe levar-me, e, depois, fico lá sozinha. (p. 63)
Em outra oportunidade, a menina disse o seguinte:
- Já me falta pouco para ir para o céu. Tu ficas cá para dizeres que Deus quer
estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Quando
for para dizeres isso, não te escondas, dize a toda gente que Deus nos
concede graças por meio do Coração Imaculado de Maria. Que peçam a paz
ao Imaculado Coração de Maria, que Deus lha entregou a ela. Se eu pudesse
meter no coração de toda a gente o lume que tenho cá dentro no peito a
queimar-me e a fazer-me gostar tanto do Coração de Jesus e de Maria. (p.
63)
Nos últimos dias de dezembro de 1919, a Santa Virgem lhe “apareceu” e ela
relatou, assim, essa visita:
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- Disse-me que vou para Lisboa, para outro hospital; que não te torno a ver,
nem a meus pais; que depois de sofrer muito, morro sozinha, mas que não
tenha medo, que me vai lá ela a buscar para o céu. (p. 64)
Jacinta foi transportada para Lisboa, ficando primeiramente em um orfanato
próximo à Igreja Nossa Senhora dos Milagres, onde foi assistida pela Madre da
Purificação Godinho (Religiosa desse mesmo orfanato).
Do orfanato, Jacinta foi transferida para o Hospital Dona Estefânia e durante
sua permanência, neste local, foi visitada por Nossa Senhora que lhe comunicou o
dia e a hora de sua morte. Quatro dias antes de seu falecimento, a Virgem tirara-lhe
todas as dores.
Inquerida, na véspera de sua morte, se gostaria de ver a mãe, Jacinta
respondeu:
- A minha família durará pouco tempo e, em breve, se encontrarão no céu...
Nossa Senhora aparecerá outra vez, mas não a mim, porque com certeza
morro, como ela me disse... (p. 68)
Antes de Jacinta partir para a eternidade, Francisco empreendeu esta
viagem, que ocorreu no dia 4 de abril de 1919. A partida de Jacinta foi no dia 2 de
fevereiro de 1920. Francisco foi sepultado no cemitério de Fátima e sua irmã, no
cemitério de Vila Nova Ourém. No dia 12 de setembro de 1935, os restos mortais
dos dois irmãos foram transladados para um jazigo novo, construído especialmente
para os dois “videntes”. Na lápide, lia-se: Aqui repousam os restos mortais de
Francisco e Jacinta a quem Nossa Senhora apareceu.
Estes despojos, porém, não continuaram no jazigo, pois em 1951 e 1952
foram levados para a crípita da Basílica de Fátima onde se encontram.
Quanto a Lúcia, desde a segunda visita da Virgem (cf. Machado, 1983, p 68-
69), ficou patente que ela permaneceria na Terra, para propagar a devoção ao
Imaculado Coração de Maria. Assim, a 17 de junho de 1921, com 14 anos de idade,
a “vidente” deixa Aljustrel e vai para Porto, para estudar, como aluna interna, no
colégio das Irmãs Dorotéias. Em 24 de outubro de 1925, aos 18 anos de idade, é
admitida como postulante dessa Congregação, em Tuy, Espanha. Aos 2 de outubro
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de 1926, ingressa no noviciado; aos 3 de outubro de 1928, pronuncia os primeiros
votos e, no dia 3 de outubro de 1934 emite os votos perpétuos, tomando o nome de
Irmã Maria das Dores. Mas, por ocasião da revolução comunista na Espanha, por
motivo de segurança, é transferida para o colégio do Sardão, em Vila Nova de Gaia.
Em 25 de março de 1948, porém, a Irmã Lúcia deixou a congregação das
Dorotéias para ingressar no Carmelo de São José, em Coimbra, recebendo o nome
de Irmã Maria Lúcia do Coração Imaculado. A 13 de maio do mesmo ano, foi
investida do hábito de Santa Tereza e, no dia 31 de maio de 1949, professou como
Carmelita descalça.
A “mensagem” de Fátima, porém, não estava definitivamente encerrada, no
dia 13 de outubro de 1917. Lúcia ainda continuou como depositória das expressões
do amor da Virgem Santíssima pela humanidade.
No dia 10 de dezembro de 1925, no Convento das Irmãs Dorotéias, a Virgem,
tendo ao lado Jesus Menino lhe “apareceu” e pousando-lhe uma das mãos no
ombro, mostrou-lhe um coração coroado de espinhos que trazia na outra, dizendo-
lhe:
- Tem pena do Coração de tua Santíssima Mãe, que está coberto de espinhos
que os homens ingratos a todos os momentos lhe cravam, sem haver quem
faça um ato de reparação para os tirar. Olha, minha filha, o meu coração
coroado de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos me
cravam com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao menos, vê de me consolar e
dizer que todos aqueles que, durante cinco meses, no primeiro sábado, se
confessarem, recebendo a Sagrada Comunhão, meditando nos quinze
mistérios do Rosário com o fim de me desagravar, eu prometo assisti-los na
hora da morte com todas as graças necessárias à salvação dessas almas.
(cf. Machado, 1983. p. 74).
Aos 15 de fevereiro de 1926, ainda como Religiosa Dorotéia, o Menino Jesus
“manifesta-se” a Lúcia e pergunta-lhe se já havia divulgado a devoção à sua
Santíssima Mãe. A Irmã Lúcia diz-lhe que o confessor estava dificultando seu
trabalho, mas que a Madre superiora dispusera-se a realizar tal propagação. No
entanto, o mesmo confessor dissera que a Superiora sozinha nada poderia fazer. A
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esta fala do sacerdote, “advertiu” o Senhor – É verdade que a tua superiora só nada
pode, mas com a minha graça pode tudo.
Neste “encontro” com o Senhor Jesus, a Religiosa pediu-lhe para que a
confissão da semana anterior ao primeiro sábado fosse também aceita como
preparação à comunhão reparadora, visto muitas pessoas terem dificuldades para
receberem aquele sacramento no mesmo dia determinado pela Virgem Maria.
“Respondeu-lhe”, então o Senhor:
- Sim, pode ser de muitos dias ainda, contanto que, quando me receberem,
estejam em graça e tenham a intenção de desagravar o Imaculado Coração
de Maria. (cf. Machado, 1983, p. 75).
A “visão” mais esplêndida, porém, com que foi agraciada a Irmã Lúcia,
aconteceu no dia 13 de junho de 1929, pois segundo o seu relato, foi a Santíssima
Trindade quem a ela se manifestou:
Eu tinha pedido e obtido licença das minhas superioras e do confessor para fazer a Hora Santa das onze à meia-noite, de quinta para sexta-feira. Estando uma noite só, ajoelhei-me entre a balaustrada, no meio da capela, a rezar prostrada as orações do Anjo. Sentindo-me cansada, ergui-me e continuei a rezá-las com os braços em cruz. A única luz era a da lâmpada. De repente iluminou-se toda a capela com uma luz sobrenatural, e sobre o altar apareceu uma Cruz de luz que chegava até o teto. Numa luz mais clara, via-se na parte superior da Cruz, uma face de homem com corpo até à cintura, sobre o peito uma pomba de luz, e pregado na Cruz o corpo de outro homem. Um pouco abaixo da cintura, suspenso no ar, via-se um cálice e uma Hóstia grande, sobre a qual caíam algumas gotas de sangue que corriam pelas faces do Crucificado e de uma ferida do peito. Escorregando pela Hóstia, essas gotas caíam dentro do cálice. Sob o braço direito da Cruz estava Nossa Senhora (era Nossa Senhora de Fátima com o seu Imaculado Coração na mão esquerda, sem espada, sem rosas, mas com uma coroa de espinhos e chamas) (...) Sob o braço esquerdo, umas letras grandes, como se fossem de água cristalina que corresse para cima do altar, formavam estas palavras: “Graça e Misericórdia”. Compreendi que me era mostrado o Mistério da Santíssima Trindade, e recebi luzes sobre este Mistério que não me é permitido revelar. Depois Nossa Senhora disse-me: “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os Bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio. São tantas as almas que a Justiça de Deus condena por pecados contra Mim cometidos, que venho pedir reparação: sacrifica-te por esta intenção e ora.” (cf. Machado, 1983, p. 78).
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A Irmã Lúcia, a última dos três “videntes” de Fátima, viveu 97 anos. Faleceu
no dia 13 de fevereiro de 2005, após ter cumprido a missão que “recebeu” do céu de
divulgar a devoção ao Imaculado Coração de Maria.
Depois desta breve introdução, daremos início à análise do “corpus” com as
mensagens de Fátima, conforme delineado no título deste capítulo.
3.8. Jogo Polifônico das Mensagens de Fátima
3.8.1. Descrição da Figura Celeste
O texto que dá abertura à análise aqui proposta é o que apresenta as
características da principal Figura desse místico cenário, abaixo transcrito:
(1.) Era uma Senhora vestida toda de branco, mais brilhante que o sol, espargindo luz mais clara e intensa que um copo de cristal cheio de água cristalina, atravessado pelos raios do sol mais ardente. Sua face era de indescritível beleza. Tinha as mãos juntas como a rezar. Da mão direita pendia um rosário; as vestes pareciam feitas só de luz; a túnica era branca e branco o manto, orlado de ouro, que cobria a cabeça daVirgem e lhe descia aos pés. Não se lhe viam os cabelos e as orelhas (cf. Machado, 1983, p. 36)
Por ser de caráter descritivo, na superficialidade lingüística desse discurso,
não há a explicitação dos atores da cena enunciativa: eles podem ser definidos, a
partir de um interdiscurso implícito, conforme Maingueneau (1993, p. 45)
Vamos considerar esta heterogeneidade em dois planos diversos (...): a heterogeneidade mostrada (...) e a heterogeneidade constitutiva. A primeira incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva. (grifos do autor)
Considerando que o sujeito do discurso escrito não é o mesmo que
“contemplou” a figura apresentada, visto Lúcia ter registrado sua “experiência” com o
sobrenatural 20 anos depois, ou seja, em 1937, como foi mostrado anteriormente (p.
73), temos, nessa cena discursiva uma enunciação enunciada. Logo, duas vozes
ecoam inicialmente aí: a do locutor (L) a quem cabe a responsabilidade do
enunciado e a do enunciador (E) que se apresenta segundo o ponto de vista do
primeiro. Expressões como “espargindo luz”, “água cristalina”, “indescritível beleza”,
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“orlado de ouro” denunciam um falante que não só galgara uma certa maturidade
cognitiva, mas que também tem conhecimento das normas da língua padrão. O
primeiro sujeito, o locutor, é uma criança de 10 anos, camponesa, não-alfabetizada
e tímida (cf. p. 74). Já o segundo, é uma religiosa, consagrada na Congregação das
Dorotéias, com idade de 30 anos (cf. p75. ). Como sabemos que essas irmãs
dedicam-se especialmente à educação, não é difícil deduzirmos que elas procuram
empenhar-se na própria formação humano-religiosa e também lingüística. Eis por
que a forma de expressão do discurso em apreço não condiz com a personagem
que “vivenciou” os fatos.
Como ocorre no nível da produção, no da recepção, não existe qualquer
marca lingüística que identifique o interlocutor. Mas, se o “discurso é qualquer
atividade produtora de sentidos entre interlocutores”, conforme Travaglia (2001, p.
68), existe aí um sujeito implícito que representa o “tu” discursivo.
Embora a Irmã Lúcia tenha escrito suas “visões” por ordem do Bispo D. José
Alves Correia da Silva, em 1937, como foi anteriormente exposto, é o leitor,
especialmente o católico, que acredita na ascenção da Virgem Maria ao céu em
corpo e alma e, em tal conseqüência, em suas “aparições”, que figura como
alocutário, na correlação do locutor, e de destinatário, na de enunciador, conforme
Ducrot (1987) complementado por Orlandi, Guimarães e Tarallo (1989),
mencionados na página 4 4 . E já que todos os católicos, povo e clero, formam a
Igreja, é essa mesma Igreja que nesse discurso está exercendo função de ouvinte,
ou seja, de alocutário e de destinatário.
O enunciador, porém, duplica-se em sui-enunciador (SE) ou auto-enunciador,
colocando-se na perspectiva de um locutor pessoal, e enunciador bíblico (EB), ao
assumir a voz da Sagrada Escritura, nos enunciados.
a) “Era uma Senhora vestida toda de branco, mais brilhante que o sol,
aspergindo luz (...)”
que nos remete a:
• Cântico dos Cânticos: Quem é esta que avança como a aurora, bela como
a lua, brilhante como o sol, terrível como um exército em ordem de
batalha? (Bíblia Sagrada, p. 832)
91
• Apo 12, 1: Apareceu um grande sinal no céu, uma mulher revestida de sol,
a lua debaixo dos pés, e na cabeça uma coroa de doze estrelas (Bíblia Sagrada, p. 1566)
b) “Sua face era de indescritível beleza (...) e branco o manto, orlado de
ouro, que cobria a cabeça da Virgem e lhe descia aos pés;”
que lembra:
• Sl 44, 10-14: Posta-se à vossa direita a rainha, ornada de ouro de Ofir (...)
De tua beleza se encantou o rei: toda formosa entra a filha do rei com
vestes bordadas de ouro (Bíblia Sagrada, p. 691)
Já na instância referida ou enunciada, o sujeito ou delocutário (D) na
concepção de Brandão (1988, p. 50-52), corroborada por Bittencourt (1950),
conforme mostrado na página 46 deste trabalho, vem expresso pelos epítetos:
Senhora (Era uma Senhora vestida toda de branco...) e Virgem (... cobria a cabeça
da Virgem) e pelas formas pronominais se e lhe (não-se lhe viam os cabelos e as
orelhas (cf. Bittencourt, 1992, 1995)
Embora de caráter persuasivo, na superfície textual, encontra-se somente
uma estratégia retórica – a comparação: mais brilhante que o sol: mais clara e
intensa que um copo de cristal.
Quanto à função da linguagem, neste processo discursivo, o predomínio é da
emotiva, caracterizada especialmente pela lexicografia nominal e verbal: mais
brilhante que o sol; espargindo luz; água cristalina; indescritível beleza.
No tocante aos níveis de linguagem, conforme já foi comentado, temos, neste
discurso, um nível formal, elitizado como podemos constatar pelos seguintes sinais:
a) concordância nominal e verbal: Era uma Senhora vestida toda de branco;
tinha as mãos juntas: ... as vestes pareciam feitas só de luz.
b) Emprego estilístico do gerúndio e do infinitivo: espargindo luz; as mãos
juntas a rezar.
c) Elipse do verbo (zêugma): a túnica era branca e branco, o manto.
O jogo de vozes aqui apreciado apresenta-se configurado no diagrama a
seguir:
EMISSÃO RECEPÇÃO
LOCUTOR(L) ENUNCIADOR(E) ALOCUTÁRIO(AL) DESTINATÁRIO(DEST)
SE EB
Vidente Ir. Lúcia Ir. Lúcia Igreja Igreja (implícito) (implícito)
PROCESSO ENUNCIATIVO
INTERLOCUÇÃO
R E F E R Ê N C I A
DELOCUTÁRIO
Senhora Celeste
FIGURA 2 – Multiplicidade de sujeitos na descrição da Figura Celeste, na 1ª “aparição de Fátima”
As linhas contínuas apontam para os sujeitos da interação – locutor e
enunciador, na emissão e, alocutário e destinatário, na recepção. Já a linha
pontilhada indica aquele sujeito que está à margem da interlocução, mas que é o
objeto de dizer dos interlocutores – o delocutário.
3.8.2. Primeira “Aparição”: 13 de maio de 1917
O segundo discurso a ser analisado constitui a primeira interlocução que se
processa entre os principais protagonistas dessa cena que teve como palco a Cova
da Iria, em Fátima, Portugal, aqui transcrito sem os comentários:
(2 ) - Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.
- Donde é vossemecê?
92
93
- Sou do céu.
- E que é que vossemecê me quer?
- Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a
esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero.
- E eu também vou para o céu?
- Sim vais.
- E a Jacinta?
- Também.
- E o Francisco?
- Também, mas tem que rezar muitos terços.
- A Maria das Neves está no céu?
- Sim, está.
- E a Amélia?
- Estará no purgatório até o fim do mundo. Quereis oferecer-vos a Deus
para suportar todos os sofrimentos que ele quiser enviar-vos em ato de
reparação pelos pecados com que ele é ofendido e de súplica pela
conversão dos pecadores?
- Sim, queremos.
- Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.
Estamos diante de uma ação dialógica informal, embora realizada por atores
pertencentes a esferas dissimétricas: céu e terra, conforme Orlandi (1996, p. 243):
Partindo, então da caracterização do discurso religioso como aquele em que fala a voz de Deus, começaria por dizer que, no discurso religioso, há um desnivelamento fundamental da relação entre locutor e ouvinte: o locutor é do plano espiritual (...) e o ouvinte é do plano temporal (...), isto é, locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal (...)
Focalizando o jogo interacional, percebemos que é o sujeito do plano
espiritual quem o inicia. Esse sujeito entra na enunciação como locutor, inscrevendo,
nela, seu parceiro, como alocutário, para depois marcar-se subjetivamente (Não
tenhais medo. Eu não vos faço mal).
Mesmo experimentando esse desnivelamento de que fala Orlandi, o ouvinte
inverte as funções dialógicas. Instalando-se como locutor no segundo ato,
94
conseqüentemente seu ouvinte é inscrito na função de alocutário, como ocorre em
qualquer interação em que a alternância de papéis cria a dialogicidade.
Na superfície textual, os locutores estão assinalados pelos pronomes de
primeira pessoa (eu, me) e pelas formas verbais (faço, sou, vim, direi, quero, vou,
queremos), e o alocutário, por dêiticos pronominais pessoais e possessivos (vos,
vossemecê, vosso) e pelas desinências verbais de segunda pessoa (tenhais,
venhais, vais, quereis, ides).
Na instância referencial, temos sujeitos humanos (Jacinta, Francisco, Maria das Neves, Amélia) e divino (Deus), representados pela nominalização e pelo
anafórico ele (...com que ele é ofendido).
No que diz respeito ao jogo polifônico stricto sensu (cf. Orlandi, Guimarães e
Tarallo, 1989, p. 46), identificamos uma intrincada superposição vocal: a personagem
celeste, além de inscrever-se, nessa trama, como locutor L, fonte do dizer e locutor P,
pessoa socialmente constituída (Sou do céu), representa uma outra voz – aquela que
tem o direito de receber sacrifícios em desagravo pelas ofensas que lhe fazem os
pecadores, ou seja, a voz de Deus, exercendo, portanto, nessa instância, a função de
enunciador divinal (EDV). Outra voz também ecoa nesta instância emissora: a da Igreja
Católica. Ao afirmar que a “Amélia estará no Purgatório, até o fim do mundo”, o
protagonista celeste confirma a doutrina do catolicismo sobre esse estágio por que,
segundo ela, passam certas pessoas antes de chegarem ao céu. Portanto, embora
reconhecida e proclamada pela Igreja como aquela que ocupa o lugar mais alto depois
de Cristo (cf. Lumen Gentium, 2003, p. 1119), a personagem celeste exerce ai a função
de seu enunciador – enunciador eclesial (EE).
