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Metáfora e cognição 1  Jean-Marie Klin kenberg  As origens do sentido : aporias dos modelos tradi cionais  De onde vem o senti do? São numerosas as teorias do sentido. Há, no entanto, uma questão que a maioria dentre elas ilidem, mesmo sendo, todas elas, ao mesmo tempo, teorias da comunicação: de onde vem o sentido? De fato, frequentemente tais teorias do sentido partilham o axioma convencionalista, evocam um prévio acordo em toda comunicação e a existência de um código exterior às consciências individuais, código que se impõe de maneira imperativa aos diferentes parceiros da troca. Esta concepção sociológica, que era a de Ferdinand de Saussure, não é ideologicamente neutra. De fato, provém em linha direta do espiritualismo de Durkheim, culmina na idéia de que os locutores são permutáveis. De um golpe, ela //135/ elimina toda tensão entre eles, não dá, por consequência, qualquer p erspectiva de negociação . Mas, não será nisto que aqui nos deteremos. Quero insistir mais no fato de que a teoria convencionalista “recobre com um véu opaco as etapas que precedem a convenção. Ela não explica como o sentido é elaborado (…) nem o que se passa (…) antes do consenso ser estabelecido” (Saint-Martin, 1987, p. 104). Este problema pode ser reformulado da seguinte maneira: como o sentido emerge da experiência? Problema antigo e particularmente irritante. Ele põe, de fato, a questão do liame que entrelaça um sentido que parece não ter fundamento físico e as estimulações físicas provenientes do mundo exterior. Estimulações que, como tais, não parecem estar revestidas de sentido. Este problema é antigo,  já disse, animou toda a r eflexão filosófica ocidental, de Parmênides a Descartes, de Malebranche a Husserl, de Hume a Peirce e do idealismo à fenomenologia… Caberia à semiótica resolvê-lo? À primeira vista, não me parece. O pensamento estruturalista sempre defendeu a idéia, à primeira vista paradoxal, segundo a qual “toda estrutura de um campo supõe um princípio estruturante que é não estruturável” (Nef, 1976). Pode-se, certamente, ver nisto uma certa circularidade, Métaphore et cognition In CHARBONNEL, Nanine; KLEIBER, Georges (1999).  La métaphore entre philosophie et rhétorique . Paris: Presses Universitaire de France (Linguistisque nouvelle), pp. 135-170. Tradução para uso escolar, Tarso Mazzotti, 2002. 1 A reflexão a ser lida foi desenvolvida n o âmbito do coletivo Groupe µ.  2

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Metáfora e cognição1

 Jean-Marie Klinkenberg

 As origens do sentido: aporias dos modelos tradicionais

 De onde vem o sentido? 

São numerosas as teorias do sentido. Há, no entanto, uma questão que a maioriadentre elas ilidem, mesmo sendo, todas elas, ao mesmo tempo, teorias dacomunicação: de onde vem o sentido?

De fato, frequentemente tais teorias do sentido partilham o axiomaconvencionalista, evocam um prévio acordo em toda comunicação e a existênciade um código exterior às consciências individuais, código que se impõe de

maneira imperativa aos diferentes parceiros da troca. Esta concepção sociológica,que era a de Ferdinand de Saussure, não é ideologicamente neutra. De fato,provém em linha direta do espiritualismo de Durkheim, culmina na idéia deque os locutores são permutáveis. De um golpe, ela //135/ elimina toda tensãoentre eles, não dá, por consequência, qualquer perspectiva de negociação. Mas,não será nisto que aqui nos deteremos. Quero insistir mais no fato de que ateoria convencionalista “recobre com um véu opaco as etapas que precedem aconvenção. Ela não explica como o sentido é elaborado (…) nem o que se passa(…) antes do consenso ser estabelecido” (Saint-Martin, 1987, p. 104).

Este problema pode ser reformulado da seguinte maneira: como o sentidoemerge da experiência? Problema antigo e particularmente irritante. Ele põe, defato, a questão do liame que entrelaça um sentido que parece não ter fundamentofísico e as estimulações físicas provenientes do mundo exterior. Estimulaçõesque, como tais, não parecem estar revestidas de sentido. Este problema é antigo, já disse, animou toda a reflexão filosófica ocidental, de Parmênides a Descartes,de Malebranche a Husserl, de Hume a Peirce e do idealismo à fenomenologia…

Caberia à semiótica resolvê-lo? À primeira vista, não me parece. O pensamentoestruturalista sempre defendeu a idéia, à primeira vista paradoxal, segundo a

qual “toda estrutura de um campo supõe um princípio estruturante que é nãoestruturável” (Nef, 1976). Pode-se, certamente, ver nisto uma certa circularidade,

∗ Métaphore et cognition In CHARBONNEL, Nanine; KLEIBER, Georges (1999). La métaphore entre philosophie et rhétorique. Paris: Presses Universitaire deFrance (Linguistisque nouvelle), pp. 135-170. Tradução para uso escolar, TarsoMazzotti, 2002.

1 A reflexão a ser lida foi desenvolvida no âmbito do coletivo Groupe µ. 2

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mas não é outra coisa do que a aplicação de um famoso princípio de Gödel: osfundamentos que permitem formalizar um sistema não podem, eles mesmos,serem formalizados. Em linguística, a manifestação mais conhecida dessacircularidade é, sem dúvida, a estruturação do campo de expressão. Sabe-se que

ela requer que se recorra ao campo do conteúdo, que deve ser aceito de antemão,e que, para estruturar o campo do conteúdo, é preciso recorrer ao campo daexpressão.

Quem diz estrutura, diz distinção, oposição. A oposição constitui um dosconceitos de base da semiótica, tal como a convenção na linguística saussuriana.Mas, em virtude da circularidade que acabo de falar, os conceitos são purosaxiomas, à maneira do a priori kantiano. Definitivamente, o sentido nos escapa enada se pode dizer sobre suas origens. //136/

 Duas respostas

Todavia põe-se uma questão no momento que se recorre ao princípioestruturante exterior. Qual escolher? São todos têm igual pertinência?

Grosseiramente, as escolas semióticas apresentam dois tipos de respostas aesta questão. De um lado, as escolas racionalistas, em geral européias, e que seinscrevem em uma corrente de pensamento ilustrado por Saussure, de início, e,depois, por Hjelmslev e Greimas. De outro, o pensamento pragmático, ilustradopor Peirce, a qual é, no geral, americana.

Para os representantes das primeiras escolas o princípio estruturante exterior

poderia ser uma teoria idealista do conhecimento, ou ainda um formalismológico. Mas, isto é, no fundo, de pouca importância. O essencial é que, paraeles, a descrição da língua pode satisfazer-se por sua coerência interna, por seradequada ao seu objeto (Greimas, 1970, p. 51). Reina, pois, nesta semiótica,a idéia da autonomia total dos signos em relação ao mundo. Esta concepçãodesemboca no conceito da arbitrariedade do signo, que se tornou um dogma, eculmina em pôr entre parênteses a questão do ponto de contato entre o mundoe os signos. A qualidade alcançada na descrição da lógica interna do sistema é,pois, extremamente pesada, condena-se, de fato, a não saber para que servem os

signos. A resposta do pragmatismo é muito diferente e se pode dizer que a semiótica dePierce está a contrapelo do racionalismo europeu.

O pensamento peirciano reserva, de fato, uma parte importante à hipótese. Opapel da hipótese é capital no funcionamento da abdução, que é, aos olhos dePeirce, o tipo de inferência mais própria a modificar nosso conhecimento do

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mundo. Ora, esta inferência, como todas as outras, funciona sempre a partir dedados fornecidos pela experiência. A experiência toma, então, um certo lugar nateoria, este lugar que lhe recusa a semiótica post-saussuriana. //137/

Todavia, a questão da relação entre o mundo e os signos, não recebe, em

Peirce, uma resposta muito mais satisfatória do que em Greimas, que postulaa existência de uma “semiótica do mundo natural”, sem pôr em questão osseus fundamentos. Para o Americano, os objetos são “reais”. Quer dizer,independentes da idéia que deles façamos. São estes que se impõem a nós, dandopartida ao processo que ele denomina semiose. Evidentemente, tal posiçãoé discutível. Peirce viu muito bem que a relação entre o objeto percebido e apercepção constitui um problema, tentou fornecer um modelo desta atividadeperceptiva. Mas, ele permaneceu mudo quanto ao mecanismo que serve parainterpretar os dados, os quais são, por definição, percebidos como incompletos

(uma vez que desembocam necessariamente nas inferências). Que forças movemtal mecanismo de interpretação? Peirce parece apontar para a existência de umtipo de força semiótica, conatural ao homem: “o signo que o homem utiliza é ohomem mesmo” (5.314). Há aqui uma concepção psicológica que merece ser,pelo menos, interrogada. Pois, afirmar que há semiose porque há no homemuma virtus semiotica, é bem pouco útil. O encaminhamento que permite aPeirce a afirmar que é a abdução e não a dedução que nos permite renovar nossoconhecimento do mundo, permanece, então, completamente especulativa.

