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Publicado em: LASCHEFSKI, Klemens . A luta sobr e o significado do espaço O campesinato e o licenciamento ambiental. Geografias, v. 3, p. 38-53, 2007. 1 A luta sobre o significado do espaço – O campesinato e o licenciamento ambiental Klemens Laschefski, Pesquisador Visitante, FAPEMIG/PUC-Minas Resumo O licenciamento ambiental no Brasil é alvo de duras críticas pelo setor privado assim como pelas ONGs e movimentos sociais. A partir da análise da luta em torno da barragens de Irapé e Murta, Minas Gerais, enfocamos neste estudo as diferentes racionalidades presentes nos discursos dos diversos atores envolvidos no processo de licenciamento, sobretudo em relação a percepção do espaço em que a hidrelétrica foi implementada. Foram identificadas noções conflitivas como território, territorialidade, pobreza/miséria, bem público/comum, meio ambiente e desenvolvimento. O reconhecimento e o entendimento das várias formas de perceber o espaço, que permeiam os significados de noções freqüentemente utilizadas por campesinos, grupos indígenas, quilombolas ou outras comunidades tradicionais, mostrou-se extremamente relevante para uma reforma do licenciamento ambiental, com o objetivo da sua democratização para alcançar a eqüidade ambiental no  país. Palavras chave: licenciamento ambiental, desenvolvimento, campesinato, conflitos ambientais,  perspectivas do espaço. Summary The Brazilian system of environmental licensing faces critics from the private sector as well as from environmental and so cial entities. Based on the s truggle around the hydroelectric dams of Irapé and Murta, Minas Gerais, this study focuses on different rationalities with respect to the  perception of space reflected in the discourses of the actors inv olved in the licensing process. Conflicts could be identified about notions like territory/territoriality, poverty/misery, public goods/commons, environment, and development. The recognition and understanding of the various forms of perceiving space, which permeates the meanings of the notions frequently used by campesinos, indigenous groups, quilombolas or other traditional groups is of extremely importance for the reform of the licensing process, if the objective is its democratization to achieve environmental equity in Brazil. Keywords: environmental licensing, development, campesinato, environmental conflicts, perspectives of space. Introdução Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva - sobretudo após a sua reeleição em 2006 - foram iniciadas mudanças institucionais e políticas públicas que abrem espaço para mudanças profundas no meio rural brasileiro. Exemplo disso é o Programa da Aceleração do Crescimento - PAC, com o objetivo de aumentar os investimentos na área de infra-estrutura logística (como estradas, hidrovias e portos), infra-estrutura social e urbana (habitação e saneamento) e a realização de projetos energéticos, entre eles a construção de grandes hidrelétricas e a retomada do programa nuclear. No nível institucional, pode-se observar a

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    Publicado em: LASCHEFSKI, Klemens . A luta sobre o significado do espao O campesinato e o licenciamentoambiental. Geografias, v. 3, p. 38-53, 2007.

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    A luta sobre o significado do espao O campesinato e o licenciamento ambiental

    Klemens Laschefski, Pesquisador Visitante, FAPEMIG/PUC-Minas

    Resumo

    O licenciamento ambiental no Brasil alvo de duras crticas pelo setor privado assimcomo pelas ONGs e movimentos sociais. A partir da anlise da luta em torno da barragens de Irap eMurta, Minas Gerais, enfocamos neste estudo as diferentes racionalidades presentes nos discursos dosdiversos atores envolvidos no processo de licenciamento, sobretudo em relao a percepo do espaoem que a hidreltrica foi implementada. Foram identificadas noes conflitivas como territrio,territorialidade, pobreza/misria, bem pblico/comum, meio ambiente e desenvolvimento. Oreconhecimento e o entendimento das vrias formas de perceber o espao, que permeiam ossignificados de noes freqentemente utilizadas por campesinos, grupos indgenas, quilombolas ou

    outras comunidades tradicionais, mostrou-se extremamente relevante para uma reforma dolicenciamento ambiental, com o objetivo da sua democratizao para alcanar a eqidade ambiental nopas.

    Palavras chave: licenciamento ambiental, desenvolvimento, campesinato, conflitos ambientais,perspectivas do espao.

    SummaryThe Brazilian system of environmental licensing faces critics from the private sector as

    well as from environmental and social entities. Based on the struggle around the hydroelectric damsof Irap and Murta, Minas Gerais, this study focuses on different rationalities with respect to the

    perception of space reflected in the discourses of the actors involved in the licensing process. Conflictscould be identified about notions like territory/territoriality, poverty/misery, public goods/commons,environment, and development. The recognition and understanding of the various forms of perceivingspace, which permeates the meanings of the notions frequently used by campesinos, indigenousgroups, quilombolas or other traditional groups is of extremely importance for the reform of thelicensing process, if the objective is its democratization to achieve environmental equity in Brazil.

    Keywords: environmental licensing, development, campesinato, environmental conflicts, perspectivesof space.

    IntroduoDurante o governo de Luiz Incio Lula da Silva - sobretudo aps a sua reeleio

    em 2006 - foram iniciadas mudanas institucionais e polticas pblicas que abrem espao para

    mudanas profundas no meio rural brasileiro. Exemplo disso o Programa da Acelerao do

    Crescimento - PAC, com o objetivo de aumentar os investimentos na rea de infra-estrutura

    logstica (como estradas, hidrovias e portos), infra-estrutura social e urbana (habitao e

    saneamento) e a realizao de projetos energticos, entre eles a construo de grandes

    hidreltricas e a retomada do programa nuclear. No nvel institucional, pode-se observar a

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    flexibilizao do licenciamento ambiental com o objetivo de desburocratizar os processos

    administrativos. Nesse contexto, em novembro de 2006, durante a inaugurao da primeira

    usina de biodiesel associado ao lcool no Brasil, localizada em Barra do Bugres (MT), o

    presidente Lula chegou at a declarar que ambientalistas, ndios, quilombolas e o Ministrio

    Pblico eram entraves para a retomada do crescimento (PICHONELLI, 2006). Tal

    afirmao provocou reaes crticas por parte de entidades ambientais e movimentos sociais,

    entre eles a Comisso Pastoral da Terra, que apia os camponeses e as comunidades

    tradicionais e as suas reivindicaes pela preservao dos seus direitos usurpados. Segundo

    esta entidade,

    ...com a fala do presidente, sentiram-se apoiados e contemplados os grileirosde terra, os madeireiros e os latifundirios travestidos de empresrios doagronegcio que depredam as nossas riquezas naturais, invadem reservasindgenas, de quilombos e reas de preservao ambiental e exploram ostrabalhadores deste pas submetendo-os, muitas vezes, a condies anlogasa de escravo. [...]A riqueza da vida e da cultura das comunidades tradicionaisde ndios, quilombolas, ribeirinhos e tantas outras que convivem h sculoscom a natureza e a preservam e podem nos dar lies de sabedoria e vida.(CPT, 2006)

