Leitura Semiótica da "Donzela Desnuda"
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Transcript of Leitura Semiótica da "Donzela Desnuda"
Imagem, feminino: uma leitura semiótica
Maria Evany do Nascimento1
Heitor Rogério Costa Lopes2
Resumo
Este texto se propõe a fazer uma abordagem pontual, do ponto de vista
da semiótica peirceana, de uma escultura do Centro Histórico de
Manaus. Detendo-se na relação signo x objeto (ícone, índice e símbolo),
pretende abordar as três instâncias definidas como Primeiridade,
Secundidade e Terceiridade. Buscando traçar uma cadeia de
significados simbólicos, relacionando a escultura ao pensamento de uma
época, que por sua vez, é uma recriação de mitos antigos e universais.
Palavras-chave:
Imagem – Arte - Semiótica
Abstract
This text if considers to make a prompt boarding, of the point of view of
the peirceana semiotics, of a sculpture of the Historical Center of
Manaus. Lingering in the relation sign x object (icon, index and symbol),
intends to approach the three instances definite as Primeiridade,
Secundidade and Terceiridade. Searching to trace a chain of symbolic
meanings, relating the sculpture to the thought of a time, that in turn, is a
recreation of old and universal myths.
1 Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Coordenadora Pedagógica do Centro Social e Educacional do Lago do Aleixo (CSELA). Professora das disciplinas de Estética e História da Arte e Semiótica, do Curso de Design da Faculdade Martha Falcão. Especialista em História e Crítica da Arte. 2 Acadêmico do Curso de Design da Faculdade Martha Falcão.
Keyworks:
Image - Art - Semiotics
Introdução
A soberania da imagem no mundo contemporâneo, torna as artes
visuais cada vez mais atuais e desperta a necessidade de estudos mais
complexos abordando a semiótica, antropologia visual, ou outros campos que
se dedicam à leitura da imagem. Essa leitura específica, tornou-se uma
ferramenta necessária a quem se dedica ao trabalho na área da cultura visual
ou a quem se interessa por esse campo. Uma das ferramentas para uma
abordagem mais detalhada desse universo imagético, é a semiótica, ciência
contemporânea que, se dedica ao estudo do signo e dos processos de
significação. Dentre os teóricos que se dedicaram ao desenvolvimento desta
ciência, o americano Charles Sanders Peirce desenvolveu sua teoria,
organizando o processo em que se dá o conhecimento dos fenômenos em três
campos, que seriam elementos formais e universais, chamou-os de
Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Conhecendo mais sobre o universo
dos signos e sobre o processo de significação, é possível entender a força que
tem o impacto das imagens, o que elas nos trazem, de que forma nos atingem
e como utilizar estas ferramentas para a construção de uma comunicação mais
eficaz. Este artigo se propõe a fazer uma apreciação semiótica de uma
escultura, a partir destas três categorias peirceanas. Não tem a pretensão de
oferecer uma análise completa mas, de provocar a utilização da ciência
semiótica em campos do cotidiano. Para tornar o trabalho mais pontual, foi
escolhido apenas a relação que o signo tem com aquilo que ele representa,
para uma abordagem de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade: Ícone,
Índice e Símbolo. E como objeto de apreciação, foi escolhida uma escultura do
Centro Histórico de Manaus. Esta área da cidade (Centro Antigo), apresenta
um acervo de obras artísticas, em grande parte adquiridas no período áureo da
borracha e trazidas de vários lugares do mundo. São esculturas que marcam a
fase da Belle Époque, o gosto francês e eclético que, com as devidas
proporções e adaptações, foi incorporado aos costumes da cidade de Manaus,
no período também denominado fin de siècle. Entre as esculturas, destaca-se
esta figura feminina desnuda que se encontra nos jardins do Centro Cultural
Palácio Rio Negro, na avenida 7 de Setembro. Trata-se de uma obra intrigante
pela falta de informações a respeito de seu período exato de aquisição, autoria
e significados simbólicos. Alguns autores a chamam de “Donzela Desnuda” e
outros de “Medusa”, mas ela bem poderia ser chamada de “Eva” ou a
materialização do mito da “fêmea fatal”. Este trabalho pretende descobrir
alguns possíveis significados desta obra belíssima, que veio para adornar os
jardins de um grande comerciante da borracha e que continua, ainda hoje, a
intrigar os olhares visitantes.