 Assim, para uns “nós tratamos das descontinuidades no mundo que nadasabe” (Greimas, 1970, p. 9). Mas, como tratamos tais descontinuidades? Nadanos diz. Os outros sabem que o mundo está ai, mas não se inquietam com amaneira pela qual advêm as descontinuidades que eles tratam. As duas posições,aparentemente opostas, desembocam, pois, em um mesmo non possumus.

 A terceira via: um a semiótica cognitiva

Quero defender aqui uma terceira via: uma semiótica cognitiva. Uma semióticacognitiva —na qual a atividade metafórica tem um papel que se verá— quepermite ultrapassar //138// a oposição entre os recortes a priori do racionalismoestruturalista europeu e a crença na objetividade do percepto que embaraçao empirismo americano. Qual será o princípio estruturante de tal semiótica?Ele será tão exterior quanto os das outras teorias. Mas, será, sem dúvida,mais pertinente, porque permitirá mostrar que o princípio de oposição temfundamentos sólidos nos dados exteriores ao sistema. E, notadamente, em nossoaparelho perceptivo.

 A tese desta semiótica, defendida em nosso Traité du signe visuel  (Groupe

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µ, 1992) é que os sentidos provêm de uma interação entre os estímulos e osmodelos. O que supõe um duplo movimento que vai do mundo ao sujeitosemiótico e deste ao mundo. Em um dos movimentos, os estímulos são objetosde uma elaboração cognitiva à luz do modelo; e, em outro, o modelo é modificado

pelos dados fornecidos pela experiência. Esta idéia será evidentemente familiaraos que já se esbarraram com a Psicologia da Gestalt ou os que se recordam dadupla acomodação-assimilação, tornada célebre por Piaget.

 Percepção e conhecimento

Qualidades e entidades

Na perspectiva que acaba de ser evocada, a semiótica e a cognição estãoestreitamente ligadas. Pode-se sustentar que a estrutura semiótica elementarreflete exatamente nossa atividade de percepção. Logo, é preciso agora debruçarsobre esta última.

Seja um campo qualquer, sobre o qual sustentamos a atividade de percepção.

Em seu desenrolar mais simples, esta atividade consiste em detectar umaqualidade translocal no campo. Nossos órgãos perceptivos e o sistema nervosocentral são, de fato, estruturalmente equipados para detectar os invariantes emum campo //139// dado. Meu olho, por exemplo, não se contenta em detectar osmúltiplos pontos justapostos. Se todos esses pontos têm a mesma luminosidadee a mesma dominância cromática, eu digo que eles constituem, de conjunto,

uma mancha ou uma forma precisa. Ora, detectar uma qualidade em um campopermite distinguir uma entidade dotada daquela qualidade e discriminá-laem relação ao seu entorno. Forneçamos e comentemos os exemplos. No ar,eu percebo o ruído da sirene (entidade) agudo e possante (qualidade). Sobreeste papel branco, discirno uma mancha (entidade) azul (qualidade). Forma efundo. A forma nada mais é do que um conjunto de pontos considerados comofazendo parte de um mesmo conjunto. Por que este julgamento? Porque estespontoe apresentam qualidades idênticas e essas qualidades são suficientementediferentes das que apresentam os pontos do fundo. O aparelho constituídopor nossa retina (que está longe de ser a placa fotográfica passiva de nossos

manuais de biologia) está programado para delimitar os estímulos, quer dizerpara ler as diferenças pouco importantes e acrescer, em troca, os contrastes maisimportantes.

 A conjunção dessas duas aquisições simultâneas —qualidade e entidade—constitui um conhecimento elementar. Em relação ao campo perceptivototal, entidade é uma parte, e resulta de sua decomposição sobre o modo

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que chamamos P2, Quanto à qualidade ou propriedade, esta caracteriza todaentidade, uma vez que é translocal; seu correspondente linguístico é o sema ou ogrupo de semas, dizendo de outra maneira, o resultado de uma análise de tipo S. A entidade é algum tipo de qualidade tornada coisa, uma qualidade reificada.

É preciso ainda notar que este conhecimento elementar pode ser estocado namemória de longo prazo. É a //140/ memória, de fato, que permite comparar entresi as qualidades e, pois, as entidades. Pôr em evidência e estocar qualidadespermite elaborar classes e, dai, integrar entidades nessas classes. Eu possofazer a experiência repetida de qualidades associadas como vermelho, esférico,comestível, suculento e disto criar a classe “tomate”.

 Vou completar imediatamente esta descrição, insuficiente nesse estádio (pois,categorizar não é apenas classificar). Mas, é preciso marcar um tempo de retornoàs classes que faço alusão. A propósito delas é preciso notar duas coisas que terão

sua importância no momento em que abordarmos o problema da figura retórica.De início, a noção de classe não deve ser tomada aqui em um sentido restritivo. A lógica nos ensina que há classes frouxas. Em outras palavras, uma entidadepode conhecer graus diversos de pertencimento a uma ou a mais classes. Assim,uma mancha pode ser dita mais ou menos azul; uma placa de trânsito “pare” serámais ou menos vermelha, segundo seja mais ou menos nova, ou ser esmaecidapelo sol. Então, a mancha pertencerá, forte ou fracamente, à classe dos objetosazuis e o sinal, forte ou fracamente, à classe dos objetos vermelhos. Em outraspalavras, ainda, pode-se atribuir forte ou fracamente uma qualidade dada a esta

entidade. Em nossa cultura, o pardal pertence fortemente à classe dos pássaros,pois apresenta todas as qualidades prototípicas: tem bico, asas, voa… O pinguimapresenta um número inferior dessas qualidades e tem, pois, um grau menor depertencimento à classe. Quando ao kwi, nesse caso cabe uma discussão…

Por outra via, segunda observação— as classes não são dadas desde sempre e deuma vez por todas. Certas classes têm uma existência muito institucionalizadae outras não. A classe dos “animais” nos é familiar, como a dos “instrumentos”.Sua institucionalização dá-lhes todas as aparências de objetividade. Mas, aclasse dos “objetos vermelhos” tem um menor grau de evidência, e a dos “objetos

2 Recorte diz-se Π porque os elementos proposicionais obtidos pela operaçãoestão em uma relação de produto lógico (há equivalência entre a expressão “ x  tem a qualidade ‘árvore’ e o produto de proposições como “ z  tem um tronco”e “ x  tem ramos”. Recorte se diz Σ porque os elementos proposicionais obtidospela operação entre elas em uma relação de soma lógica (há equivalência entre aexpressão “ x tem a qualidade ‘árovore’” e um produto de proposições como “ x éum freixo” ou “ x é uma hera”; cf. Groupe µ, 1979, Edeline, 1972). 6

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chatos” ou dos “objetos energéticos” são ainda menos institucionalizados. //141/

Ora, a existência dessas classes é necessária para considerar figuras como as quese encontram nos enunciados (1), (2) e (3):

1) Tua língua, este peixe vermelho no bocal de tua voz.

2) O leito refeito das areias correntes.

3) Ponha um tigre em seu carro.

 A classe dos “objetos vermelhos e móveis” é produzida (se ela não estádisponível) para compreender, ao mesmo tempo, “língua” e “peixe”; postular istosobre “objetos chatos” permite ai associar “praia à maré baixa” e “leito refeito”; ados “objetos energético” permite associar “tigre” e “gasolina”.

 Aqui chegados, podemos dizer que a metáfora —uma vez que os exemplos queprecederam são metáforas— procede de um duplo movimento, de um lado,

ela prejudica a estabilidade das classes muito institucionalizadas, ai incluindoentidades que não parecem, a priori , deterem a qualidade constituinte da classe;de outro lado, ela constitui um julgamento de pertencimento a duas entidades emuma classe, mas a uma classe fracamente institucionalizada.

Deixemos, momentaneamente, a figura de lado3, e voltemos ao esquema geralda cognição —qualidade e entidade, e procedimentos de classificação— parasublinhar que todo um caminho científico procede de tais operações elementares.Ela culmina, de fato, no campo perceptivo total de distinções mais e mais finas.

Observemos duas coisas a propósito do encaminhamento da ciência, sobre a qualme estenderei mais longamente adiante.

Inicialmente, é preciso sublinhar que o movimento de distinção não é retilíneo, aciência frequentemente aceita pôr em questão tal ou qual qualidade translocal. Éassim que a //142/ consideração do biótipo que autorizava classificar a baleia entreos peixes em nome de uma de suas qualidades deu lugar a outras consideraçõesque lhe conferem novas qualidade salientes, as quais autorizam reclassificá-la.No mesmo movimento em que põe em questão uma qualidade a ciência pode arenunciar considerar como confirmada a entidade segregada correspondente. Éainda assim que reconheceu, depois de muito tempo, que as constelações, apesar

da figura perceptiva que desenham no céu, são, de fato, constituídas por estrelas,que não têm qualquer ligação privilegiada entre si.

