Kelsen, hans quem deve ser o guardião da constituição

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Quem deve ser o guardião da Constituição?* ~ "WII ~IIII til I II III 111 I VIIIII~ 1111~IIII'I". 1111/1' .I/1~/1 IV 11I 11, II II II I vul VI,I'I' /(1 IIIH

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Quem deve ser o guardiãoda Constituição?*

~ "WII ~IIII til I II III 111I VIIIII~ 1111~IIII'I". 11111/1'.I/1~/1 IV 11I 11,II II II I vul VI,I'I' /(1 IIIH

I. A busca político-jurídica por garantias da Constitui-ção, ou seja, por instituições através das quais seja controla:da a constitucionalidade do comportamento de certos órgãosde Estado que lhe são diretamente subordinados, como oparlamento ou o governo, corresponde ao princípio, especí-fico do Estado de direito, isto é, ao princípio da máxima le-galidade da função estatal. Sobre a conveniência de tal bus-ca é possível - segundo distintos pontos de vista políticos eem relação a distintas Constituições - chegar a opiniõesbastante diversas. Pode haver situações em que a Constitui-ção não se efetiva, mesmo em pontos essenciais, de modoque as garantias, ao permanecer inoperantes, perdem todo osentido. A própria questão técnico-jurídica quanto à melhorconfiguração das garantias da Constituição pode ser respon-dida de maneiras muito diferentes, considerando-se a parti-cularidade de cada Constituição e a divisão do poder políti-co que efetua; em particular, estabelecendo se se deve darI referência às garantias preventivas ou às repressivas, se aênfase deve ser colocada na eliminação do ato inconstitu-cional ou na responsabilidade pessoal de quem o pratica, etc.T dos esses temas podem ser debatidos a fundo. Apenas umponto parece ter até agora ficado fora da discussão, pareceser uma noção de obviedade tão primária que quase não se

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considerou necessário salientá-Ia dentro do exaustivo deba-te que o problema da garantia constitucional suscitou nosúltimos anos: o fato de que, caso se deva mesmo criar umainstituição através da qual seja controlada a conformidade àConstituição de certos atos do Estado - particularmente do

. Parlamento e do governo -, tal controle não deve ser confia-•do a um dos órgãos cujos atos devem ser controlados. A

\função política da Constituição é estabelecer limites jurídi-cos ao exercício do poder. Garantia da Constituição signifi-ca a segurança de que tais limites não serão ultrapassados.Se algo é indubitável é que nenhuma instância é tão poucoidônea para tal função quanto justamente aquela a quem aConstituição confia - na totalidade ou em parte - o exercí-cio do poder e que portanto possui, primordialmente, aoportunidade jurídica e o estímulo político para vulnerá-la.Lembre-se que nenhum outro princípio écnico-jurídico étão unânime quanto este: ninguém pode ser juiz em causaprópria.

Quando portanto os representantes da teoria constitu-cional do século XIX, orientados pelo assim-chamado prin-cípio monárquico, defendiam a tese de que o natural guar-dião da Constiiiiição seria o monarca, esta não passava -quem poderia hoje duvidar disso! - de uma ideologia muito-evidente, uma das tantas que formam a assim chamada dou-trina do constitucionalismo, e através da qual essa interpreta-ção da Constituição procurava mascarar sua tendência bási-ca: a de compensar a perda de poder que o chefe de Estadohavia experimentado na passagem da monarquia absolutapara a constitucional'. O que em realidade se queria era -por razões cujo valor político não discutiremos aqui - iml2..e-dir uma eficaz garantia da Constituição, pelo menos ~tra--

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ioluçõcs por parte de quem mais a ameaçava, ou seja, opr'úpri monarca, ou, mais precisamente, o governo, ou seja,11 monarca em conjunto com os ministros que assinavam seusIIOH, pois aquele não podia agir por si só. Isso também per-I 11 'c ao método da ideologia constitucional: falar apenas(10 monarca, quando na verdade está agindo um órgão cole-I'iud em que o monarca não é parte autônoma. Como não

. podia declarar abertamente o verdadeiro objetivo políticode impedir uma eficaz garantia da Constituição, ele era mas-.nrado com a doutrina segundo a qual tal garantia seria tare-li! do chefe de Estado.

