LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA...
-
Upload
unicidade-do-conhecimento -
Category
Documents
-
view
215 -
download
0
Transcript of LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA...
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 1/10
E
IA
con
dele
nec
con
que
o al
1 Prof
ENC
A U N
LCINI
R
(...) o cale
TRODideia lan
ecimento
s, o que su
ssariamen
truir algu
elas nos v
cance das
essora Associ
ONTRO IN
NICIDADE D
ITNCIMAOCU
um dos benhecimen
ria de vive
ÇÃO ada por e
no âmbit
õe a parti
te sujeitos
as interr
o sugerin
certezas
da na Univers
ERNACIO
DO C O NHE C
RA, E A HEA
C
s da terra o, a abunr.
ste colóqu
de vário
cipação de
às imposi
ogações a
o. Partind
cientifica
idade do Minh
AL
CIMENTO
S DXPONIMA S
rolina Lei
ue para ância, a g
Maria G
io sugere
discurso
contribut
ções da pr
partir de
da experi
ente con
o. mcarolina
CRITRENA
e1
im são cinnerosidad
abriela Llan
uma rara
disciplin
s vindos
odução ac
ivências
ência indiv truídas, n
ics.uminho.
CIE
Ce
Ed
RPNCÇO O
o: e, o praze
sol, Lisboal
casião pa
ares e me
e territóri
adémica.
uotidiana
idual , trat
a sua jus
pt
EP
ntro de Inve
ucação e P
: A E O
BR
do aman
ipzig 1, 199
ra interro
smo para
s diverso
odemos, a
e das dú
‐se de obs
eza ou n
stigação e
icologia
O
e e a
4: 85.
ar o
além
, não
ssim,
idas
rvar
sua
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 2/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
2
desadequação, nomeando as margens que sempre transbordam, as da ignorância e
do enigma.
Se tomarmos o corpo como campo de interrogação – essa realidade tãoamplamente partilhada – e a ciência (ou a arte?) médica como campo de resposta,podemos confrontar a nossa experiência com as leituras, por vezes múltiplas, não
raras vezes contraditórias, dos discursos autorizados, cuja autonomia e autoridadese encontram caucionadas, quer pelo conhecimento quer pela força corporativa,
quer por ambos. E nem sempre o ponto de vista da experiência encontra um lugar
nesta mecânica do saber que se reduz, na nossa sociedade, a um privilégio de
especialistas.
De facto, nada nos impede de ler o corpo, mas onde encontrar os instrumentos
que nos dão acesso a esse texto, familiar e enigmático, previsível e capaz das
surpresas mais desconcertantes, obediente e rebelde, ora sofredor ora exultante?O que faz o corpo individual com a sua pequena história de gerações familiares?Onde esconde os segredos que se abafaram, os medos que se reproduziram ou a
demasiada injustiça de repetidas opressões? Que sinais a revelar a intensidade daalegria vivida ou sonhada?
E o corpo comum, isto é, a parte colectiva que habita o nosso corpo individual e
não apenas a sua memória, que inscrições restam nele da sua longa história demilénios? Onde estão os sinais de todas as perseguições à ideia e ao exercício de se
ser livre no pensar e no agir? O que resta do paraíso prometido? Como se traduz,
num corpo, a síntese de itinerários tão diversos, complexos e díspares? Trazemossinais mais declarados e outros mais adormecidos? O que nos faz dizer de alguém
ou de alguma situação que não faz parte do nosso mundo...e como reconhecemos osseres de uma mesma constelação, e quem escolhe? As afinidades electivas, quem as
decide? Onde se inscreve o reconhecimento destas genealogias incertas? E quantoscorpos, distintos na singularidade da sua herança, resultaram destes itinerários do
diverso?
Então o que é um corpo ou, como perguntava Espinosa, “o que pode um corpo”?
Dito de outro modo, como aprender a ler?
O CORPO FÍSICO E O CORPO DA ALMA, QUANTOS CORPOSAFINAL?