No nível da recepção, o sujeito terrestre é instalado como alocutário AL pelo
locutor L e alocutário ALP pelo locutor P, na instância locutória; mas na do
enunciador, o ouvinte é inscrito, como destinatário DEST (cf. Orlandi, Guimarães e
Tarallo, 1989, p. 47). Como a mensagem, porém, é dirigida não apenas ao
interlocutor, mas aos “três videntes”, temos aí um destinatário coletivo – DESTC.
Nessa trama, o tu não é somente aquele que dialoga: nela, existe uma
pluralidade receptora revelada por marcas lingüísticas, como a flexão verbal
venhais e o pronome vos:
95
2.1Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero.
Tais sinais indicam que a voz locutora dirige-se aos três figurantes desse
cenário “desenrolado” naquele recôndito lugarejo da nação portuguesa. Logo,
Jacinta e Francisco são, com Lúcia, sujeitos no nível da recepção o que constitui um
alocutário coletivo (ALC).
No tocante à personagem terrestre, esta entra no discurso como locutor L,
mas, logo em seguida, assume a função de locutor LP, pessoa do mundo, que crê,
busca certezas e tem decisões firmes:
2.2 Eu vou para o céu?
2.3 E a Jacinta?
2.4 E o Francisco?
2.5 A Maria das Neves está no céu?
2.6 E a Amélia?
2.7 Sim, queremos.
Exercendo a função de locutor L, seu parceiro, o sujeito celeste, é inscrito
como alocutário AL. Ao assumir o papel de locutor P, o sujeito terrestre inscreve seu
ouvinte como alocutário ALP. Por conseguinte, o sujeito da esfera celeste, na
recepção exerce também duas funções – AL e ALP.
O protagonista terrestre fala também de outros lugares: a pergunta relativa à
salvação eterna de Jacinta e Francisco exprime a voz dos dois primos, e a que diz
respeito a Maria das Neves e a Amélia, a da família e amigos de ambas as falecidas.
Percebemos aí uma voz pluralizada que caracteriza um enunciador coletivo (EC).
Por outro lado, como já foi esclarecido, o sujeito da interação face –a - face é
um e o do discurso escrito outro. Portanto a Irmã Lúcia, relatora, exerce a função de
enunciador de Lúcia “vidente”, caracterizando-se, pois, como sui enunciador (SE), ou seja, auto-enunciador (cf. página 74).
No processo enunciativo outro sujeito figura na referência – o delocutário, que
se desdobra em delocutário divino (DV): Deus, e delocutário humano (DH): Jacinta, Francisco, Maria das Neves, Amélia e pecadores.
Ocorre nessa enunciação uma evidente superposição vocal, uma vez que um
mesmo indivíduo acumula várias funções, como:
a) Sujeito Celeste (SCl = L, (locutor); LP (locutor pessoa do mundo); EDV
(enunciador divinal); EE (enunciador eclesial); AL (alocutário); ALP
(alocutário pessoa do mundo);
b) Lúcia (La) = L (locutor); LP (locutor pessoa do mundo); SE (sui-
enunciador); AL (alocutário); ALP (alocutário pessoa do mundo);
c) Lúcia mais comunidade (La + C) = enunciador coletivo;
d) Lúcia igual a videntes = (La = V) = ALC (alocutário coletivo); DESTC
(destinatário coletivo;
No esquema abaixo, temos a representação diagramática do jogo de vozes
aqui analisado.
T R A M A P O L I F Ô N I C A
L O C U T O R ENUNCIADOR ALOCUTÁRIO DESTINATÁRIO COLETIVO
L LP EDV SE EC AL ALP ALC (La + V)
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SCl La SCl La SCl La La(+C) SCL SCL (La + V)
D E L O C U T Á R I O
Deus Francisco pecadores
Maria das Neves
INTERLOCUÇÃO
Jacinta Amélia FIGURA 3 – Jogo polifônico na primeira ação discursiva das “Aparições de Fátima”
97
Além dessas vozes que ressoam no processo da interlocução, outras se
instalam no espaço da intertextualidade. O anúncio de que Amélia estará no
Purgatório até o fim do mundo remete:
a) a Mt, 5, 25-26.
Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás em caminho com ele, para que não suceda que te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao seu ministro e sejas posto em prisão. Em verdade te digo: dali não sairás antes de teres pago o último centavo (Bíblia Sagrada, p. 1289)
b) à Igreja Católica, na sua doutrina sobre o purgatório, como está expresso
no Catecismo.
Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham a garantia da salvação eterna, passam, após a morte, por uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrarem na alegria do céu. A Igreja denomina Purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados (...) – (grifo dos autores) – (Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 247 – nº 1030 – 1031)
Já a prenunciação dos sofrimentos que estes eleitos terão de suportar,
sustentados pela graça de Deus, aponta para Jo 16,33: Referi-vos estas coisas para
que tenhais a paz em mim. No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o
mundo. (Bíblia Sagrada, p. 1407)
Ainda a ação discursiva relativa às dores que sofrerão os videntes como ato
de reparação pelas ofensas a Deus e de súplica a esse mesmo Deus, pela
conversão dos pecadores, lembra os ensinamentos da Igreja a respeito da
comunhão dos santos, como se pode constatar na seguinte consignação:
Nós rezamos e sacrificamo-nos uns pelos outros. Ninguém poderá ser esquecido. Ninguém vive para si. A fidelidade dos crentes, a paciência dos que sofrem, o sacrifício dos mártires, nos une a uma comunidade, à comunhão dos santos. (grifo nosso) – (O Caminho, 1986, p.192).
Os próprios protagonistas da enunciação, aliados à referência, trazem à tona
o dogma da Igreja Católica relativo às três instâncias de sua constituição: TERRA,
PURGATÓRIO e CÉU, que pode ser constatado, a seguir:
Alguns dos discípulos de Cristo peregrinam na terra (Igreja peregrina), outros já passados desta vida estão se purificando (Igreja padecente, sofredora) e outros já vivem glorificados contemplando o
98
próprio Deus (Igreja triunfante). Mas todos, em geral, comungam na mesma caridade com Deus e o próximo, pois todos os que são de Cristo, tendo o mesmo espírito, formam uma só Igreja e eles estão unidos entre si. (Idem)
No jogo interlocutório, aqui em apreço, constatamos a presença de
performativos implícitos em proposições imperativas, como: Não tenhais medo;
assertivas do tipo: Ides, pois, ter muito que sofrer (...); ou interrogativas, como:
Donde é vossemecê? que tornam os enunciados verdadeiras ações. Nos dois
primeiros exemplos, a forma desenvolvida seria: “Eu te digo: não tenhais medo. Eu
te declaro: ides, pois, ter muito que sofrer (...)”, respectivamente. Já a interrogativa,
ficaria: “Eu pergunto: donde é vossemecê?”.
Em todos esses exemplos, temos um ato ilocucionário, exatamente, por
conterem força de ordem, asserção e pergunta (cf. Austin, 1990, p. 85, 86)
Quanto à função da linguagem, a predominância é da conativa. Os dêiticos
pronominais de segunda pessoa, o possessivo, a flexão verbal e a forma imperativa
atestam a presença dessa função centrada no TU, no receptor.
No tocante ao nível de linguagem, percebemos que, nos dois interlocutores,
ele é diferenciado: o locutor celeste (Lcl) emprega uma linguagem mais formal, cujos
sinais lingüísticos são, por exemplo:
a) concordância da flexão verbal com a forma pronominal usada:
2.8 Não tenhais medo
2.9 Sim, está (ela, a Maria das Neves)
2.10 Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso
conforto.
b) emprego da forma verbal simples do futuro, índice de uma linguagem mais
elitizada:
Depois vos direi quem sou (...)
Já o locutor terrestre (L T) faz uso de uma linguagem informal, marcada na
superfície textual pela forma pronominal vossemecê e pela construção sintática E
que é que vossemecê me quer?
99
A própria linguagem do discurso apreciado, portanto, comprova que, nele,
existem dois sujeitos cuja fala tem características diferentes.
3.8.3. Segunda “aparição”: 13 de junho de 1917
No segundo “encontro” da Virgem Maria com os pastores de Fátima,
conforme declaração de Lúcia, havia no local cerca de cinqüenta pessoas.
Antes de a mãe de Jesus “fazer-se presente“, alguns notaram que a luz solar
diminuíra de intensidade e outros perceberam que, durante o tempo da interlocução,
o topo da azinheira onde as crianças “viam” a Imagem Celeste, parecia estar
curvada.
Desta vez, a ação dialógica foi iniciada pelo protagonista terrestre:
(3) Vossemecê que me quer?
- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço
todos os dias e aprendais a ler. Depois direi o que quero.
Após a interlocução inicial, Lúcia dá continuidade ao diálogo pedindo pela
cura de uma pessoa, cuja resposta foi:
(3.1) -Se se converter, curar-se-á durante o ano.
E é ainda a personagem terrestre quem dá prosseguimento à interação.
(3.2) -Queria pedir-lhe para nos levar para o céu.
- Sim, à Jacinta e ao Francisco, levo-os em breve. Mas tu ficas cá mais
algum tempo. Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e
amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado
Coração. A quem a abraçar, prometo a salvação; e serão queridas de
Deus estas almas, como flores postas por mim a adornar o seu trono.
- Fico cá sozinha?
- Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O
meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te
conduzirá até Deus.
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Terminada a interlocução, a “vidente” faz a explanação de uma nova
experiência:
(3.3) - Foi no momento que disse estas últimas palavras, que abriu as mãos
e nos comunicou, pela segunda vez, o reflexo dessa luz imensa. Nela
nos víamos como que submergidos em Deus. A Jacinta e o Francisco
pareciam estar na parte dessa luz que se elevava para o céu e eu, na
que se espargia sobre a terra. À frente da palma da mão direita de
Nossa Senhora estava um coração cercado de espinhos que
pareciam estar nele cravados. Compreendemos que era o Imaculado
Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, que
queria reparação.
Nessa segunda cena discursiva, como já se comentou, a interlocução foi
iniciada pelo protagonista da esfera terrestre:
(3.4) - Vossemecê que me quer?
Instaurando-se na enunciação como locutor, conseqüentemente, seu ouvinte
(o sujeito celeste) é instalado como alocutário.
Mas como é próprio de toda ação intersubjetiva, ao assumir a língua, o “tu”
converte-se em “eu”, conforme apregoa Benveniste (1995, p. 286):
Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será, na minha alocução, um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu. (grifos do autor)
Por conseguinte, ao apossar-se da palavra, o sujeito celeste inscreve-se
como locutor e instaura seu parceiro na função de alocutário.
(3.5) - Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço
todos os dias e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.
Por se tratar de uma ação dalógica, em todo o jogo enunciativo, ocorre a
alternância de papéis, visto que “eu” e “tu”, na alocução, são sempre reversíveis.
Na superfície textual, o locutor celeste está assinalado pelos pronomes
pessoais (me, mim, eu) e possessivo (meu) como também pelos morfemas verbais
indicadores de 1ª pessoa (quero, direi, levo, prometo, deixarei); as marcas
101
lingüísticas do locutor terrestre são os dêiticos pessoais (me, nos, eu) e flexões
verbais (fico, víamos, compreendemos).
Na instância receptora, o alocutário celeste está identificado pelos pronomes
(vossemecê e lhe); o alocutário terrestre pelos pronomes pessoais (tu, te, ti) e
possessivo (teu), pelas desinências verbais (rezeis, aprendais, ficas, sofre, desanimes) e ainda pelo nome vocativo (filha),
Na referência figuram delocutários:
- Da esfera temporal:
a) Uma pessoa doente
(3.6) Se se converter, curar-se-á durante o ano.
b) Jacinta e Francisco
(3.7) Á Jacinta e ao Francisco, levo-os em breve (...);
c) As futuras almas devotas do Imaculado Coração:
(3.8) A quem a abraçar, prometo a salvação; e serão queridas de Deus estas
almas;
- Da esfera espiritual:
a) Jesus:
(3.9) Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar.
b) Deus Pai:
(3.10) ... e serão queridas de Deus estas almas.
c) O Imaculado Coração:
(3.11) Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração.
As marcas lingüísticas desse sujeito são os lexemas (Jacinta, Francisco, almas, Jesus, Deus, Imaculado Coração) e os dêiticos pronominais (se, ele, quem, os, a)
Na última enunciação, não ocorre o ato dialógico (cf. Koch, 1995, p. 71). O
sujeito falante, o locutor terrestre, tem como parceiro agora não um alocutário que
interage com ele face-a-face, mas a Igreja, especialmente a hierarquia, pois,
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conforme já enunciado, Lúcia escreve essas memórias em obediência ao Prelado D.
José Alves Correia da Silva (cf. p. 75). Logo, é a Igreja que tem a função de ouvinte,
ou seja, de alocutário eclesial (AE).
(3.12) Foi no momento que disse estas últimas palavras que abriu as mãos e
nos comunicou pela segunda vez o reflexo dessa luz imensa.
Já na referência, como o locutor faz alusão a Deus, a Nossa Senhora, a
Jacinta, a Francisco, à humanidade pecadora e a si própria, são eles o delocutário
(D).
(3.13) Nela nos víamos como que submergidos em Deus. A Jacinta e o
Francisco pareciam estar na parte dessa luz que se elevava para o céu
e eu, na que se espargia sobre a terra. À frente da palma da mão
direita de Nossa Senhora estava um coração cercado de espinhos que
pareciam estar nele cravados. Compreendemos que era o Imaculado
Coração de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, que queria
reparação.
Essa entidade discursiva está marcada por lexemas nominais (Deus, Jacinta, Francisco, Nossa Senhora, Coração, Imaculado Coração de Maria, humanidade pecadora) e pelos pronomes pessoais (eu e nós) que, no caso, estão identificando
não o locutor e, sim, o referente.
No jogo polifônico instaurado tanto na primeira como segunda enunciação,
são bem diversificadas as vozes que aí se imiscuem.
A pergunta que introduz o diálogo: (Vossemecê que me quer?) revela que o
sujeito falante reconhece o desnivelamento que existe entre ele e o ouvinte: é uma
atitude de obediência, de submissão. Trata-se daquela hierarquização à qual alude
Orlandi (1996, 243):Locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo
totalmente diferentes e afetados por um valor hierárquico, por uma desigualdade em
sua relação: o mundo espiritual domina o temporal.
Apossando-se do discurso como responsável pela enunciação, o sujeito terrestre o faz na função de locutor (L). Mas no íntimo dessa entidade ressoa uma
outra voz que exprime carência, medo, angústia – Fico cá sozinha? É o grito do ser
humano, da criança que teme ficar sem os amigos e companheiros, “figurantes”
103
junto com ela dessa peça teatral que “tivera início” no dia 13 de maio: é a voz do
locutor pessoa do mundo (LP), aquele que se desnuda, que revela a sua
individualidade (cf. Ducrot (1987, p. 142 – 188).
Mas como o sujeito falante é ainda intérprete dos sentimentos dos primos
igualmente agraciados com a “celeste visão”, sua voz é também a de Jacinta e de
Francisco, o que caracteriza um locutor coletivo (LC).
Uma outra voz, porém, ecoa, na intercessão pela cura de uma pessoa: é a
voz de alguém que torna a “vidente” mediadora junto àquela que ambas acreditam
ser a Mãe do Senhor. É, portanto, como enunciador individual (EI) que, nessa
instância discursiva, fala o protagonista terrestre.
Como sabemos, porém, que o sujeito vidente é um e o da enunciação escrita
outro, Lúcia do memorial é enunciadora de Lúcia vidente – sui-enunciador (SE).
Como correlato do enunciador, figura a Igreja, na função de destinatário
eclesial (DESTE), pois é a ela que a mensagem é dirigida.
No que diz respeito ao protagonista celeste, acontece também o mesmo
fenômeno lingüístico: ele fala de diversos lugares. Ao entrar na enunciação, essa
personagem se apresenta como quem tem autoridade para exigir que o seu querer
seja cumprido.
(3.14) Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço
todos os dias e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.
Esta é, portanto, a voz do locutor (L) daquele a quem é imputada a
responsabilidade do que diz.
Há uma outra voz, porém, que emana de um coração de mãe:
(3.15) Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O
meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te
conduzirá até Deus.
É a expressão do amor materno que quer proteger a pequena filha,
envolvendo-a na sua ternura, no seu carinho. Identificamos aí, pois, um locutor pessoa do mundo espiritual, mas que tem emoções, que tem sentimentos.
Esse sujeito, porém, fala ainda de outros lugares:
104
Ao enunciar:
(3.16) Jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e amar. Ele quer
estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração,
o falante incorpora a voz de Jesus que se revela pela expressão de sua
vontade. Nesse caso, o personagem que o representa exerce a função de seu
enunciador – EDF (Enunciador de Deus Filho).
Uma outra voz divina ainda se faz ouvir no enunciado:
(3.17) A quem a abraçar, prometo a salvação; e serão queridas de Deus
estas almas, como flores postas por mim a adornar o seu trono.
É a voz do Pai que acolhe com prazer os devotos do Imaculado Coração.
Portanto, o protagonista celeste atua aí como enunciador de Deus Pai – (EDP).
No nível da recepção, a personagem terrestre é instalada:
a) como alocutário coletivo (ALC) nas cenas discursivas em que as marcas
lingüísticas revelam um sujeito plurarizado.
(3.18) Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço
todos os dias e que aprendais a ler (...)
O outro, o tu aí inscrito não é apenas o que interage expressamente, mas os
três “videntes”, pois são eles três que deverão executar o “querer” manifesto:
voltarem à Cova da Iria, rezarem o terço e alfabetizarem-se.
b) Na correlação do locutor L, o receptor é inserido como alocutário AL.
(3.19) Mas tu ficas cá mais algum tempo. Jesus quer servir-se de ti para me
fazer conhecer e amar.
c) Como correspondente do locutor LP, é implantado como alocutário ALP:
(3.20) Não, filha. E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O
meu Imaculado Coração será o teu refúgio (...)
Quanto ao alocutário celeste, ele também é instalado pelo locutor L e pelo
locutor LP.
Ao primeiro, corresponde o alocutário AL.
(3.21) Vossemecê que me quer?
105
E ao segundo, o alocutário ALP:
(3.22) Fico cá sozinha?