A Constituição da monarquia constitucional tem um(I .cntuado caráter dualístico. Ela divide o poder político entredois pólos: Parlamento e governo, sendo que este já de ante-I11Ü possui uma certa preponderância sobre o primeiro, demodo algum apenas defacto, mas sim também dejure. Que.o r vemo, particularmente o monarca que o encabeça, sejatanto na realidade política quanto nas normas da Constitui-çt o, um órgão que como o Parlamento exerce o poder esta-tal - e mesmo em maior medida que este - não pode serpo to em dúvida; tampouco se pode duvidar de que o poder.onfiado ao governo esteja em permanente concorrência, m o do Parlamento. Portanto, para tornar possível a noçãoI que justamente o governo - e apenas ele - seria o natural

guardião da Constituição, é preciso encobrir o caráter de suafunção. Para tanto serve a conhecida doutrina: o monarca é- exclusivamente ou não - uma terceira instância, objetiva,situada acima do antagonismo (instaurado conscientementepela Constituição) dos dois pólos de poder, e detentor de umpoder neutro. Apenas sob esse pressuposto parece justifi-car-se a tese de que caberia a ele, e apenas a ele, cuidar que

exercício do poder não ultrapasse os limites estabelecidosna Constituição. Trata-se de uma ficção de notável audácia,se pensarmos que no arsenal do constitucionalismo desfila

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1. Em minha Allgemeine Staatslehre ("Teoria geral do Estado"),Berlim, 1925, demonstrei essa tendência do constitucionalismo em várias desuas teses.

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também outra doutrina segundo a qual o monarca seria de[ato o único, porque supremo, órgão do exercício do poderestatal, sendo também, particularmente, detentor do poder le-gislativo: do ,monarca, não do parlamento, proviria a or em-para a lei, a representação popular ~penas participana adefinição do conteúdo da lei. Como poderia o monarca, de-tentor de grande parcela ou mesmo de todo o poder do Es-tado, ser instância neutra em relação ao exercício de tal poder,e a única com vocação para o controle de sua constituciona-lidade? A objeção de que se trata de uma intolerável contra-dição seria totalmente descabida, pois seria aplicar a catego-

- ria do conhecimento científico (ciência jurídica ou teoria doEstado) àquilo que só pode ser entendido como ideologia polí-tica. Num sistema intelectual cujo profundo parentesco com ateologia não é ignorado hoje por ninguém, o princípio de con-tradição não tem mais lugar. O que importa não é estabelecerse as teses de tal teoria constitucional são verdadeiras, massim se alcançam seu objetivo político: e de fato o fizeram emmedida máxima. Dentro da atmosfera política da monarquia,essa doutrina do monarca como guardião da Constituiçãoera um movimento eficaz contra a busca, que já então aflo-rava de quando em quando, por um tribunal constitucional-.

11.Na situação política em que a Constituição demo-crático-parlamentar do Reich alemão veio inevitavelmente ase encontrar no momento em que para sua própria defesa,como estimam seus defensores, transigiu por assim dizerem apenas um único de seus artigos, o de n? 48 - colocan-do-se num espaço jurídico demasiado estreito para conse-

iu ir evitar, com tal manobra, o perigo de ser golpeada - numsemelhante estado de coisas, enfim, seria com certeza com-I reensível se o debate sobre a questão das garantias da Cons-tituição fosse provisoriamente adiado * . É pois surpreenden-1(; o fato de uma nova coleção de monografias sobre direitopúblico, as "Contribuições para o direito público da atua-lidade">, iniciar sua série com um trabalho que, com o títu-I O guardião da Constituição [Der Hüter der Verfassung],está dedicado justamente ao problema da garantia da Cons-1 iluição. Mais surpreendente ainda, porém, é que esse escri-to tire do rebotalho do teatro constitucional a sua mais anti-'a peça, qual seja, a tese de que o chefe de Estado, e nenhum

outro órgão, seria o competente guardião da Constituição, arim de utilizar novamente esse já bem empoeirado adereço.ênico na república democrática em geral e na Constituiçãode Weimar em particular. O que mais admira, porém, é que()mesmo escrito, que pretende restaurar a doutrina de um dosmais antigos e experimentados ideólogos da monarquia cons-titucional - a doutrina do pouvoir neutre do monarca, deI cni . Constant - e aplicá-Ia sem qualquer restrição ao.hcfe de Estado repu licano, tenha como autor o professor dedircito público na Berliner Handelshochschule, Carl Schmitt,.uja ambição é mostrar-nos "o quanto muitas formas e con-.citos tradicionais estão estreitamente ligados a situaçõespas adas, não sendo hoje mais nem sequer 'vinho velho paraodres novos', mas sim apenas rótulos falsos e antiquados'",, que não se cansa de lembrar "que a situação da monarquia.onstitucional do século XIX, com sua separação entre Esta-do c sociedade, política e economia, encontra-se superada">