Pensar o corpo
Roland Barthes, em Le plaisir du texte, interroga‐se a dado momento sobre a
natureza do corpo: “Quel corps? Nous en avons plusieurs; le corps des anatomisteset des physiologistes, celui que voit ou que parle la science: c’est le texte des
grammairiens, des critiques, des commentateurs, des philologues (c’est le phéno‐
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 3/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
3
texte). Mais nous avons aussi un corps de jouissance fait uniquement de relationsérotiques, sans aucun rapport avec le premier: c’est un autre découpage, une autre
nomination» (1973: 29).
A reprodução do saber e das práticas académicas pede aos seus membros um
determinado modo de disciplinar o pensamento que cada um tenta seguir, na
expectativa de poder construir, uma linha que seja, de conhecimento. Mas fazemo‐lo sempre, numa certa medida, fora de nós mesmos. Isto é, faz parte do exercício, a
tentativa de nos excluirmos dele, pelo menos aquilo que em nós ameaça a supostaobjectividade do conhecimento. Este deve, idealmente, ser construído sem
ingerências ou, em última analise, deve ser capaz de antecipar e minimizar os seus
efeitos. E os manuais rivalizam nas receitas, mas também nos paradoxos, paraatingirmos este patamar da tão desejada transparência. Este princípio, sagrado nas
ciências sociais, tem engendrado um sem número de efeitos perversos com os
quais nos confrontamos no quotidiano e de que evocaremos exemplos ao longo dotexto. Não que o saber científico negue a experiência individual, pelo contrário, asua fundamentação essencial passa justamente pela experiência – assim é, pelo
menos a partir do séc. XVII2. Acontece que uma vez consagrado um qualquer
princípio de saber, a imprevisibilidade da experiência individual tende a serarrumada na categoria de excepção e menos na de móbil de curiosidade...científica.
Gadamer explicita bem esta tentação do conhecimento científico para estender o
seu paradigma de verdade a todos os domínios da realidade: “L’expérience,renouvelée dans les sciences, ne présente pas seulement l’avantage d’être
vérifiable et accessible à tout un chacun, elle revendique également de son proprechef et fonde sur sa démarche métodique la prétention d’être à la fois l’unique
expérience certaine et le seul savoir qui confère à toute expérience sa légitimité. Lesavoir humain qui s’accumule en dehors de la «science» sur le mode de
l’expérience pratique et de la tradition (…) il lui faut aussi (…) entrer de lui‐même
dans le domaine de la recherche scientifique. En principe, il n’est rien qui ne soit soumis ainsi à la compétence de la science» (1990: 12).
Um corpo sem alma, o que pode ser?
Ora o corpo é um dos objectos que mais faz correr a ciência. E é longa a históriada tutela exercida sobre o corpo e reforçada na cultura ocidental pelo efeito
combinado da religião, da política e da ciência. Doutrina e ideologias, filosofiacompreendida, conjugando‐se num discurso de poder, único, destinavam a todos
os outros e seus autores o papel de bodes expiatórios de uma ordem que atribuíaao corpo o lugar de confluência de todos os medos. Corpo e espírito foram sendo
progressivamente entendidos como duas realidades de natureza incompatível, o
espírito suscitando uma atitude de reverência face ao corpo que desmere tão
2 Edgar Morin, no seu ensaio Science avec conscience, lembra a importância da autonomia que ganhou a ciência
nesta altura face aos poderes instituidos: «(...) il était fécond que la science au XVIIe siècle s’autonomise par
rapport à la religion, par rapport à l’Etat et par rapport aux conséquences morales qu’entraîne la conaissance
elle‐même. La science devait émanciper son impératif éthique propre et unique, «connaître pour connaître»,quelles qu’en soient les conséquences» . (1990 : 116).