Já na segunda enunciação, não é mais à personagem celeste que se dirige a
protagonista da esfera temporal, mas aos crentes, àqueles que integram as
gerações que proclamam a Virgem de Nazaré bem aventurada (cf. Lc 1,48 – Bíblia Sagrada, p. 1346). Portanto, instala-se aí um alocutário eclesial (ALE), ou seja, a
Igreja Católica, que venera e honra a mãe de Jesus, conforme reza a Lumen
Gentium (2003, p. 117-118):
Quando Deus sumamente benigno e sábio, quis realizar a salvação do mundo (...) “mandou o seu Filho” (...) “o qual, por amor de nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria”. Este mistério da salvação revela-se-nos e continua na Igreja que o Senhor constituiu como seu corpo, e na qual os fiéis – unidos a Cristo, sua cabeça, e em comunhão com todos os santos – devem também (...) venerar a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, mãe de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo.
No nível da referência, temos delocutário divino – DV (Deus); delocutário celeste – DCL (Nossa Senhora), e delocutário humano – DH (Jacinta, Francisco, Lúcia e a humanidade pecadora).
Essa cena discursiva traz em seu bojo um ato profético previsivo, pois o espaço
ocupado pelos “videntes”, na luz que os envolvia, prenunciava o destino dos três:
Jacinta e Francisco deveriam ir em breve para o céu e Lúcia teria como missão difundir
a devoção ao Imaculado Coração e, portanto, ficaria mais algum tempo na terra.
Além da marcação de pessoa, destacam-se, no texto, dêitico demonstrativo
(estas), locativos (aqui, cá, no mundo, à frente da palma da mão direita) e
temporais (no dia 13 do mês que vem, todos os dias, mais algum tempo, durante o ano, nunca).
No tocante aos recursos retóricos, distinguem-se na superfície textual, casos
de:
a) metáfora
(3.23) ... e serão queridas de Deus estas almas, como flores postas por mim.
(3.24) O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te
conduzirá até Deus;
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b) pleonasmo:
(3.25) Sim à Jacinta e ao Francisco, levo-os em breve...
c) Inversão:
(3.26) e serão queridas de Deus estas almas.
d) Interrogação dialética:
(3.27) E tu sofres muito?
No que diz respeito às funções da linguagem, existe uma equivalência entre
as funções emotiva e conativa:
A primeira pessoa, expressa pelos pronomes (eu, me, mim, nos, meu) e
pelos morfemas verbais (quero, direi, levo, prometo, deixarei) aliados aos dêiticos
que exprimem proximidade (aqui, cá, estas) e aos nomes que carreiam emotividade
(filha, querida, flores, refúgio, etc) atesta uma linguagem centrada no falante.
Mas a segunda pessoa consignada pelos pronomes (vossemecê, tu, te, ti, lhe, teu) e pelas desinências verbais (venhais, rezeis, sofres, etc) e mais o
vocativo (filha) são sinais de um discurso que tem como centro, o ouvinte.
Além dessas duas funções preponderantes, é notória também a referencial,
nessa última enunciação, pois os verbos no passado (foi, comunicou, víamos, etc)
e a predominância de índices referenciais (dessa, nela, se, nele) evidenciam a
centralização da linguagem no “ele”, naquele que, no dizer de Benveniste (1995, p.
250), é o ausente da enunciação.
Nessa trama enunciativa, além dessa superposição vocal, temos uma
polifonia inscrita pela intertextualidade bíblica e católica:
a) A proposição:
(3.28) Se se converter, curar-se-á durante o ano,
remete ao Salmo 23,3-5a:
Quem será digno de subir ao monte do Senhor? Ou de permanecer no seu lugar santo? O que tem as mãos limpas e o coração puro, cujo espírito não busca a vaidade nem perjura para enganar seu próximo. Este terá a bênção do Senhor e a recompensa de Deus, seu Salvador. (Bíblia Sagrada, p. 673).
b) A referência à luz que os envolveu lembra:
107
• O Salmo 26.1: O Senhor é a minha luz e a minha salvação, a quem
temerei? (Bíblia Sagrada, p. 675).
• 1 Jo. 1.5: A nova que dele temos e vos anunciamos é esta: Deus é luz e
nele não há treva alguma. (Bíblia Sagrada, p. 1550).
• A teologia da Igreja sobre o Espírito Santo que apresenta a luz como um
de seus símbolos, conforme atestam diversos cânticos de adoração,
louvor e invocação à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, como
exemplificamos no seguinte excerto do hino intitulado A nós Descei Divina Luz:
A nós descei, divina luz (2x) em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus (2x)
Vinde, Santo Espírito, e do céu mandai
de tua luz um raio! (2x)
(Louvemos o Senhor, 2005, p. 2;18)
c) A promessa de salvação àqueles que abraçarem a devoção ao
Imaculado Coração confirma a doutrina católica a respeito da mediação da
Santíssima Virgem, como assinala a Lumen Gentium (2003, p. 125.126):
A função maternal de Maria para com os homens, de nenhum modo obscurece ou diminui esta mediação única de Cristo; antes mostra qual é a sua eficácia. Na verdade, todo o influxo salutar da Santíssima Virgem em favor dos homens não é imposto por nenhuma necessidade, mas sim, por livre escolha de Deus, e dimana da superabundância dos méritos de Cristo (...)
Na composição dessa orquestra discursiva, ecoam vozes diversas
executadas por um mesmo indivíduo. Assim o protagonista celeste ora está
exercendo o papel de locutor L, ora o de locutor LP; ora o de alocutário AL ora o
de alocutário ALP, ora o de Enunciador de Deus Pai (EDP) e de Deus Filho
(EDF), como ainda o de delocutário (D).
Da mesma forma, o sujeito terrestre que, além de funcionar como locutor L, locutor (LP), locutor (LC), alocutário AL, alocutário ALP, enunciador eclesial (EE) e enunciador coletivo (EC), também figura no nível da referência, como
delocutário (D).
É, portanto, uma evidente polifonia que se instaura, nessa cena discursiva.
No diagrama, a seguir, encontra-se representada a multiplicidade vocal que
procuramos mostrar, nesse processo discursivo:
M U L T I P L I C I D A D E V O C A L
L O C U T O R E N U N C I A D O R
SCl ST SCl ST LL LP LL LP LC EDP EDF EI SE EC
A L O C U T Á R I O DESTINATÁRIO COLETIVO
ST SCL ST = caólicos
AL ALP ALC AL ALP
D E L O C U T Á R I O
DV DCL DH
DP DF IC VS PD HP
FIGURA 4 – Multiplicação de sujeitos no discurso da segunda “aparição” de Fátima.
1) PRODUÇÃO:
a) Sujeito Celeste = locutor (L), locutor pessoa do mundo (LP); enunciador
divinal (EDV) que se duplica em enunciador de Deus Pai (EDP) e
enunciador de Deus Filho (EDF).
b) Sujeito Terrestre (ST) = locutor (L), locutor pessoa do mundo (LP);
c) Sui-enunciador (SE), enunciador coletivo (EC).
108
109
2) RECEPÇÃO
a) Sujeito terrestre (ST) e Sujeito Celeste = alocutário (AL) e alocutário
pessoa do mundo (ALP);
b) Sujeito Terrestre (ST) = alocutário coletivo (ALC);
3) REFERÊNCIA
a) Delocutário Divino (DV) desdobrado em Deus Pai (DP) e Deus Filho (DF);
b) Delocutário Celeste (DCl) = Imaculado Coração (IC);
c) Delocutário Humano (DH), triplicado em videntes (ST), pessoa doente (PD)
e humanidade pecadora (HP)
3.8.4. Terceira “aparição”: 13 de julho de 1917
Como no segundo “encontro”, neste, é também o protagonista do plano
temporal quem inicia o ato dialógico:
(4) Vossemecê que me quer?
Por conseguinte, é ele o locutor e o actante celeste, o “tu”, o alocutário.
Neste discurso, o emissor repete a postura do sujeito que reconhece seu lugar do
qual só pode ecoar uma única voz – a da obediência, conforme Orlandi (1996, p.
243), já referido.
A resposta do ouvinte que o translada da recepção para a emissão, ou seja,
converte-o de alocutário em locutor, exprime as mesmas ordens da visita anterior
(com exceção da referente à busca da habilidade da leitura): voltarem à Cova da Iria
no dia 13 do mês seguinte e rezarem diariamente o terço. Essa locução imperativa,
porém, vem acrescida do objetivo da oração do terço – obter o fim da guerra e a paz
do mundo e, ainda, da indicação do ser em cuja honra tal oração deverá ser
realizada – Nossa Senhora do Rosário.
(4.1) - Quero que venham aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a
rezar o terço todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário
para obter a paz do mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes
poderá valer.
110
- Queria pedir-lhe para nos dizer quem é, e para fazer um milagre com
que todos acreditem que vosssemecê nos aparece.
- Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o
que quero e farei um milagre que todos hão de ver para acreditarem.
Neste espaço discursivo, o protagonista celeste exerce função duplicada,
pois, referindo-se a si mesmo como Nossa Senhora do Rosário, coloca-se, sob
essa denominação, no nível da referência, ou seja, no papel de delocutário (D), constituindo, pois, uma sui-referenciação, conforme Brandão (1988, p. 53), já
mostrado, neste trabalho (p. 46): EU (L) = ELA (D).
Considerando o processo interlocutório, vimos que, na sua introdução, o
protagonista terrestre assume a palavra, instalando-se como locutor L, ao mesmo
tempo em que inscreve a personagem celeste no papel de alocutário AL. No
segundo ato, as posições são invertidas: o que era “eu” transmuda-se em “tu” e este,
em “eu”: a personagem celeste é quem exerce a função de locutor L e o terrestre, a
de alocutário AL. E neste revezar-se de ações, vão-se construindo as cenas
discursivas desse “diálogo” entre céu e terra.
Retomando o discurso, o protagonista do plano temporal faz dois pedidos ao
interlocutor:
a) revelar quem ela é (Queria pedir-lhe para nos dizer quem é);
b) realizar um milagre que confirme a sua presença ali (e para fazer um
milagre que todos acreditem que vossemecê nos aparece).
Percebemos que essa súplica parte da aflição provocada pelas críticas dos
céticos. Portanto, temos, nesta instância, um locutor pessoa do mundo – LP, que
tem emoções e quer ser respeitada e acreditada. Esse sujeito, porém, apresenta-se
ainda pluralizado, falando não só em seu nome, mas do lugar de seus primos
também, como evidencia o dêitico pronominal “nos” (... nos dizer ...nos aparece),
que caracteriza um locutor coletivo – LC.
Assumindo novamente o turno, a personagem celeste realiza atos de fala ou
ato ilocucionário, conforme Searle (1969): ordem, promessa e súplica:
(4.2) Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o que
quero, e farei um milagre que todos hão de ver para acreditarem...
111
Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes e em especial
sempre que fizerdes algum sacrifício: “Ó Jesus, é por vosso amor, pela
conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos
contra o Imaculado Coração de Maria.
Instalando-se como locutor, a personagem celeste inscreve o ouvinte na
função de alocutário coletivo AC, já que esse sujeito é tríplice (os três videntes);
como comprovam os verbos que indicam um ouvinte pruralizado: venham e
continuem (vocês).
O locutor está marcado pelos dêiticos pronominais: me e nos e verbais:
quero, direi, sou e farei, venham e o alocutário pelos pronomes: vossemecê e
lhes, lhe e pelas desinências verbais: continuem4 (vocês), sacrificai, dizei, fizerdes.
O referente, ou seja, o delocutário, vem representado pelos lexemas: pecadores,
Imaculado Coração de Maria, Jesus e pelo pronome substantivo todos (os
habitantes de Fátima).
Além de inscrever-se como locutor, a personagem celeste, nesta última
locução, figura novamente como delocutário (D) investida do título de Coração Imaculado de Maria, ao lado de todos (os habitantes de Fátima) e pecadores.
Esses últimos são o motivo da penitência solicitada aos “videntes”, pois é para
reparar suas ofensas e para que eles não se percam eternamente que as crianças
deverão sofrer voluntariamente.
O discurso seguinte não é um ato dialógico, mas a apresentação da “visão”
do inferno. Numa linguagem altamente dramática, o protagonista terrestre entra
nessa cena discursiva na qualidade de porta-voz de seus companheiros,
configurando-se, portanto, como locutor coletivo – LC, assinalado apenas pela
flexão verbal “vimos”.
(4.3) - Ao dizer estas últimas palavras, abriu de novo as mãos como nos dois
meses passados. O reflexo de luz que elas expediam pareceu
penetrar a terra e vimos como que um grande mar de fogo e
mergulhados nesse fogo os demônios e as almas como se fossem
brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana,
4 A mesclagem das pessoas gramaticais “vocês” e “vós” revela uma linguagem informal, própria da interação face-a-face.
112
que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas
saiam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados –
semelhante ao cair das fagulhas nos grandes incêndios – sem peso
nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que
horrorizavam e faziam estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-
se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e
desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa.
Nesta instância, como a mensagem é dirigida a toda a comunidade católica, o
ouvinte ou alocutário é a Igreja – alocutário eclesial – ALE.
A personagem celeste é inscrita aí no nível da referência; portanto, como
delocutário – D (ao dizer estas palavras, abriu de novo as mãos (...).
Outros referentes são também instalados, neste espaço discursivo: os demônios – delocutário satânico – DST e as almas condenadas – delocutório condenado - DCD (... e vimos como que um grande mar de fogo e mergulhados
nesse fogo os demônios e as almas como se fossem brasas transparentes (...)).
Desvanecida a imagem assustadora, é retomada a ação dialógica pela
personagem celeste que, imediatamente, passa do papel de locutor L para o de
locutor LP, como aquele que tem poder para impedir a guerra, converter a Rússia e
trazer a paz ao mundo.
(4.4) - Vistes o inferno para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para
as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu
Imaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão
muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem
de ofender a Deus, no reinado de Pio IX começará outra pior. Quando
virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o
grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus
crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao
Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao
meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros
sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e
terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo
guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo
113
Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim o
meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a
Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo
de paz. Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé. Isto não o
digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo.
Do lugar de locutor, o sujeito celeste instala como alocutário os videntes –
alocutário coletivo – AlC.
No nível enuncivo, há uma multiplicidade de sujeitos:
a) Deus: delocutário divino – DV (Deus Pai e Jesus Eucarístico)
b) Imaculado Coração: delocutário celeste – DCL (sui-referenciação);
c) Os pecadores: delocutário infrator – DIF;
d) O Santo Padre em cujo título estão incluídos os Papas que conviveram
com o início e o desenrolar das duas guerras mundiais (Pio XI, Bento XV,
Pio XII e ainda João Paulo II) – delocutário pontifical – DP: o último
papa, ou seja, João Paulo II foi quem realizou a consagração solicitada;
e) A Igreja: delocutário eclesial – DE;
f) As nações que sofrerão com a guerra e o povo russo: delocutário coletivo – DC;
g) Francisco, individualmente: delocutário individual - DI.
Essa referência é altamente significativa, visto que nela se manifestam
diversas realidades perceptíveis apenas pela fé:
a) A misericórdia de Deus que vai ao encalce do pecador para oferecer-lhe o
perdão;
b) O poder de intercessão concedido à Virgem Maria;
c) A implantação, por vontade divina, da devoção ao Imaculado Coração;
d) A menção de que as calamidades, como a guerra, a fome e até as
perseguições ao povo de Deus são conseqüências dos pecados da
humanidade (cf. Gn 19, 1-29: Bíblia Sagrada: p. 64 – 65; Jr 5-6: Bíblia
Sagrada: p. 1038 – 1044).
114
e) Anúncio de fatos futuros, como o fim da Primeira Guerra Mundial (1914 –
1918); implantação do Comunismo (1918); deflagração da Segunda
Guerra Mundial (1939 – 1945); perseguição aos cristãos; sofrimento do
Papa, principalmente Bento XV (1914 – 1922) e Pio XII (1939 – 1958) que
conviveram com o flagelo da primeira e segunda guerra mundial,
respectivamente; a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de
Maria, efetuada pelo papa João Paulo II, em 1984; a queda do bloco
soviético, em 1989.
f) A reparação dos pecados por meio da recepção de Jesus na Eucaristia.
A visão do inferno e o relato dos fatos futuros constituem as duas primeiras
partes do chamado Segredo de Fátima redigidos pela Irmã Lúcia em 1941.
Quanto às tribulações que a Igreja teria de sofrer, na pessoa do Papa, de
todo o clero, dos religiosos e dos fiéis, em geral, temos delas uma imagem em
Cechinato (1996, p. 410;414;415)
Durante os anos de conflito o Papa não saiu de Roma. Ele teve a tristeza de ver destruído o antiqüíssimo Mosteiro de Monte Cassino (...) Mais do que os edifícios bombardeados, era a Igreja que se encontrava danificada (...): templos destruídos, mosteiros e seminários fechados, padres dispersos, famílias sem casas, crianças órfãs (...) gente desajustada, pastoral desorientada (...). Houve muitos mártires. Líderes da Igreja foram duramente perseguidos (...)
Na referência, percebemos ainda que Francisco, embora “visse” a Bela
Senhora, não a ouvia. Do contrário não teria sentido a permissão para revelar-lhe o
que para o mundo ainda era segredo:
(4.5) Isso não o digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo.
Nesta terceira fase desse processo enunciativo, o protagonista celeste marca-
se lingüisticamente com cinco elementos que exprimem emissão: meu, eu, virei pedir, meus, me.
Quanto à dimensão receptora, na esfera temporal, o sujeito está indicado
pelas desinências verbais: vistes, virdes, sabei, digais, podeis dizê-lo e pelo
dêitico pronominal vós.
Em se tratando das marcas do delocutário, elas são constituídas pelos
lexemas: pecadores, Deus, Imaculado Coração, almas, guerra, Pio X, Santo
115
Padre, Rússia, Imaculado Coração, Igreja, várias nações, Portugal, Francisco, comunhão reparadora e pelos dêiticos pronominais: as, outra, seus, se, a, meu, meus, ninguém, seu, isto, lo e verbais: salvar-se-ão, vai acabar, deixarem de ofender, etc.
É nesta terceira “aparição” que é ensinada a jaculatória hoje repetida em cada
mistério do terço por aqueles que o rezam:
(4.6) Quando rezardes o terço, dizei depois de cada mistério: “ó meu Jesus,
perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o
céu, principalmente aquelas que mais precisarem”.
No que diz respeito às funções da linguagem, percebemos uma equivalência
entre a função conativa e a expressiva. A primeira, atestam-na o desiderativo querer (quero que venham aqui no dia 13 de mês que vem (...) e a forma imperativa
(continuem a vir (...); Sacrificai-vos (...); Isto não o digais a ninguém) que exprimem
autoridade, ordem, como ainda os pronomes: vossemecê, vos, vosso e
desinências verbais: sacrificai, vistes, perdoai, levai que comprovam a
centralização da linguagem no receptor.