Figura 1: Medusa
Foto: Heitor Lopes
E para início de conversa qual é o nosso objeto?
1. Ficha técnica
a. Nome da obra: “Donzela Desnuda” ou “Medusa” ou “Eva”
(recentemente restaurada)
b. Nome do artista: sem identificação na peça
c. Técnica empregada: Escultura em bronze
d. Medidas: 1,34cm de altura
e. Local onde se encontra: Jardim frontal do Centro Cultural Palácio
Rio Negro, Av. 7 de Setembro – Centro Histórico de Manaus/Am.
2. Palácio Rio Negro
De acordo com Mesquita (1999), o prédio onde hoje funciona o Centro
Cultural Palácio Rio Negro, pertenceu, até a primeira década do século XX, ao
comerciante alemão Waldemar Scholz, um dos barões da borracha. Após o
declínio da economia da borracha, foi adquirido pelo Estado em 1918,
passando a abrigar a sede do governo. Foi tombado pelo Patrimônio Histórico
Estadual em 3 de outubro de 1980 e em 1996, passou a funcionar como Centro
Cultural, abrigando exposições e apresentações artísticas. É um dos mais bem
conservados exemplos da arquitetura eclética construída em Manaus entre a
última década do século XIX e a primeira década do século XX. Suas colunas e
elementos decorativos, apresentam-se como elementos comuns ao estilo
eclético, o diferencial deste prédio é o comedimento no uso destes adornos, o
que confere à arquitetura um aspecto que nos lembra os padrões clássicos.
3. A escultura: um objeto ou um signo?
Para Peirce, um signo é “uma coisa que representa outra coisa para
alguém, sobre determinado aspecto” e um objeto é qualquer coisa passível de
representação. A nossa escultura se encaixa nos dois processos. É um objeto,
existente, físico, palpável. E é um signo, por nos trazer uma cadeia de outros
significados além do que é: uma escultura. E iremos em busca destes
possíveis significados ao longo deste texto.
Primeiros olhares – possibilidades da Primeiridade
Num primeiro olhar, percebe-se uma escultura feminina, em bronze. E
com um olhar cuidadoso e um pouco mais demorado, poderia ser assim
descrita: uma figura feminina em pé, desnuda, apoiada no pé esquerdo;seu
braço esquerdo está apoiado na cintura e o braço direito estendido; seu rosto
apresenta uma expressão séria, olhos abertos e lábios cerrados; possui
brincos de argola; seus cabelos, compostos por um emaranhado de serpentes,
tem ainda um cacho de uvas do lado esquerdo; descendo pelo pescoço, em
direção ao seio direito, encontra-se uma serpente com a cabeça levemente
levantada; esta serpente circunda um medalhão em forma de caveira, preso a
uma pequena corrente; em sua mão direita segura um punhal que não pode
ser visto quando a escultura é observada de frente; no braço direito, encontra-
se uma serpente enrolada, com a cabeça em posição de ataque. Junto com a
serpente, a figura segura uma máscara de teatro e uma fruta, semelhante a
uma maçã. A escultura pode ser vista de vários ângulos, pois se encontra no
meio do jardim. E parece ter sido construída para lhe serem rodeados todos os
olhares.
Esse primeiro contato e essas primeiras impressões, referem-se, de
acordo com as tricotomias peirceanas, à categoria da Primeiridade. Não há
nada de particular, apenas aspectos gerais: é uma escultura. Em sua relação
com o objeto, trata-se de uma representação feminina, um ícone de uma
mulher, permeada de outras representações existentes: fruto, punhal,
serpentes, etc. É isto que a obra nos faz pensar quando avaliamos a
Primeiridade.