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 4/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
4
ilustre co‐habitante e mais não espera do que o momento de consumar a infalível
separação:
«Par
un
tour
de
force
spéculatif
remarquable,
les
philosophes
ont
réussi
à
accréditer la réalité de l’âme et à discréditer celle du corps, de sorte que ce qui fait l’objet d’une évidence familière pour le sens commun devient obscur et problématique pour le sujet qui désire sérieusement vaquer à la
recherche de la vérité» (Jaquet, 2001: 3).
Vale a pena lembrar que esta ordem teve excepções. As dissidências tiveram
lugar mesmo se muitas delas foram apagadas pelo fogo da intolerância. Masfilósofos como Espinosa, por exemplo, fazem um entendimento do corpo que não
exclui a alma, interrogando‐se à margem de qualquer rejeição do corpo e
afirmando: “l’ignorance de la nature exacte de la structure du corps et de sa
puissance»; e acrescenta: “Personne, il est vrai, n’a jusqu’à présent déterminé ce que peut le corps (…)” (Jaquet, 2001: 6). Esta apreciação terá suscitado interesse eadeptos. Mas não foi este o ponto de vista que prevaleceu no tempo; hoje mesmo,
são por certo raros os que partilham a intuição que esta interrogação supõe. Muitomais tarde, Nietzsche dirá que “Sans le fil conducteur di corps, je ne crois à la
validité d’aucune recherche”, insistindo na debilidade da nossa consciência se
comparada ao corpo, «à l’extraordinaire sûreté fonctionnelle du jeu des pulsions! C’est qu’elle [la conscience] est encore enfant. Ayons donc l’indulgence de lui pardonner ses enfantillages» (Wotling, 2005: 188, 189) Afirmação que não invalida
a possibilidade de que a consciência pode crescer.
O corpo
doente,
um
corpo
que
fala?
E chegamos assim ao paradoxo que explica a situação actual3, onde cada um de
nós se sente impotente para compreender o seu próprio corpo, inclusivamente nalinguagem dos seus sintomas, dos mais benignos aos mais ameaçadores. No desejo
de ver o corpo restabelecido ao seu estado “natural”, a tendência vai no sentido defazer ou, pelo menos, de tentar fazer a economia da sua leitura. Atacando os
sintomas, como tantas vezes ouvimos dizer, tentamos vencer a guerra e muitasvezes com sucesso. E nesta guerra em que vencemos cada vez mais batalhas, o que
se deve ao desenvolvimento científico e tecnológico, bem como à progressiva
democratização dos serviços de saúde, somos forçados a concluir que, muitasvezes, o inimigo, afinal, não vinha declarar a guerra, apenas trazia uma mensagem,um texto a pedir a atenção de uma leitura. Mas uma falsa ideia de eficácia,“conquistada pelo combate”, acaba por engendrar um novo sintoma, reiniciando‐se
3 Edgar Morin, interrogando‐se sobre a predisposição para o seguidismo e a ausência de consciência critica
sobre as nossas acções, sejam as do homem comum ou do cientista, afirma: «Le diagnostic a été fait il y a
cinquante ans par Husserl dans une conférence sur la crise de la science européenne. Il a alors montré qu’il y
avait un trou aveugle dans l’objectivisme scientifique : c’était le trou de la conscience de soi. A partir du
moment où s’est opérée la disjonction entre d’une part la subjectivité humaine réservée à la philosophie ou à
la poésie, et d’autre part l’objectivité du savoir qui est le propre de la science, la connaissance scientifique a
développé les modes les plus raffinés pour connaître tous les objets possibles mais elle est devenue
complètement aveugle sur la subjectivité humaine; elle est devenue aveugle sur la marche de la science elle‐même…» (1990: 117, 118).
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 5/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
5
um novo ciclo de incompreensão. Como é conhecido, a lógica da “guerra” produzuma litania de efeitos perversos, nem sempre visíveis num primeiro tempo. Este
inimigo imaginário que habita o mesmo corpo, merece ser identificado, lido etraduzido, como nos sugerem alguns médicos avisados e cada dia mais raros,
podendo‐se, nalguns casos, negociar , isto é, dar à palavra um papel de mediação ede tomada de consciência, um dos caminhos para prevenir a “guerra”.