    O que podemos verificar nessa declarao uma tendncia de alguns movimentos

    sociais em aliar a luta dos camponeses e grupos tradicionais como indgenas, quilombolas,

    entre outros, com a luta ambiental fenmeno que Martinez-Allier (1999) denominou como

    ambientalismo dos pobres. Em conjunto, tais lutas denunciam um modelo de

    desenvolvimento desigual e devastador em relao ao seu meio ambiente. Os atingidos

    pelos projetos desenvolvimentistas sofrem as conseqncias na forma de problemas sociais

    como a perda da qualidade de vida, empobrecimento e, subseqentemente, migrao

    (voluntria ou forada pela remoo) e favelizao nos locais de destino. Observa-se, assim,

    que raramente os segmentos sociais diretamente afetados so beneficiados pelos projetos,

    que, em geral, so anunciados com a promessa de contribuir para um futuro prspero na

    referida regio de sua instalao. Os principais sujeitos beneficiados pelos empreendimentos -

    sejam eles estabelecimentos industriais, hidreltricas ou projetos de agronegcio vivem nos

    centros urbano-industriais, longe dos impactos causados por tais obras.

    Os impactos originados por tais projetos podem ser territoriais, com a

    conseqncia da remoo dos atingidos, ou espaciaisatravs da poluio sonora, gasosa ou

    aqutica e residual, as quais afetam a qualidade de vida das pessoas no local, sem interferir

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    diretamente nos territrios dos vrios segmentos sociais da regio. Desta forma, os impactos

    ambientais podem ser vistos como conseqncia da expanso do espao ambiental

    (OPSCHOOR, 1993) de grupos privilegiados custa de outros grupos marginalizados. Tal

    injustia ambiental , freqentemente, causadora de conflitos ambientais entre os grupos

    que temem uma ameaa ao seu meio ambiente e outros que pretendem se apropriar desse

    espao de diversas maneiras (ACSELRAD, 2004), seja pela incorporao direta ou atravs da

    utilizao do mesmo como depsito dos agentes poluidores e dos resduos oriundos de certos

    processos produtivos.

    A defesa do licenciamento ambiental, embora anteriormente criticado pelos

    ambientalistas e movimentos sociais como ineficiente, se explica pelo fato de que o atual

    sistema um dos poucos processos em que a participao da populao encontra-se

    formalizada com a institucionalizao da consulta pblica aos estudos e relatrios ambientais

    (EIA/RIMA) e a Audincia Pblica obrigatria para discutir o projeto e os referidos estudos.

    Contudo, a praxe atual mostra que os processos de licenciamento no conseguem garantir a

    eqidade ambiental entre os grupos sociais envolvidos. Por um lado, h ainda deficincias

    na qualidade das informaes disponibilizadas, obstculos para acessar as mesmas e a

    manipulao das diversas etapas do processo pelos interessados no empreendimento. Por

    outro lado, os mtodos de avaliao dos impactos so baseados numa viso tecnicista, quesepara o meio ambiente de suas dimenses sociopolticas e culturais, partindo da crena de

    que uma grande parte da paisagem social e ambiental a ser destruda pode ser reconstruda

    atravs de medidas de compensao e de mitigao dos impactos. Ao contrrio do

    ambientalismo dos pobres, trata-se de uma forma abstrata de interpretar o meio ambiente,

    que visto como composto por elementos como rios, florestas, espcies, entre outros,

    passveis de reconfigurao atravs de procedimentos tcnicos, para adequar o meio ambiente

    ao projeto em questo1

    .Este trabalho parte da hiptese de que os processos participativos como previstos

    no sistema do licenciamento ambiental no so apropriados para resolver os conflitos

    ambientais. Isto porque a questo ambiental envolve modos diferentes de ver o mundo,

    produzir o espao (LEFBVRE, 1991) e a construo de territorialidades dos grupos sociais

    envolvidos que, quando se materializam no espao concreto, se revelam incompatveis. Para

    elucidar e sistematizar tais diferenas foram analisados neste trabalho os conflitos discursivos

    1 Sobre a noo de adequao ambiental ver ZHOURI, LASCHEFSKI, BARROS, 2005, p. 15.

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    entre os atores envolvidos no processo de licenciamento da UHE Irap e da UHE Murta,

    ambas localizadas no Vale de Jequitinhonha.

    importante ressaltar que a populao atingida por tais empreendimentos

    composta, sobretudo, por comunidades ribeirinhas com caractersticas e especificidades scio-

    culturais no que se refere forte identidade com o local que habitam, s formas de

    apropriao e de usos do territrio e de seus recursos naturais. Estes usos so mediados por

    cdigos morais, relaes de parentesco e vizinhana, configurando uma organizao social

    particular, essencialmente relacionada histria das comunidades e ao lugar de moradia.

    Desta forma, as comunidades so caracterizadas pelo modo de vida campons, que ...

    constitudo a partir de relaes pessoais e imediatas, estruturadas em torno da famlia e de

    vnculos de solidariedade, informados de parentesco, tendo como unidade social bsica a

    comunidade (MARQUES, 2004, p. 145). Observamos que estas caractersticas ainda so

    vlidas mesmo considerando que muitas famlias so pluriativas, tendo em vista o garimpo

    artesanal, uma pequena produo para o mercado, diversas fontes de renda de alguns

    membros da famlia, como o trabalho assalariado nos canaviais em So Paulo, entre outros.

    O caso de Irap se destaca pela organizao de resistncia numa fase inicial do

    projeto: a assessoria s associaes de moradores por ONGs e universitrios e a abertura de

    canais de dilogo com os empreendedores e os rgos ambientais, aspectos que no existiamanteriormente. O processo de licenciamento se tornou palco de conflitos sobre a apropriao

    simblica (ACSELRAD, 2004) do Vale do Jequitinhonha, que representa uma luta dos

    atingidos para os seus direitos que durou 18 anos. Contudo, ao final, a luta rdua no trouxe

    resultados satisfatrios para um grande nmero de atingidos.

    Como os problemas estruturais e procedimentais do processo de licenciamento

    foram tratados em outros trabalhos (ZHOURI, et al. 2005), neste estudo nos concentramos nas

    racionalidades diferentes presentes nos discursos dos diversos atores em relao percepodo espao em que a hidreltrica foi implementada. Alm de pesquisas prprias, foram

    analisados dados coletados por vrios pesquisadores (RIBEIRO, 1993; GALIZONI, 2000;

    LEMOS, 1999; SANTOS, 2001; ZUCARELLI, 2005, ZHOURI, OLIVEIRA, 2005) e estudos

    ainda no publicados por pesquisadores do Grupo de Estudos em Temticos Ambientais -

    GESTA/UFMG.

    Obras faranicas como redeno do Vale da Misria ?