Segundos olhares – particularidades da Secundidade
Sobre o aspecto da Secundidade, é um índice, um existente e como tal,
é um fenômeno temporal e espacial, mantendo conexões com outros
existentes. O índice é, portanto, parte daquilo que representa e dessa forma,
incorpora uma característica particular: a de ter potencial para significar,
simplesmente por existir e apresentar-se como ponto de ligação com outros
fenômenos, igualmente existentes. No caso da nossa escultura, é uma obra em
bronze, que nos remete ao material, ao período em que foi feito, ao espaço
ocupado, ao prédio, à cidade de Manaus, etc. Sendo dessa forma, um índice
da produção do artista, do estilo do final do século XIX e início do século XX;
índice das necessidades decorativas do período chamado Belle Époque; índice
da economia do período da borracha; índice do pensamento do homem em
relação à mulher, na passagem do século XIX para o século XX. Esta obra
existe, e pode nos conduzir há vários caminhos.
Terceiros olhares – reflexões interpretativas da Terceiridade
A Terceiridade, onde moram os aspectos simbólicos, é, de fato, o
grande interesse deste texto. E a escultura escolhida nos brinda com um leque
de possibilidades de significados: um êxtase para a busca dos sentidos. Então,
vamos nos deter nos seus índices e buscar alguns significados simbólicos.
CORPO DESNUDO
O simbolismo cristão já distinguia na Idade Média a: nuditas
virtualis (pureza e inocência) da nuditas criminalis (luxúria ou
exibição vaidosa). Por isso toda nudez tem e terá sempre um
sentido ambivalente, uma emoção equívoca; se por um lado
eleva ao puro clímax da mera beleza física e, por analogia
platônica, à compreensão e identificação da beleza moral e
espiritual, por outro lado quase não pode perder seu lastro
demasiado humano da atração irracional arraigada nas
profundezas insensíveis ao intelecto. Evidentemente a
expressão da forma, seja natural ou artística, induz ao
contemplador a uma ou a outra direção. ((Cirlot, 1984)
Ao entrar em contato com a obra, seu poder de signo icônico já nos traz
à mente diversos significados pela sua exposição de corpo desnudo. Este,
pode ser considerado como símbolo de sedução, provocação, pela posição em
que se encontra, como a convidar o olhar do espectador, a passear por suas
curvas sinuosas, estando assim mais ligado à luxúria e exibição vaidosa, que à
pureza e inocência. Isso se dá pela posição em que se encontra e pelos
diversos elementos simbólicos que lhe complementam.
AS SERPENTES
Entre os muitos que podemos encontrar para a serpente, Cirlot (1984)
nos apresenta alguns que complementam o pensamento aqui apresentado:
... fisicamente, a serpente simboliza a sedução da força pela
matéria (Jasão por Medeia, Hércules por Onfale, Adão por
Eva), constituindo a manifestação concreta dos resultados da
involução, a persistência do inferior no superior, do anterior no
ulterior ... a serpente é o símbolo, não da culpa pessoal, mas
sim do princípio do mal inerente a tudo o que é terreno.
Apresentada dessa forma, as serpentes conferem à nossa escultura, um
sentido de maldade, sedução e traição, associando à mulher todas as figuras
de divindades terríveis. A mulher é uma sedutora e representa o “principio do
mal inerente a tudo o que é terreno”.
CACHO DE UVAS
Em seus cabelos, além das serpentes, é possível perceber um cacho de uvas.
Esta fruta é um símbolo de Dionísio ou Baco, deus do vinho e das festas
dionisíacas ou bacanais. Rituais que envolviam, além de muita bebida, sexo
livre e diversos parceiros, sendo portanto, a festa dos prazeres carnais. Cirlot
(1984), acrescenta que por ser um fruto, a uva nos remete à fertilidade e
também, por sua ligação ao sangue, ao sacrifício.
O CRÂNIO
O medalhão em forma de crânio, que a figura traz em seu pescoço,
pode fazer uma referência à inteligência e à morte, mas também simbolizam
transitoriedade. Talvez afirmando que a beleza física é um atributo finito.
Moraes (2002), traz uma passagem bastante interessante, quando
analisa o significado da caveira, na figura do acéfalo:
O acéfalo, diz Bataille ao descrever a anatomia do monstro, “reúne
numa mesma erupção o Nascimento e a Morte”. Isso significa que,
nesse caso, a caveira não é apenas um símbolo fúnebre mas também,
e ao mesmo tempo, uma evocação da vida: na qualidade de signo que
identifica o gênero humano, ela constitui o imperecível, o que perdura
do corpo mesmo depois da morte. Seria difícil encontrar melhor
imagem para expressar a “existência eterna” da matéria – ou, se
quisermos, da coisa humana – assim como pra sustentar, com tal
poder de síntese, a tarefa dialética de desmentir e manter os traços da
figura humana.