A função expressiva, tanto na voz do sujeito celeste quanto na do sujeito da
esfera temporal, recebe as seguintes marcas:
a) formas pronominais (eu, me, meu, meus – sujeito celeste; me, nos –
sujeito terrestre) e verbais (direi, sou, quero, farei, virei – sujeito celeste;
vimos – sujeito terrestre) que exprimem uma linguagem centrada no
emissor;
b) nomes e expressões que denunciam emotividade e julgamento do locutor:
grande mar de fogo, brasas transparentes, gritos, gemidos, dor, desespero, pavor, formas horríveis e asquerosas, pobres pecadores, guerra, fome, etc.
Mas além dessas duas funções predominantes, notamos também a presença
da função referencial, especialmente nos discursos de caráter descritivo (descrição
do inferno) e narrativo (elevação ao céu do protagonista do mundo espiritual). Esta
última função está assinalada pelos pronomes (ela, lhes, eles, etc) e flexões verbais
116
(abriu, flutuavam, terão, etc) que apontam para o sujeito ausente, o que está à
margem da interlocução, na visão de Benveniste, já mencionado.
No foro da intertextualidade, outras vozes se imiscuem no discurso, além
daquelas inscritas na atividade interlocutória:
a) Ao referir-se a si mesma sob o título de Nossa Senhora do Rosário como
aquela que poderá trazer a paz ao mundo, a personagem celeste introduz-
nos na doutrina católica, segundo a qual a Virgem Maria, depois de Jesus,
ocupa o primeiro lugar na economia da graça, como apregoa a Lumen
Gentiun (2003: p. 126.127):
A Maternidade de Maria, na economia da graça perdura sem cessar (...) De fato, depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salutar, mas pela sua múltipla intercessão, continua a obter-nos os dons da salvação eterna. Com seu amor de mãe, cuida dos irmãos de seu Filho que ainda peregrinam e se debatem entre perigos e angústias, até que sejam conduzidos à Pátria Feliz. (...)
b) A visão do inferno remete-nos a diversos textos bíblicos e ao magistério da
Igreja.
- Mt 13,41.42
O Filho do Homem enviará seus anjos que retirarão do seu reino todos os que
fazem o mal e os lancará na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de
dentes, (Bíblia Sagrada: p. 1300)
- Mt 25,41
Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: retirai-vos de
mim malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e ao seus anjos.
(Bíblia Sagrada, p. 1316)
- Ap 21,8
Os tíbios, os infiéis, os depravados, os homicidas, os impuros, os malfeitores,
os idólatras e todos os mentirosos terão como quinhão o tanque ardente de
fogo e enxofre, a segunda morte. (Bíblia Sagrada, p. 1575)
- Catecismo da Igreja Católica (1993: p. 249):
As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem
imediatamente depois da morte aos infernos, onde sofrem as penas do
117
inferno “o fogo eterno”. A pena principal do inferno consiste na separação
eterna de Deus, o Único em que o homem pode ter a vida e a felicidade para
as quais foi criado e as quais aspira.
c) A oração que, a partir do episódio de Fátima, é repetida por todos os
católicos, na recitação do terço:
Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas
para o céu e socorrei principalmente as que mais precisarem,
aponta para as palavras que cada sacerdote, na missa, fazendo eco a João
Batista (Jo 1, 29b – Bíblia Sagrada, p. 1385), pronuncia antes da Sagrada
Comunhão: Eis o Cordeiro de Deus: Eis aquele que tira o pecado do mundo.
Esse imbricamento de vozes comprova a observação de Orlandi (1986, p.
115) de que todo discurso é um “continuum” que nasce em um discurso precedente
e aponta para um futuro.
Quanto aos atores das cenas “desenroladas” neste misterioso teatro, como já
foi observado, eles preenchem múltiplas posições. Os protagonistas tanto o da
esfera espiritual quanto o da temporal ocupam lugar na interlocução e na referência.
No primeiro nível, ora como locutor L, ora como locutor LP, ora como LC, ora como
variados enunciadores; ou ainda como alocutário AL, alocutário ALP, ALC, e, no
segundo, como sui-referenciador.
O diagrama, abaixo, resume configuracionalmente esse jogo interlocutório:
P R O C E S S O I N T E R L O C U T Ó R I O L O C U T O R A L O C U T Á R I O
“VM” LÚCIA VD “VM” LÚCIA VD
LL LP LL LP LC AL ALP AL ALP ALC
D E L O C U T Á R I O
DV DCL DIF DP DC DI DE
Deus Jesus Imaculado Pecadores PAPAS POVOS FRANCISCO IGREJA
Pai Eucarístico Coração de Maria (sui-referente)
FIGURA 5 – Processo interlocutório no discurso da Terceira Aparição de Fátima.
As mensagens das três últimas “aparições” (agosto, setembro e outubro) não
serão analisadas, pois conforme enunciado no início deste capítulo, nem todos os
textos referentes às “aparições” integralizam o “corpus”. No entanto, elas figurarão
também nos anexos deste trabalho.
O “encontro” do mês de agosto não ocorreu no dia 13 como estava
determinado, nem tão pouco na Cova da Iria como os demais. O palco onde esta
cena foi desenrolada foi Valinhos, uma propriedade de um dos tios das crianças.
Quanto à data, não sabemos se foi o dia 15 ou 19, pois a própria Lúcia não se
lembrava dela com exatidão. Essa alteração de dia e local deveu-se à prisão que
sofreram os três “videntes” operada pelo administrador de Ourém, exatamente no
dia 13 do mês em questão, conforme Machado (1983, p. 51-54).
No último “encontro”, 13 de outubro, a Bela Senhora denominou-se Nossa
Senhora do Rosário e realizou o milagre prometido: o sol girou sobre si mesmo com
grande velocidade e seus raios refletiram-se em multicores nas pessoas e nas
118
119
árvores, provocando espanto e medo numa multidão de mais ou menos setenta mil
pessoas. (cf Machado, 1983, p. 54 – 58).
As atividades aqui consideradas se desenvolveram por meio de um jogo
interacional que abrange instâncias de natureza diferente – temporal e espiritual,
envolvendo vozes resultantes dos diferentes papéis discursivos, exercidos pelos
atores do ato enunciativo e pela instância referida e ainda vozes tomadas a outros
discursos que foram incorporados ao discurso central. Todas essas vozes, porém,
entrelaçadas formam um concerto maestrado por alguém que, segundo o
testemunho da Ir. Lúcia, é a própria mãe de Jesus, o Deus que se fez Homem (de
acordo com o cristianismo).
C A P Í T U L O 4
CRUZAMENTO VOCAL NOS DISCURSOS DE ANGÜERA, ITAPERUNA E JACAREÍ
120
121
4.1. Multiplicidade Vocal nas Mensagens de Angüera
Terminada a análise dos textos referentes às três primeiras “aparições” da
Virgem Maria em Fátima (Portugal), debruçar-nos-emos sobre alguns que dizem
respeito a determinadas “vidências” processadas em terras brasileiras: Angüera
(Feira de Santana-Bahia); Itaperuna (Rio de Janeiro); e Jacareí (São Paulo).
Conforme já enunciado, as mensagens de Angüera intituladas Apelos Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia serão as
primeiras contempladas.
Os fenômenos que ocorrem naquele município baiano, tiveram início no dia
29 de setembro de 1987. O jovem Pedro, que havia completado 18 anos, no dia 29
de julho, voltava do colégio onde fazia o curso de magistério, quando foi acometido
de um desmaio, caindo sobre um formigueiro. Enquanto um colega que o
acompanhava foi comunicar o incidente aos pais do jovem, na Fazenda Malhada
(onde residem), segundo o próprio Pedro, uma moça vestida de branco tomou-o
pela mão, dizendo: Vou tirar-te das formigas.
Ao chegarem ao local, os pais do jovem Pedro encontraram-no deitado à
porta da escola Capitão Domingos Marques, tendo, a seu lado, os livros que trazia
consigo. Conduzido para casa, ao recobrar os sentidos, perguntou pela Irmã que o
havia socorrido, pois julgava ter sido assistido por uma freira da cidade de Feira de
Santana.
No dia seguinte, Pedro foi submetido a exames de ordem neurológica,
psiquiátrica e cardiológica que não acusaram qualquer distúrbio de ordem mental ou
psicológica.
Dois dias depois (1º de outubro), conversando com duas de suas irmãs em
um dos quartos de sua casa, Pedro sofreu novamente a síncope. Passado o
desmaio, disse que a jovem que o livrara das formigas encontrava-se ali, e
solicitava-lhe que rezasse o terço com sua família. Depois, segundo ele, prometendo
voltar, desapareceu.
Por volta das 18h00 do dia 03 do mesmo mês, quando rezava o terço junto
com a família, Pedro “ouviu” alguém chamá-lo no exterior da casa. Reconhecendo a
voz da “moça” que o visitara, saiu e “deslumbrou”, à distância de uns cinqüenta
122
metros, uma intensa luz em forma de arco. Dirigindo-se a esse local, seguido da
mãe e das irmãs (elas julgavam que ele estava louco), parou diante da luz e
ajoelhou-se repentinamente. É que envolta nesta luz, “via” a mesma jovem que lhe
aparecera anteriormente. Disse-lhe ela: - Não tenhas medo, eu sou a mãe de Jesus.
Estou aqui para ajudar os meus pobres filhos que precisam do meu auxilio.
Ditas essas palavras, sumiu inesperadamente.
Daí por diante, as “aparições” acontecem toda semana, sempre às 21h00. A
principio, somente aos sábados, mas depois, passaram a ocorrer também às terças-
feiras.
Por determinação da “visitante”, foi erguida uma cruz numa pequena elevação
junto à fonte. E é precisamente nessa elevação que ela se apresenta ao “vidente”.
Segundo Pedro, a personagem celeste manifesta-se na forma de uma jovem
de 20 anos. Seus olhos são azuis, os cabelos pretos. Quanto à cor da pele, ele não
sabe definir, pois diz jamais ter visto, na terra, algo parecido. Traja-se quase sempre
de branco e, às vezes, porta um manto azul. Não usa calçados.
É uma mulher de extrema beleza!
Paira sempre a uns 30 metros do chão, cingida por uma luz de intenso brilho.
Olha para todos, mas, às vezes, fixa o olhar em determinadas pessoas. Fala o
português culto padrão. Abençoa os peregrinos e seus objetos (terços, água,
imagens, etc).
As mensagens são escritas pelo “vidente”, em folhas de papel oficio presas
numa prancheta, durante a locução e lidas por ele mesmo, logo após o
desaparecimento da personagem.
Alguns fenômenos costumam ocorrer, antes do ocaso solar, nos dias da
“celeste visitação”, como por exemplo: o sol realiza um movimento ora de pulsação,
ora de rotação e toma a forma de objetos sacros (cálice, âmbola, hóstia, etc).
Atualmente, Pedro Regis está casado e tem uma filha. Próximo à fonte onde
acontece a “mística visão”, foi erguida uma igreja com a colaboração dos crentes
que, de toda a nação brasileira, acorrem a Angüera todas as semanas,
especialmente aos sábados.
123
Muitas conversões e curas consideradas milagrosas têm acontecido naquele
espaço da Bahia. Algumas delas serão apresentadas, no final deste trabalho.
Quanto às autoridades eclesiásticas, essas permanecem em silêncio no
tocante aos fatos de Angüera. Embora inúmeros sacerdotes tenham visitado o local
e até celebrado a Santa Missa, o Bispo Diocesano e a Cúria ainda não se
manifestaram sobre o assunto. Esta prudência é a atitude habitual da Igreja, quando
se trata de “revelações particulares” (cf. Apelos Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia, 1993).
Feita essa breve introdução sobre as “aparições” de Angüera, aplicar-nos-
emos à análise do discurso de duas de suas mensagens. Selecionamos aquelas que
apresentam maior evidência em intertextualidade bíblica e eclesial e também com as
proferidas em Fátima (que integram esse “corpus”) e em Medjugorje. Essas últimas,
não obstante serem em língua croata, consideramos indispensável mostrá-las, no
espaço do intertexto, pela estreita relação que existe entre elas e aquelas da
Fazenda Malhada (Angüera).
A estrutura discursiva dos textos de Angüera difere dos de Fátima. Enquanto
nos últimos existe uma ação dialógica, nos primeiros ela se processa sem
alternância de turnos, uma vez que o “vidente” não assume turno, ou seja, ele não
se apossa da fala.
Os discursos produzidos pelo protagonista celeste, na Fazenda Malhada, têm
início e final com um mínimo de variabilidade. São, em geral, introduzidos pelo
epíteto vocativo: Queridos filhos e finalizados com a indicação da fonte das
mensagens (a Santíssima Trindade) seguida de agradecimento, da bênção aos
presentes e da expressão do desejo de paz; como por exemplo esta mensagem de
nº 313 (14/07/90):
Queridos filhos, sou a mãe do Belo Amor (...) Esta é a mensagem que hoje vos transmito em nome da Santíssima Trindade. Obrigada por me terdes permitido reunir-vos aqui por mais uma vez. Eu vos abençôo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Ficai em paz.
124
4.1.1. Mensagem nº 1
Iniciaremos este estudo com o primeiro texto, dentre aqueles que integram a
longa série dos publicados em livros, que é exatamente um dos que fogem ao
padrão introdutório e conclusivo de cada ação dialógica – o do dia 10 de outubro de
1987 (nº 1)
(5) Sou a rainha da paz e quero que todos os meus filhos estejam ao meu
lado, para vencermos um grande mal que pode abater-se sobre o mundo.
Mas para que esse mal não aconteça, deveis rezar e ter fé. Meus filhos,
desejo a conversão de todos, o mais rápido possível. O mundo corre
grandes perigos e, para livrar-vos desses perigos, deveis rezar,
converter-vos e crer na palavra do Criador, pois rezando, encontrareis a
paz para o mundo. Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão
de coração limpo, vão sem fé. Muitos vão apenas para mostrar-se
católicos e estão em grave erro. Deveis seguir um só caminho: o da
verdade. Há filhos que não aprenderam a perdoar, mas deveis perdoar o
vosso próximo. A inimizade é obra de Satanás, e ele sente-se feliz
quando consegue separar um irmão do outro.Por isso, peço de todo o
meu coração que arde em chamas: convertei-vos, rezai e aprendei a
amar o vosso próximo.
As marcas da recepção (os dêiticos pronominais e verbais: vós, vos; deveis rezar, deveis seguir e o vocativo meus filhos) atestam que estamos perante uma
ação interlocutória. O sujeito falante introduz-se no discurso, na qualidade de
locutor L com a auto-identificação – Eu sou a Rainha da Paz, instalando
simultaneamente, o seu parceiro na função de alocutário AL. Esse sujeito ouvinte,
porém, não é apenas aquele que recebe “fisicamente” a mensagem, mas todos os
filhos, ou seja, os católicos (e quero que todos os meus filhos estejam ao meu lado),
entidade essa identificável pela expressão vocativa: Meus filhos (Meus filhos,
desejo a conversão de todos o mais rápido possível).
Ao transpor o limiar da enunciação, o locutor L transfigura-se em locutor LP,
pois se apresenta revestido de volitividade e de ternura maternal (...quero que todos
os meus filhos estejam ao meu lado)I.
125
Além disso, a presença do operador argumentativo mas, equivalente a e
(mas para que esse mal não aconteça (...)), denuncia um outro locutor (cf.
Nascimento, 1990, p 87), ou seja, o locutor LP, que é mãe e deseja que os filhos
sejam crentes, orantes e se convertam, a fim de que possam livrar-se dos perigos
que ameaçam o mundo. Ao convocar, porém, os cristãos (os filhos) para a luta
contra o mal, o protagonista da esfera celeste assume o discurso coletivamente (...
para vencermos o mal), configurando-se, portanto, como locutor coletivo LC.
O sujeito ouvinte, por sua vez, além de alocutário AL é instalado como
alocutário ALP (pessoa no mundo), pois ele:
a) não tem coração limpo, é fingido, é descrente, não perdoa.
b) mas precisa converter-se, crer, rezar, perdoar, ser autêntico e amar.
E esse sujeito ouvinte são todos os filhos, ou seja, os católicos. Logo, um
alocutário coletivo ALC.
(5.1) Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão de coração limpo,
vão sem fé (...). Há filhos que não aprenderam a perdoar, mas vós
deveis perdoar o vosso próximo
No tocante à referência, temos delocutários diversificados:
a) delocutário divino - DV: Deus Pai e Deus Filho
b) delocutário humano - DH: os cristãos
c) delocutário satânico - DST: satanás
Os sinais da emissão são constituídos pela flexão verbal (sou, quero, vencermos, etc) e pelo possessivo (meus); na recepção, as marcas são: os
morfemas verbais (deveis, encontrareis, convertei, etc), os dêiticos pessoais (vós,
vos) e possessivo (vosso) e o vocativo (meus filhos).
Já o delocutário, está assinalado:
a) pelos lexemas:
(5.2) Criador: O mundo corre grandes perigos e, para livrar-vos desses
perigos, deveis rezar, converter-vos e crer na palavra do Criador.
126
(5.3) Verdade: Deveis seguir um só caminho; o da Verdade.
(5.4) Próximo: Há filhos que não aprenderam a perdoar, mas deveis perdoar
o vosso próximo.
(5.5) Satanás / irmão: A inimizade é obra de satanás e ele sente-se feliz
quando separa um irmão do outro.
b) pelos pronomes pessoais ele, se, outro (5.5) Quanto às funções de linguagem, a predominância é da conativa, embora a
expressiva esteja também evidente, identificada pelos pronomes e flexão verbal de
1ª pessoa (meus, meu, sou, quero, etc,) e pelos signos que exprimem emotividade,
especialmente, os que figuram na primeira parte do enunciado: Por isso, peço-vos
de todo o meu coração que arde em chamas.
A centralização da linguagem no “tu” se manifesta pela expressão vocativa
(meus filhos), pelos dêiticos verbais (deveis, rezai, etc) e pronominais (vós, vos -
pessoais; vosso - possessivo) de 2ª pessoa.
(5.6) Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão de coração limpo,
vão sem fé(...). Convertei-vos, rezai e aprendei a perdoar o vosso
próximo
e, principalmente, pelo emprego do imperativo cuja idéia de cominação é
intensificada pelo verbo “dever” que aparece quatro vezes:
(5.7) Mas para que esse mal não aconteça, deveis rezar e ter fé (...). O
mundo corre grandes perigos e, para livrar-vos desses perigos, deveis
rezar, converter-vos e crer na palavra do Criador (...). Deveis seguir um
só caminho: o da Verdade. Há filhos que não sabem perdoar, mas vós
deveis perdoar o vosso próximo (grifo nosso).
Outro fato discursivo que merece ser apontado é o valor performativo de
verbos que, enunciados na 1ª pessoa do singular, realizam a ação que exprimem,
conforme Austin (1990, p 85 - 86) citado anteriormente:
(5.8) Quero que todos os meus filhos estejam ao meu lado (...);
(5.9) ... desejo a conversão de todos o mais rápido possível (...);
(5.10) ... peço de todo o meu coração que arde em chamas (...).
127
Assim sendo, o querer, o desejar e o pedir são atos que se tornam efetivos,
no momento de sua emissão.