3 Notando que o problema persiste por inteiro: qual é a fonte dainstitucionalização forte ou fraca de uma classe? Não pôr esta questão seria, maisuma vez, repousar no axioma da convencionalidade, que já falei no início. Estafonte precisa ser, evidentemente, procurada fora das leis do sistema: as classesexistem, de fato, em razão de seu interesse social ou biológico.7

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 A segunda coisa a notar, nessa pista, é que o discurso científico associa também,às vezes, entidades no seio de uma classe pouco institucionalizadas, ao menosinicialmente. Isto teria parentesco com o discurso retórico? Sim, a isto voltareiadiante.

Por ora resumamos. Quer se trate de uma atividade perceptiva a mais elementar,tanto saber mais comum ou quanto ao da disciplina científica a mais sofisticada,a árvore das disjunções é percorrida, pelo encaminhamento cognitivo, no sentidode distinções sempre novas e múltiplas. Trata-se de um processo incansável, masnão necessariamente retilíneo. No curso desse processo corre-se o risco de novasnuances, de novas classificações, aceitando pôr em causa se preciso.

 Entidades et interações

 As entidades segregadas em um campo perceptivo são arranjadas em classes,

com base nas qualidades translocais que se lhes atribui. Mas, pelo fato mesmode que são segregadas, elas entram em relação com outras entidades, tambémelas tendo as suas qualidades. E o fundo sobre qual se destaca uma forma é elamesma uma entidade, uma vez que apresenta uma qualidade translocal distintada primeira. Por exemplo, a folha sobre a qual se mostra uma mancha azul é umaentidade que tem sua qualidade. Vê-se, pois, que a noção mesma de entidadepressupõe esta interação: não se //143/ pode, de fato, distinguir as entidades senãograças a uma relação de contraste entre duas qualidades.

Como a entidade e a qualidade, tais interações têm, pois, uma fonte perceptiva.

Dizer que certas entidades são distinguidas do que as envolve torna, de fato, apôr em evidência a noção de contraste. Ora, a mecânica perceptiva dá um sentidoa esses contrastes, a interação é este sentido. Sabe-se, aliás, que pode havermuitos tipos de interações, Gogel, por exemplo, mostra que a proximidade dosestímulos no espaço constitui um certo tipo de interação entre eles (as formaspróximas podem integrar em uma forma superior considerada como um todo.É assim, por exemplo, que os círculos e os pontos próximos podem, ainda queclaramente separados uns dos outros, constituir um desenho único.) mas, ao ladoda proximidade há também a identidade de formas, ou de dimensões, ou ainda aprogressão etc..

Com a noção de interação, que completa as de qualidade e entidade, dispomosagora de um modelo de categorização que não pode ser reduzido à simplesclassificação. Pois, repito, categorizar não é simplesmente classificar.

 Percepção e semióticas

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 As reflexões precedentes concernem à percepção. Mas, elas valem também paraos instrumentos que servem para exprimir esse saber perceptivo. Como se sabe,o signo é o instrumento que serve para categorizar o mundo. Dever-se-á, pois,esperar reencontrar a estrutura de base —qualidades, entidades, interações—

em todas as semióticas, tanto na linguagem verbal, é claro, como também nasdas imagens, dos símbolos químicos, das cores etc.. Tanto nas semióticas quantono conhecimento perceptivo, o sentido é o resultado de um ato de distinção.Em nome de um certo valor, segrega-se certas unidades em um continuum.Segrega-se assim, por exemplo, o vermelho e o azul dos sinais de trânsito emum contínuo de cores, em nome de uma oposição de conteúdo. //145/ Por certo,como sugere o último exemplo, bem como a introdução da noção de valor, assemióticas não podem ser pura e simplesmente remetidas aos conhecimentosperceptivos. Para que haja semiótica é preciso alguma coisa mais além do atode distinção. É preciso que se ponha em relação um plano de conteúdo e um

plano de expressão. Mas, o que estabelecemos até o presente já sugere que sepoderá comparar unidade (semiótica) e entidade (perceptiva), valor (semiótico)e qualidade (perceptiva), e que, em geral, poder-se-á aproximar percepção esemiótica. Vendo no sentido o resultado de um ato de recorte de um continuum,a semiótica aproxima-o impliciatamente do encaminhamento perceptivo. Vê-seno presente, que esta aproximação poder ser explícita.

Tudo se passa como se o pensamento humano não pudesse funcionar, no planomais geral, a não ser elaborando conjuntamente um repertório de entidades eum conjunto de regras que regem as suas interações. Assim, o físico procura as

partículas elementares (mésons, pions, baryons…) e descreve suas interaçõesfortes ou fracas (atração das massas, forças elétricas e magnéticas…). Segue-se o mesmo para a mecânica (“movimentos” dos “corpos”…), a química(“propriedades” dos “elementos”), a ecologia (“equilíbrio” das “espécies”…),a psicologia (“comportamento” dos “indivíduos”). As linguagens tambémreproduzem esta estrutura de base, uma vez que as descreve como conjuntode unidades, de extensão variável, unidades que se combinam segundo regrascomplexas…

Com a noção de interação entre entidades completamos a descrição do sistema

cognitivo, até o presente, com as noções de entidade e de qualidade, das quaisapenas demos uma descrição paradigmática. No presente, com a noção deinteração, demos uma dimensão sintagmática. A consideração das classesforneceu uma categorização do mundo que toma a forma de disjunções emcategorias (estrutura tipo S). A consideração das interações entre entidades(segregadas no universo no modo P) permite apresentar isto tudo sob a forma

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de função: função referencial //145/ na terminologia de Nunberg (1978), funçãopragmática na de Fauconnier (1984).

Em cada uma dessas disciplinas, ou em cada uma dessas semióticas, acategorização pode apresentar-se, vimos, sob as espécies de uma predicação:

categorizar é sempre predicar. Esta observação terá toda sua importância quando voltarmos à metáfora que é, desde já, definida como uma “modificação de nossacategorização da experiência” (Molino, Soublin, Tamine, 1979, p. 23), a figurafórmula de uma entidade do mundo dos predicados categoriais novos.

Mas, voltemos ao modelo cognitivo fundamental para sublinhar que o processoperceptivo de segregação, de discriminação, está na base da estrutura semióticaelementar, ele permite a predicação e a oposição. Na predicação, os mecanismosperceptivos permitem pôr “ x tem a propriedade m”. Na oposição, eles permitempôr “s opõe-se a y, pois y não tem a propriedade m”. Assim se está longe, vê-se,

do objetivismo peirciano, a negação não existe nas coisas, mas no julgamentoperceptivo das coisas.

O caráter provisório das enciclopédias

O tempo todo disse que a pirâmide das disjunções fora percorrida, peloencaminhamento cognitivo, no sentido de distinções sempre novas e múltiplas,em um processo que não termina, uma vez que as qualidades reconhecidaspodem, sem cessar, ser postas em questão. Mas, eu também falei de ummovimento cognitivo duplo: do mundo aos modelos semióticos e destes ao

mundo. A existência de dois movimentos sugere também que a dialética cognitivanão tem término necessário. Os dois movimentos de base podem, de fato, serprolongados em novas duplas de movimentos que podem ser mais amplos:criação de informações //146/ novas e modificação da experiência, ou criação deuniversos conceituais novos.

Toda categorização tem, pois, um caráter frágil e provisório. As classes podemser rejeitadas em proveito de outras. Esta fragilidade também se origina do fatode que as enciclopédias são plurais. Mas, não apenas por razões cognitivas. Essecaráter frágil e provisório das enciclopédias tem também uma fonte social e

pragmática. Ou melhor, uma tripla fonte social e pragmática.Inicialmente, porque há uma tensão entre os dois tipos de encaminhamentos -uma movida pela empiria—, e a outra pelo que se poderia denominar idealismo(se a palavra não fosse conotada negativamente), todas as duas culminam naelaboração de sistemas conceituais que podem divergir.