A leitura do corpo é inseparável do seu itinerário; na presença do médico, a
narrativa de um percurso, em particular, da sua dimensão emocional, é a matéria‐prima do diálogo, e este é parte integrante da própria noção de consulta, isto é, doencontro entre o médico e o paciente. A distância que os separa, o paciente do
especialista, pode ser ultrapassada se ambos forem capazes de criar um diálogo –“La langue ne sera jamais tout ce qu’elle peut être que dans le dialogue (...) Le dialogue est déjà un traitement” (Gadamer, 1998: 137). Mas são muitas as
dificuldades que impedem a prática desta arte que é a ciência médica/práticaclínica. As condições materiais do seu exercício, num momento em que os serviçospúblicos se debatem com o insustentável aumento das despesas, sem um
equivalente aumento da riqueza, constrangem os médicos a “mostrar elevados
níveis de produtividade”, sem que a qualidade do seu trabalho mereça igualexigência e reconhecimento. Este esgotamento da ideia fundadora do processo deconhecimento e de cura do corpo acompanha a proliferante invasão de recursos
tecnológicos e a pressão de consumo da poderosa, e muito saudável, indústriafarmacêutica.
Então, por que não devolver a cada um a capacidade de se iniciar na leitura eaprendizagem do seu próprio corpo? Despoja‐lo de um vocabulário mínimo que o
inicia nesta leitura serve algum dos interessados? A consulta com o especialistanão podera sair enriquecida com uma maior consciência do paciente?
Se é verdade que a escolha da “guerra” como meio para entender o corpo,
corresponde a um gesto historicamente compreensível, vale a pena lembrar que,hoje, já nada nos impede de procurar, de inventar e de partilhar um outro ponto de
vista pois a sua verdade, há muito deixou de ser única.
O CORPO QUE FALA, E QUEM NOS ENSINA A LER?A diversidade ou mesmo a incompatibilidade das respostas fazem parte do
processo de qualquer procura, tal como o reconhecimento da ignorância, sem oqual não nos é possivel avançar para uma nova questão. No entanto, cada um de
nós já experimentou a dificuldade de explicar para si proprio uma determinada
reacção ou sinal do seu corpo ‐”Le corps a pourtant beau être familier, il demeure d’une profonde étrangeté” (Jaquet, 2001:1) ‐ e de secretamente não reconhecer
validade ao discurso do especialista que nos fala e que nem sempre nos ouve. Ofacto de uma dada explicação não corresponder à nossa convicção intuída não
significa, contudo, que cada um possa, de imediato, compreender o processo queestá a viver. Apenas nos cria um embaraço suplementar: ao sintoma junta‐se
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 6/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
6
também a desadequação da resposta de quem é suposto tê‐la e dá‐la como
verdadeira. A confiança nos especialistas que caracteriza o nosso tempo4, tidacomo um indicador da qualidade de vida, é‐nos apresentada como a única
mediação possível face ao complexo, caro e movediço mundo da tecnologia, veiocriar novas desigualdades e assimetrias ‐ “Se nada é tão bem sucedido como o
sucesso, também nada engana como o sucesso. Ofuscando em prestigio e esgo-tando
em recursos qualquer outra coisa que pertença à plenitude do homem, a expansão do
seu poder é acompanhada por uma retracção da concepção que ele tem de si mesmo
e do seu ser.” (Jonas, 1994: 42) ‐ agravando‐as mesmo em relação à experiênciaprivada que é a de ter um corpo. Esta usurpação do direito individual a
compreender o seu próprio corpo e a dispor dos instrumentos que permitem a sualeitura, parece encontrar um antídoto fecundo num conceito de corpo que procura
contemplar uma maior amplitude, mesmo se este é um caminho que supõe a
surpresa de muitas e novas interrogações. Independentemente dos benefícios que