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    O Vale do Jequitinhonha foi considerado, no sculo XVIII, uma das regies mais

    ricas do Brasil - extrao de diamantes, outras pedras preciosas e ouro combinados com

    investimentos, principalmente na pecuria baseada em latifndios, com a conseqente

    expulso dos pequenos agricultores. Contudo, com o avano da industrializao em outras

    regies brasileiras, o Vale do Jequitinhonha perdeu significncia. A partir do sculo XIX a

    economia baseada na minerao entrou em estagnao, dando origem identificao da

    regio do Jequitinhonha como Vale da Misria.

    Para enfrentar a estagnao secular foram criados vrios programas de

    desenvolvimento (entre eles a Comisso de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha

    CODEVALE, 1964, que atuou, a partir de 1974, entre as linhas gerais do Plano Nacional de

    Desenvolvimento - PND - e o Plano Mineiro de Desenvolvimento Econmico e Social) que

    visaram estimulao da pecuria, cafeicultura, o plantio de monoculturas de eucaliptus spec.

    e pinus spec. no Vale do Jequitinhonha. Assim, intensificou-se o processo contnuo de

    expanso latifundiria, motivada, alm da pecuria, pelo plantio de monoculturas para a

    produo de carvo vegetal como fonte de energia para a siderurgia e a implementao de

    hidreltricas para fornecer energias para as indstrias nos centros urbanos, algo que, ainda

    hoje, culmina em inmeros conflitos sobre a terra (ZUCARELLI, 2006; RIBEIRO, 1993).

    Desta forma, observam-se processos oriundos dos modos de produo do espao urbano-industrial que tornam o Vale do Jequitinhonha uma regio destinada a fornecer matria-prima,

    alimentos e energia necessrios para a reproduo dos centros urbanos emergentes, os quais -

    sobretudo no sistema da acumulao capitalista - so marcados pela contnua expanso

    territorial.

    Desde os anos 1960, um dos objetivos principais do planejamento centralizado,

    que idealizou os diversos programas supracitados, foi a consolidao do territrio nacional. O

    lema integrar para no entregar em relao Amaznia, uma regio tradicionalmentecobiada por outros pases, de certa forma, foi vlido tambm para as regies no interior do

    pas como o Nordeste, o Centro-Oeste e o Norte de Minas Gerais, sendo que os governos

    federais e estaduais ainda no conseguiram estabelecer uma estrutura institucional para

    manter o controle sobre os mesmos. Similarmente a Amaznia, tais regies, sobretudo, o Vale

    do Jequitinhonha, foram vistas como vazios demogrficos com terras improdutivas (no

    sentido comercial) em abundncia. A partir desta concepo abstrata desses espaos, os

    planos governamentais tentaram promover o desenvolvimento atravs da demarcao e da

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    regularizao da propriedade das terras com a finalidade de vend-las a investidores privados

    ou disponibiliza-las na forma de concesses para atividades produtivas em terras devolutas ou

    pblicas. A conseqncia dessa poltica, que negligenciou os sujeitos sociais que viviam nas

    referidas reas, foi o aumento da tenso social e os conflitos violentos sobre a terra, ainda

    comuns no Vale do Jequitinhonha.

    O objetivo dessa poltica no foi simplesmente a introduo do sistema capitalista

    atravs da transformao das glebas em mercadorias e a estimulao da produo de

    excedentes de certos produtos comerciais para abastecimento dos mercados internos e

    externos. No caso do Norte de Minas, cabe lembrar que a pecuria em larga escala, as

    monoculturas de eucalipto e as hidreltricas foram fortemente subsidiadas pelo Estado, com o

    objetivo de criar boas condies de produo para atrair investimentos externos nos centros

    urbano-industriais. A produo de carne foi inserida numa poltica que visou o fornecimento

    de alimentos baratos para o crescente nmero de trabalhadores industriais, possibilitando,

    assim, que os salrios pudessem ser mantidos em um nvel mais baixo. As plantaes de

    eucalipto epinusserviram primordialmente para a produo de carvo vegetal, assim como os

    projetos hidreltricos para o abastamento de energia do complexo metalrgico e siderrgico

    na Regio Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Assim, o Estado continua a promover a

    transformao do Vale do Jequitinhonha em uma rea destinada a subsidiar e sustentar ocrescimento econmico e a gerao de riqueza nos centros urbano-industriais, enquanto tais

    processos no se refletem em dados econmicos que permitiriam que a regio se livrasse do

    estigma de Vale da Misria.

    Neste contexto tambm devem ser vistas as barragens de Irap e Murta2, ambas

    idealizadas, j nos anos 60, no mbito das polticas de consolidao territorial e incluso

    econmica das reas remotas do Brasil. Contudo, os perodos da concepo, do planejamento

    e da realizao se estendem at hoje: a construo da barragem de Irap foi concluda no anode 2005. Ainda hoje (outubro de 2007) h pendncias em relao aos reassentamentos dos

    2 Para realizao da UHE Irap foram inundados aproximadamente 137 km, dos quais 90 km de vegetaonativa (Mata Atlntica, Cerrado e Caatinga) e o restante de terras frteis utilizadas para reproduoeconmico-social de populaes campesinas. O reservatrio atingiu um trecho de 101 km do rioJequitinhonha e 47 km do rio Itacambiruu. Seu enchimento provocou o deslocamento compulsrio de cercade 1.200 famlias de 51 comunidades rurais, entre eles Porto Coris, a nica comunidade de remanescentes dequilombolas em Minas Gerais reconhecida pela Fundao Palmares em 1997.Ao todo foram atingidos setemunicpios que tiveram parte de seus territrios cobertos pela gua: Beril, Botumirim, Cristlia, GroMogol, Jos Gonalves de Minas, Leme do Prado e Turmalina. Alm disso, foram analisados depoimentos demoradores locais durante a audincia publica para a UHE Murta em 2002, cuja construo prevista a

    jusante da barragem Irap, afetando 22 comunidades rurais nos municpios de Gro Mogol, Berilo,Josenpolis, Virgem de Lapa e Coronel Murta.

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    atingidos. No caso da hidreltrica de Murta, houve uma mobilizao das comunidades locais

    em torno da Audincia Pblica realizada em 2002, mas ainda no foi concedida a licena

    prvia. A seguir, sero apresentados os resultados da anlise dos discursos dos envolvidos,

    com o objetivo de verificar as suas diferenas nos conflitos sobre a apropriao simblica do

    espao. Desta forma, no se trata de uma avaliao clssica sobre as falhas do

    licenciamento. Acreditamos que os conflitos entre os grupos envolvidos no podem ser

    solucionados por uma outra forma de gesto, pois so resultados de concepes distintas

    sobre a produo do espao, que se materializam, quando os planos dos grupos vencedores

    so transferidos para o espao vivido (LFFBVRE, 1972). Neste contexto, diferenciamos a

    concepo urbano-industrial-capitalista que enfrenta as diversas formas de produo de

    espao das comunidades locais.