Em seguida, há diferentes maneiras de classificar as entidades —diferentes

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enciclopédias— segundo o ponto de vista que se adote, dizendo de outra maneira,a qualidade que se põem em evidência. O botânico classifica a maior parte do quechamamos os cogumelos como a ruille du blé na ordem dos basomicitos, mas oamador de cogumentos banira esta roulle de blé de seu campo de interesse, no

qual acolherá, ao contrário, os morilles, os prezizes e as trufas, que o botânico,por sua parte, remeteu para a ordem dos ascomicitos, com algumas moisissurese a levedura de cerveja. Acima, descrevi o físico que pesquisa suas partículas.Sabe-se que essas entidades se preocupam também o filósofo e o químico, masa títulos diversos. A qualidade que tem uma entidade de ser uma partícula não éposta em causa pelo físico, enquanto que o filósofo interrogará esta qualidade eo químico não interrogará mas fará uso dela. Enciclopédias plurais, pois. Melhorainda: diversas enciclopédias podem coexistir em um só e mesmo indivíduo quepode, pois, dispor simultaneamente de múltiplos recortes de um mesmo conjuntode estímulo. Um engenheiro naval, no exercício de suas funções, apenas poderá

sustentar que a fumaça é uma parte de um navio; mas, desenhando o dito naviopara seu filho, talvez faça da fumaça o principal elemento do navio, pois é //

147/ esta qualidade “fumaça” que, para a criança, autoriza a melhor integraçãoda entidade na classe “navio”. Duas enciclopédias diferentes, uma vez que elaspropõem interações diferentes entre entidades, mas que coexistem na mesmapessoa.

Por fim, todos esses sistemas divergindo potencialmente, pedem para seremcomunicados entre os diferentes membros do corpo social. De sorte queimportantes diferenças podem manifestar-se entre eles. Essas diferenças abrem

o campo para a confrontação e, pois, para argumentação. Nos reencontramosaqui a retórica em sua definição perelmaniana reformulada por Michel Meyer: aretórica como espaço de negociação das distâncias4. Posso precisar negociaçãodas distâncias entre as diferentes enciclopédias disponíveis.

 Retórica como mecanismo de reestruturação dos códigos

Hoje todo mundo concorda em definir a figura retórica como dispositivoconsistindo em produzir enunciados polifônicos.

Por isto se quer dizer que as manobras contextuais particulares obrigam o

receptor a: 1) não se satisfazer com um ou com múltiplos elementos presentesna superfície do enunciado (elementos que eu denominaria “grau percebido”), e,2) a produzir um conjunto frouxo de interpretações que se supõe naquele graupercebido (conjunto frouxo de interpretações que eu chamaria “grau concebido”).

4 Esta concepção contradiz o postulado convencionalista em que este último levaa permutação de locutores. 11

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Falo mais em superposição, aqui não se trata de uma simples substituição,como deixa crer a terminologia tradicional que fala de sentido próprio e sentidofigurado. O efeito retórico provém, de fato, da interação dialética entre o graupercebido e o conjunto frouxo do dito grau concebido. //148/

Para ilustrar esse mecanismo de maneira mais detalhada emprestemosimediatamente um exemplo da vida quotidiana. Esse será o de uma jovemotimista que declara:

4) “Casei-me com um anjo”,

enunciado no qual identificamos um metáfora convencional.

 A produção de uma figura: um processo em quatro etapas

Pode-se distinguir múltiplas etapas na produção de uma figura5.

 A primeira etapa é a do ajuste a uma isotopia no enunciado. Pode-se ligar essemecanismo ao conceito de pertinência, ou de economia semiótico. Todo elementode um enunciado inscreve-se, de fato, no contexto criado pelos elementos que oprecede. Estes elementos projetam uma certa expectativa frente a eles mesmos,e esta expectativa pode ser preenchida ou desabusada pelos elementos queaparecem. Podemos imaginar, por exemplo, um contexto que seria o de umaconversação com a jovem otimista que enunciou o nosso exemplo (4). Esta contapara nós (uma parte de) de sua nova vida conjugal e, a cada elemento novode sua conversação —por exemplo, as proezas de seu companheiro, ou suas

considerações sobre o clima de Baleares— faz sentido de maneira econômica decombinar os já fornecidos.

 A segunda etapa é a do ajuste de uma impertinência. Em nosso exemplo, “anjo”destoa da expectativa, a conversação não tinha até então o caminho nemde um curso de teologia nem de uma conferência sobre mitologia. Há umaincompatibilidade enciclopédica entre o sentido de “esposo” - que faz esperarum complemento designando um ser de carne— e o complemento efetivamenteproduzido. /Anjo/ não pode ser tomado //149/ no sentido de “ser supranatural,com o papel de mensageiro celeste” (grau percebido) e é alotopo.

Pelo que se seque que, esta etapa não pode ser bem compreendida caso não sefaça referência ao princípio de cooperação, que subentende toda troca semiótica.

5 Evidentemente é por comodidade de exposição que se fala em etapas. Istonão significa necessariamente que se sucedam cronologicamente. De fato, osmecanismos que vou descrever produzem-se simultaneamente, ou, em todo caso,em um curtíssimo intervalo de tempo. Sem dúvida, em u 4/100 de segundo, comomostraram Martin Kutas e Steven Hillyard.12

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 A alotropia constitui, de fato, uma expectativa no código enciclopédico comumque fundamenta a comunicação, enquanto que sua reavaliação, que terá lugarno curso das etapas seguintes, é a da reorganização que permite manter intactoo contrato de cooperação ligando os interlocutores. De um lado, o enunciador

produz um desvio em relação à enciclopédia, mas postula que o receptorultrapassará este desvio. De outro, o receptor confronta com um enunciadodesviante falado sobre o caractere significante deste enunciado e produz, pois,um trabalho de reinterpretação6, constituída pelas etapas 3) e 4).

 A terceira etapa é, pois, a reconstrução de um grau concebido. Trata-se de umaoperação de inferência destinada a salvaguardar o princípio de cooperação. Estaetapa comporta duas suboperações distintas. Mas, essas suboperações fundam-se, todas as duas, na propriedade que têm os enunciados redundantes.

 A primeira sub etapa 3a) é a localização do grau percebido da figura. De fato,

para a etapa 2), que nós ajustamos, é uma simples incompatibilidade entreum elemento a e um elemento b do enunciado. Mas, nada indica a priori  queo elemento impertinente neste enunciado é a mais do que b, é a isotopia queindicará com precisão o elemento impertinente. Em nosso exemplo, a isotopiado enunciado é “humano” (fala-se de casamento). De sorte que o grau percebidoda figura é facilmente identificável: é /anjo/, este temo teria certamente de ser justificável em uma isotopia teológica ou mitológica, mas aqui não é o caso…

 A segunda sub etapa 3b) é a da produção propriamente dita do grau concebido.Convém, de fato, sempre para salvaguardar //150/ o princípio de cooperação,

supor ao grau percebido, imposto pelo enunciado, uma porção de sintagmacompatível com o resto do contexto, programado que será por ele. O contextocomporta “esposo”, logo o complemento, na enciclopédia recebida, énecessariamente ser carnal. Este contexto permite avançar a hipótese de que/anjo/ designa aqui uma certa categoria de seres carnais. “Anjo” irá, pois,sofrer uma transformação. Aqui será “ser humano de sexo masculino”, o quedeixa esperar o verbo “esposar” quando é pronunciado por uma pessoa do sexofeminino (grau concebido). Por uma razão que irá aparecer, denominaremos estesemema “grau concebido 1”.

 A quarta etapa é a superposição do grau percebido e este grau concebido1. Esta superposição, capital em uma figura retórica, estabelece um liamedialético entre graus concebido e percebido. Em “casei-me com um anjo”,como já expliquei, seleciona-se os componentes semânticos compatíveisentre o percebido “anjo” e o concebido 1, afim de os aplicar ao segundo

6 Que pode ou não desembocar em um sentido correspondente ao que postula oemissor, mas esta é uma outra história. 13

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(“doçura”, “ternura”, “beleza”, “pureza”, “bondade”). De sorte que o graupercebido completo não é “ser humano de sexo masculino” (por isto falei de “grauconcebido 1”, para indicar o caráter provisório que tinha em minha descrição),mas muito mais “ser humano do sexo masculino doce, terno, bom etc.”. O que

chamaremos grau concebido 2, ou grau percebido completo.Para ser bem claro, pode-se distinguir duas subetapas neste último cálculo. A primeira 4a) consiste em um exame das compatibilidades lógicas entre opercebido e o concebido. Há certos pontos comuns entre “anjo” e “ser humanodo sexo masculino”, mas eles não são numerosos: “aparência humana”, porexemplo (não se pode ir mais longe; antigamente falou-se muito de sexo dosanjos…). É a segunda subetapa 4b) que é de longe a mais importante, elaconsiste em projetar sobre o grau concebido todas as representações que temosdo percebido. É assim que tal projetará o traço de “benevolência” enquanto

que qual outro privilegiará o traço de “pureza”. Para comentar um exemplomenos florido, //151/ tomemos o enunciado “Os falcões do governo”. A busca decompatibilidade lógica entre o grau concebido 1 (homens políticos) e o graupercebido apresenta-se a partir de um conjunto de traços como “ser vivo”. Oimportante é, aliás, que a projeção sobre o grau concebido da representação quese faça do percebido (“agressividade”). Esta operação culmina em um conjuntode leituras diferenciais. Por exemplo, “homens políticos fazedores de guerra” ouem “homens políticos, o verdadeiro, isto que são”.