No que concerne ao uso da linguagem, são perceptíveis as marcas do dialeto
culto padrão,
a) na concordância (verbal e nominal):
(5.11) Sou a Rainha da Paz e quero que todos os meus filhos estejam ao
meu lado, para vencermos um grande mal que pode abater-se sobre
o mundo.
(5.12) Convertei-vos, rezai e aprendei a perdoar o vosso próximo.
(5.13) Há filhos que não aprenderam a perdoar (...)
(5.14) Meus filhos, muitos de vós vão à Igreja, mas não vão de coração
limpo, vão sem fé.
b) Na colocação dos pronomes átonos “se” e “vos” enclíticos, (pode abater-se;
para livrar-vos;), (sente-se feliz; convertei-vos).
Além disso, embora se trate de uma interação face a face, pois consoante o
“vidente”, ele escreve o que ouve durante o processamento da locução, o texto tem
características de língua escrita, ou seja, não apresenta reiterações, digressões,
paráfrases, etc como acontece com freqüência na estruturação do texto oral (cf.
Fávero 2003, p, 89-95).
No tocante à polifonia, no espaço da intertextualidade, são diversas as vozes
que se introduzem no discurso.
O epíteto “Rainha da Paz” remete às “aparições” de Medjugorje, onde a
personagem celeste se identifica como Rainha da Paz, conforme o excerto abaixo:
Numa das aparições, algum tempo depois, os videntes perguntavam a Nossa
Senhora qual era o seu nome particular, quer dizer, naquelas circunstâncias,
como gostaria de ser chamada:
- “Eu sou a Rainha da Paz. O meu desejo é que se celebre a festa da paz, no
dia 25 de junho”. (Rainha da Paz: Medjugorje: Dez anos de Aparições,
1991, p. 6)
128
A referência ao “coração que arde em chamas” lembra o título de um livreto:
Chama de Amor do Imaculado Coração de Maria como também uma das orações
que ele contém:
Mãe de Deus, derramai sobre a humanidade inteira as graças eficazes da
vossa chama de amor, agora e na hora da nossa morte. Amém.
Ressoam também, na enunciação, vozes provindas da Sagrada Escritura.
a) O apelo à conversão e à oração alude a:
- Eclo 17,21-22
Converte-te ao Senhor, abandona os teus pecados. Ora diante dele e diminui
as ocasiões de pecado; volta para o Senhor, afasta-te de tua injustiça e
detesta o que causa horror a Deus (Bíblia Sagrada, p 886).
- Os 14, 1
Volta Israel, ao Senhor teu Deus, porque foi teu pecado que te fez cair (Bíblia Sagrada, p. 1224).
- Mt 3,1-2;4,17
Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia. Dizia
ele: Fazei penitência porque está próximo o reino dos céus
Desde então, Jesus começou a pregar: fazei penitência, pois o reino dos céus
está próximo (Bíblia Sagrada, p 1286 e 1287).
A exortação para que se busque só o caminho da verdade remete a:
- Jo 8, 31- 32; 14, 5-6
E Jesus dizia aos judeus que nele creram: se permanecerdes na minha
palavra, sereis meus verdadeiros discípulos, conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará.
- Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos
conhecer o caminho? Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho a verdade e a
vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. (Bíblia Sagrada: p 1396. 1404.
1405).
129
A intertextualidade mais evidente, porém, ocorre com as mensagens de
Medjugorje, tanto no tocante à penitencia e ao perdão quanto no que diz respeito
aos perigos que ameaçam a humanidade, conforme podemos perceber no discurso
do dia 25 de junho de 1981 (2ª mensagem):
Paz, paz, paz! Reconciliem-se. O mundo está à beira de uma catástrofe. Se quiser a salvação, deve recuperar a paz, mas a paz tê- la-ão os homens, se se voltarem para Deus (...). Convertam-se! A paz só virá com a conversão. Eis o caminho: comecem a rezar e a jejuar. (Cf. Rainha da Paz – Medjugorje: Dez anos de Aparições, p 6. 7).
Do âmago da enunciação, portanto, emergem as vozes do Eclesiástico, do
profeta Oséias, de João Batista, dos apóstolos Mateus e João e a do próprio Jesus
que se entrelaçam, no cruzamento, de uma outra que se identifica como
“Mensageira da Paz”, tanto na língua croata (Medjugorje) quanto no português
brasileiro (Angüera – Bahia).
Na heterogeneidade “stricto sensu” os sujeitos desempenham as seguintes
funções discursivas:
a) Na emissão: locutor L, locutor LP e locutor LC
b) Na recepção: alocutário AL, alocutário ALP, alocutário ALC.
c) Na referência: delocutário divino DV, delocutário humano DH e delocutário
satânico DST.
Nesta cena discursiva não existe a presença do enunciador e,
consequentemente, do destinatário. A ausência desses sujeitos deve-se ao fato de o
falante usar o discurso em seu próprio nome e não no nome de outro.
A heterogeneidade vocal, aqui examinada apresenta-se configurada no
esquema seguinte.
P R O C E S S O E N U N C I A T I V O
L O C U T O R A L O C U T Á R I O
130
Rainha da Paz Católicos
LL LP LC AL ALP ALC
D E L O C U T Á R I O
DV DH DST
FIGURA 6 – Cruzamento vocal no processo enunciativo do primeiro discurso de Angüera.
4.1.2 Mensagem nº 62
A segunda mensagem de Angüera selecionada para análise é a de nº 68, do
dia 04 de janeiro do ano 2000 – terça feira:
(6) Queridos filhos, fazei a vontade de Deus em cada momento de vossa
existência. Esforçai-vos para que a vossa vida aqui na Terra seja de
contínuos encontros com Jesus. Podeis encontrá-lo no vosso dia-a-dia
na Eucaristia em Corpo, Sangue, Alma e Divindade; na Sagrada
Escritura como palavra de Deus; nos seus ministros como Mestre,
Sacerdote e Pastor e no próximo que encontrais no vosso dia-a-dia.
Deixai que os vossos corações se encham de amor, pois somente assim
a humanidade poderá encontrar o caminho da salvação. Rezai muito
para poderdes aceitar a vontade de Deus. Tende coragem, fé e
esperança. Esta é a mensagem que hoje vos transmito em Nome da
131
Santíssima Trindade. Obrigada por me terdes permitido reunir-vos aqui
por mais uma vez. Eu vos abençoo em Nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Ficai em paz.
Inaugurando esta instância enunciativa, o sujeito assume a função de locutor
e instala os cristãos católicos como alocutários, instando-os a portarem-se sempre
de conformidade com o querer divino:
(6.1) Queridos filhos, fazei a vontade de Deus em cada momento de vossa
existência.
Discurso centrado no receptor, desde seu prólogo, traz linearmente a marca
da enunciação religiosa que tem, como uma de suas características, a
irreversibilidade. No dizer de Orlandi (1983, p. 22 – 24), o discurso religioso é do tipo
monossêmico ou autoritário, pois, nele, o grau de reversibilidade tende a anular-se,
o que o distingue do polêmico em que há equilibro entre monossemia e polissemia e
do lúdico cujo predomínio é da polissemia. Trata-se de um discurso persuasivo que,
de acordo com Citelli (1995, p 32), está revestido de uma força capaz de convencer
o ouvinte e mudar-lhe comportamentos já estabelecidos.
Convém, porém, esclarecer que a autoridade do discurso religioso não
significa autoritarismo. Neste (autoritarismo), a obediência é imposta e, por
conseguinte, a liberdade do interlocutor não é respeitada. No discurso religioso, a
inquestionabilidade provém do fato de ser ele o eco de Deus de quem o locutor é
apenas porta-voz, como assevera o mesmo Citelli (op. Cit: p.48):
Uma das formações discursivas mais explicitamente persuasivas é a religiosa: aqui o paroxismo autoritário chega a tal grau de requinte que o enunciador não pode ser questionado (...). A voz de Deus plasmará todas as outras vozes, inclusive a daquele que fala em seu nome (...)
Ora, se de acordo com esse autor, todo sujeito do discurso religioso fala do
lugar de Deus, o que dizer então, quando esse lugar é ocupado, numa visão de fé,
por um locutor da esfera espiritual? Neste caso, podemos afirmar que sua voz é
altamente autorizada, já que ela vem de cima, conforme atesta a Sagrada Escritura
em Jo 3, 31 -34:
Aquele que vem de cima é superior a todos. Aquele que vem da terra é terreno e fala de coisas terrenas. Aquele que vem do céu é superior a todos. Ele testemunha as coisas que viu e ouviu (...)
132
Aquele que recebe o seu testemunho confirma que Deus é verdadeiro. Com efeito, aquele que Deus enviou fala a linguagem de Deus porque ele concede o Espírito sem medidas. (Bíblia Sagrada, p. 1387)
É o discurso da competência: intransferível e inquestionável como apregoa
Chauí (1980, p. 7).
A centralização do discurso no “tu” está bem perceptível nas marcas
lingüísticas dos dois protagonistas. Enquanto o alocutário é dezenove vezes
assinalado e com variados índices:
a) epíteto vocativo (queridos filhos);
b) morfemas verbais (fazei, esforçai, podeis, deixai, etc.)
c) dêiticos pronominais: pessoais (vos) e possessivos (vosso, vossa,
vossos);
d) largo emprego de imperativos (fazei, rezai, tende, deixai, etc),
o locutor marca-se apenas quatro vezes, no final do discurso, por meio de
duas flexões verbais (transmito, abençoo) e de dois pronomes (me, eu) que
exprimem o “eu”. Tal procedimento constitui evidência do predomínio de uma
linguagem conativa, ou seja, de um discurso persuasivo ou autoritário.
Quanto à dimensão enunciva, figura nela um duplo delocutário divino – (DV)
Jesus e a Santíssima Trindade – e um humano coletivo (DHC) – a humanidade. O
delocutário Jesus, por ter presença multifacetada, apresenta-se numa multiplicidade
de sujeitos:
a) Delocutário Eucarístico (DET), cuja presença em forma de Pão e de Vinho
pode ser não só adorada, mas ainda tomada como alimento, de acordo
com
• as palavras do próprio Jesus:
Eu sou o Pão vivo que desci do céu (...). A minha carne é
verdadeiramente uma comida e o meu sangue verdadeiramente uma
bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em
mim e eu nele. Jo 6,51.55-56 – Bíblia Sagrada, p. 1392),
133
• o magistério da Igreja, codificado no catecismo:
- No Santíssimo Sacramento da Eucaristia estão contidas verdadeiramente
e substancialmente o Corpo e Sangue juntamente com a alma e a
divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, o Cristo todo
(Catecismo da Igreja Católica, 1993, p. 339)
- Na liturgia da Missa, exprimimos nossa fé na presença real de Cristo
sob as espécies de pão e de vinh;, entre outras coisas, dobramos os
joelhos ou inclinamo-nos profundamente em sinal de adoração ao
Senhor. (Catecismo da Igreja Católica, p. 330)
• e diversos cânticos, como por exemplo:
- Glória a Jesus na Hóstia Santa que se consagra sobre o altar e aos
nossos olhos se levanta para o Brasil abençoar.
Que o Santo Sacramento que é o próprio Cristo Jesus.
Seja adorado e seja amado nesta Terra de Santa Cruz (...) (Louvemos
o Senhor – 2005, nº 698, p.80)
- Deus de amor, nós te adoramos neste Sacramento, Corpo e Sangue
que fizeste nosso alimento.
És o Deus escondido,vivo e vencedor. A teus pés depositamos todo o
nosso amor. (Louvemos o Senhor – 2005, nº 754, p.86)
b) Delocutário-Palavra (DP) cuja voz que emana da Sagrada Escritura é
atestada por ela própria, conforme:
• - Jo 1,1-2.9-10.14
No principio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era
Deus. Ele estava no principio junto de Deus(...) e o Verbo era a
verdadeira Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. Estava no
mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu (...)
E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, a glória
que um Filho único recebe de seu Pai, cheio de graça e de verdade
(Bíblia Sagrada, p. 1384)
134
• Hb 1, 3a
Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais
pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho, que constituiu
herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas. Esplendor de sua
glória (de Deus) e imagem do seu ser sustenta o universo com o poder de
sua palavra. (Bíblia Sagrada, p. 1527)
c) Delocutário-ministro (DM), ou seja, presença naqueles que exercem, na
Igreja, a função de ensinar (mestre), de celebrar o culto, administrar os
Sacramentos (Sacerdote) e de pastorear: cuidar do rebanho, dos fiéis
(Pastor), uma vez que eles atuam em nome de Jesus, de acordo com o
dizer do mesmo Cristo em Lc 10,16: Quem vos ouve, a mim ouve; e
quem vos rejeita, a mim rejeita; e quem me rejeita, rejeita aquele que me
enviou (Bíblia Sagrada, p.1361)
Essa tríplice função do Ministro Ordenado (Papa, Bispos e Presbiteros) como
voz do próprio Cristo está consignada no Catecismo da Igreja Católica (1993, p.
366.367):
No serviço eclesial do ministro ordenado é o próprio Cristo que está presente
à sua Igreja enquanto Cabeça de seu corpo, Pastor do seu rebanho, Sumo
Sacerdote do sacrifício redentor, Mestre da Verdade. A Igreja expressa isso
dizendo que o sacerdote, em virtude do sacramento da ordem, age “in
persona Christi Capitis” (na pessoa de Cristo – Cabeça).
d) Delocutário-Irmão (DI) (próximo)
Essa presença de Jesus no próximo é sustentada por ele mesmo,
especialmente em Mt 25, 31-46, ao considerar-se alimentado no faminto,
dessedentado no sedento, vestido no nu, visitado no preso e no enfermo ou não
assistido em tais carências, como também em:
• Jo 17, 22 – 23.
Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu
neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade, e o mundo
reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim (Bíblia
Sagrada,: p. 1408),
135
• At 9, 3-5
Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cerca uma
luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe
dizia: “Saulo, Saulo por que me persegues?” Saulo disse: “Quem és,
Senhor?” Respondeu ele: “Eu sou Jesus a quem tu persegues.” (Bíblia
Sagrada, p. 1423)
Como sabemos, Paulo perseguia os seguidores de Jesus e não a ele
propriamente, pois, no episódio da estrada de Damasco, o Mestre de Nazaré já não
se encontrava mais em seu corpo mortal. Portanto, eram seus irmãos que o fanático
fariseu prendia, torturava e assassinava como ocorreu com Estevão (cf. At 7, 58;
8,1).
O outro sujeito divino da referência é a Santíssima Trindade, em nome de
quem é anunciada a mensagem e o povo é abençoado.
Mas além do delocutário divino, existe outro que é o objeto de dizer: aquele
que precisa ser salvo - a humanidade. Esse sujeito que engloba todos os homens
(cristãos e não cristãos), inclusive os fiéis presentes (alocutário) é um delocutário
coletivo (DHC).
Lingüisticamente, esse sujeito da dimensão enunciva está assinalado pelos
lexemas (Jesus, Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, humanidade) e
pelos dêiticos pronominais (lo e seus).
É importante ressaltarmos que o signo “Deus”, nessa ação discursiva, não
indica apenas o Pai, como é comum acontecer, mas está exprimindo a Família
Divina, já que a discursividade se processa em nome da Trindade.
Além dessa rede vocal interlocutória, nesse ato discursivo, temos ainda a
manifestação de um jogo de vozes “stricto sensu”, ou seja, a multiplicação dos seus
sujeitos, conforme Ducrot (1987), já enunciado. Assim, o protagonista celeste
instalando-se na enunciação como locutor L, responsável pela ação enunciativa,
assume, ao mesmo tempo, a função de locutor LP, visto entrar no discurso
apresentando-se como mãe (Queridos filhos). Desse lugar, ele realiza um ato
injutivo que se traduz pelo sêxtuplo emprego do imperativo.
136
(6.2) ... fazei a vontade de Deus em cada momento de vossa existência.
(6.3) Esforçai-vos para que a vossa vida aqui na Terra seja de contínuos
encontros com Jesus
(6.4) Deixai que os vossos corações se encham de amor (...)
(6.5) Rezai muito para poderdes aceitar a vontade de Deus.
(6.6) Tende coragem, fé e esperança.
(6.7) Ficai em paz.
Outra superposição vocal assentada, nessa ação discursiva, é que, embora o
sujeito falante se instale como locutor, na verdade ele fala do lugar de um Sujeito
Maior – A Santíssima Trindade (cf. Orlandi, 1983, p. 217). Portanto, esta voz que
ressoa na materialidade lingüística não é outra senão a de um enunciador da
Santíssima Trindade (EST), como testificam os enunciados:
(6.7) Esta é a mensagem que hoje vos transmito em nome da Santíssima
Trindade.
(6.8) Eu vos abençoo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Por sua vez, os ouvintes inscritos no discurso primeiramente como alocutário AL e, logo em seguida, na função de alocutário pessoa – do mundo ALP, já que
têm necessidade de esforço pessoal para permanecerem em sintonia com o
Emanuel (Deus Conosco) e de vivenciarem a oração a fim “de fazerem a vontade de
Deus”, nessa instância, são transladados para o papel de destinatário (DEST), visto
serem correlatos do enunciador. São eles, pois, o destinatário da mensagem.
Por se tratar de uma ação discursiva não dialogada, a segmentação desse
discurso em supertópico, tópico e subtópico é facilmente perceptível (cf. Koch,
1995, p. 72). Tendo como supertópico a “obediência a Deus”, o texto abrange a
seqüência de tópicos que constituem instrumentos de adequação da vontade do
sujeito (homem) àquela do Sujeito (Deus) ou de assujeitamento, conforme Orlandi
(1996: p. 242):
... podemos entender que a definição de sujeito aponta para duas direções: a de ser sujeito e a de assujeitar-se. No sujeito se tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre- - um centro de iniciativa, autor e responsável por seus atos – e um ser submetido – sujeito a
137
uma autoridade superior, portanto desprovido de toda liberdade salvo a de aceitar livremente a sua submissão.
Podem ser citados os seguintes tópicos:
a) Contínuos encontros com Jesus, cuja forma de presença constitui os
subtópicos abaixo relacionados:
- Eucaristia: presença em corpo, alma, Sangue e Divindade;
- Sagrada Escritura: como Verbo de Deus;
- Ministros (clero): como Mestre, Sacerdote e Pastor;
- Próximo (irmão) – presença no Corpo Místico;
b) Prática das virtudes teologais5: amor (caridade), fé e esperança.
c) Oração (forma de interação com as pessoas divinas)
d) Coragem (disposição para o exercício da obediência a Deus)
Nesses tópicos e subtópicos podemos, observar uma sinfonia constituída por
vozes que, oriundas da Sagrada Escritura e do Magistério da Igreja, cruzam-se, no
foro da intertextualidade, com aquelas inscritas no processo de interlocução.