2. Trata-se evidentemente da mesma ideologia, somente que a serviçodo princípio democrático, quando se proclama o parlamento como guardiãoda Constituição porque, como diz Bluntschli, o "corpo legislativo" carregaem sua conformação as mais importantes garantias "de que não exercerá suasatribuições com espírito inconstitucional" (Allgemeines Staatsrecht, 4~ ed.,1868, v. 1, pp. 561-62).

* Veja-se a nota da revisão à p. 97 deste volume. (N. do R.T.)3. Beitrãge zum õffentlichen Rechte der Gegenwart. Ed J. C. B. Mohr

(1'11111 iebeck), Tübingen, 1931.4. SCHMITT, Verfassungslehre, p. 9.5. SCHMITT, Huter der Verfassung, p. 128, cf. tb. p. 117.

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impedir de retomar uma ideologia do constitucionalismoque, mais claramente que qualquer outra, traz na testa o seu,vinculo com a época, seu nascimento de uma situação his-lúri o-política específica: a doutrina do pouvoir neutre dochefe de Estado! Essa fórmula de Constant torna-se, nas mãosd chmitt, um instrumento capital para sua interpretação \du onstituição de Weimar. Somente com esse auxílio ele \xmsegue estabelecer que o guardião da Constituição não

N 'ja, digamos - como se deveria supor a partir do art. 19-,o Tribunal Federal ou outro tribunal, mas sim apenas o pre-sidente do Reich, e isso já com base na própria Constituição

111 vigor, e não, por exemplo, depois de uma reforma cons-titucional.

Quando Constant afirma que o monarca seria detentorde um poder neutro, apóia essa tese essencialmente na su-p sição de que o executivo esteja dividido em dois poderes ~distintos: um passivo e outro ativo, e que o monarca detenhasimplesmente o passivo. Somente enquanto "passivo" é quelal poder seria "neutro". Fica evidente a ficção de se apre-sentar como meramente "passivo" o poder de um monarca a[uern a Constituição confia a representação do Estado n?

exterior - sobretudo a assinatura de tratados -, a sanção dasleis, o comando supremo do exército e da frota, a nomeaçãode funcionários e juízes, entre outras coisas, e de contrapô-I enquanto tal ao executivo restante, visto como um poderativo". A tentativa de aplicar a ideologia de Constant (dopouvoir neutre do monarca) ao chefe de Estado de uma

e que portanto as categorias da teoria do Estado constitucio-nal não são aplicáveis à Constituição de uma democracia par-lamentar-plebiscitária como a Alemanha de hoje. Daí deduzele, por exemplo, que o conceito de "lei formal", oriundo do

iconstitucionalismo do século XIX e que deveria assegurarao Parlamento, enquanto "legislador", o direito de aprovar oorçamento, não poderia manter seu sentido original na Cons-tituição de Weimar, e que portanto, apesar da expressa dis-posição dos arts. 85 e 87, não seria de modo algum "à15s01u-

ja e incondiCionalme.nte necessária" a forma de uma lei do...Beich para a fixação do or amento, a autorização de crédito

e a assunção de gárantias, bastando em lugar disso o decre-_ to do presidente na forma do art. 48-i*. Tentativas simila-

res de dissolver ou atenuar a assim-chamada reserva finan-ceira da Constituição também foram, evidentemente, feitaspela teoria constitucional, que não se viu impedida pelo con-ceito de lei formal de sustentar que ç monarca pod~xaro orçamento e autorizar crédito mediante decretos de ne-cessidade, como por exemplo demonstra a teoria e a práxisdo famigerado art. ~ na Áustria. Porém a consciência histó-'r~co-crítica que nos preserva do formalismo irrefletido decompreender disposições da Constituição do Reich como "oorçamento é fixado através de lei" e "tal aquisição (de recur-sos financeiros mediante crédito), bem como a 'assunção degarantias a cargo do Reich, só poderão acontecer em fun-ção de uma lei do Reich", no sentido de que o orçamento sópode ser fixado através de lei e que a autorização de crédi-to e a assunção de garantias só pode ter lugar em função deuma lei - essa consciência histórico-crítica não deve nos