O desvio retórico

O esquema aqui foi descrito como uma pura operação lógica, cujo lugar deprodução é um código descrito como autônomo. Ele pode também ser descritoem seus aspectos sociais - para o que a palavra retórica nos convém. Nestaperspectiva, o desvio constitui uma expectativa no código enciclopédico comumfundando a comunicação e sua reavaliação deste desvio é a reorganização quepermite manter intacto o contrato de cooperação.

 Acabamos de escrever a palavra “desvio”. Sabe-se que rios de tinta este conceitofez fluir. Não é aqui o lugar para retomar tal debate. Mas, pode-se notar que,na literatura sobre a figura (especialmente sobre a metáfora), o conceito dedesvio aparece como recorrente necessário e insuficiente. Recorrente, pudemosdemonstrar que se a encontra, sob diversos nomes, no coração do pensamentomesmo dos que recusam-na mais violentamente (Klinkenberg, 1990). E, maisrecentemente, G. Kleiber (1994, p. 35) também enumerou razoavelmenteos traços de recorrência: “predicação impertinente, anomalia semântica,

14

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incongruência, ruptura com a lógica, atribuição insólita, incompatibilidade…”7 Necessária, o mesmo Kleiber (1993) demonstrou perfeitamente as aporias queconduzem //152/ certas posição pragmáticas que recusam o desvio (Sperber e Wilson, 1986). Insuficiente, por fim, porque o critério de desvio é apenas uma

marca muito geral, não permite isolar a metáfora dos outros tropos, e, sobretudo,oculta as fases de remanejamento do sistema que segue o ajuste do desvio (asetapas 3 e 4 de nossa descrição) não põe suficientemente adiante o caráterinterativo desta operação de remanejamento (Groupe µ, 1977).

Pois é preciso notar a presença de muitos tipos de desvio. Os primeiros são osdesvios em relação aos usos sociais existentes em um código. Se, em português,o termo “enterração” (para “enterro”), eu atualizo uma tripla virtualidade docódigo (uso de um sufixo designando a ação de um monema regularmenteconstituído e as regras de fixação previstas pelo código). Mas, esta forma era, até

ser enunciada, pura virtualidade e sua aparição constitui, pois, um desvio. Nesteestádio, uma questão se põe: todos os desvios constituem realizações do virtual?

Poder-se-á imaginar, recordando-se a sequência de Hjelmslev, que distinguio esquema, norma, uso e ato, Eugenio Coseriu despedaçou a dicotomia línguae palavra. Em sua teoria, um terceiro termo - a norma8—‚ constitui um filtro,limitando as potencialidades do sistema: uma produção (palavra) não conformeà norma pode, no entanto, estar conforme às regras de nível superior (asda língua). Este esquema, que foi elaborado para compreender a variaçãolinguística, pode ser generalizado. Pode-se postular um encaixamento de normastal que todo desvio constatado em um nível m e constitui a aplicação conformeuma norma situada em um nível superior (nível n). Cada desvio teria, desdeentão, um lugar onde se cruzam duas forças: ele obedece a um certo número deregras (de n), mas rompe com outras (de m). Assim —e isto é importante para asequência— o desvio está ao mesmo tempo no sistema e fora do sistema. //153/

 A reação ao desvio e a reestruturação dos códigos

É preciso, agora, para continuar nossa proposição, concentrar no elementoreavaliado, ou, melhor dizendo, no produto da reavaliação. Qual é o seu estatuto?

Para responder a esta questão, pode-se notar que há teoricamente cinco tipos dereações a um desvio9.

São:

7 Poder-se-ia juntar “uso menos que literal”, “conflito entre código emensagem”, “conteúdo complexo incoerente”, ainda muitas outras.8 Em Hejelmslve, a dupla norma e uso.9 Aqui generalizo os resultados de uma pesquisa de Schifko (1988).

 

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1/A não consciência: o receptor não constata o desvio. Por exemplo, o caso emque um subentendido é tomado à letra.

2/ O erro, o desvio é atribuído a um disfuncionamento acidental ocorrido nocurso da transmissão e é simplesmente corrigido. A interação dialética que define

a figura não se produz.

3/ O desvio propriamente retórico. É aquele que está conforme com as regras queexpus em meu exemplo.

4/ A convencionalização, sobre a qual voltarei.

5/ A não interpretatividade, rompe-se o contrato de cooperação.

Todas estas reações são interessantes em um quadro de uma teoria das interaçõescomunicativas. Mas, somente reteremos duas dentre elas: a terceira e a quarta.Elas correspondem às duas leituras possíveis do processo de correção.

Segundo a primeira leitura (reação nº 4), o produto reavaliado do desvio éintegrado no conjunto —aumentado— que o contém assim como a base; é nessesentido que a figura retórica ergue-se de um pensamento que se pode qualificarde progressivo. Se ela é generalizada, esta atitude tem uma consequênciaimportante para o sistema semiótico no qual a reavaliação se produz: a de ser aúltima em um movimento de expansão. A enciclopédia modifica-se10. Mas, o queresulta do estatuto do //154/ elemento assim integrado? Ele deixa de fazer desvio.O desvio abole-se no movimento de expansão. É todo o problema da catacrese11/

10

Talvez se ponha uma questão, a de saber o que toma a responsabilidade destaintegração. Esta questão importante não pode ser exaustivamente tratada aqui.Dizemos que na perspectiva de uma teoria da recepção (saída da retórica), oduplo trabalho de reavaliação e da integração é incumbência do receptor. Mas, seo emissor é impotente para impor um sentido preciso à reavaliação e mais aindaem forçar a integração, ela assume, pelo menos —no momento em que o desvioé percebido (logo, nas reações e a 5)— a responsabilidade do desvio. Ele indica,pois, ao seu parceiro que tem a obrgação de proceder uma reavaliação qualquer(obrigação a qual o parceiro pode subtrair-se, reação nº 5).11 De passagem regulamos o problema da pretensa “metáfora científica”. Nãoé preciso, de fato, confundir metaforicidade retórica e transferência conceitual

em nome de um traço comum que seria a “analogia”. A transferência de umconceito de um domínio para outro —por exemplo, o dos conceitos de “sintaxe”ou de “metáfora” para a semiótica icônica— obedece às regras que excluemprecisamente a retoricidade (cf. Klinkemberg, 1993). Aliás, N. Chabonnel (1991)recordou com pertinência que o conceito de analogia é muito vago, reenvia adois encaminhamentos que a terminologia antiga distinguia perfeitamente:a similutudo e a comparatio. Os encaminhamentos cognitivos clássicosexploravam tanto a similitudo quando a comparatio, mas a figura retórica funda-se exclusivamente na similitudo. 16

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Uma outra representação possível do produto reavaliado do desvio é a seguinte:o desvio é considerado como estando fora do conjunto ao qual pertence a base. A figura, apontando novas qualidades, dá um novo estatuto às entidades, queela arruma em novas classes, suscetíveis de produzir novas relações. Mas,

uma variante importante desta segunda leitura é possível. O elemento é entãoreputado como pertencente a um conjunto que englobaria o primeiro, conjuntopotencial. Cada figura seria apenas, então, a atualização de uma virtualidadedeste conjunto. Neste sentido, ainda, a retórica é progressiva. Cada ato retóricoseria, de fato, uma exploração das potencialidades do mundo semiótico,conduzindo a novos recortes acessíveis aos novos parceiros de troca semiótica.

 Vê-se, imediatamente, o interesse desta descrição. Indicar que a figura é violaçãode um certo tipo de classificação situando-se no nível m, mas aplicação deregras de um segundo sistema situado em um nó superior n permite, de fato,

conciliar duas concepções aparentemente irreconciliáveis desta figura: a que vê na figura uma violação das //155/ regras de troca linguageira, e a que aí vêum uso completamente conforme com estas regras. Paradoxo que os retoristas—se surpreendendo que o uso dos tropos seja ao mesmo tempo desviante equotidiano, logo “normal”— não mal tinham resolvido até o presente.

Mas, voltemos ao estatuto do desvio. Neste segundo caso, e ao reverso doprecedente, o estatuto da criação é precário. De fato, o resultado da reavaliaçãonão é imediatamente chamado a fazer parte do sistema conceitual ao qual olocutor chama para fazer parte do sistema conceitual, ao qual o locutor se referirápela continuidade do curso de suas trocas, logo, o sistema semiótico não conheceprovisoriamente a expansão.