No espaço da intertextualidade, merecem destaque as vozes que dizem
respeito ao amor ou caridade, pois no tocante a esse mandamento, são bem
incisivas as palavras de Jesus e de seus apóstolos, como podemos constatar nos
exemplos abaixo:
a) Jo 15, 12
Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo.
(Bíblia Sagrada, p 1405)
b) 1 Cor 13
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver
caridade, sou como o bronze que soa, ou como o sino que retine... Mesmo
que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda
ciência; mesmo que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas,
se não tiver caridade não sou nada. (...) (Bíblia Sagrada, p. 1477). 5 De acordo com a Igreja Católica, as virtudes teologais são dadas por Deus, no Batismo, para capacitar o
cristão no sentido de agir como seus filhos e são em número de três: a fé, a esperança e a caridade.
138
c) 1 Pe 1,22
Em obediência à vontade de Deus, tendes purificado as vossas almas para
praticardes um amor fraterno e sincero. Amai-vos, pois, uns aos outros,
ardentemente e do fundo do coração. (Bíblia Sagrada, p. 1543)
d) 1 Jo 4,7-8
Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo
o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não
conhece a Deus porque Deus é amor. (Bíblia Sagrada, p. 1552)
É, portanto, a voz de Jesus, dos escritores sagrados (evangelistas e
epistólogos) e da Igreja que, de acordo com os teólogos, dá sentido àquela com a
qual se imbrica, conforme: Comissão Episcopal de Doutrina – CED – CNBB
(2000, p. 27)
Aparições e revelações, no contexto da tradição judeo-cristã, não têm sentido por si mesmas. O sentido vem de sua ligação com o plano salvífico de Deus. Portanto, para escapar de uma visão subjetiva da questão é fundamental ver esses fatos à luz da Revelação Normativa.
Comungando com o pensamento de Koch (1984) de que polifonia é
a incorporação, no próprio discurso, das vozes de outros enunciadores (...), ou seja, o coro de vozes que se manifesta normalmente em cada discurso, visto ser o pensamento do outro constitutivo do nosso,
ousamos afirmar que o discurso em questão constitui uma autêntica orquestra
maestrada por uma batuta que, para os que crêem, provém do céu.
A tessitura da superposição de papéis executados pelos sujeitos dessa ação
discursiva aqui considerada, acha-se representada no seguinte gráfico:
J O G O E N U N C I A T I V O
NÍVEL DA EMISSÃO NÍVEL DA RECEPÇÃO
LOCUTOR ENUNCIADOR ALOCUTÁRIO DESTINATÁRIO
“VIRGEM MARIA” “VIRGEM MARIA” CATÓLICOS (filhos) CATÓLICOS
LL LP AL ALP
NÍVEL DA REFERÊNCIA
D E L O CU T Á R I O
DIVINO HUMANO
CATÓLICOS HUMANIDADE
SANTÍSSIMA JESUS TRINDADE EUCARÍSTICO CORPO MÍSTICO (irmãos)
VERBO MINISTRO
FIGURA 7 – Imbricamento vocal na mensagem de Angüera de nº 68.
139
140
4.2. O Discurso das Mensagens de Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor – Rio de Janeiro
A terceira instância do corpus deste trabalho analítico tem como base um dos
cinqüenta e dois discursos da “vidência” de Itaperuna, Rio de Janeiro, onde, de
acordo com o “vidente”, a Virgem Maria denomina-se Mãe do Infinito Amor.
Os fenômenos sobrenaturais ocorridos, naquela cidade fluminense, tiveram
início, numa manhã nublada do dia 24 de maio de 1995. Rodrigo Ladeira Carvalho
(18 anos), filho de Roberto da Silva Carvalho e Nilva de Pinho Ladeira Carvalho,
dirigia-se para a loja de seu pai onde trabalhava, de bicicleta, quando ouviu
interiormente uma voz: Hoje o sol irá raiar. Sem entender o que estava acontecendo,
o jovem continuou seu caminho. Ao chegar ao trabalho, após alguns instantes,
sentiu um frio intenso e tremores no corpo. Julgando estar com febre, Rodrigo foi
procurar seu pai para pedir confirmação daquilo que suspeitava. Mas o senhor
Roberto ao tocar o filho, afirmou que sua temperatura estava normal. Envolto ainda
nessa sensação de calafrio, o jovem Rodrigo ouviu novamente a voz interior. Desta
vez, porém, além de identificar-se como sendo Maria, a mãe de Jesus, a mesma voz
pediu a Rodrigo que se reunisse com sua família para orar pela cura da prima
Luciana, de seis anos, que estava com depressão. A Senhora solicitou ainda que,
durante todo o dia, rezassem a jaculatória: Ave cheia de graça.
Às 17h00 do mesmo dia, Rodrigo reuniu-se com seus pais, sua irmã Ana Paula
(que recebeu mensagens em locução interior de Jesus), Luciana (a criança doente)
e sua mãe, Nelma, e mais uma pessoa chamada Perissência, para, de acordo com a
solicitação da “celeste voz”, intercederem pela cura de Luciana. Era o dia de Nossa
Senhora Auxiliadora.
Durante a oração, o grupo foi envolvido por uma profunda emoção e todos
sentiram perfume de rosas e um vento forte que lhes soprava os pés. Ana Paula,
porém, teve ainda uma “visão” da Mãe do Senhor na forma de uma estampa que
entrava pela janela da sala onde oravam. Neste espaço de tempo, a voz
“comunicou” a Rodrigo que a cura da criança Luciana seria gradativa e que os pais
da mesma teriam que colaborar com o processo, não só com constante oração, mas
ainda confessando-se e participando da Sagrada Eucaristia, durante sete dias
consecutivos. Essas determinações foram postas em prática e a cura aconteceu
141
como fora anunciada. A Virgem pediu ainda a Rodrigo que ele e Ana Paula
jejuassem, por três dias, tomando apenas água. Neste período, indicou nomes de
pessoas que deveriam formar um grupo de oração o qual, mais tarde, recebeu o
nome de “Corações Unidos”. Este grupo reunia-se todos os dias na casa do
“vidente” para a oração do terço. Nestes encontros, Rodrigo “via” a Senhora em
forma de imagem e ouvia as mensagens em seu interior, proferindo-as,
simultaneamente, para serem copiadas.
A partir de 24 de agosto, Ana Paula começou a “visualizar” o Senhor Jesus, em
forma estática e a ouvi-lo também em locução interior.
Ao contrário de Angüera em que as “aparições” acontecem já há mais de 20
anos às terças-feiras e sábados, as de Itaperuna ocorreram num período
relativamente curto: de maio de 1995 a outubro de 1996.
Nos dois últimos “encontros” envolvendo a personagem do céu e as da terra
(em Itaperuna) que ocorreram nos dias 24 de setembro e 24 de outubro,
respectivamente (na fazenda Boa Esperança), a Mãe do Senhor “apresentou-se” a
Rodrigo não mais como uma estampa, mas em forma humana.
De acordo com o dizer do vidente, ela é extremamente bela. Segundo Rodrigo,
em setembro, a Bela Senhora trajava uma vestimenta de cor marfim claro e um
manto marfim mais escuro, com contornos dourados e com pequenos desenhos de
ramos e corações. Amarrado à cintura, trazia uma faixa dourada. Sua cabeça estava
levemente inclinada para a esquerda e, entre as mãos postas à altura do peito, tinha
um terço. Os pés estavam descalços e, embaixo deles, havia uma nuvem ladeada
por pequenos anjos. Já no dia 24 de outubro, a Senhora vestia-se de branco e na
cabeça tinha um véu azul. Trazia nas mãos seu próprio coração, que pulsava,
envolto num rosário de madeira. Presa à cintura portava uma faixa dourada e, na
cabeça, uma coroa de intenso brilho. Sob seus pés descalços, havia uma nuvem
encimada por rosas vermelhas, brancas e amarelas. Todo seu corpo estava
circundado por uma luz tão brilhante que ofuscava os olhos. Seus lábios rosados,
abertos levemente num sorriso, contrastam com a alvura da sua pele. Seu olhar
penetrante transmite paz profunda. Apresentou-se numa nuvem que pairava sobre
uma árvore.
142
Durante o período das “aparições”, o fato foi acompanhado pela Igreja na
pessoa do frei Jorge da Paz (OFM) e líderes da Renovação Carismática Católica.
Esses delegados, tanto o sacerdote quanto os membros do Movimento Carismático
foram incumbidos de tal missão pelo Bispo da Diocese de Campos da qual faz parte
a Igreja de Itaperuna, D. Roberto Gomes Guimarães.
Os irmãos Rodrigo e Ana Paula foram examinados por psicólogo e psiquiatra
(também indicados pelo Bispo) que não encontraram neles qualquer sinal de
distúrbio mental ou emocional.
Atualmente, Rodrigo se encontra no Seminário dos Padres Redentoristas onde
se prepara para professar os votos de pobreza, castidade e obediência e,
posteriormente, para a ordenação sacerdotal.
Quanto à Ana Paula, essa continua sua vida de esposa, mãe, profissional e
cristã engajada nas atividades pastorais de sua paróquia.
Embora tenham cessado as mensagens de Itaperuna, no 4º domingo de cada
mês, os fiéis se reúnem na Fazenda Boa Esperança, próximo à cidade, para a
oração do terço e a reflexão das mensagens recebidas e também para pedir graças
a Nossa Senhora do Infinito Amor.
As fontes dessas informações foram:
• a obra – Nossa Senhora Mãe do Infinito Amor – Itaperuna, RJ. 2001;
• a mãe dos videntes Rodrigo e Ana Paula, a professora aposentada, Nilva de
Pinho Ladeira Carvalho, numa conversa por telefone, no dia 25 de maio de
2005, mais ou menos, às 10h00.
Após esse breve relato introdutório, deter-nos-emos na apreciação analítica de
uma das “mensagens” de Nossa Senhora do Infinito Amor. Optamos pela proferida
no dia 1º de julho de 1995, em virtude do notável cruzamento vocal ai instalado:
(7) Filhos, entreguem suas vidas a mim e eu as conduzirei. Consagrem tudo
aquilo que faz parte de suas vidas ao meu coração; todas as casas,
todos os seus carros, as suas vidas; entreguem-nas a mim. Louvem o
meu Filho a cada segundo de suas vidas. Dito-lhes agora uma oração e
peço que no momento em que estiverem em apuros que me invoquem
nestes termos: “Ó minha mãe, sei que tu és a imaculada, a auxiliadora.
143
Por isso, elevo a minha voz até teus ouvidos e te peço: vem em meu
auxílio, mãe. Meu coração se estremece só de ouvir o teu santo nome.
Por isso, tenho certeza de que irás acolher este meu pedido... Louvo-te ó
mãe, porque és bondosa e porque sei que teu coração está sempre
aberto a me acolher e ajudar”. Filhinhos, o terço é a arma maior que eu
deixei para vocês. Sempre tenham um à mão. Não quero que somente
leiam a Bíblia; quero que ponham cada palavra deste livro em prática.
Assim, alcançarão o céu. O Senhor vive e reina para sempre. Glórias e
graças sejam dadas a cada momento ao Santíssimo Sacramento!
Amém! Aleluia! Amém!
Assim como nas mensagens de Angüera, também nas de Itaperuna, temos
um discurso assimétrico, uma vez que ele é direcionado por um dos interlocutores,
ou seja, o sujeito da esfera celeste cf. Fávero, Andrade e Aquino (1999, p. 15/16). O
sujeito falante já se apossa do discurso transportando-se do lugar de locutor L,
responsável pelo dizer para o de locultor LP, pessoa socialmente constituída, visto
entrar na enunciação como mãe que fala a filhos. Assim, o ouvinte é igualmente
transladado da função de alocutário AL (correlato do locultor L), para a de
alocutário ALP (parceiro do locutor LP).
(7.1) Filhos, entreguem suas vidas a mim e eu as conduzirei.
As marcas do alocutário perpassam toda a superfície textual, desde o vocativo
(filhos, filhinhos) até o emprego dos dêiticos pessoais (lhes, vocês), possessivo
(suas) e verbais (estiverem, invocarem, leiam, ponham, alcançarão). Tais marcas
aliadas ao uso do imperativo (entreguem, consagrem, entreguem, e louvem),
acusam a centralização da linguagem no ouvinte, revelando a presença da função
conativa.
O locutor está assinalado pelos dêiticos de 1º pessoa: pessoais (eu, me, mim),
possessivo (meu) e verbais (conduzirei, dito, deixei, quero) que, associados aos
epítetos vocativos e a outros signos (vida, coração, apuro) que, como esses
vocativos, portam uma forte carga emocional, atestam que a função expressiva da
linguagem tem, no discurso, uma significativa presença. É notória, portanto, a
equivalência entre as duas funções.
144
Ao introduzir o alocutário no processo enunciativo, o sujeito locutor realiza uma
interação com um “tu” coletivo, uma vez que se dirige a “filhos”. Essa pluralização
está sinalizada em toda a enunciação, quer pela flexão dos verbos (invoquem,
ponham, alcançarão, etc), quer pelos pronomes: seus, suas, lhes que, no caso,
não exprimem a terceira pessoa e sim, a segunda, ou seja, identificam o sujeito da
recepção e não o da referência. Portanto, temos aí um alocutário pessoa-do-mundo-coletivo: ALPC.
Na dimensão enunciva, temos um delocutário divino – DV: Jesus,
apresentado com tríplice função:
a) como Filho:
(7.2) Louvem o meu Filho em cada segundo de suas vidas;
b) como Rei e Senhor:
(7.3) O Senhor vive e reina para sempre;
c) como o Santíssimo Sacramento
(7.4) Glórias e graças sejam dadas ao Santíssimo Sacramento.
Digno de especial apreciação é a prece que, embora seja um encaixamento
discursivo não é uma enunciação reportada, uma vez que realizada por um sujeito in
praesentia e não in absentia. Assim sendo, deixa de ser um simulacro de
enunciação, conforme Fiorin (1996, p.40-41), para constituir-se numa enunciação
dentro de outra enunciação. Já que o processo discursivo acontece in loco, aí não
pode existir uma enunciação enunciada. Esse, porém, é um in loco que se projeta
para um futuro indefinido, visto tratar-se de uma prece que será voz de todos os
sujeitos que a ela tiverem acesso e acreditarem na veracidade dos fatos. Por
conseguinte, o que temos aí é, literalmente, um continuum discursivo. E já que é um
discurso-prece, uma de suas características é a performatividade, pois,
indubitavelmente, toda oração, seja louvor, súplica ou agradecimento, constitui uma
ação. Com isso, ampliamos a caracterização atribuída por Orlandi (1996, p. 252) a
certos textos sagrados:
Se tomarmos, por exemplo, os performativos, veremos que há regras estritas para que esses atos de linguagem se constituam efetivamente em performativos: as formas religiosas, para ter validade, têm que ser usadas em situação apropriada e bem
145
configurada. Para realizar esses atos, é preciso estar investido de uma autoridade dada (...) em situações sociais bastante ritualizadas, como acontece nas situações em que se diz: “Eu te batizo” ou “Estão casados”, ou então, em relação a orações que, para ter validade, devem ser feitas em condições precisas.
No nosso entender, não são apenas as fórmulas rituais dos sacramentos e as
orações tradicionais da Igreja que são atos, mas todo discurso cristalizado ou
espontâneo enunciado como prece, pois sempre que um sujeito se apossa da língua
dizendo: “Eu te louvo...” “Eu te adoro...” ou “Eu te peço...” está realizando
verdadeiramente, atos lingüísticos, como mostramos na dissertação de mestrado (cf.
Martins, 1999, p. 92).
Tomada em seu contexto, essa oração assemelha-se ao Pai Nosso e às
orações ensinadas na “terceira aparição” de Fátima (já contemplada neste trabalho),
no que diz respeito à assunção das vozes,
- Eis como deveis rezar: “Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o
vosso nome...” Mt 6, 9 – Bíblia Sagrada, p. 1290.
- ... dizei muitas vezes... “Ó Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos
pecadores...” (Machado, 1983, p. 43 – Fátima)
- Quando rezais o terço, dizei depois de cada mistério: “Ó meu Jesus,
perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno...” (Machado, 1983, p. 48-49 –
Fátima.
- Dito-lhe agora uma oração e peço... que me invoqueis nestes termos: “Ó
minha mãe, sei que tu é a imaculada...” (Itaperuna).
pois, enquanto na enunciação reportada, o sujeito falante incorpora a voz de
um locutor ausente, tornando atual um fato passado, na oração de Jesus e nas três
atribuídas a Maria, o locutor empresta sua voz a um sujeito inserido num aqui e
agora indeterminados. Esses discursos, porém, são diferentes no que se refere ao
sujeito da referência: no “Pai Nosso”, o delocutário é Deus Pai e nas orações de
Fátima, Jesus, o Deus Filho. Portanto, em ambos os casos, o delocutário não se
confunde com o locutor. No discurso-prece, em análise, porém, há uma fusão do eu
com o ele o que caracteriza, uma sui-referenciação.
Estamos, pois, diante de uma enunciação em cujo bojo está instalado um
coral formado por vozes que emergem de vários lugares. O protagonista da esfera
146
celeste que se apossa do discurso como locutor L, introduzindo o interlocutor na
função de alocutário Al translada-se, já no limiar da enunciação, para o lugar de
locutor P (locutor pessoa-do-mundo), transportando assim o “tu”, o protagonista
terrestre, para a função de alocutário ALP (alocutário-pessoa-do-mundo). Mas, ao
ditar a prece, o mesmo protagonista assume também a função de delocutário:
EU(L) = ELA (D) – (cf. pg. 46). Por sua vez, o protagonista da esfera temporal, além
de ocupar o lugar de alocutário AL e o de alocutário ALP (alocutário pessoa-do-
mundo), no discurso intercalado, funciona também como alocutário coletivo, pois o
vidente está representando todos os filhos do locutor, como comprova o pronome
lhes e os verbos do enunciado que introduz a prece: Dito-lhes agora uma oração e
peço que no momento que estiverem em apuros que me invoquem nestes termos...
Além dessas vozes, no espaço da intertextualidade, outras se inserem, neste
processo enunciativo:
a) O enunciado “Louvem o meu Filho a cada segundo de suas vidas” que
expressa a maternidade divina remete às vozes que proclamam Maria, mãe
de Jesus, como por exemplo:
- Lc 1, 30-31:
O anjo disse-lhe: não temas, Maria, pois encontrastes graça diante de Deus.
Eis que conceberás e darás à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus.
(Bíblia Sagrada, p. 1346).
- Lc1, 41-43:
Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu
seio, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo e exclamou em alta voz: Bendita
és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre. Donde me vem esta
honra de vir a mim, a mãe do meu Senhor? (Bíblia Sagrada, p. 1341).
b) A consideração a respeito do terço lembra as “aparições”, em Fátima –
Portugal, pois em todas elas sempre há a recomendação de orar o terço
(cf. Machado, 1983).
- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço
todos os dias, e que aprendais a ler... (segunda “aparição”)
147
- Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar
o terço todos os dias em honra de Nossa Senhora do Rosário... (terceira
“aparição”)
c) Temos remissões a:
- Dt 17, 19:
Conservará esta cópia consigo e a lerá todos os dias de sua vida para
aprender a temer o Senhor, seu Deus e a observar todos os artigos desta lei,
pondo em prática todas as suas prescrições. (Bíblia Sagrada, p. 234).
- Js 1,8:
Traze sempre na boca as palavras deste livro da lei, medita-o dia e noite,
cuidando de fazer tudo o que nele está escrito; assim prosperarás em teus
caminhos e serás bem sucedido. (Bíblia Sagrada, p. 253).
- Mt 7,24:
Aquele, pois que ouve estas minhas palavras e as põe em prática é
semelhante a um homem prudente, que edifica sua casa sobre rocha. (Bíblia Sagrada: p. 1291).
- Tg 1,22:
Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes; isto equivaleria a vos
enganardes a vós mesmos. (Bíblia Sagrada: p. 1539);
no enunciado:
(7.5) Não quero que somente leiam a Bíblia; quero que ponham cada
palavra deste livro em prática. Assim, alcançarão o céu.
Já a afirmação: O Senhor vive e reina para sempre faz emergir diversidades
de vozes bíblicas e eclesiais que proclamam o reinado e o senhorio eterno de Jesus.
A primeira é a do mensageiro Gabriel ecoada pela voz do evangelista Lucas:
1, 32-33: Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe
dará o trono de seu pai Davi, e reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino
não terá fim (Bíblia Sagrada, p. 1346).
148
Outra é a voz do próprio Jesus que, no seu julgamento, diante de Pilatos
proclama solenemente o seu reinado – Jo 18, 37:
Perguntou-lhe então Pilatos: “És, porventura Rei?” Respondeu Jesus: “Sim, eu sou Rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz”. (Bíblia Sagrada, p. 1409).
No contexto eclesial, merece destaque a festa de Jesus Cristo, Rei do Universo, celebrada pela Igreja Católica, no último domingo litúrgico. Como
exemplo desta aclamação da realeza de Jesus, podem ser citadas as duas primeiras
estrofes do hino das Vésperas I, rezadas por todo clero, religiosos e muitos leigos,
no sábado que antecede o domingo de Cristo Rei:
Cristo rei, sois dos séculos Príncipe,
Soberano e Senhor das nações!
O´ juiz, só a vós é devido
Julgar mentes, julgar corações.
Multidões reverentes no céu,
Vos adoram e cantam louvores.
Nós também proclamamos que sois
Reis dos Reis e Senhor dos Senhores.
(Oração das Horas, 1996, p. 726)
Quanto ao enunciado:
(7.6) Glórias e graças sejam dados a cada momento ao Santíssimo
Sacramento,
é ele o louvor comum a todo católico, desde o Sumo Pontífice ao fiel não-
escolarizado, diante da Hóstia e do Vinho consagrados, ou seja, a todos os que
acreditam no milagre da transubstanciação (mudança da substância do pão e do
vinho no Corpo e Sangue de Jesus Cristo).
Outro fato relevante é o nome assumido pela celeste personagem – Nossa Senhora Mãe de infinito Amor. Este título representa o “novo”, pois em todos
aqueles dados pela igreja à Virgem Maria ou ouvidos por “videntes”, ele não
figurava. É um “novo”, porém, que parafraseia aquele que exprime a mais alta
149
prerrogativa da Virgem de Nazaré – Mãe de Deus. Sim, porque somente Deus foi, é
e será sempre amor infinito.
Notável também, neste processo enunciativo, são os diversos traços do
discurso religioso, como:
a) Emprego do imperativo e do vocativo.
(7.7) Filhos, entreguem suas vidas a mim e eu as conduzirei. Consagrem tudo
aquilo que faz parte de suas vidas ao meu coração (...)
b) A presença de metáfora, como: “conduzirei” e “coração” (na citação acima).
c) Uso de uma expressão, mais ou menos cristalizada: O´ minha mãe” (cf.
Orlandi, 1996, p. 247. 529).
No que diz respeito ao nível de linguagem, é perceptível o uso do registro
formal que se manifesta, principalmente:
a) pela harmonização entre signos determinantes e determinados. Ex.:
(7.8) Louvem (vocês) a meu Filho a cada segundo de suas vidas.
(7.9) Sei que tu és a Imaculada.
b) pelo emprego da forma pronominal nas (entreguem-nas a mim), alomorfe
de os;
c) pelo uso da preposição de no enunciado:
(7.10) Por isso, tenho certeza de que irás atender este meu pedido.
Quanto ao jogo polifônico stricto sensu instalado, neste processo discursivo,
apresentamo-lo, configurativamente, no esquema abaixo:
E N U N C I A Ç Ã O
C R U Z A M E N T O V O C A L
150
LOCUTOR ALOCUTÁRIO
L LP AL ALP ALPC N. S. Mãe N. S. Mãe Católicos Católicos Católicos do Infinito do Infinito Amor Amor
D E L O C U T Á R I O
JESUS N. S. Mãe do Infinito Amor (Sui-referenciação)
Filho Rei e Senhor Eucarístico
FIGURA 8 – Cruzamento vocal no discurso das mensagens de Itaperuna.
4.3. A Discursividade das Mensagens da Rainha da Paz em Jacareí – São Paulo
Os fenômenos místicos que se realizam na cidade de Jacareí, desde 1991,
têm muita semelhança com os de Fátima, Angüera e Medjugorje, já referidos neste
trabalho.
Na cidade paulistana, o “vidente” é um jovem chamado Marcos Tadeu, cujo
nascimento ocorreu no dia 12 de fevereiro de 1977.
151
Cinco dias antes de completar 14 anos, ou seja, no dia 7 de fevereiro de
1991, numa quinta-feira, o adolescente Marcos Tadeu, voltando do centro da cidade
onde fora fazer algumas compras, entrou na Matriz da Imaculada Conceição.
Ajoelhou-se e, ao terminar as orações do Pai Nosso, Ave Maria e Glória que,
segundo ele, eram as únicas que sabia rezar, sentiu uma brisa suave que agitava
sua roupa, ao mesmo tempo em que viu acima do altar uma cruz mais clara que o
sol, em forma de globo, e ouviu uma voz feminina doce e terna:
Meu filho, meu filho! É preciso santificar-se. A santidade é um caminho difícil,
mas o seu fim é real e glorioso.
Assustado, sem entender o que estava acontecendo, Marcos Tadeu, dirigiu-
se para sua casa, prometendo a si mesmo jamais revelar a ninguém a experiência
que tivera. No entanto, daí por diante, começou a notar que algo diferente estava
ocorrendo em seu interior: sentia-se envolvido numa intensa paz e fortemente
impelido para a oração. Encontrando, então, um terço em uma das gavetas de sua
mãe, passou a rezá-lo várias vezes por dia.
Doze dias após o fenômeno a que assistiu na Matriz, Marcos Tadeu rezava o
terço na sala de sua casa, quando vislumbrou novamente aquela luz “mais brilhante
que o sol” e, saindo do interior, dessa luz, uma jovem aparentando uns 18 anos que
lhe fazia sinal para aproximar-se dela. Mas, como o medo o retinha imóvel, a
jovem encaminhou-se até o adolescente sorrindo. Tomando coragem, Marcos
Tadeu, perguntou-lhe: “Quem é a senhora?” Mas, ao invés de dar a resposta
esperada, a “visitante” apenas sorriu. O adolescente fez, então, nova pergunta:
“Deseja que eu esteja aqui com a senhora?” Desta vez, a resposta foi dada: “Sim,
meu filho, porque eu o amo. Mas não quero que venha sozinho; traga aqui muitos
dos meus filhos que eu amo”. Em seguida, a personagem desapareceu e tudo voltou
ao normal. Dessa vez, porém, Marcos Tadeu, não suportando mais conservar em
segredo tudo o que “vira” e “ouvira”, contou para uma tia. Esta aconselhou-o a
aspergir a personagem misteriosa com água benta, caso ela voltasse. E em agosto
do mesmo ano, a “Figura Luminosa” voltou, parando diante do “vidente” que,
seguindo o conselho da tia, respingou-a com a água benta que trazia num pequeno
vidro, dizendo: “Se vem de Deus, fique! Senão, vá embora!” A Bela jovem, porém,
152
reagiu sorrindo e disse: “Meu filho, eu não sou do mal. Eu vim do céu!” Ditas essas
palavras, desapareceu.
Na quarta “aparição” que se deu no dia 18 de setembro do mesmo ano, às
22h30m, quando Marcos Tadeu voltava da escola, a Personagem Celeste apenas
sorriu e desapareceu sem nada dizer.
Na quinta, que ocorreu na véspera do Natal do mesmo ano de 1991, ela
pediu ao “vidente” para consagrar-se ao Imaculado Coração de Maria e para trilhar o
caminho da penitência e da oração, o que foi posto em prática, imediatamente, por
aquele adolescente.
Após o Natal, passaram-se cinco meses sem que a nobre “visita”
acontecesse. No dia 07 de maio de 1992, porém, a Jovem Celeste voltou a se
comunicar com Marcos Tadeu. Mas, nesta sexta visita e nas outras que a seguiram,
até a décima quinta, ela não revelou sua identidade, embora o jovem continuasse
perguntando o seu nome. Somente no décimo quinto encontro que aconteceu no dia
19 de fevereiro de 1993, foi que, surgindo durante a oração que o “vidente” fazia
com alguns amigos, disse:
Sou a Senhora da Paz. Sou a mãe de Jesus. Meus filhos, desejo-lhes a
minha paz! Rezem! Rezem! Peçam perdão pelos pecadores. Rezem com o
coração. ”Abram-se a Deus e ao seu amor! Vivam felizes e que a paz encha
suas vidas. Plantem a paz em vós mesmos e difundam aos outros esta paz.
Eu os amo e quero dar-lhes a minha paz do céu. Eu os abençoo..
De posse da confirmação de que a pessoa que o “visitava” era realmente a
Mãe do Senhor Jesus, Marcos Tadeu sentiu-se mais seguro não só para falar sobre
o assunto como também para reunir-se em oração com aqueles que foram tocados
pelas mensagens.
Como acontece em Medjugorje e em Angüera, de acordo com o vidente, os
fenômenos místicos em Jacareí continuam e são muitos os sinais que os confirmam.
Elencaremos aqui alguns dos mais notáveis:
• No dia 05 de março de 1993, uma roseira da casa de Marcos Tadeu
amanheceu florida, embora na noite anterior ela estivesse totalmente
desprovida de flores. Esse fenômeno havia sido anunciado por “Nossa
153
Senhora”, no dia 27 de fevereiro, ou seja, uma semana antes de sua
realização.
• Na festa dos Anjos da Guarda do mesmo ano, dia 02 de outubro, a Virgem
se fez presente num monte próximo à casa do “vidente”, como havia
notificado. Era noite, quando Marcos Tadeu e um grupo de fiéis
começaram a galgar a encosta do monte, rezando o rosário. À certa altura,
ouviram vozes confusas e agitadas. Chegando ao cume do monte, onde
iriam aguardar a “ Excelsa Visitante”, foram agredidos com palavras e
pedradas por um estranho grupo que foi identificado como constituído por
protestantes. De repente, às 22h30m, surge a “Rainha do Universo” e,
apontando para o céu, ordenou que todos olhassem para a lua. Esse astro
tomou uma coloração avermelhada e, aumentando consideravelmente o
seu diâmetro, parecia vir descendo em direção à Terra. O espetáculo
provocou pânico na maioria dos presentes: os protestantes saíram
correndo morro abaixo e muitos católicos rezavam e choravam de medo.
Em seguida, a “Rainha” apontou novamente para a lua e tudo voltou à
normalidade. Essas “aparições” no monte continuam acontecendo todas
as quintas-feiras, às 22h30m.
No dia 21 de novembro de 1999, no novo local das “aparições” que foi
denominado de Santuário das aparições de Jesus e Maria (Marcos Tadeu tem
visões também de Jesus Cristo), a Virgem “aparece” sobre uma colina. Além do
“vidente” e de um grupo de devotos de Jacareí, estavam presentes vários peregrinos
de outros municípios.
Segundo o “vidente”, a Virgem Maria é belíssima. Apresenta ter uns 18 anos.
Seu rosto é suave e sereno. Tem os cabelos negros e seus olhos são de um azul
fulgurante. A voz é melodiosa, carinhosa e materna. Traja um vestido cor de cinza
azulado e um manto de intensa alvura. Na cintura traz uma larga faixa branca atada
à frente e, na cabeça, uma coroa de doze estrelas. Tem sempre nas mãos um longo
terço de contas luminosas. Durante o tempo de sua permanência na Terra, fica
sobre uma nuvem branca que não toca o chão. De seu corpo exala um delicioso
perfume de rosas.
154
De acordo com Marcos Tadeu, ele pode tocá-la e até beijá-la, pois a Mãe de
Jesus lhe “aparece” em seu corpo glorioso (cf. Marcos Tadeu, 2000).
Após este breve relato introdutório, fixar-nos-emos na análise de uma das
mensagens que tem, como palco, a cidade de Jacareí. Escolhemos a do dia 19 de
março de 1993, festa de São José, por ter um conteúdo diferente daquelas já
contempladas, neste trabalho. Enquanto as outras tratam de conversão, de
penitência, da oração, essa última exalta o justo esposo de Maria Virgem e pai
adotivo do Homem Deus:
(8) Meus queridos filhos, hoje a Igreja celebra a festa do meu esposo São
José. O´como São José era fiel! Eu o via com amor, dedicado no trabalho
e na guarda da nossa sagrada família. Via-o no seu trabalho humilde,
pobre e penoso, ensinando a Jesus o seu oficio de carpinteiro. O primeiro
exemplo de José é a confiança em Deus. Ele não ousou difamar-me ante
a minha gravidez miraculosa. Retirou-se à parte e se entregou à
meditação e à oração, até que veio o Anjo do Senhor e lhe explicou o
plano divino. Depois, recebeu-me como esposa, dando-me o amor e
educando e guardando a vida de Jesus. Ele foi o sustentáculo precioso no
nascimento de Jesus em Belém, na fuga para o Egito e na perda no
templo. Nenhuma reclamação sua ao longo do caminho! Sigam o exemplo
de José! Recolham-se à parte para orar e meditar. Só assim poderão
saber o plano que Deus tem para cada um. Imitem José, dedicado
operário! Cumpram com amor todos os seus trabalhos por mais pequenos
e insignificantes que sejam (...), pois o trabalho feito com amor comove o
coração de Deus. Hoje na Festa de São José, meu castíssimo esposo, eu
os abençôo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
No jogo enunciativo aqui instanciado, o sujeito falante, instaurando-se como
locutor, e o seu parceiro na função de alocutário, inscreve ao mesmo tempo, um
duplo sujeito da referência (a Igreja e São José ).
(8.1) Meus queridos filhos, hoje a Igreja celebra a festa de meu esposo São
José.
Diferente dos outros discursos já analisados cuja concentração está no
locutor ou no alocutário, neste é a figura do delocutário que aparece em relevo.
155
Embora recheado de descrições, o discurso não se apresenta envolto numa
atmosfera de estaticidade, por se tratar de caracterização relativa ao passado. O
emprego abundante de verbos no pretérito (era, via, ousou, etc) confere-lhe o
dinamismo da narração sem deixar de projetar a cena descrita. Portanto, podemos
caracterizar essa estrutura discursiva como narrativo- descritiva.
Uma vez que a linguagem está centrada no referente, no tocante às suas
funções, a proeminência é da função referencial. Confirmam-na, os dêiticos
pronominais (o, seu, ele, se, lhe) e verbais (retirou, entregou, recebeu, ousou,
difamar, foi). Não obstante tal predominância, as funções emotiva e conativa
marcam também significativamente o discurso. A primeira representa-se pelos
pronomes pessoais (eu, me) e possessivos (meus, meu, nossa, minha) e pela
desinência verbal (abençoo).
Já a função conativa, está sinalizada:
a) pela expressão vocativa que abre o discurso (Meus queridos filhos);
b) pelos dêiticos pronominais (se, os);
c) pela forma imperativa (Sigam, Recolham-se, Imitem, Cumpram);
d) pela flexão do auxiliar “poderão” (poderão saber).
É na referência também que se concentra a intertextualidade bíblico-eclesial,
claramente perceptível na superfície do texto, como por exemplo:
- A alusão ao ensinamento da profissão de carpinteiro a Jesus por José
encontra eco nas duas primeiras estrofes do Hino de Laudes (Liturgia das Horas)
da Festa de São José Operário, em 1º de maio:
Anuncia a aurora o dia,
Chama todos ao trabalho;
Como outrora em Nazaré,
Já se escutam serra e malho.
Salve, ó chefe de família!
Que mistério tão profundo
Ver que ensinas teu oficio
A quem fez e salva o mundo.
(Oração das Horas, p.1243).
156
- A referência à postura assumida por José perante a concepção milagrosa
de Jesus, remete-nos a Mt. 1,18-25:
Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José.
Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito
Santo. José seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la,
resolveu rejeitá-la secretamente. Enquanto assim pensava, eis que um anjo
do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José; filho de Davi, não
temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do
Espírito Santo. Ela dará à luz um filho a quem porás o nome de Jesus,
porque ele salvará o seu povo de seus pecados (...)” Despertando, José fez
como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua
esposa (...). __ (Bíblia Sagrada, p. 1285)
- O excerto
(8.2) Ele foi sustentáculo precioso no nascimento de Jesus em Belém, na
fuga para o Egito e na sua perda no templo,
reporta a: Lc 2,1 – 7 (Bíblia Sagrada, p. 1347 - 1348); Mt 2, 13 – 15 (Bíblia Sagrada: p. 1285 – 1286); Lc 2, 41 – 52 (Bíblia Sagrada, p.1349), respectivamente
Já as palavras:
(8.3) -Recolham-se à parte para orar e meditar
fazem alusão a um dos ensinamentos de Jesus inserido no Sermão da
Montanha: Quando orardes, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em
segredo; e teu Pai que vê num lugar oculto, recompensar-te-á (Mt 6,6 – Bíblia
Sagrada, p. 1290).
No tocante à polifonia “stricto sensu”, podemos perceber, nesta cena
discursiva, um curioso imbricamento de vozes. A personagem celeste,
apresentando-se como esposa e mãe, além da função de locutor L, assume
também o papel de locutor LP e instala seu interlocutor primeiro como alocutário AL e depois, como alocutário ALP: meus queridos filhos...
Mas, ao enunciar que a igreja celebra a Festa de São José, esse protagonista
celeste fala do lugar da Igreja militante, o que o caracteriza como enunciador eclesial – EE: ...hoje a Igreja celebra a festa do meu esposo São José.