6. B. Constant, originalmente um republicano moderado, toma-se mo-nurquista depois da Revolução, defendendo, após a queda de Napoleão, asdinastias legítimas no livro Qe l'esprit de Ia conquête et de l'usurpation.,

.orn esse escrito toma-se também co-fundador da ideologia da legitimidade. ,Não obstante, participa da tentativa dê co ocar Bemadotte no trono; como aIIÇ, o fracassa, Constant passa para o lado dos Bourbons. Escreve no J~urnaltI,,I' Débats contra Napoleão, que retomava de Elba, qualificando-o de Atila e

*-!!? Brasil, atualmente, o presidente da República costuma editaredidas provlsónas dis ondo·sobre d' etrizes.orç entárias or ex., MP 1.817,

de 22.3.1999, MP 1.643, de 18.3.l998~ abrindo créditos extraordinários (porex., MP 1.752-36, de 7.5.1999,1.813, de 23.4.1999,1.785-3, de 26.3.1999,etc.). (N. do R.T.)

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república democrática torna-se particularmente discutívelse estiver relacionada com a tendência de estender a compe-tência deste último para ainda mais adiante do âmbito nor-mal de atribuições de um monarca constitucional. É verda-de que, no intuito de que o chefe de Estado apareça como oapropriado "guardião da Constituição", Schmitt caracterizao seu pouvoir neutre não como uma instância que estáacima dos "detentores de direitos de decisão e de influênciapolítica", ou como um "terceiro mais alto", nem como "se-nhor soberano do Estado", mas sim como um "órgão justa-posto", como um poder "que não está acima, mas sim aolado dos outros poderes constitucionais". Ao mesmo tempo,porém, através de uma interpretação mais do ue extensivado art. 48, ele procura am liar a com etência do residen-te_do Reich de maneira tal ue este nã~pa de tornar-sesenhor soberano do Estado, alcançando uma posição de poder

_q~l}ão diminui pelo ~ de Schmitt recusar-se a designá-Ia como "ditadura" e que, em todo caso, seg.!,!ndoas ex res-

__sões acima citad~ não é compatível com a função de umgarante da Constituição.

Que Schmitt acredite-poder aplicar sem maiores pro-blemas a tese ideológica do pouvoir neutre do monarca cons-titucional ao chefe de Estado de uma república democrática,eleito sob a alta pressão das correntes político-partidárias, étanto mais estranho porque, por vezes, ele vê claramente as

.-ircunstâncias reais que tornam transparente o caráter ideo-ló rico da doutrina constitucional do monarca como guar-diã da Constituição. Assim, ele afirma que na monarquia'on titucional o perigo de uma violação da Constituição pro-vinha do governo, ou seja, da esfera do executivo, circuns-tância que deveria ser totalmente eliminada pela idéia tanto deum poder "neutro" do monarca na função de chefe do go-verno e do executivo, como de sua vocação para atuar comoiuardião da Constituição! Schmitt, aqui, reconhece o perigop r parte do governo monárquico no século XIX apenas.orn a intenção de poder afirmar que "hoje", ou seja, noséculo XX e na república democrática, o temor de uma vio-lação constitucional se dirigiria "sobretudo contra o legisla-dor", isto é, não contra o governo presidencial, mas sim con-tra o Parlamento. Como se hoje na Alemanha a questão da.onstitucionalidade da atividade que o governo, compostopor presidente e ministros, desenvolve com base no art. 48,não fosse uma questão de vida ou morte para a Constituiçãod Weimar! Deveras, se não se cogita a possibilidade de vio-lação constitucional por parte do governo, a fórmula queproclama o chefe de Estado guardião da Constituição soabastante inofensiva; e não é mais preciso protestar contra ainexatidão de uma fórmula com a qual a função de garantia da

onstituição não é reclamada apenas - como poderia pare-cer - para a pessoa do presidente da república, mas sim parao colégio composto por ele e os ministros que assinam seusatos. Contudo, faremos bem se não perdermos de vista quenessa argumentação trata-se apenas de uma teoria política do"como se".