Esta dupla representação da reavaliação foi aqui descrita no quadro do códigoconcebido de maneira autônoma. Como fizemos mais acima a propósito daalotropia, podemos transpô-la para o quadro social da troca semiótica. Emsua primeira representação, a reavaliação seria a integração de uma novaunidade ou de uma nova relação entre unidades (retornaremos a isto) no quadroenciclopédico comum. Na segunda, ela seria a criação ou a proposição de umnovo quadro enciclopédico, mas cujo estatuto é menos socializado, menosinstitucionalizado.

Tudo isto nos permite sublinhar uma propriedade do desvio retórico. Este ésimultaneamente contestação de uma ordem anterior e confirmação desta ordem.Ou, para dizer com maior precisão, a confirmação da existência de um sistema,mas também é reorganização das relações entre as unidades do sistema.

 Instrumentos da reorganização retórica. O papel privilegiado da metáfora

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Todos os tropos não agem da mesma maneira no papel reorganizador.Indubitavelmente a metáfora efetiva mais facilmente a recategorização daexperiência.

Esta funciona, de fato, com base em uma interseção //156/ de dois conjuntos

de propriedades enciclopédicas. A intersecão propriamente dita constituio embasamento lógico da figura. Mas, o interesse da manobra não está emsublinhar a copossessão dessas propriedades enciclopédicas. Como já disse,o efeito retórico origina-se da interseção dialética entre o grau percebido e oconjunto frouxo dito grau concebido. No caso da metáfora, a manobra consisteem estender à reunião de dois conjuntos o que apenas pertence à interseção,outra maneira de validar o máximo de traços provenientes do grau percebido narepresentação do concebido. Como demonstramos no  Rhétorique de la poésie (Groupe µ, 1977), a estrutura interseciva da metáfora confere-lhe sua poderosa

função mediadora. Donde suas importantes potencialidades hermenêuticas,postas em evidências por Paul Ricoeur (1978). Desvio da categorização,estabelece conexões novas em nossas estruturas enciclopédicas.12

Face à metáfora, os outros tropos têm apenas um fraco papel reorganizador.

 As metonímias e sinédoque de tipo P (do todo para a parte e da parte ao todo)apenas cuidam de explicitar relações entre entidades fortemente estabilizadasem uma enciclopédia já socializada13. Prandi nota também que a sinédoque nãoconstrói interações, mas “limita-se a valorizar seu enraizamento profundo napercepção e na categorização de objetos” (1992, p. 15).

Quanto às sinédoques de tipo S, sabe-se que seu caráter figural é frequentementediscutível. Dizer “o animal bendito” não é figural, mesmo que se saiba que oanimal em questão é um cão, e mesmo que se saiba que ele responde por umnome preciso, Lélaps ou Médor (cf. Meyer, 1993). A manobra de generalização oude particularização, dizendo de outra maneira a designação //157/ de um referentepor um termo que é um hiponimo ou um hiperonimo do termo situado no nível básico está plenamente previsto pelo código. Quando uma generalização ouuma particularização é autenticamente figural —ou seja, quando opera uma verdadeira sinédoque—, a manobra de generalização ou particularização vai,

geralmente, ao par de uma modificação da enciclopédia que introduz, entre o

12 Turner (1988) nota também que a metáfora, enquanto desvio categorial,estabelece conexões novas em nossas estrturuas categoriais.13 

Cf. Groupe m, 1977. Também a contribuição de Fauconnier (1984), quandoestuda a estrutura dos “espaços mentais”, que correspondem aqui à nossaenciclopédia (cf. Klinkenberg, 1982).

 

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grau concebido e o grau percebido, uma estrutura lógica de interseção e nãoapenas de inclusão14. Quer dizer que tais figuras aproximam-se da metáfora.

 Assim, a metáfora é o único tropo que, fundamentalmente, põe em causa osprincípios da estruturação adquirida. Parece, de fato, que ela choca mais à

 vontade os princípios fundamentais (como, por exemplo, as oposições animadase inanimadas). A recategorização produzida pela metáfora pode situar-se nomais alto nível da árvore de disjunções. Mas, pelo contrária, a leitura metafóricanão tem lugar enquanto entidades em presença são de mesmo nível. Salvocontexto muitos especiais, “bouleau” nunca é a metáfora para “frêne”, nem “chat”de “chien”15. Em tais casos, a reação ao desvio é de tipo 1 ou de tipo 2. Pondoem causa as estruturações mais fundamentais, substituindo-as pelos princípiosnovos, mas de mesmo nível de generalidade, a metáfora tem, pois, o mais altorendimento cognitivo. Para retomar —traindo ligeiramente— uma expressão de

Perelman, ela “funda a estrutura do real”. //158/

Conhecimento retórico e conhecimentos científico: uma base comum

Tudo o que precede permite afirmar que, em um primeiro exame, a retórica criaum sentido exatamente segundo o modelo da demarcação científica, ela propõenovos recortes do concebível. Quando o poeta escreve:

(5) os anjos azuis,

ele se fundamenta sobre o pressuposto existência (5’) “há anjos azuis”, o quepostula, no mesmo movimento, a existência (5”) “de anjos não azuis”. Esta nova

segregação de qualidades tem três consequências para a enciclopédia.

 A primeira, ela estabelece um acordo de que há uma propriedade até entãodesconhecida para a entidade que é anjo (sua coloração), o que cria umeixo “anjos incolores” versus “anjos coloridos”, na qual se opõe duas novas

14 Quando Queneu escreve, em uma passagem recentemente comentada por M.-C. Capt-Artaud (1994): “Des radis l’attendaient, et le chat qui miua espérantdes sardines, e Amélie (…). Le maître de maisob grignoir les végétaus, caressel’animal et réponde à ;être huma”, a relação “radis”-“vegétaux” não é somentede generalização. No contexto —a isotopia— doméstico posto em cena peloromance, a generalização esperada seria “legume”. “Vegetais” introduz um outrouniverso geral de categorização. Universo não mais doméstico, mas botânico, eradicalmente diferente do primeiro: a categoria “legume” não existe aos olhosdos botânicos, que ela transcende as categorizações (botanicamente falando, umlegume pode ser uma frutoa, uma raíz, uma tige, uma folha, e às vezes uma flor).15 Sobre isto cf Kleiber, 1994. 19

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entidades16 e, pois, novas classes.

 A segunda consequência é que o enunciador propõe um embrião de análise dapropriedades de ser colorido que concorda com “anjo”, aqui, esta análise conduzao eixo azul versus não azul. Da mesma maneira, quando Dell Hyme escreve:

(6) d’incolores idées vertes dorment furieusement ,

ele explora figurativamente a “cromaticidade” da idéia (qualidade que só éparcialmente nova17). Ele o faz opondo as entidades que são as idéias coloridase as idéias incolores. Muito mais, no interior da classe que constituem aquelas,eles postula que ser possível reintegrar a cor. Pois, as duas proposições (6’)“o referente de  x  é incolor” e *6”) “o rferente de  x  é verde”, deduz-se (6’”) “o

referente de  x é referente ao mesmo tempo verde e incolor”, segunda figura quepermite pressupor uma estruturação do gênero “incolor azul” versus “incolor vermelho” etc.. Reencontra-se, pois, toda a estruturação //159/ disjuntiva quecoloquei na base de toda atividade cognitiva, logo retórica. Esta estruturação éfavorecida ( e não bloqueada) pela produção de sentidos ditos figurados.

 A terceira consequência da figura é que ela impulsiona o estabelecimento novasinterações entre qualidades. Assim, caso se esteja de acordo em atribuir àentidade “anjo” as qualidades “sonoras” e “virginal”, facilmente se percebe quea qualidade “azul”, novamente admitida para o anjo, é fracamente compatívelcom “sonoro” mas, pelo contrário, o é fortemente para “virginal”.

É preciso concluir este ponto: não há, como deixa entender um pensamento

 vulgar e preguiçoso, “dois tipos de saberes”. O saber é um, e realiza-se segundoos mesmos procedimentos tanto no discurso científico quanto no retórico. Oprimeiro, radicaliza o encaminhamento cognitivo clássico. O segundo, imita-o de maneira criativa. Graças à elaboração das qualidades e entidades, oencaminhamento científico junta sempre duas manobras, de um lado, põe asunidades distintas umas das outras e que as envolve, e, de outro, estabelecerelações entre essa entidades (Édeline, 1991, pp. 97-98). A retórica não procedede outra maneira, ela distingue as novas entidades, às quais confere as qualidadesnova e que conecta de maneira nova.

 A retórica (no sentido de disciplina que se preocupa com as figuras) vê assim

16 Contrariamente ao que sustenta Jean Cohen (1979), não há neste casoprodução de uma totalização tal que toda oposição estruturante se abole.17 Já havia as “idéias negras” — vializadas por Franquin— e a “green thought” deMarwell. 20

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precisar seu estatuto. É —entre outras coisas—‚ a parte criativa18 do sistemasemiótico, a que permite fazer evoluir aquele pela produção de novas unidades.Ela é, pois, um elemento motor, que se situa em um lugar privilegiado, o dafronteira, sempre móvel, traçado pelas //160/ regras do sistema. Um sistema que

para permanecer dinâmico deve, de fato, sempre comportar um componenteevolutivo.