a grande tecnologia e outros dispositivos trazem à prática do entendimento docorpo e, em particular, do corpo doente, não parece existir nenhuma boa razão que
invalide o conhecimento de si, logo, do seu próprio corpo. No início de uma dassuas conferências sobre os problemas relativos à saúde, Gadamer, citando Kant,
lembra “Que toute notre connaissance commence par l’expérience, cela ne fait absolument aucun doute” (1998: 11). O valor atribuído à experiência supõe a
consciência de outros factores. Gadamer, chama‐lhe natureza: “Et le médecin
raisonnable et le patient savent bien tous deux que, s’il y a rétablissement, c’est toujours à la nature qu’ils le doivent” (1998: 136) enquanto outros autores tornam
a noção de amplitude extensível a outros domínios. No seu texto, «Em busca doMirocórdio», Augusto Joaquim chama a atenção para certos sinais físicos
recorrentes, associados a experiências de espiritualidade. Explicitando o seuconceito de mirocórdio, isto é, “olhar ou auscultar o coração”, diz o autor que ele
“ produz efeitos físicos, mexe com os sensores da percepção, altera os corpos e orienta
as vontades para a des‐medida”; e concretizando, afirma adiante, “Em suma, os dons são conaturais ao corpo. No meu estudo, identifiquei 36, mas garanto que são muitos mais. Devo acrescentar que, na sua grande maioria, não provocam qualquer efeito
visível, embora transformem irreversivelmente a psicossomatica. Na realidade alteram a própria noção do que seja um corpo. Podemos ainda considerar que as chamadas ascese e mistica são apenas balbuciamentos no processo da sua
apreensão” (2002: 6). Se olharmos a partir de outras tradições culturais, o corpo
físico é entendido como o mais denso de uma série de outros corpos que nosacompanham. Segundo certas concepções, o nível de experiência mais exterior é
vivido pelo corpo físico, seguindo‐se o corpo emocional, o mental, o astral, o etéreo,
o búdico e o causal, correspondendo este à experiência interior mais profunda(Brofman, 1999: 133). Diferentes interpretações confirmam que estes diferentes
corpos subtis correspondem a bandas de energia que rodeiam e interpenetram aparte física. A fotografia resolveu, já a partir dos anos 50, graças ao casal Kyrlian,
esta intrigante realidade, a partir de uma folha cortada: através de um
4 ‐ E o nosso tempo inclui o século passado, desde o seu inicio, basta pensarmos nas referências de Ortega y
Gasset aos perigos da especialização que já então se anunciava; mais recentemente autores como Hans Jonas
(1994) ou Edgar Morin (1990), entre muitos outros, denunciam os riscos desta“ortopedia humana”organizada..
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 7/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
7
procedimento novo, a banda de energia mantinha‐se intacta apesar da fractura dafolha. A ciência moderna, na sua linguagem própria, dirá que o corpo humano é
composto de campos energéticos. Estas emanações energéticas do corpo incluemcampos eléctricos, magnéticos, sonoros, luminosos, electromagnéticos e de calor.
No entanto, cada indivíduo tem um sistema energético próprio; também o modocomo cada um interage e opera com as influências subtis circundantes varia de
indivíduo para indivíduo (Andrews, 1991: 18,21).
Estudos recentes dão conta de experiências de relaxamento corporal e mental
que conduzem o indivíduo a um estado modificado de consciência, sendo‐lhe
possível trazer à consciência factos e decisões de vida que podem estar na origem
de comportamentos de padrão negativo e repetitivo. Este movimento deidentificação, através de uma tomada de consciência, de transtornos de tipo diverso
bem como das suas causas permite, segundo os autores (Peres, 1999: 215 e ss.),
reprogramar a decisão que desencadeava o comportamento repetitivo indesejado.Este é neutralizado através de uma redecisão tornada possível pelo processo detomada de consciência.