m. Para sustentar a tese de que o presidente do Reichseria o guardião da Constituição, Schmitt tem que se voltarcontra a instituição, freqüentemente reclamada e em muitos

-< tados também concretizada, de uma jurisdição constitu-cional, ou seja, contra a atribuição da função de garantia da

Gengis Khan. Após algumas semanas, porém, ele é "membro do Conselho deEstado" e escreve, por incumbência de Napoleão, os atos complementares àsConstituições do Império. Após a segunda Restauração, Constant é novamen-te partidário da Charte e dos Bourbon. Assim, por exemplo, ele diz na Câma-ra dos Deputados em 1820: "Les Bourbons avec Ia Charte sont un immenseavantage, parce que c' est un irnrnense avantage qu 'une familie antique sur untrône incontesté." Depois da expulsão de Carlos X vamos encontrá-lo nova-mente como zeloso defensor da legitimidade de Luís Felipe. Cf A. M. Dolma-towsky, "Der Parlamentarismus in der Lehre Benjamin Constants", in: Zeit-schriflf d. ges. Staatswissenschaften, 63. Jahrgsg, 1907, p. 602.

248 HANSKELSEN I/III/S/)/ ÃO CONSTITUCIONAL 249Constituição a um tribunal independente. Este funciona comum tribunal constitucional central na medida em que, numprocesso litigioso, deve decidir sobre a constitucionalidadde atos do Parlamento (especialmente leis) ou do governo (e -pecialmente decretos) que tenham sido contestados, cassandotais atos em caso de sua inconstitucionalidade, e eventual-mente julgando sobre a responsabilidade de certos órgãoscolocados sob acusação. Pode-se certamente discutir sobrea conveniência de tal instituição, e ninguém afirmará que strata de uma garantia absolutamente eficaz em qualquer cir-cunstância. Mas de todos os pontos de vista segundo os qualse possa debater o problema político-jurídico de um tribu-nal constitucional central e estabelecer seus prós e contraum ponto é de fato insignificante.jijíe se tal órgão seria umtribunal e sua função verdadeiramente jurisdicional. No pIa-no da teoria do direito, essaé n!ãlmente urna questão de ela -sificação muito importante; da sua solução, contudo, tantoem sentido afirmativo como negativo, nada resulta a favorou contra que se confie a referida função a um órgão cole-giado cujos membros, a ser nomeados de alguma maneira,tenham garantida a plena independência: uma independên-cia em relação a governo e Parlamento e que chamamosjudi-ciária, porque nas modernas Constituições costuma ser con-cedida aos tribunais (aliás, não apenas a estes). Deduzir, a par-tir de um conceito qualquer de jurisdição, que a instituiçãoaqui referida como tribunal constitucional seria impossívelou inconveniente, seria um caso típico daquelajurisprudên-cia conceitual, que já pode ser considerada como superadahoje em dia.

É de supor que tampouco Schmitt maneje tal argumen-tação. Porém ele faz crer o contrário quando, num escrito si-tuado no plano da política do direito e na sua luta contra ajurisdição constitucional, dá ênfase à questão de saber se elaseria verdadeira jurisdição, formulando como problema de-

" vo de se o judiciário poderia atuar como guardião da( 'anstituição. Resulta mesmo estranho que ele, empregandoIIll'jOSrelativamente extensos, creia poder demonstrar que(I tribunais civis, criminais e administrativos da Alemanha,qu xercem um direito de controle material sobre as leis1111 devem aplicar, não sejam, "num sentido preciso, guar-dll 'S da Constituição". Por motivos pouco compreensí-

'is, porém, ele não nega esse título à Corte suprema dos11, tnd s Unidos, embora essa Corte não faça essencialmen-I \ Iluda de diferente dos tribunais alemães quando estes exer-rom seu direito de controle, ou seja, não aplicando ao caso('011 'reto as leis consideradas inconstitucionais. Ora, de umIIibunal constitucional central com poder de cassação - aoqllol chmitt não negará a subsunção ao conceito de guar-,1/(11) da Constituição, ainda que não queira considerá-Io um• tribunal" - de tal "guardião" efetivo, os tribunais que dis-