Como se disse, o lugar do retórico é assim paradoxal, ao mesmo tempo dentro efora19.

Um outro paradoxo é que a retórica é, ao mesmo tempo, regressiva e progressiva.Progressiva como não cessei de mostrar. Regressiva, como se vai ver.

O conhecimento retórico como encaminhamento regressivo

 Vimos que a figura suspende as estruturas semióticas socialmenteestabelecidas20. O sentido originando-se do recorte, a figura justapõe então, paraa criação de novo sentido que ela propõe, uma destruição parcial dos sentidosestabelecidos (cf. Groupe µ, 1972; Édeline, 1989). Os enunciados como (1) e (3)põem em questão a classe dos animais tal como ela foi estabilizada até então, eum enunciado como (2) a dos objetos

Este aspecto das coisas mimetiza um movimento geral de abolição do sentido esugere que todo recorte pode ser suprimido. O que mimará evidentemente todasemiótica. Esse movimento sugere que um retorno ao magma original, oceânico,é possível.

 Ao mesmo tempo regressivo e progressivo, a retórica veicula com ela os doistipos de prazer de anexar estes dois encaminhamentos: o prazer funcional,tradicionalmente atribuído à poesia, e o prazer de saber, tradicionalmenteatribuído às atividades estruturantes. A oposição entre saber e poesia, se háqualquer pertinência, não se põe, pois, no terreno do prazer. Pois a poesia, no

18 Os generativistas distinguem, ou recordam, a criatividade rule chaging e acriatividade rule governed . “Criatividade” sendo uma palavra mal escolhidano segundo caso, a palavra visa simplesmente a aplicação de regras, quer dizerpassagem do virtual ao real. É para a primeira, apenas, descrita em Dubois et al .Como “as variações individuais que a acumulação pode modificar os sistemas deregras”, que se deveria reservar o nome de criatividade.19 Desconfiar-se-á evidentemente dessa metáfora espacial, segundo a qual afigura permite “sair” do sistema. De fato, não se “sai” aqui do sistema para entrarem um outro.20 Aqui e somente aqui que reencontramos o efeito de totalização de que fala JeanChoen.21

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que mobiliza o retórico21, também apresenta a atividade estruturante que, commuita frequência, considera-se propriedade exclusiva da ciência. //161/

 Sentido científico e sentido retórico: três oposições de natureza

 pragmáticaSubsiste um problema. Não haveria, no quadro único aqui traçado, uma diferençade natureza entre o sentido retórico e o sentido científico?

Esta diferença existe e estabelece-se em três planos. Todavia, é preciso notar quetais diferenças não são essenciais, mas acidentais, elas só têm valor pragmático.

 Estabilidade versus instabilidade

Primeira oposição: o sentido científico está para a definição destinada aestabilizar-se, assim como os sentidos retóricos tendem à definição que

permanece instável. Por estabilidade e instabilidade, entendo as propriedades aomesmo tempo sociais e temporais, como indica o quadro seguinte:

 

Sentido científico(Estabilidade)

Sentido retóricos(instabilidade)

Ponto de vista social Universalidade IndividuaidadePonto de vista temporal Permanência Instantaneidade

 

De bom grado se diz que a ciência visa a generalidade mais ampla. No planosocial, o saber científico é partilhado e a reestruturação científica se dá comotendo uma dimensão universal.

Face a ele, o saber retórico é, por definição, errático (como, aliás, todos os fatosrelevantes da “criatividade que muda as regras”). Individual, ele está tantona chave do emissor quando na do receptor. Vê-se facilmente, de fato, que éo emissor que toma a responsabilidade do //162/ desvio, e impõe, pois, ao seuparceiro o procedimento de reavaliação geralmente qualquer uma, mas esteúltimo conserva toda sua liberdade. Ele pode ignorar “anjos azuis” (reação nº 1)ou recusá-la (reação nº 5). Pode corrigi-la como um erro (reação nº 2). Mas podetambém admiti-lo. Caso admita, pode considerar que esta predicação valha porsi mesma (reação nº 3), como pode dela fazer uma lei universal (reação nº 4).Enfim, em sua manobra de admissão, o parceiro tem toda latitude para calcularde maneira diferenciada as novas relações entre propriedades que é convidado aelaborar.

21 Ver rhétorque de la poésie. 22

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No plano temporal, a reestruturação científica também se quer universal. Querdizer, visa a permanência. Ao menos —e nós temos de conjunto insistido nessedinamismo— até que um novo recorte venha relativizá-lo.

Face a isto, a reestruturação retórica se dá como momentaneidade. Assim,

quando Éluard escreve:

(7) Les saisons à l’unisson,

a qualidade nova de simultaneidade que é atribuída à relação entre asentidade “saisons” tem apenas o tempo de existência da leitura ou daremorização do poema de Éluard22. Fora dessas circunstâncias, nossaenciclopédia lhe atribui a qualidade “sucessividade”, de sorte que se eu devosair no inverno, mesmo com o coração aquecido pela poesia élouardina, não medeixarei de usar um casaco de lã. O adágio segundo o qual a ciência é apenas dogeral deve, pois, também se estender ao sentido temporal.

Nossos exemplos históricos atestam que é mais na dupla estabilidade einstabilidades (notadamente em sua hipostase instantaneidade versus permanência) que reside a oposição entre o sentido científico e o sentidoretórico. Os sentidos metafóricos podem, de fato, socializar-se a longo prazoe dar nascimento ao que é reconhecido como ciência. Pensemos na teologia,existe nas universidades //165// contemporâneas faculdades de teologia. Istoparece indicar que, para os responsáveis pela organização das atividadesali desenvolvidas, a teologia constitui uma ciência, pois os conceitos podempretender a universalidade. Mas, de outro lado, sabe-se, que seus conceitos são

considerados da mesma ordem da poesia. Pode-se multiplicar exemplos destegênero: o materialismo dialético era assunto obrigatório em certas faculdades,enquanto que alguns não hesitavam em ver nele um tipo de teologia. Conhece-se, historicamente, muitos casos de enunciados que foram objetos de umaleitura instável (é o caso dos textos religiosos lidos como poesia). Mas, o inversoé verdadeiro: predicações instáveis em um dado momento —como “a terra éredonda” ou “o sangue circula”— podem posteriormente ser objeto de umaaproximação que os torna estáveis.

(8) Este é meu corpo.

Este foi, em certas épocas, visto como uma figura, o que não fazia de seuinterprete um ortodoxo ou um herético. Uma mesmo enunciado pode, então,corresponder a dois eixos de linguagem distintos: um ato científico e um ato

22 Análise no Groupe µ, 1972. 23

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retórico23.

 A oposição estabilidade versus instabilidade apresenta dois corolários, sobre osquais não me estenderei longamente.

O primeiro é que, a ciência dando-se como geral, pode-se ai perder todaapreensão genealógica dos fenômenos que se ocupa. Os efeitos de presençaimediata //164/ abolem-se. Todo o mundo pode ver maçãs caírem, colocá-las emsuas cabeças, amassá-las, torrá-las. Mas, quando um Newton tira a lei da atraçãodas massas, faz a queda dos corpos afastar-se de nós —quer se trate daquelasfrutas ou dos banqueiros de Wall Street. Ao inverso, porque é individual, areestruturação retórica —que opera no campo estético ou filosófico— visamais assegurar esta apreensão fenomenológica. A estética da literatura temfrequentemente retormado a esta idéia ao falar, em uma fórmula imaginada masfalsa, de remotivação dos signos.

O segundo corolário é que a estabilidade (permanência + universalidade) tornaas coisas comparáveis. Ela autoriza a previsão, que é uma das missões que seassinala à ciência. O discurso retórico só autoriza as comparações no instante. Elesolapa, pois, a previsibilidade.

 Restrição versus multiplicação (reprodução)

A segunda oposição reside no caráter autoregulado do discurso científico. Malthusiano,aquele limita não o número de entidades que faz seu objeto, mais ainda o número de suasqualidades e as de suas relações. E, por isto, ele se dá regras muito restritivas. Estas são,

por exemplo, os princípios de economia, não-contradição, do terceiro excluído, da bi-univocidade. É com tais regras que rompe o sistema enciclopédico criado pela metáfora.Retomemos o exemplo (6). Viu-se que esta enunciado estabelece a existência de umuniverso conceitual assim estruturado:

Idéias

incolores coloridas

verdes, azuis, negras etc. verdes azuis negras etc.