    A imposio da territorialidade urbano-industrial-capitalista no Vale do Jequitinhonha

    A concepo urbano-industrial-capitalista de territrio em relao ao Vale do

    Jequitinhonha apresentada acima permeou, durante todo o processo da barragem Irap, os

    discursos do empreendedor e dos representantes do Conselho de Poltica Ambiental de Minas

    Gerais (COPAM), rgo deliberativo para o licenciamento ambiental. Um exemplo opronunciamento do prprio presidente da CEMIG durante a reunio da Cmara de atividades

    da Infra-estrutura (CIF/COPAM), em que foi aprovada a Licena de Instalao (LI) para a

    UHE Irap:

    Se ns no iniciarmos nos primeiros de maio [a construo da obra],certamente o governo do Estado poder perder a concesso, o que significa,aproximadamente, cinco a oito anos para inicia-la. O processo voltar para ogoverno Federal, e o empreendimento voltar para o governo federal. Haver

    uma nova licitao e isso prejudicar, no apenas as 700 famlias que seroremovidas, e sim, mais de trs milhes pessoas. [...] entendo a problemticade nossos tcnicos [FEAM], mas eu fao aqui um apelo, para que possamos

    juntos e parceiros, elaboramos este projeto to importante para o nossoestado e para os senhores e para aquele Vale de Pobreza hoje, que pode setransformar [...] eu tenho certeza, vai se transformar no osis dentro do nossoestado (Djalma Bastos, CEMIG, na reunio da CIF/COPAM, 26/04/2002,cit. ZUCARELLI, 2006, p. 55).

    Contudo, o pronunciamento de uma das lideranas da Comisso dos Atingidos

    pela barragem de Irap (CABI) questiona esta viso oficial sobre o Vale da Misria e os

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    supostos benefcios para a populao local:

    lamentvel quando se trata aqui o Vale do Jequitinhonha como o lugar dosmiserveis. So miserveis por falta de competncia, por falta de capacidade,de vergonha na cara dos polticos que l vo e buscam o voto, e no devolvea ns a dignidade, o direito de viver. importante saber que l esto asgrandes reflorestadoras que expulsou o povo para umas pequenas glebas deterra dentro das grotas. E agora, se constri essa hidreltrica que encobre asterras aonde o povo trabalha e de l tira o sustento para a famlia. Isso tudosem nenhuma proposta, por qu? Se houvesse uma proposta digna nsestaramos aqui reivindicando o qu? [...] O Vale do Jequitinhonha no olugar de famlias miserveis, mas de famlias excludas dos processos e dosinvestimentos pblicos voltados de fato para regio. [...] Ns, trabalhadoresrurais ficamos excludos do processo e no temos ainda conhecimento sobre

    o destino dessa energia e para quem esse desenvolvimento(Pronunciamento de uma liderana da Comisso dos Atingidos pelaBarragem de Irap, durante processo de votao da Licena de Instalao,26/04/2002).

    Diferentes percepes de Pobreza/Misria

    H, ento, uma forte rejeio dessa viso pelos supostos miserveis, rotulados

    assim com base em critrios desenvolvimentistas que tambm utilizados na elaborao dos

    EIA/RIMAs - avaliam a pobreza a partir da renda monetria, a posse de bens industriais

    (geladeira, TV, etc.), o acesso aos servios de sade, entre outros. Nesta concepo abstrata,

    obras como hidreltricas so necessrias para a incluso social no sistema urbano-industrial,

    pois criam emprego remunerado e trazem um melhoramento de infraestrutura para a regio,

    onde a obra seria implementada.

    Embora, sem dvida, muitos moradores do Vale do Jequitinhonha desejem um

    melhoramento neste sentido, o seu conceito de misria est ancorado em outros valores, tais

    como a perda de independncia econmica atravs da prpria produo para satisfazer as

    necessidades bsicas, a inibio da reciprocidade e da troca com os vizinhos e, sobretudo, em

    relao alternativa de vida no caso de desterritorializao por causa de um dos projetos

    urbano-industriais: a cidade, que tem como condio bsica de sobrevivncia a

    disponibilidade de dinheiro. So essas as perspectivas que os moradores temem caso os

    projetos sejam realizados, ao contrrio das promessas de incluso social no sistema urbano-

    industrial dos planejadores do desenvolvimento. Desta forma, tendo em vista a incapacidade

    dos centros urbanos quanto oferta de empregos, a misria, segundo os moradores atingidos,

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    esta relacionada busca de possibilidades de sobrevivncia nas ruas das cidades, como revela

    este depoimento:

    Porque a gente que fraco, igual esse povo dessa rea aqui, eles gosta defalar que p de chinelo. Eles ps esse povo aqui p de chinelo, n. (...)Outro dia meu menino tava falando comigo assim: " me, a senhora falaque aquele povo da CEMIG tambm fala que esse Vale aqui o Vale daMisria... o Vale da Riqueza, me!Senhora quer ver, senhora mira deDiamantina pra riba, pra senhora ver o qu que misria, me. Tem gentedebaixo de viaduto...tem gente debaixo das lona.... Aquilo que osofrimento da misria! Igual eu mesmo, me, que eu fiquei muito tempo narua...- isso em Braslia - sem poder ir embora, pedindo esmola... Isso que osofrimento, isso que uma misria, uma coisa mais triste do mundo. Agoraaqui no, aqui todo mundo....Tem abbora, que Nossa Senhora, moa!

    Ningum vende, num vende, num tem feira. Come, d porco, entrega os

    outro pra l! milho, andu, feijo de corda, maxixe, amendoim, melancia, mandioca, tudo quanto coisa a gente planta, n? Ento t vivendo a!Riqueza num lugar desse a gente num espera riqueza, n? Mas tambmnum misria.(...) Igual D. Maria... Ela criou a famlia dela tudo aquinesse lugar, e ela quer cabar a vida dela a, isso sinal de misria? Poisela criou os filho dela a tudo uai, e tudo ela criou tranqilo! S isso, n?Ento pra mudar, igual a gente que j fraco, mudar prum lugar que a gentenum tem nada, que num conhece nada... ningum quer isso no (Depoimentocoletado por Ana Flvia Santos, antroploga do Ministrio Pblico Federal,

    junto moradora atingida pela barragem de Irap, 2002 nfase nossa, citpor ZHOURI, OLIVEIRA, 2005, p. 57).

    Percebe-se, assim, que a rotulao do Vale do Jequitinhonha como Vale da

    Misria tem a sua origem nos dados econmicos que caracterizam a decadncia do setor da

    minerao industrial, mensurado em ndices negativos de crescimento econmico, o aumento

    do desemprego formal e, finalmente, no empobrecimento das elites locais. Uma grande parte

    da populao rural nunca foi inserida neste sistema industrial-capitalista. Contudo, a sua

    produo no se reflete nas estatsticas sobre a economia da regio, embora, no raramente, a

    qualidade de vida desses moradores supere a dos trabalhadores assalariados nas indstrias, nas

    fazendas comerciais e nos empreendimentos florestais.