A MAÇÃ
A maçã ou o fruto que a figura segura em sua mão esquerda, nos
remete ao fruto do “pecado original”, que levou Adão ao pecado e à
conseqüente expulsão do paraíso; também pode significar desejo e o caminho
para o conhecimento, já que descrita na Bíblia como “o fruto da árvore do bem
e do mal”. Significa ainda fertilidade, amor, imortalidade e vida. Em Cirlot
(1984) encontramos:
Como forma quase esférica, significa uma totalidade. É símbolo dos
desejos terrenos, de seu desencadeamento. A proibição de comer a
maçã vinha por isto da voz suprema, que se opõe à exaltação dos
desejo materiais. O intelecto, a sede de conhecimento é – como sabia
Nietzsche – uma zona apenas intermediária entre a dos desejos
terrenos e a da pura e verdadeira espiritualidade.
A escultura aqui analisada, traz a maçã escondida na mesma mão que
segura uma máscara de teatro. Este fruto não pode ser visto quando a figura é
observada frontalmente. Como se a sedução se fizesse em etapas, primeiro
com a nudez, depois com as serpentes e finalmente com o fruto do pecado.
Como vimos até aqui, a obra nos remete, com todos os seus elementos, ao
desencadeamento dos desejos materiais.
MÁSCARA DE TEATRO
Esta máscara pode significar a personificação de espíritos e poderes,
bem como o “espetáculo da vida”, representado pelas máscaras teatrais no
final da Antigüidade. Como elemento teatral ela significa disfarce. Embora seu
significado simbólico seja bem maior que isso, chegando a representar a
metamorfose, é o que nos traz Cirlot (19834):
Todas as transformações têm algo de profundamente misterioso e de
vergonhoso ao mesmo tempo, posto que o equívoco e o ambíguo se
produz no momento em que algo se modifica o bastante para ser já
“outra coisa”, mas ainda continua sendo o que era. Por isto, as
metamorfoses têm que ocultar-se; daí a máscara. A ocultação tende à
transfiguração, a facilitar a passagem do que se é ao qe se quer ser;
este é o seu caráter mágico...
Inserida no emaranhado de outros elementos simbólicos, a máscara nos
remete a pensar a metamorfose humana, a transformação do sedutor para
outra coisa. A máscara ainda não foi colocada, ela se esconde assim como a
maçã. Num desencadeamento que induz a pensar que a partir da sedução,
depois um outro caráter habitará o corpo nu.
PUNHAL
A figura traz, oculto em sua mão direita, um punhal, acrescentando a
lista dos elementos que não se mostram de mediato ao espectador, fazendo-
nos pensar numa seqüência lógica e narrativa para a peça. Este punhal, se
tomado como arma, significa poder e serve tanto para o ataque quanto para a
defesa. No entanto, da forma como este aparece, nos faz crer que está
preparado para o ataque. Com ele, se poderia pensar que o ciclo se fecha: o
corpo nu e sensual chama, num primeiro momento à sedução pelo olhar;
depois, as serpentes enfeitiçam, o fruto é oferecido, a máscara é colocada e o
punhal se mostra fatal. Sedução, traição e fatalidade, seriam possíveis leituras
para esta peça intrigante.
Figura 2: Medusa, detalhes: 1) cacho de uvas e serpentes; 2) serpentes e
expressão séria; 3) e 4) - serpentes no braço e máscara de teatro; 5) fruto da
mão esquerda; 6) serpente e medalhão em forma de caveira, no pescoço; 7)
punhal na mão direita.
Fotos: Heitor Lopes
Tecendo redes de significados simbólicos
Eva
É interessante buscar na literatura algumas referências à figura da Eva,
porque a escultura, através de sua carga de elementos simbólicos (serpente e
fruto), nos remete a essa personagem. O livro do Gênesis, que discorre sobre
os primórdios da humanidade, no conta que Deus criou os céus e a terra e
todas as coisas vivas. Ao ver que isso era bom, criou o homem à sua imagem
e semelhança e de sua costela, Eva foi gerada.