157
Fechando o discurso,o sujeito celeste abençoa o alocutário “em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo”. Ora, se a bênção é concedida em nome da Santíssima
Trindade, é dela que procede. Neste caso, pois, o sujeito da esfera celeste
configura-se como enunciador da Santíssima Trindade – EST.
Na referência, além de José - delocutário sagrado (DS) e da Igreja -
delocutário eclesial (D E) aparecem ainda o Anjo – delocutário angelical (DA), além
de Deus Pai e Deus Filho – delocutário divino (DV).
O sujeito da emissão está sinalizado pelos pronomes pessoais: eu e me (Eu
o via com amor; Eu os abençoo; ele não ousou difamar-me; Depois recebeu-me
como esposa, dando-me amor) e possessivos: meus, nossa, minha (Meus queridos
filhos; meu esposo; nossa sagrada família; minha gravidez miraculosa) e ainda pela
flexão verbal: abençoo.
Quanto ao alocutário, ele está representado lingüisticamente pelo vocativo:
(Meus queridos filhos), pela forma imperativa que ocorre quatro vezes (Sigam o
exemplo de José; Recolham-se à parte; Imitem José; Cumpram com amor todos os
seus trabalhos) e também pela flexão do verbo poderão saber e dos dêiticos
pessoais: se e o (Recolham-se; eu os abençoo) que, no contexto, estão
identificando o sujeito da recepção e não o da referência.
No tocante ao delocutário, as marcas que o identificam são os lexemas
(Igreja, José, Deus, Anjo do Senhor, Jesus) e os dêiticos pronominais: o (Ex: via o); seu (Ex: seu ofício); ele (Ex: Ele não ousou); se (Ex: Retirou-se); lhe (Ex: lhe
explicou); sua (sua perda; reclamação sua).
Apenas o determinante do nome “perda” refere-se a Jesus: a perda de Jesus
no Templo; todas as demais são alusivas ao delocutário José o que comprova ser
ele o centro do discurso.
No diagrama, a seguir, apresentamos, configuracionalmente, o cruzamento
vocal analisado.
LOCUTOR ENUNCIADOR ALOCUTÁRIO
E M I S S Ã O R E C E P Ç Ã O
J O G O E N U N C I A T I V O
L LP EE EST AL ALP N. Sra. Rainha N.Sra. Rainha N.Sra Rainha N.Sra. Rainha Filhos Filhos
da Paz da Paz da Paz da Paz
158
DS DA DE DV
José Anjo Igreja Santíssima Trindade Pai Filho Espírito Santo
R E F E R Ê N C I A
D E L O C U T Á R I O
FIGURA 9 – Multiplicação de sujeito nas mensagens de Nossa Senhora Rainha da Paz em
Jacareí (São Paulo)
O objeto de dizer, o delocutário sagrado (José), é alvo de encômios. Por
isso, vários recursos retóricos são empregados na orientação de argumentos que
testificam as virtudes do pai adotivo de Jesus.
O primeiro deles é a lexicografia atributiva, pois conforme afirma Bellenger
(1987, p.27), “Todos os qualificativos têm sobre as palavras o papel do martelo que
desce sobre o prego.”
Portanto, a adjetivação aplicada a José aponta-o como senhor de um caráter
sedimentado:
a) na fidelidade - Ó como São José era fiel!
159
b) na dedicação ao trabalho e à família - Eu o via com amor, dedicado no
trabalho e na guarda de nossa sagrada família;
c) na intrepidez e responsabilidade - Via-o em seu trabalho humilde, pobre
e penoso ensinando a Jesus o seu oficio de carpinteiro;
d) numa firme confiança – O primeiro exemplo de José é a confiança em
Deus;
e) no altruísmo - ele não ousou difamar-me (...);
f) no recolhimento místico – Retirou-se à parte e se entregou à oração e
meditação;
g) na escuta à voz de Deus – Depois, recebeu-me como esposa;
h) na generosidade – Ele foi o sustentáculo precioso;
i) no silêncio – Nenhuma reclamação(...).
O segundo recurso é o do testemunho, mais significativo que o anterior, pois
no dizer de Pedrini (1995, p. 101),
... o testemunho é uma grande força para convencer, para confirmar. Um testemunho convence mais, muito mais do que palestras, livros ou escritos. Exatamente porque o testemunho é prova, é fato, e traz a força da experiência pessoal, da certeza experimentada, de verdade presenciada, comprovada pessoalmente.
É exatamente o que acontece em relação às virtudes do delocutário sagrado
(José): o locutor fala do que viu, ou seja, de uma verdade pessoalmente
comprovada: Eu o via.
Essa firmeza e autenticidade do sujeito da referência provoca no sujeito
falante um efeito de retorno ao passado que se apresenta imerso numa atmosfera
de enlevo, atmosfera esta que se manifesta, principalmente em três enunciados:
a) Naquele que revela o envolvimento afetivo do locutor – Eu o via com
amor;
b) No enunciado exclamativo – Ó como José era fiel!
c) No enunciado de estrutura nominal – Nenhuma reclamação sua ao longo
do caminho!
160
Os dois últimos enunciados produzem uma sensação de estaticidade como
acontece com a fotografia, o que resulta numa fixação no objeto rememorado ou
numa prazerosa contemplação.
O argumento, porém, mais forte, mais significante em prol da magnanimidade
de José é, sem duvida, a paternidade (segundo a lei) do Verbo Encarnado e o fato
de ser esposo Daquela que concebeu , deu à luz e amamentou o Filho de Deus.
Outra realização lingüística digna de destaque diz respeito ao emprego do
performativo explicito consignado no ato de abençoar:
(8.4) - Hoje, na festa de José, meu castíssimo esposo, eu os abençôo em
Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
O quadro vocal aqui apresentado, como aconteceu nos discursos apreciados
anteriormente, constitui-se de vozes acionadas pelos diferentes papéis assumidos
pelos sujeitos da enunciação.
Com a análise de umas das mensagens que tem como cenário a paulistana
cidade de Jacareí, chegamos ao fim de um mergulho na tecelagem vocal de
algumas das “mensagens” da Virgem Maria codificadas em Língua Portuguesa.
Neste último capítulo, procuramos examinar quatro discursos de “vidências”
da contemporaneidade e produzidos em solo brasileiro: dois em Angüera
(1987/2000); um de Itaperuna (1995) e um em Jacareí (1993). Embora esses
discursos originados no Brasil distem, de modo considerável, diacrônica e
geograficamente daqueles de além-mar, existem notáveis semelhanças entre eles,
no tocante:
a) ao jogo polifônico aí engendrado (polifonia “stricto sensu” e
intertextualidade);
b) ao conteúdo central das mensagens (amor, oração, penitência e
conversão);
c) aos interactantes (“vidente” e a “Virgem Maria”) e sujeitos da referência
mais freqüentes (Deus em suas Tríplices Pessoas, Igreja, o ser humano
= pecadores, devotos, filhos);
161
d) à doutrina da Igreja Católica (céu, inferno e purgatório; maternidade e
poder de intercessão de Maria, a Mãe de Jesus; Eucaristia).
e) Ao eco à voz da Sagrada Escritura, especialmente do Novo Testamento.
No entanto, um cotejo entre os discursos dos dois países, sob outro olhar,
revela que há neles algumas diferenças, embora sem muita signicação, como por
exemplo: nos discursos contemporâneos, a interação se processa sem alternância
de turnos, enquanto nos lusitanos ocorre a dialogicidade . Esses últimos têm como
sujeito da recepção os três videntes (Lúcia, Francisco e Jacinta), como testifica a
locução: Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos (...). Depois vos
direi quem sou e o que quero (Cf. p. 91); já no Brasil, o alocutário são todos os
católicos, ou seja, os filhos do locutor, conforme atesta o vocativo “filhos” que
aparece nas quatro mensagens (cf. ps. 123, 131, 143 e 155).
Todas essas características, porém, tanto as comuns aos discursos das duas
nações, quanto aquelas peculiares a cada um deles apontam para o objeto que
constitui a hipótese desta tese – o discurso da “vidência”, em qualquer época ou
nação, reflete e propaga a ideologia da Igreja Católica.
162
CONCLUSÃO
Nesta atividade investigativa norteada pelo tema: O Discurso da Vidência –
Cruzamento Vocal na Interlocução entre Céu e Terra, assumimos como meta
prioritária mostrar o “rosto” dessa interlocução, extraindo do discurso as vozes
internas que aí se cruzam, quer seja na interação (locutor/enunciador X
alocutário/destinatário), quer seja na referência (delocutário) como também aquelas
externas que se imiscuem na enunciação pela via da intertextualidade.
O elemento desencadeador desse percurso analítico foi a hipótese de que o
discurso da “vidência” espelha o da Igreja Católica, em sua ideologia, uma vez que
tal discurso está impregnado da doutrina e dos ensinamentos dessa Instituição. Para
fundamentar essa suposição, procuramos demonstrar que a crença na possibilidade
de um diálogo entre os mundos espiritual e temporal tem suas raízes no Antigo
Testamento e atravessa o povo da Nova Aliança, destacando dentre essas
teofanias, a vocação do patriarca Abraão, a anunciação do nascimento do Messias e
as manifestações de Jesus, após a sua ressurreição. E, como herdeira dessa fé
bíblica, a Igreja pós-apostólica sempre aceitou que céu e terra podem interagir não
só no plano espiritual, mas visivelmente também. Sendo assim, ela estabelece
critérios para o julgamento da autenticidade de tais fenômenos e, a partir de sua
comprovação, institui devoções (Sagrado Coração de Jesus, Medalha Milagrosa,
Imaculado Coração de Maria, Divina Misericórdia), constrói Santuários (Fátima,
Lourdes, Guadalupe,) canoniza videntes (Margarida Alacoc, Bernadete Soubirous ).
No transcurso rumo aos objetivos visados, elegemos como procedimentos
metodológicos:
1) entrevista com alguns dos personagens envolvidos nos fenômenos
expostos nos textos que compõem o “corpus” do trabalho;
2) leitura reflexiva de livros, revistas, páginas da internet e fitas (cassete e de
vídeo) que têm tais fenômenos como conteúdo;
3) leitura atenta da Bíblia e de obras da literatura católica (Catecismo da
Igreja Católica, Concílio Vaticano II, etc), na busca de pistas para
comprovação da hipótese;
163
4) estudo de obras referentes à teoria aqui adotada, Teoria da Enunciação e
Análise do Discurso, na demanda de subsídios para fundamentar a
análise dos dados, os quais se constituem de:
a) quatro textos alusivos às “aparições” de Fátima (Portugal): o primeiro
referente à descrição da figura “percebida” pelos três pequenos pastores
(Francisco, Jacinta e Lúcia) e os três primeiros da interlocução entre a
“Bela Senhora” e Lúcia: 13 de maio (1ª aparição); 13 de junho (2ª
aparição) e 13 de julho (3ª aparição);
b) dois que dizem respeito às aparições de Angüera (Bahia) – 10 de outubro
de 1987 e 04 de janeiro do ano de 2000;
c) um alusivo aos fenômenos de Itaperuna (Rio de Janeiro) – 1º de julho de
1995;
d) um referente às “aparições” de Jacareí (São Paulo) – 1º de julho de 1995;
Dentre os postulados teóricos nas quais nos alicerçamos, priorizamos os
pontuados pela Análise do Discurso, em virtude de essa ciência ocupar-se com as
expressões lingüísticas de sujeitos concretos que atuam sob determinadas
condições de produção, como: tempo, lugar, papéis representados pelos
interlocutores, sua vinculação histórico-social e os objetivos a que visam.
No âmbito da Análise do Discurso dedicamos um capítulo ao Discurso
Religioso, uma vez que é nele que se enquadra este trabalho. Mas como o seu foco
é o adentramento na urdidura vocal (polifonia) do discurso das “vidências” aqui
selecionadas, procuramos investigar, na materialidade lingüística:
a) o imbricamento das várias vozes inscritas nas ações discursivas;
b) os papéis executados pelos sujeitos da enunciação (locutor e alocutário) e
da referência (delocutário);
c) as diversas vozes externas que se imiscuem, no processo enunciativo, por
meio da intertextualidade e sua função como veiculadora da ideologia
subjacente.
Atentando-nos, numa primeira dimensão, para a atividade interlocutória
desempenhada por seus protagonistas, demonstramos que essa ação se desenvolve
entre esferas dissimétricas – o mundo temporal e o mundo atemporal. Essa interação,
porém, consubstancia-se (segundo o relato dos videntes) em dois níveis – dialogal e
não dialogal. Em Fátima, a interação se processa com alternância de turnos que são
assumidos ora pelo sujeito celeste (SL) ora pelo sujeito terrestre (ST), ou seja, Lúcia,
única dos três videntes envolvida na interlocução, pois, de acordo com os textos
analisados, Jacinta “via” e “ouvia” a Figura Misteriosa, mas não dialogava com ela, e
Francisco “via-a”, mas não a “ouvia”. Já nas três “vidências” ocorridas no Brasil
(Angüera, Itaperuna e Jacareí), a interação acontece sem alternância de turnos, visto o
discurso ser “monitorado” exclusivamente pelo sujeito da esfera atemporal. Não há,
portanto, ação dialogal, mas um único turno, detido pelo sujeito que tem a primazia, o
que comprova as palavras de Orlandi (1996, p. 243): “no discurso religioso há um
desnivelamento fundamental entre locutor e ouvinte”.
Esses dois níveis podem ser visualizados no esquema abaixo:
PROCESSO INTERATIVO
1º NÍVEL ; DIALOGAL
Scl ST
2º NÍVEL: NÃO -DIALOGAL
Scl ST
FIGURA 10 – Níveis de interação no discurso da vidência
Em ambos os casos, porém, essa interação tem características de uma fala
que se aproxima da escrita, pois, como a modalidade oral, ela emerge no momento
mesmo da interação, uma vez que as mensagens são grafadas ou gravadas durante
a sua recepção, como atesta o seguinte enunciado:
A mensagem que Ela transmite é anotada rapidamente por Pedro em uma das folhas de papel ofício sobre uma prancheta (...). Logo depois da aparição, ele se levanta e lê a mensagem para todos. (Apelos Urgentes de Nossa Senhora Rainha da Paz em Angüera na Bahia, 1993, p. 07)
Numa segunda instância polifônica, construída pelas múltiplas funções
executadas pelas camadas enunciativa (locutor e alocutário) e enunciva
164
165
(delocutário), podemos perceber um concerto sobreposto (polifonia “stricto sensu”,
conforme Ducrot, 1987), no qual tanto os sujeitos da interlocução quanto o da
referência podem aparecer desdobrados.
No campo da interlocução, os interactantes, consoante sua inscrição na ação
enunciativa, nos oito textos analisados desempenham as funções de:
1º Na produção:
a) locutor L, responsável pela enunciação;
b) locutor LP, revestido das características pessoais;
c) locutor LC, mais de uma voz formando uma univocidade.
2º Na recepção:
a) Alocutário – AL, correlato do locutor L;
b) Alocutário – ALP, correspondente do locutor LP;
c) Alocutário ALC, carteante do locutor LC.
3º Na enunciação (perspectiva do locutor):
a) enunciador individual – EI, que pode coincidir com o locutor L ou LP;
b) sui-enunciador – SE, ou seja, auto-enunciação;
c) enunciador eclesial – EE: voz da Igreja;
d) enunciador divinal – EDV, voz de Deus;
e) enunciador coletivo – EC, voz de uma comunidade específica.
O enunciador é o sujeito que se manifesta na perspectiva do locutor. Nos
discursos contemplados, essa voz é representativa dos mais variados lugares:
• Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo);
• Igreja (povo ou hierarquia)
• Sagrada Escritura.
166
E já que o enunciador é um sujeito da produção, ele tem também seu
correlato, no nível da recepção – o destinatário.
4º No plano enuncivo
Nessa instância, as vozes são ainda mais diversificadas, pois, em qualquer
processo enunciativo, o referente sempre ultrapassa em número os protagonistas.
No caso dos discursos aqui analisados, o delocutário concretiza entidades.
a) da esfera celeste: divinas (Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo);
santos (Virgem Maria e São José) e anjos;
b) da esfera terrestre; Igreja, clero, videntes, etc;
c) da esfera infernal (demônios e almas condenadas.
O terceiro tipo de malha vocal ativada na produção do discurso da “vidência”
é constituída de vozes externas, incorporadas por citação direta e, principalmente,
por alusão. Nos dois casos,porém, sua fonte originária é a Sagrada Escritura.
Essa intromissão da voz bíblica opera não só como autoridade, no sentido de
referendação da voz do “vidente”, mas também como estratégia de atualização dos
ensinamentos de Jesus e dos Apóstolos. É, pois, uma manobra de construção da
argumentatividade que atua como instrumento de persuasão, já que a consonância
das mensagens da vidência com a Bíblia é um dos fortes critérios afixados pela
Igreja Católica para um possível reconhecimento de sua autenticidade.
Além da incorporação de vozes bíblicas, intrometem-se, nos discursos aqui
contemplados, outras provindas da Igreja Católica e até de outras vidências.
Conclui-se, portanto que o discurso aqui examinado forma um concerto
constituído de variadas vozes, regido pela batuta de um maestro que, de acordo
com a crença de muitos católicos (não são todos) vem das paragens celestes.
E aí está a possibilidade de uma resposta para a pergunta que abre o terceiro
capítulo desse trabalho – Aparições da Virgem Maria: mito ou realidade? A
concretização dessa resposta, portanto, está no âmago da consciência de cada
pessoa que interagir com essas páginas. É a sua visão de mundo, sua ideologia que
vai determinar o real ou o imaginário no tocante ao sujeito do mundo espiritual dos
167
discursos analisados. É o direito de crer e de não crer desse leitor que definirá se tal
sujeito, seja na emissão (locutor), seja na recepção (alocutário) consubstancia-se
como verdadeiro ou virtual. Seja qual for, no entanto, o sentimento desse sujeito-
leitor (fé ou ceticismo), para a Análise do Discurso, os textos aqui contemplados
encerram uma realidade lingϋístico-discursiva constituída por vozes que se
entrelaçam numa perceptível ação interlocutória. O produto, portanto, independe de
qualquer reação perante os fatos apresentados, uma vez que ele é essencialmente
uma atividade lingüística (Análise do Discurso) e não religiosa (Ciência da Religião,
Teologia, etc).
Entrego, pois, ao meu interlocutor, nesta tese, a análise de uma das vertentes
do Discurso Religioso Católico – O Discurso da Vidência – centralizada em algumas
das “Aparições” da Virgem Maria codificadas em língua portuguesa.
Na instância final dessa caminhada, é possível inferirmos que os objetivos
propostos foram atingidos e a hipótese erigida confirmada, uma vez que foram
apresentadas as peculiaridades que constituem o naipe polifônico das “vidências”
aqui examinadas e demonstrado que esse discurso está em consonância com o da
Igreja Católica em seus ensinamentos, em sua doutrina e até em seus atos
devocionais.
168
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