    A territorialidade dos marginalizados

    Os depoimentos supracitados mostram claramente que os meeiros, posseiros,

    quilombolas e lavradores tm uma viso distinta sobre o Vale do Jequitinhonha, pois os seus

    indicadores de avaliao se referem s condies naturais que garantem uma vida tranqila

    para as famlias.

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    Deus olha para o povo e tem em aberto uma porta para ns. Apesar danossa fraqueza, da nossa pobreza, temos aqui uma grande riqueza, que o acesso aos rios, s lavras, os garimpos, diamante, ouro, verduras e

    muitas outras coisas como vimos a... (Depoimento de um moradoratingido pela UHE Murta na Audincia Pblica realizada em 15/10/2002 nfase nossa).

    O seu modo de produo do espao ainda altamente entrelaado com os

    processos naturais, classificados pelos moradores em trs categorias bsicas: cultura, catinga

    e campo. As terras de cultura, prximas aos cursos dgua, abrangem os cultivos de hortalias

    nas vazantes, as quais anualmente so fertilizadas pelas enchentes do Rio Jequitinhonha, e a

    produo de alimentos bsicos como milho e feijo, amendoim, cana-de-acar, quiabo eoutros, nos tabuleiros. As catingasaparecem em cabeceiras de crregos e nas vertentes, e sua

    utilizao dada pelo cultivo de plantas como mandioca e abacaxi, mais raramente o caf e o

    plantio de frutferas. Os campos ou carrascos, localizados em terrenos elevados e chapadas,

    no propcios agricultura, so utilizados para extrao madeira, lenha, coleta de frutos e

    plantas medicinais e pastoreio (GALIZONI, 2000). Contudo, tal descrio apenas uma

    caracterizao generalizada, pois h uma imensa diversidade de usos da terra, devido s

    variaes das condies naturais no local de moradia.

    Como o Vale do Jequitinhonha caracterizado por uma grande variabilidade

    climtica, os moradores necessitam certa flexibilidade no uso da terra para garantir o sustento

    das famlias. Isto se reflete nas relaes sociais e em regras complexas para a produo

    agrcola e o extrativismo, baseados em sistemas de rotao que garantam a regenerao das

    terras. Devido variabilidade temporal e espacial das condies naturais, torna-se necessrio

    o uso coletivo e o princpio da reciprocidade. Galizoni (2000, p. 36) destaca a complexidade

    dos direitos comunitrias em relao s terras, em que coexistem glebas de uso comum e de

    apropriao individual. A posse individual das famlias se restringe aos frutos do seu

    trabalho nas lavouras, mas no ao solo em que as culturas foram plantadas. As reas

    extrativistas, em que os recursos da natureza so vistas como ddivas, so disponibilizados

    para todos os membros da comunidade. Desta forma, segundo Zhouri e Oliveira (2005) a

    propriedade individual registrada nas instituies pblicas - a folha para fazer Incra -

    meramente uma exigncia formal para processos administrativos, como o pagamento dos

    impostos. Em outras palavras: o sistema da regulao territorial do Estado se refere

    primordialmente propriedade particular, enquanto as comunidades rurais continuam a tratar

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    as suas terras como propriedade coletiva, chamada terra no bolo ou na embolada:

    P: Depois que seu pai morreu cada irmo ficou com um pedacinho dosPrachedes?

    I: Pra todo mundo... trabalhar aqui, s foi embolado, nunca foi partido.Mas cada qual tem sua folha, paga documento... qualquer forma... tudotrabalha aqui.P: A terra da famlia?I: da famlia. Tem o mesmo nome, o dos Prachedes.(Entrevista realizada com Dna. I., na comunidade dos Prachedes, Municpiode Coronel Murta/MG, cit. p. ZHOURI e OLIVEIRA, 2005, p. 58/59).

    Cabe lembrar, neste contexto, que o termo famlia se refere s comunidades de

    parentesco que compreendem vrias famlias nucleares descendentes de um mesmo ancestral

    o fundador do grupo , o primeiro ocupante ou possuidor da terra (GALIZONI, 2000, p.

    51). As cercas que se encontram nas terras no bolo ao redor das casas e das roas, entre

    outros, no demarcam uma propriedade privada relacionada a uma famlia nuclear. Em

    relao a planos de indenizao dos moradores importante ressaltar que as terras no so

    vendidas. O que negociado entre as famlias nucleares o direito de trabalhar a terra. O

    terreno continua sendo o patrimnio de todo o grupo, contrariando, assim, a idia hegemnica

    de propriedade.

    P: E dividida a herana de cada filho?D: No. No. Esses 30 hectares foi compra. Ns, cinco irmo,associousofridamente trabalhando at a noite em So Paulo. J morei quatro anodentro da cidade grande, daquele So Paulo, por exemplo que ns ajuntamoe... unindo a fora aumenta, n? E ns compramo pegado no que do meu

    pai. [...] em comum. tudo junto. tanto que os que t em So Paulo, elestrabalha l... sofrido tambm e eles fala: no, cs paga imposto, cs podeusar. O dia que vocs puder comprar cs compra na minha mo, eu vendo

    pra vocs. Eu no vendo pra outros de fora, eu vendo pra vocs,

    n?(Entrevista realizada com Sr. D., na comunidade de Mutuca de Cima,atingida pela UHE Murta, cit. p. ZHOURI e OLIVEIRA, 2005, p. 59)

    Esta fala mostra que o quadro constitui-se ainda mais complexo, quando

    consideramos que as rendas monetrias dos membros da famlia, pelo menos em parte, so

    reinvestidas no patrimnio familiar. A fala tambm mostra que a reproduo das famlias,

    na maioria dos casos, no se restringe a atividade agrcola. bastante comum o garimpo de

    pedras preciosas ou ouro nas minas abandonadas ou no leito do prprio rio Jequitinhonha.

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    Tambm, h membros das famlias que migraram para os centros urbanos ou que trabalham

    na colheita da cana de acar, no servio pblico etc. Um fator importante tambm a

    aposentadoria que permite uma renda monetria adicional. Tais fatores contribuem para o

    estabelecimento de uma economia mista de trocas monetrias e no monetrias (dias de

    servios, naturais), cuja avaliao atravs dos critrios oficiais torna-se extremamente difcil.

    A socializao especifica das comunidades com as caractersticas naturais se

    reflete tambm na concepo do espao e no entendimento da territorialidade nas referidas

    comunidades, que no correspondem com as supracitadas concepes abstratas do Estado.