. 111 111 de seu poder de controle diferenciam-se apenas nopluno quantitativo, ou seja, na medida em que o primeiro nãouuuln a lei inconstitucional apenas para um caso concreto -l'OIl1 os últimos - mas sim para todos os casos. De que

-rvc observar então, como faz Schmitt, que a função cons-tlru 'i nal de um guardião da Constituição consiste em "subs-Iltuir e tomar supérfluo o direito geral e ocasional de deso-h diência e resistência que repousa no direito de controle ma-I .rial" e que "apenas então estamos diante de um guardião,111 ' nstituição no sentido institucional"? Isso, em realidade,111 o basta para chegarmos ao "sentido preciso" do conceito"pllardião da Constituição"; basta apenas para concluir queI) tribunais, mesmo quando exercem o direito de controle,"nl o devem ser considerados guardiães da Constituição".I lma afirmação meramente terminológica, pois Schmitt nãopode desmentir que um tribunal, quando rejeita a aplicação deumu lei inconstitucional, suprimindo assim sua validade paraII .ns concreto, funciona na prática como garante da Cons-

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tituição, mesmo que não se lhe conceda o altissonante títu Iode "guardião da Constituição", ou seja, se renuncie a uma ex-pressão cujo palhas já é, por si só, uma advertência contratendências ideológicas ligadas a ela. O que importa é determi-nar a conveniência de se confiar dessa maneira aos tribunais afunção de garantia da Constituição, e, em caso negativo, senecessário retirar-lhes o direito de controle. Será inútil procu-rar em Schmitt uma solução clara desse problema.

Em compensação acharemos, como foi dito, uma gran-de quantidade de argumentos com os quais se procura con-tinuamente - de modo bastante assistemático - demonstrarque a decisão sobre a constitucionalidade de leis e a ~çãode leis inconstitucionais por um colégio de homens inde-pendentes, em processo litigioso - Schmitt realmente nãoleva em consideração a possibilidade de um controle jurídi-co de outros atos imediatamente subordinados à Constitui-ção -, não seria jurisdicional. Porém os argumentos que apre-senta nada provam para o ponto determinante, isto é, no planoda política do direito, mas também são inúteis no plano teó-rico-jurídico.

IV. Tais argumentos partem do pressuposto errôneo deque entre funções jurisdicionais e funções políticas existiriauma contradição essencial, e que particularmente a decisãosobre a constitucionalidade de leis e a anulação de leis in-constitucionais seria um ato político, donde se deduz que talatividade já não seria propriamente jurisdicional. Se deve-mos dar ao termo "política", polissêmico e excessivamentemal utilizado, um sentido razoavelmente preciso num C011-

texto de oposição a 'jurisdição", só poderemos supor queseja usado para expressar algo como "exercício do poder"(em contraposição a um "exercício do direito"). "Política" éa função do legislador, o qual submete os indivíduos à suavontade e exerce um poder justamente pelo fato de obrigá-los a perseguir seus interesses dentro dos limites das nor-

IIIOS que impõem, decidindo assim os conflitos de interesses,110 pHS o que o juiz, enquanto instrumento - e não sujeito -ti tul poder, apenas faz aplicar esse ordenamento criado pe-lo legislador. Tal concepção, contudo, é falsa, porque pressu-IH C que o exercício do poder esteja encerrado dentro do pro-\' 'sso legislativo. Não se vê, ou não se quer ver, que ele tem

IIH continuação ou até, talvez, seu real início na jurisdição,1110 menos que no outro ramo do executivo, a administra-~'IO. Se enxergamos "o político" na resolução de conflitos deinteresses, na "decisão" - para usarmos a terminologia deSchrnitt - encontramos em toda sentença judiciária, em maiorou menor grau, um elemento decisório, um elemento de.xcrcício de poder. O caráter político da jurisdição é tantomais forte quanto mais amplo for o poder discricionário queti legislação, generalizante por sua própria natureza, lhe de-ve necessariamente ceder. A opinião de que somente a legis-lação seria política - mas não a "verdadeira" jurisdição - élã errônea quanto aquela segundo a qual apenas a legisla-ção seria criação produtiva do direito, e a jurisdição, porém,mera aplicação reprodutiva. Trata-se, em essência, de duasvariantes de um mesmo erro. Na medida em que o legisla-ti r autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites, interes-se contrastantes entre si, e decidir conflitos em favor de um