De acordo com Robles (2006), para Adão, Eva representou uma
companheira submissa desde sua concepção, uma vez que é gerada de uma
de suas costelas. No entanto, mesmo submissa ao homem, cabe a ela a
escolha pelo “conhecimento da verdade” através do fruto da árvore proibida.
Então, Eva carrega para todo o sempre a culpa de ter levado o homem a
pecar, de ter sido expulsa do paraíso e de ter começado uma vida de trabalho,
sofrimento e morte para a humanidade. Eva, então, carrega o princípio da vida
humana, da finitude humana.
Medusa
Não foi sempre que Medusa carregou o fardo pelo qual é conhecida. Era
muito bela e imortal, mas conseguiu enfurecer a poderosa deusa Atena ao
copular com Poseidon (deus do Mar) em um de seus templos. Como castigo
esta a transformou, junto com suas irmãs, em criaturas medonhas, megeras
repugnantes. Contrastando com a beleza de outrora, agora apresentavam a
pele escamosa, cabelos em forma de serpentes venenosas, mãos de bronze e
asas de ouro; suas línguas eram protuberantes, cercada por presas de javali.
Medusa foi a mais castigada, virou mortal e mais petrificadora das três.
O olhar de medusa foi o seu pior castigo. Por transformar em pedra tudo
o que a fitasse, este a impedia de manter contato com qualquer outra criatura.
Vivia reclusa com suas irmãs no extremo do mundo e sua morada formava
fronteira com o reino das trevas. Ao seu redor se espalhavam figuras
petrificadas de homens e animais que, por descuido, olharam-lhe.
Medusa foi morta por Perseu, fundador de Micenas. Quando criança,
junto com sua mãe Dânea, foi lançado ao mar por seu avô, o rei de Argos –
Acrísio –, temendo a concretização de uma profecia: Perseu o mataria. Foram
resgatados e entregues ao rei de Sérifo, Polidectes. Passado anos, já adulto,
Perseu recebeu a missão de matar Medusa e entregar sua cabeça a Atena.
Auxiliado por esta, equipou-se com sandálias aladas, elmo de invisibilidade,
escudo brilhante e a espada de Hermes, e seguiu para o reino das Górgonas.
Fazendo uso de suas ferramentas mágicas, conseguiu aproximar-se de
Medusa, sem ser petrificado, e a decapitou. Do sangue, que escorria da
cabeça decapitada, formou-se dois seres, o gigante Crisaor e o cavalo Pégaso.
Perseu recolheu o sangue de Medusa; da veia esquerda saiu um poderoso
veneno, da direita um remédio capaz de ressuscitar os mortos.
Moraes (2002) faz uma leitura contemporânea desse mito:
... o rosto de Medusa é uma máscara que apresenta a “face do
Outro, nosso duplo, o Estranho, em reciprocidade com nosso
rosto como uma imagem no espelho”, mas compondo uma
figura ambígua “que seria ao mesmo tempo menos e mais que
nós mesmos, simples reflexo e realidade do além”. O homem
que encara a Górgona mortal “deixa de ser o que é, de ser vivo
para tornar-se, como ela, Poder de morte”. Ou seja, nesse
confronto, ele perde sua identidade para assumir uma posição
de simetria em relação ao deus, o que implica simultaneamente
“dualidade – o homem e o deus que se encaram – e
inseparabilidade, ou até identificação”.
Da aparência mítica de Medusa, podemos abstrair inúmeros significados
simbólicos e percebemos o quanto são importantes para se entender o homem
no contexto social e psíquico. Medusa trazia em si o remédio da vida, mas
sempre fez uso do veneno da morte. Da mesma forma a mulher foi vista pela
sociedade em vários períodos da história, e ainda hoje. Tem o poder de dar à
luz, mas sempre foi relegada ao segundo plano por ser considerada uma
criatura vil e traiçoeira. Esse pensamento é fruto de uma sociedade patriarcal
que sempre reprimiu a sabedoria e os poderes sacerdotais e xamânicos
femininos.