    Conseqentemente, os projetos desenvolvimentistas so vistos como invaso no seu territrio,

    mesmo quando so apresentados planos para a aquisio de terras de boa qualidade numa

    outra localidade. Destaca-se a forte identidade dos moradores com o lugar, o que torna o

    conceito de reassentamento nos EIA/RIMAs, na forma da disponibilizao de uma gleba,

    avaliada em aspectos numricos e fsicos (tamanho, qualidade de solo, produtividade entre

    outros), como inadequado. Ao contrrio do que a avaliao tcnica sugere, os moradores

    percebem o lugarcomo nico, devido s qualidades especficas que atribuem ao mesmo, as

    quais raramente correspondem aos critrios da aptido agrcola, utilizados pelas especialistas

    contratados pelos empreendedores dos projetos, geralmente agrnomos:

    Nossas terras so produtivas, nossas baixas, nossos rios, onde fazemosnossas hortas... a nossa terra produz e nunca necessitamos de barragem;no queremos ser invadidos por barragem. Nossa comunidade socinqenta famlias e todas elas vivem independente. (Depoimento da Sra.M., atingida pela UHE Murta, durante a Audincia Pblica, em 15/10/2002).

    Isto porque a avaliao atravs de atributos tcnicos negligencia a historicidade do

    lugar, que um resultado do processo da identificao e construo do prprio territrio

    durante a permanncia de vrias geraes das famlias na referida localidade:

    Nossos tataravs, bisavs, avs, todos eles conviveram aqui na Mutuca emum perodo de cento e trinta anos e nunca precisaram ir para lugar nenhum,nunca precisaram de barragem e nem nunca ouviram falar. A minha me estcom noventa anos de idade, criou os filhos dela, meu pai morreu com setentae trs anos, viveu aqui tranqilamente sem nunca precisar sair para lugarnenhum. E ns, que somos os caulas, eu estou com 49 anos de idade,estamos tranqilos (Depoimento da Sra. M., moradora atingida pela UHE

    Murta, cit. p. ZHOURI e OLIVEIRA, 2005, p. 60).

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    Assim, podemos verificar que a conduo do processo do licenciamento, devido

    aos mtodos empregados para a avaliao das terras - mesmo quando bem intencionados

    acabam por promover a imposio da territorialidade abstrata do Estado na rea em questo,

    causando conflitos com os grupos sociais locais que desenvolveram as suas prprias

    territorialidades baseadas nas suas percepes e concepes do espao em que vivem.

    Bem pblico bem comum: para quem?

    A questo da territorialidade tambm vinculada s distintas formas de

    interpretao do bem comum. Os rios so declarados pela legislao brasileira como pblicos.

    Como a construo de uma hidreltrica inibe o uso comum nas referidas reas, necessrio,

    segundo a legislao, justificar a sua apropriao para a produo de energia. Na praxe do

    processo de licenciamento, a energia produzida considerada um bem comum necessrio para

    o desenvolvimento da sociedade como um todo, e, desta forma, segundo a opinio

    hegemnica, h uma utilidade pblica mais importante do que o uso do rio pelos moradores

    locais. Os ltimos, por sua vez, reivindicam a prova para a necessidade essencial da obra,

    alegando que a energia vendida no mercado, beneficiando, assim, grupos especficos e,sobretudo, empresas privadas, que so privilegiadas por reduzidas taxas de preos. A

    populao nas zonas rurais, que carece de renda monetria regular, particularmente

    prejudicada.

    J os moradores locais dependem do rio para a reproduo em inmeros sentidos:

    alimentao, irrigao da produo agrcola na beira do rio, higiene corporal, lavagem de

    roupas, garimpo, lazer, e outros diversos significados culturais ou religiosos. Devido s

    mltiplas formas de utilizao e sua necessidade essencial para a sobrevivncia, ascomunidades consideram os rios e suas margens como reas comuns, como mostram os

    depoimentos acima. Conseqentemente, na concepo dos moradores, os rios no devem ser

    subordinados a uma finalidade que prejudique as outras formas do seu uso.

    Em resposta a essas demandas, os empreendedores freqentemente apresentam

    planos de uso mltiplo dos reservatrios que prevem o controle artificial das populaes de

    peixes e atividades tursticas ao redor do reservatrio como oportunidades de gerar empregos

    e renda no local da implementao. Contudo, tais planos so direcionados a estimular

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    atividades privadas, as quais, por sua vez, limitam o acesso de outros moradores que no

    conseguem se inserir nesses novos mercados.

    Podemos deduzir que o Estado, ao privilegiar - entre as diversas utilidades

    pblicas dos rios - o potencial hidrulico, esta impondo mais uma vez um planejamento

    abstrato e reduzido sobre o espao vivido dos moradores, causando, assim, tenses sociais.

    A percepo e a concepo de meio ambiente

    Como dito acima, a barragem de Irap um elemento do sistema urbano-

    industrial oriundo de uma concepo de espao que pode ser caracterizada, alm dos limites

    das cidades, como um mosaico de paisagens uniformes, cada uma destinada produo de

    mercadorias especficas, tais como reas destinadas para a agroindstria, minerao e

    produo de energia (hidreltricas). Os insumos tcnicos (agro-qumicas, mquinas, entre

    outros) permitem a produo, at certo nvel, sem a necessidade de considerar os ritmos e

    ciclos da regenerao da natureza. O resultado a monoculturao ambiental e social do

    espao, com efeitos no sustentveis. Contudo, aps o surgimento da crtica ambiental nos

    anos 70, questionando o modo de produo urbano-industrial por causa de seus impactos

    negativos para o meio ambiente, foram elaboradas diretrizes e complexas regras ambientais,entre elas, a legislao sobre o licenciamento dos projetos com potencial predador sobre a

    natureza e a sade pblica. Porm, como dito acima, as medidas concentram-se em

    procedimentos de adequao ambiental atravs de procedimentos tcnicos para mitigao dos

    impactos ambientais (filtros para a despoluio de emisses gasosas, tratamento da gua

    contaminada, controle biolgico de pragas, etc). Em relao supresso de reas consideradas

    importantes para a proteo da natureza e da biodiversidade foram intensificadas a criao de

    unidades de conservao e de redes de corredores ecolgicos ou APPs ao longo dos rios eterrenos de alto declive, para garantir a interconectividade entre os ecossistemas. Nesta

    concepo h uma separao estrita entre reas destinadas a atividade econmica e reas

    reservadas para a natureza3. Tal concepo culmina no Zoneamento Econmico-Ecolgico,

    como instrumento de ordenamento do espao.

    Este princpio se refere tambm aos planos de mitigao e de compensao da

    supresso de reas com vegetao nativa no mbito do licenciamento ambiental. Contudo, h

    3 Parte-se da do princpio de uma natureza intocada, ou seja, de reas sem interveno humana.

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    certa flexibilizao do conceito de natureza intocada, j que esta pode ser, segundo os

    planejadores, reconstituda numa outra localidade atravs do impedimento de atividades

    humanas e projeo de planos de manejo para acelerar o processo de sucesso natural. Nesta

    concepo de natureza substituvel, ao apresentar um plano ambiental que aceito pelos

    tcnicos dos rgos licenciadores, pode-se constatar a viabilidade ambiental para qualquer

    projeto industrial.