Num texto anterior (Leite, 2002) demos conta de outros exemplos que nos
colocam face a um entendimento do corpo que desloca as suas actuais fronteiras. Euma vasta literatura, vinda das mais diversas áreas, permite‐nos hoje sondar ou
mesmo aprofundar algumas interrogações; da medicina (Simões, 1997; Fenwick,
1997; Lommel, 2001; Caldas, 2004, entre muios outros) à Psicologia (Hellinguer,2001; Masson, 2006) à Antropologia (Durand, 1996), passando pelo ensaio
teológico (Joaquim, 2000) ou a filosofia (Dinis, Curado, 2004).
CONCLUSÃO
Também a literatura tem aqui uma palavra a dizer. Na sua primeira lição no
Collège de France, Roland Barthes dizia, em determinado momento, “La science est grossière, la vie est subtile, et c’est pour corriger cette distance que la littérature nous importe” (Barthes, 1978: 18). Se tomarmos o conhecimento como um vastoterritório indiferente ao género que o produz, vale a pena confirmar a convicção de
Barthes e concluir com um texto literário ‐ Maria Gabriela Llansol, Um falcão no
punho (1998).
A liberdade do dom poético projecta‐nos aqui no fulgor de umpensamento capaz de interrogar o corpo no intimo da sua subtileza e potência,
como se, na realidade, um outro corpo daqui pudesse nascer:
Olhando uma parede branca, é-me muito dificil pensar.
Mas eu sei que a parede está guardando o meu olhar.
Acordar alguém é acordar o qué? Dormindo, não estará na sua fase de lua
cheia?
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 8/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
8
Pintar uma parede branca é esconder-lhe o olhar, ou permitir-lhe olhar-
me com alguns dos seus matizes?
Para
pensar,
não
é
preciso
ter
vigor?
Que faz ao corpo um mau pensamento?
A recta intenção faz parte do corpo, ou do espírito?
Se o pensamento não ama o corpo, que forma terá o pensamento?
Quando dou uma forma escrita intensa ao meu sofrimento, não estarei ainda a pesar mais sobre ele, como se houvesse um fundo e nele uma saída
luminosa?
Quando o corpo e o espírito são dois amantes experimentados, surge a
proporção escondida, sabem extraír de quase nada o ardor imenso de
criar.
Um belo corpo e um pensamento justo poderão coexistir num contexto
caótico?
Escrever na sombra é ir à busca de que potência? O visivel segue a curva
do dia? O invisivel seguirá a curva inversa?
Que ser
é esse
que
escreve
sobre
uma
mesa
onde
todo
o
vegetal
está
ausente?
O contexto é do corpo e do texto; o que está doente no homem se este só
olha o corpo? Se só cuida do texto? O pensamento que abstrai do contexto
não terá a intenção de definir o corpo?
O corpo vivo é uma forma ininterrupta.
Dizer-se que é matéria de imagens feita, como quando o medo sobrevém, e
o paralisa.
O
medo
vem
de
si,
a paralisia
é sua.
Estou certa de que o Texto modificou o corpo dos homens.
BIBLIOGRAFIA
Andrews, Ted (1993) – Como ver e ler a aura, Editorial Estampa, Lisboa.
Aquém e além do cérebro (1999) – Actas do 2.° Simpósio da Fundação Bial ,Auditório da Reitoria da Universidade do Porto e Casa do Médico, Abril de1998.
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 9/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
9
Barthes, Roland (1973) – Le plaisir du texte, Seuil, Paris.
Barthes, Roland (1978) – Leçon, Seuil, Paris.
Brofman, Martin (1996) – Melhore a sua visão, Pergaminho, Lisboa.
Caldas, Alexandre Castro (2004) – Existira um homem neuronal?, 15‐27,Conciência e cognição, Dinis, A.; Curado, J. M. (orgs.), Publicações da
Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa, Braga.