23 Nanine Charbonnel (1991) fala de “regime semântico cognitivo” e de “regimesemanântico expressivo”. Esta terminologia parece-me pouco feliz de dois pontosde vista. De início, “pragmática” converia melhor do que “semântico”. Mas,sobretudo, “cognitivo” e “expressivo” são mal escolhidas. Ao lado do “regimecognitivo” e do “regime expressivo”, Charbonnel, distingue também um “regimepraxeológico” sobre o qual voltaremos in fine.24

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 //165/ 

Aqui constatamos que “verde” torna-se uma subcategoria de “incolor” e que ele põe, demaneira mais geral, a categoria “incolor colorido”. Isto aparece como uma contradiçãoem relação ao estado conhecido do sistema, mas também aos princípios do pensamento

científico tal como definido mais acima. Mas, insistimos uma vez mais no fato de que aoposição é de natureza pragmática, trata-se de normas do discurso (nível m). O essencial—que se situa no nível superior n— permanece intacto, os dois discursos criam asoposições estruturantes.

Precisemos um pouco isto. Poder-se-ia acreditar que a oposição entre o discursocientífico e o discurso retórico é uma atualização da oposição axiomática versus nãoaxiomático.

Os sistemas axiomáticos são os plenamente tautológicos24. Um axioma é um enunciadoque não é demonstrável, mas aceito sem demonstração, sob pena da circularidade. Porémo que pouco se vê é que a retórica, e particularmente a poética, também constitui umconjunto de enunciados axiomáticos. A retórica preocupa-se, de fato, mais do que sequer admitir, com a coerência imediata dos enunciados. O discurso surrealista enfileirade bom grado a metáfora. Mesmo a algaravia medieval recupera, graças à recorrênciadas mesmas figuras de contradição, uma forma de coerência25. Existe, todavia, entre odiscurso científico e o discurso retórico uma diferença relativa à axiomatização. Porém, éuma diferença de atitude dos atores sociais. No domínio científico, a axiomatização tendeà universalidade. É, pois, ali que o  //166/ princípio da independência dos axiomas (que nãopode contradizer-se ou derivar uns dos outros) é melhor observado. No discurso retórico,

o assunto pode passar de um sistema axiomático assumido momentaneamente para outro,também por completo temporário. Como se vê, reencontramos aqui a primeira oposição.

 Falsibilidade versus infalsabilidade

 A terceira oposição é a seguinte: as categorizações científicas são falseáveis, o quenão é o caso das categorizações retóricas.

Por falsibilidade, ou verificabilidade, poder-se-á evidentemente entender que osenunciados científico e retórico não podem ser confrontados da mesma maneira

24 A despeito das aparências, devido ao princípio da afirmação independente,caso se tenha uma vez reconhecido que a…b, pode-se afirma b isoladamente, semremontar ao dilúvio a cada vez que é necessário o enunciado b.

25 Gropue µ, 1977. Por outra via, as associações como “le champinacien (…),fier de son industrie, lance d’une main sûre en regrard pleine de confiance verl’avenir que l’attend (…) de pied ferme” ( Spirou, 25 de fevereiro de 1954), sãofinalizadas por seu etos cômico, que lhe confere de um átimo geralmente umaforma de unidade.25

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com a experiência.

Sabe-se, de fato, que a verificabilidade do enunciado científico decorre de seucaráter universal e previsível, e que pode ser feito pela via da experiência. A experimentação consiste em verificar se uma entidade dada possui a qualidade

previsível, quer dizer, que seu pertencimento à sua categoria é passível de lheconferir “se todos os  x são p, então qualquer  x será p”. O exame permite afirmara verdade ou falsidade da asserção “todos os x são p”. Não se pode evidentementeproceder da mesma maneira com o enunciado retórico. Se de (5) eu infiroque “todos os anjos tem uma cor”, deveria poder submeter algum anjo ao exame visual que demonstraria a falsidade da asserção.

Mas, contrariamente a uma idéia difundida, as proposições retóricas não sedefine por sua falsidade. Pode-se introduzir a negação no exemplo canônico:

(9) Aquiles é um leão,

o que dá

(9’) Aquiles não é um leão.

Esta negação suprime a contradição e faz enunciados //167/ verdadeiros, queaparentemente conduz à tautologia26. É este estatuto que também tem o célebreadágio

(10) Nenhum homem não é uma ilha.

Estes enunciados (9) e (10)27 permanecem metafóricos, aplicando o princípio de

cooperação. De fato, se meu interlocutor toma o encargo de afirmar para mimque um homem não é uma ilha, ou não é um animal, é porque é possível existirque ele possa ser. O enunciado prevê, pois, mais a possibilidade de atribuir aqualidade de insularidade ou animalidade à entidade homem. Ele associa desdeentão as categorias pressupostas por “Aquiles” e “leão”, “homem” e “ilha”, e essascategorias não são correlativas. Apesar da verdade, o desvio permanece28.

O critério da verificabilidade, decorrente da experimentação é, pois, impertinentepara distinguir o discurso científico do discurso retórico.

26 Demonstração em Prandi, 1992, p. 34-35.27 Comentados por Moeschler e Reboul, 1994, p. 409.28 Notemos, de passagem, que quando tenda classificar conteúdos implícito,a literatura linguística desliza, com muita frequência, ao sentido trópico entreos subentendidos. Mas, observa-se aqui que o sentido trópico comporta-separticularmente como o pressuposto: “um homem é uma ilha” e “nenhumhomem não é uma ilha” não têm o mesmo sentido, o fato mesmo do sentidotrópico resiste a negação, como também resiste à interrogação (cf. Klinkenberg,no prelo).

 

26

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Logo, é preciso pensar em um falsilibilidade ou verificabilidade completamentediscursiva, que resida no mecanismo de apropriação dos enunciados. No universocientífico faz-se um certo uso de enunciados, um enunciado falsificado é rejeitadoe, então, não pode modificar a enciclopédia. A atribuição de qualidade que se

revele insatisfatória é abandonada, uma outra é procurada, e esta pode nadater a ver com a primeira. No uso retórico dos enunciados a leitura insatisfatóriapode igualmente dar lugar a uma busca de uma leitura mais satisfatória. Mas, adiferença está aqui, a primeira leitura ainda pode servir. Por mais falsificado queseja, um enunciado pode, pois, ser assumido e modificar a enciclopédia.

Tomemos um exemplo de Henri Mechaux. Endereçando-se à infelicidade, o poetadeclara

(11) Eu sou a ruína.

 A palavra ruína tem o sentido de “ação de destruir”, mas também o de “oque decorre da ação de destruir”. Estes dois sentidos permitem propor duasparáfrases diferentes de (11): (11’) “Eu te destrui” e (11”) “Eu fui destruído porti”. Diferentes, estas paráfrases são antinômicas, uma vez que o que fala é, emuma hipótese, sujeito do processo e, na outra hipótese, objeto do processo. Comomostrou uma investigação conduzida junto a uma centena de leitores, o contextoimediato não permite as distinguir. Porém, um certo número desses leitoresassumem espontaneamente as duas leituras, ainda que sejam antinômicas. A  justificação desta leitura dupla é o contexto mais geral que é a temática da obrade Michaux, na qual a destruição e o abandono caminham ao lado da revolta.

Em suma, o uso retórico de enunciados é acumulativo, enquanto que ocientífico é malthusiano, tudo se torna farinha em seu moinho. Polissêmica, o éduplamente, não apenas as unidades de agencia podem ter muitos sentidos, masainda justapõe leituras. Talvez, hierarquizando-as, mas sem unificá-las.

Mais ainda do que as outras, esta última oposição é de tipo pragmático: areestruturação científica é percebida a que assegura uma melhor apreensão dascoisas; ela é vivida em um modo realista. A ciência, como instituição, dota-se deum executivo, externo a ela, suscetível de modificar a vida quotidiana de cadaum29. A reestruturação retórica, é vivida em um modo fantasmático, ela joga com

o “como se”, imita os encaminhamentos científicos, e suas novas categorias sãopropostas sem perigo e a título exploratório.

Mais ainda, estas oposições pragmáticas importantes não ocultam o profundoparentesco entre o encaminhamento científico e o retórico, parentesco queuma semiótica cognitiva ressalta. Este parentesco estreito, Noetzsche já tivera

29 Comunicação pessoal de Fr. Douay. 27

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presente:

O que é a verdade? Uma multidão movente de metáforas, metonímias, deantropomorfismos, em suma, uma soma de relações humanas que forampoética e retoricamente alçadas, transpostas, ornadas e que, depois de

um longo uso, parecem a um povo firmes, canônica e constrangedoras: as verdades são as ilusões que se esqueceu que são, as metáforas que foramusadas e que perderam sua força sensível, peças de moeda que perderam suasmarcas e que entram, desde então em consideração, não mais como peças demoeda mas como metal. ( Le livre du philosophe, Paris, Aubier-Flammarion, p.181-182. Citado por J. Derrida, 1972, p. 258-259).

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