    Do ponto de vista dos atingidos e das entidades de apoio, essa viso abstrata do

    meio ambiente substituvel pelo menos questionvel:

    Era uma perda... enorme, aquela regio, n? ... No vai achar outro ambiente

    igual, no existe dois Jequitinhonhas, n?... Voc no reconstri isso, n?Essa idia do ...Terra por terra, casa por casa e diamante por diamante!...A quantidade de experincias com garimpo que tinha ali so fantsticas.Uma histria (...) da prpria ocupao do Jequitinhonha, sempre existiu, n?O uso (....)do diamante l foi muito complicada. E isso parte do modo devida...A idia do reassentamento pode parecer assim uma coisa simples,voc tira daqui e pe ali, n?

    Mas mais fcil de voc reconstruir um espao [urbano] que j ... j um espao da... da... construo humana,... Agora, reconstruir o espao domeio ambiente, mais fcil...quando voc j tem um espao rural que muito antropizado, n, que a presena humana j transformou aquilo deforma significativa mais fcil, agora isso num... isso no aconteceu... Que o caso l de Irap. (entrevista com Ricardo Ferreira Ribeiro, realizada porAndra Zhouri 02/02/2005).

    A viso do meio ambiente das comunidades atingidas, como contraponto da viso tcnica-

    cientfica apresentada acima, no permite uma separao do meio do social. Os grupos

    sociais afetados pela barragem de Irap, embora a maioria no viva apenas da produo para o

    autoconsumo, est tentando manter sistemas de uso da terra, que so em grande parte

    adaptados aos ritmos naturais, permitindo a regenerao da fertilidade dos solos e dos

    produtos tirados dos ecossistemas como, por exemplo, atravs dos sistemas de rotao e do

    pousio. Segundo Galizoni a natureza elemento constitutivo da roa (GALIZONI, 2000, p.

    25), cuja ...extrao regida por cdigos de normas e direitos que contemplam a

    especificidade de cada recurso explorado, configurando uma verdadeira gesto comunitria

    das ofertas existentes. O limite dos recursos considerados renovveis como capins nativos,

    frutos, plantas medicinais, lenha, caa, so dadas pela capacidade da regenerao dos recursos

    explorados. De modo geral, a comunidade regula o acesso a estes recursos de forma flexvel,

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    com exceo de anos de escassez ou recursos que necessitam um perodo longo para sua

    regenerao (madeiras para construo), ou recursos no renovveis (garimpo, fontes de

    gua). Para estes, existem formas de regulao comunitria bastante complexas, descritas em

    detalhe por Galizoni (2000, p. 30).

    O cuidado com a capacidade de reproduo da natureza necessrio para garantir

    a sobrevivncia das futuras geraes. Contudo, observam-se tambm problemas ambientais

    em determinadas reas, como a aplicao de fogo para preparar a roa em reas ngremes e o

    superpastoreio com a conseqncia do surgimento dos chamados peladores, em que a

    eroso no permite mais a recuperao da vegetao. As origens de tais problemas so

    mltiplas, alm da presso do mercado pode-se mencionar a perda do conhecimento dos

    antepassados, mas tambm a falta de acesso a terras por causa da crescente expanso dos

    projetos industriais. Os atingidos pelos empreendimentos se autodenominam freqentemente

    como os encurralados entre as diversas paisagens industrializadas4.

    Algumas atividades colidem com a legislao ambiental. As lavouras nas

    vazantes e nos tabuleiros so localizadas justamente em reas preservadas como APPs,

    segundo Artigo 2 do Cdigo Florestal, que se aplica a todas as guas superficiais no Brasil.

    Porm, esta atividade esta extremamente interligada s enchentes peridicas dos rios, que

    renovam a fertilidade dos solos. Trata-se de um sistema adaptado aos ritmos da natureza quegarante o retorno sem a aplicao de agrotxicos. A inibio desta atividade certamente

    colocaria em risco a reproduo das comunidades na beira do rio. Cabe lembrar, neste

    contexto, que a supresso das matas ciliares por empreendimentos hidreltricos possvel

    quando as empresas se comprometem a plantar uma faixa de vegetao nativa ao redor do

    reservatrio.

    Na leitura oficial, os danos ambientais oriundos do uso inadequado da terra so

    vistos como indicadores da incapacidade ou ignorncia das populaes rurais que devem sercombatidos atravs de iniciativas de educao ambiental. De fato, propostas nesse sentido

    fazem parte dos programas das empresas para mitigar os impactos sociais. Sem dvida, a

    assistncia tcnica necessria em casos de desterritorializao dos atingidos em reas com

    condies ecolgicas distintas dos lugares da sua origem, nas quais os sistemas de uso

    tradicionais no so aplicveis. Porm, como pode ser observado em alguns reassentamentos,

    a assistncia tcnica promove tcnicas da chamada modernizao agrcola, como plantio de

    4

    Em 2005, por exemplo, foi organizada na comunidade Vereda Funda, Norte de Minas Gerais, por vriasentidades, o primeiro congresso dos encurralados das plantaes de eucalipto.

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    eucalipto para as empresas florestais ou de mamona para abastecer as usinas do biodiesel.

    Assim, a assistncia tcnica impe, tambm, a viso do meio ambiente como categoria

    distinta do meio social.

    Contudo, em outros casos, em que a regulao ambiental afeta diretamente a

    reproduo das famlias rurais que esto tentando manter as suas tradies, deve ser

    considerado que, de modo geral, os seus modos de vida so bem mais entrelaados com a

    natureza e menos impactantes do que os da sociedade urbano-industrial.

    Concepes alternativas de desenvolvimento

    Como discutimos acima, o atual modelo de desenvolvimento, partindo de uma

    concepo abstrata de espao, se expressa num mosaico de paisagens monoculturizadas,

    como, no Vale do Jequitinhonha, as reas extensas de plantaes florestais e agrcolas,

    primordialmente localizadas nas chapadas, e as barragens de perenizao ou para a produo

    de energia eltrica, que tomam cada vez mais justamente aqueles vales importantes para os

    camponeses. A luta das comunidades locais ameaadas pelo avano desta forma de

    apropriao territorial - em grande parte - uma luta pelo direito de escolher o seu prprio

    caminho ou realizar seu prprio modo de produo do espao, contudo, sem ficar parado notempo.