O mito de Medusa nos alerta sobre nosso mundo interior, o
inconsciente. Se entrarmos despreparados nesse mundo, podemos ficar
paralisados com o que lá encontraremos. A culpa é o nosso olhar petrificante e
o arrependimento é a cura imediata.
O Mito da Fêmea Fatal
Algumas leituras podem ser feitas a respeito dessas personagens
femininas, tão recorrentes na história da arte. No entanto, é preciso entender
um pouco porque elas ganham tão grande destaque no final do século XIX e
início do século XX. Moraes (2002), faz um retrospecto do pensamento do
período e nos situa no final do romantismo, primeira metade do século XIX,
onde a figura da mulher fatal disputava espaço com um homem conquistador e
vil:
O libertino oitocentista, desprezando as convenções de uma
burguesia que lutava para impor seus valores, insistia em
preservar a herança dos devassos do século anterior, num
elogio a Casanova e Sade. Era na figura masculina que se
evidenciavam as marcas da desordem moral e do excesso
licencioso; fossem bandidos, vampiros ou libertinos, eram os
homens a encarar o tipo fatal.
Na segunda metade do século XIX, começam a ganhar destaque as
versões femininas dessa decadência moral. A literatura e o teatro,
popularizaram essas personagens conferindo-lhes um destaque dramático aos
seus aspectos diabólicos e sedutores:
A partir de então, o mito do eterno feminino se uniu
irremediavelmente à maldade: as últimas décadas do século se
renderam aos apelos imaginários da mulher fatal, deixando-se
fascinar pelas histórias das grandes cortesãs, das rainhas
cruéis e das pecadoras famosas. Dalilas, Cleópatras, Evas,
Elenas, Circes e Armidas proliferaram nas artes e na literatura
finiseculares...
É nesse momento que se constrói essa imagem da mulher, como
responsável pela decadência do homem e por todos os males que assolam a
humanidade. A escultura aqui analisada, nos oferece a possível materialização
desse pensamento, sendo o retrato da Medusa ou de Eva. Em todos os
elementos há um caráter de dualidade, valores morais que tendem para o bem
e para o mal. No entanto, sabendo que no período provável da construção da
peça (final do século XIX e início do século XX), o pensamento corrente dava à
mulher esse papel de fêmea fatal, a leitura dos signos buscou essa teia de
significados.
Comentários finais
Em todos os tempos a arte se apresenta como expressão do humano. O
artista capta os humores do seu tempo e o transforma em algo material e
duradouro. Os pensamentos se modificam, mas a arte permanece para nos
lembrar do processo. E em um momento em que a leitura da imagem é o que
há de mais evidente e explorado, vale a pena retomar nossas obras públicas e
buscar nelas a relação com nosso passado, construindo assim, a nossa
história. Assim como vale a pena passear pelos logradouros públicos da cidade
e observar as obras ali colocadas. Elas têm um porquê de estarem ali, trazem
uma história. Seria interessante sair em busca desses significados e relacionar
com a história da cidade, assim perceberíamos o que temos de particular e
universal.
O mito da fêmea fatal, representado na escultura do Centro Cultural
Palácio Rio Negro, permanece até hoje, nas músicas, nos filmes, nos
comerciais de TV, nas novelas. É a mulher, sedutora que desencadeia todo o
mal. O corpo feminino hoje é um dos principais apelos da comunicação de
massa, se tornou produto. É um outro processo de mudança de mentalidade:
de fêmea fatal para produto comercial. Mas daí, já são outros significados que
exigem outra leitura. Contudo, o estudo da semiótica peirceana pode ser um
caminho para a busca desses sentidos.
Referências
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1984.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora Martin Claret,
2006.
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mitologia – deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. 8.ª
ed. Porto Alegre: L&PM, 2006.
MESQUITA, Otoni. Manaus: História e Arquitetura (1852-1910). Manaus:
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MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002.
NASCIMENTO, Maria Evany do. Patrimônio e Memória da Cidade:
Monumentos do Centro Histórico de Manaus. Dissertação de Mestrado –
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ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos
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SANTAELLA, Lucia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Medusa_(mitologia)