Dinis, Alfredo; Curado, J. M. (orgs., 2004) ‐ Conciência e cognição, Publicações da
Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa, Braga.
Durand, Jean‐Yves (1996) – O hidrogeólogo, o vedor, o etnógrafo e algumas das
suas técnicas do corpo, 87‐103, in Corpo presente, Miguel Vale de Almeida(org.), Celta Editora, Oeiras.
Fenwick, Peter (1997) – Science and subjective experience, 93‐106, Actas do 1.° Simpósio da Fundação Bial , Auditório da Reitoria da Universidade do Porto e
Casa do Médico, Abril de 1996.
Gadamer, Hans‐Georg (1998) – Philosophie de la santé , Grasset‐Mollat, Paris.
Goddard, Jean‐Christophe ‐ (org. 2005) – Le corps, Vrin, Paris.
Hellinger, Bert (2001) – Constellations familiales, Le Soufle d’Or, Barret‐sur‐Méouge.
Jaquet, Chantal (2001) – Le corps, PUF, Paris.
Jonas, Hans (1994) – Ética, medicina e técnica, Vega, Lisboa.
Joaquim, Augusto (2000) – Anexos, 229‐333, in Daix, Georges, Dicionário dos Santos, Terramar, Lisboa.
Joaquim, Augusto (2002) – “Em busca do mirocórdio” comunicação apresentada nociclo de conferências promovido pelo Convento dos Dominicanos, Lisboa,
inédito.
Leite, Carolina (2002) – O corpo sob tutela. Notas breves a propósito do corpo que
não se tem, Comunicação e Sociedade, vol.4, 105‐116.
Llansol, Maria Gabriela (1994) – Lisboaleipzig 1, o encontro inesperado do diverso,Rolim, Lisboa.
Llansol, Maria Gabriela (1998) – Um falcão no punho, Relógio d’Agua, Lisboa.
8/14/2019 LEITURAS DO CORPO: CIÊNCIA, EXPERIÊNCIA E ENIGMA. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO À PROCURA DA SUA…
http://slidepdf.com/reader/full/leituras-do-corpo-ciencia-experiencia-e-enigma-a-construcao-do-conhecimento 10/10
LEITE, C. (2007) Leituras do corpo: ciência, experiência e enigma. A construção do conhecimento à procura da sua sombra. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
10
Llansol, Maria Gabriela (2000) – Onde vais drama- poesia?, Relógio d’Agua, Lisboa.
Lommel, Pim von et al. (2001) – Near death experience in survivors of cardiac
arrest: a prospective study in the Netherlands, 2039‐45, The
Lancet , 358.
Masson, Alain (2006) – L’alphabet des commencements, Idées Vivantes, Neuilly‐
Plaisance.
Mauss, Marcel (1950) – Les techniques du corps, in Sociologie et Anthropologie, PUF,
Paris.
Morin, Edgar (1990) – Science avec conscience, Fayard, Paris.
Peres, Julia (1999) – «Estudo electroencefalografico em Estados Modificados de
Consciência induzidos pela Terapia Regressiva Vivencial Peres”, 215‐221, in Aquém e além do cérebro Actas do 2.° Simpósio da Fundação Bial , Auditório da
Reitoria da Universidade do Porto e Casa do Médico, Abril de 1998.
Salem, J. (1999) ‐ Hippocrate, connaître, soigner, aimer. Le serment et autres textes,Seuil, Paris.
Simões, Mario (1997) – Estados alterados de consciência e fenómenosparapsicológicos, 107‐125, in Aquém e além do cérebro – Actas do 1.° Simpósio
da Fundação Bial , Auditório da Reitoria da Universidade do Porto e Casa doMédico, Abril de 1996.
Wotling, Patrick (2005) – L’entente de nombreuses âmes mortelles. L’analyse
nietzschéenne du corps, 169‐190, in Goddard, Jean‐Christophe(org.) – Le corps, Vrin, Paris.