    Um exemplo disso o trabalho de ONGs como o CAA Centro de Agricultura

    Alternativa -, de Montes Claros, e o CAV Centro de Agricultura Vicente Nica -, em

    Turmalina, as quais oferecem h mais de duas dcadas assistncia tcnica para os pequenos

    agricultores, promovendo mtodos agroecolgicos. O objetivo de tais iniciativas melhorar

    os sistemas produtivos existentes, evitando ao mximo a descaracterizao dos seus modos de

    apropriao do espao. As atividades incluem tambm iniciativas de comercializao deprodutos do cerrado e tcnicas de captao de gua da chuva para a convivncia com a seca.

    H alguns anos estas propostas se tornaram um argumento poltico para a reapropriao social

    das terras devolutas na regio que foram, 30 anos atrs, disponibilizadas, na forma de

    concesses, aos plantadores de eucalipto. A proposta mais ousada neste sentido um projeto

    detalhado para o desenvolvimento alternativo elaborado pelo STR Sindicato dos

    Trabalhadores Rurais De Rio Pardo de Minas (2004), em que se prev a reconverso agro-

    extrativista dessas reas, tendo sido entregue ao governo do Estado de Minas Gerais. A

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    proposta abrange o reassentamento de famlias rurais, o manejo do cerrado e a recuperao da

    vegetao nativa. Segundo esse projeto, a rea necessria para a reproduo de uma famlia

    rural seria de 100 hectares (20 ha de reserva natural, 40 ha para o extrativismo e 40 ha para a

    agricultura). Uma proposta similar foi apresentada pelas comunidades ameaadas pela UHE

    Murta, para sustentar de forma pr-ativa a luta contra a barragem, demonstrando que a

    populao local capaz de formular a sua prpria viso de desenvolvimento5.

    Embora estas propostas de desenvolvimento alternativo no excluam a produo

    para o mercado, eles promovem a produo de contra-espaos enfrentando o sistema

    capitalista em trs sentidos: a) uma parte dos terrenos deve ser dedicada a reserva natural, que

    uma exigncia da legislao; b) o segundo aspecto refere-se s reas cultivadas num sistema

    de produo no capitalista dedicada para a segurana alimentar das famlias; c) e, finalmente,

    a produo para o mercado tampouco segue os princpios do capitalismo, pois a produo no

    deve ultrapassar a capacidade de reproduo natural dos produtos e, assim, no possvel a

    acumulao de lucro atravs da explorao mxima dos recursos naturais.

    Consideraes finais

    Considerando as necessidades de uma reforma do licenciamento ambiental, com oobjetivo da sua democratizao, mostrou-se extremamente relevante o reconhecimento e

    entendimento das vrias formas de percepo e concepo do espao, que permeiam os

    significados de noes freqentemente utilizados pelos grupos envolvidos, sobretudo, quando

    se trata de campesinos, grupos indgenas, quilombolas ou outras comunidades tradicionais. As

    racionalidades diferentes de alguns dos termos em questo so resumidas a seguir:

    5 Uma parte das reivindicaes das comunidades ameaadas pela UHE Murta foi realizada peloGESTA/UFMG atravs da instalao de um projeto modelo para promover mtodos agroecolgicos na

    rego (CNPq Processo 596950/2004-0 Gesto dos recursos naturais e gerao de renda no mdio Vale doJequitinhonha -MG.

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    Racionalidades conflitantes nos processos de licenciamento da UHE-Irap e daUHE Murta

    Categoria racionalidade hegemnica racionalidade das comunidades

    locaisTerritrio,territorialidade

    A territorialidade abstrata do sistemaurbano-industrial-capitalista

    As territorialidades construdas apartir das prticas sociais emcondies ambientais especficas

    Pobreza/Misria A pobreza abstrata, definida pelafalta de renda monetria

    A pobreza concreta circunscrita pelafalta de acesso a terra e aos recursosnaturais

    Bempblico/comum

    As necessidades e demandas deuma suposta maioria da sociedade

    Os usos coletivos nas comunidadeslocais

    Meio ambiente A natureza como categoria distintado meio social

    O meio ambiente como categoriasocial

    Desenvolvimento A imposio de estabelecimentos

    industriais como aceleradores docrescimento econmico e, assim, ocrescimento dos setores docomrcio e dos servios

    O melhoramento das condies de

    vida a partir das potencialidadesculturais, sociais e ambientais no local

    Pergunta-se: como os conflitos em torno desses termos podem ser tratados no

    mbito do processo de licenciamento? Algumas recomendaes podem ser feitas em relao

    ao prprio EIA/RIMA, que deve procurar o esclarecimento dos posicionamentos divergentes.

    Isto demanda dos pesquisadores uma postura reflexiva em relao s suas prprias

    racionalidades e categorias do pensamento.

    Atualmente, os EIA/RIMAs so elaborados a partir de um Termo de Referncia

    emitido pelo rgo ambiental. Trata-se de uma espcie de roteiro padronizado atravs do qual

    o rgo ambiental indica ao empreendedor quais so os aspectos a serem contemplados no

    EIA/RIMA. Logo, para garantir a participao no sentido do processoscoping, os Termos de

    Referncia deveriam ser discutidos, sobretudo, com as comunidades atingidas, a fim de que

    um plano de trabalho detalhado incorporasse as demandas dessas comunidades.

    Na prtica atual, as reunies dos elaboradores dos estudos ambientais com ossegmentos sociais diretamente afetados pelo projeto tm meramente como objetivo a coleta de

    informaes para complementar dados secundrios sobre a regio. Para garantir a Eqidade

    Ambiental deveriam ser estabelecidos cronogramas para a discusso de resultados

    preliminares durante as pesquisas junto aos segmentos sociais mais afetados pelo

    empreendimento, considerando as suas racionalidades especficas.

    Cabe lembrar que o processo do licenciamento foi desenhado pelos atores

    hegemnicos que tm como objetivo viabilizar projetos do desenvolvimento. Os conflitos

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    Publicado em: LASCHEFSKI, Klemens . A luta sobre o significado do espao O campesinato e o licenciamentoambiental. Geografias, v. 3, p. 38-53, 2007.

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    ambientais em torno de tais projetos no podem ser resolvidos quando a populao local no

    puder exercer um papel principal na deciso sobre a necessidade essencial do projeto em

    questo frente as suas prprias propostas para o desenvolvimento do espao que habitam. O

    desafio maior o enfrentamento das relaes de poder que promovem o modo urbano-

    industrial-capitalista de produo do espao. O atual governo, ao invs de atuar na direo da

    efetiva democratizao do desenvolvimento, esta diminuindo as poucas, embora insuficientes,

    possibilidades de participao das comunidades locais. Desta forma, o pas se afasta cada vez

    mais da eqidade ambiental, tendo como resultado o agravamento dos diversos conflitos no

    campo.

    BibliografiaACSERALD, Henri. As Prticas Espaciais e o Campo dos Conflitos Ambientais. In.

    ACSERALD, Henri (Org.). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumar: Fundao Heinrich Bll, 2004, p. 13-35.

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