u outro, está lhe conferindo um poder de criação do direi-to, e portanto um poder que dá à função judiciária o mesmocaráter "político" que possui - ainda que em maior medida -a legislação. Entre o caráter político da legislação e o da ju-risdição há apenas uma diferença quantitativa, não qualitati-va. Se fosse da natureza da jurisdição não ser política, entãoseria impossível uma jurisdição internacional; ou melhor: adecisão, segundo as normas do direito internacional, de con-Lrovérsias entre Estados, que só se distinguem dos conflitosinternos porque aparecem mais claramente como conflitos depoder, deveria receber outra denominação. Na teoria do direi-

•..•..... -

252 HANS KEL.\,!\'N

to internacional costuma-se distinguir entre conflitos arbitráveis e não-arbitráveis, conflitos jurídicos e de interess ,(de poder), controvérsias jurídicas e políticas. Contud , ()que significa isso? Todo conflito jurídico é na verdade umconflito de interesses ou de poder, e portanto toda controv 1'_

sia jurídica é uma controvérsia política, e todo conflito quseja qualificado como de interesses, de poder ou políticopode ser decidido como controvérsia jurídica, contanto qu \seja incorporado pela questão sobre se a pretensão que UJ11

Estado ergue em relação a outro e que este se recusa a sati _fazer - nisto consiste todo conflito - está fundamentada nodireito internacional ou não. E tal questão sempre pode rdecidida segundo o direito internacional, ou seja, juridica-mente, o que com efeito se verifica, seja positivamente _acolhendo-se a pretensão -, seja negativamente, rejeitan-do-a. [Tertium non datur.] Um conflito não é "não-arbitrável"ou político porque, por sua natureza, não possa ser um confli-to jurídico e portanto ser decidido através de um tribunal ma,sim porque uma das partes ou ambas, por uma razão qual-quer, não querem deixar que seja resolvido por uma instân-cia objetiva. A tais exigências, e às tendências contrárias aodesenvolvimento da jurisdição internacional que delas na -cem, a teoria do direito internacional fornece a necessáriaideologia com os conceitos de conflito "arbitrável" e "não-arbitrável", de controvérsia política e jurídica. Schmitt otransfere para o âmbito do direito interno quando - comomuitos outros professores de direito público - os diferenciaentre matérias "objeto de jurisdição" Uustiziable] e matéria"não objeto de jurisdição" [nicht justiziable], a fim deadvertir contra uma extensão da jurisdição com relação aestas, na medida em que declara que com isso "a jurisdiçãosó pode ser prejudicada". Segundo Schmitt as questões "polí-ticas" não são objeto de jurisdição. Pois bem, tudo que sepode dizer do ponto de vista de um exame de orientação teó-

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1 i 'a é que a. função de um tribunal constitucional tem um'oráter político de grau muito maior que a função de outrostribunais - e nunca os defensores da instituição de um tribu-nal constitucional desconheceram ou negaram o significadoeminentemente político das sentenças deste - mas não quepor causa disso ele não seja um tribunal, que sua função nãoHujajurisdicional; e menos ainda: que tal função não possaHeI' confiada a um órgão dotado de independência judiciária.lsto significaria deduzir justamente de um conceito qual-quer, por exemplo o de jurisdição, elementos para a confor-mação da organização estatal.

V. Uma vez que Schmitt dá um valor tão particular à.ornprovação de que a assim chamada jurisdição constitu-.ional não é de fato jurisdição, seria de esperar dele umadefinição clara e precisa desse último conceito. Essa expe -tutiva, porém, infelizmente é frustrada. O que ele apresentac 1110 definição de jurisdição é mais do que escasso, e acabasendo substancialmente um retorno a concepções já hámuito reconhecidas como errôneas.

Se reunimos suas observações bastante dispersas sob r \essa duvidosa matéria, chegamos por exemplo à seguinte tes ':ti jurisdição por sua natureza está ligada a normas, isto 6, ti

normas que "possibilitam a subsunção de um fato material" ,além disso não são "duvidosas nem polêmicas" em seu n-Icúdo. Portanto, uma vez que na decisão sobre a constitu-cionalidade de uma lei nunca se trata da subsunção d umrato material, mas sim, geralmente, de "definição do n-t údo de uma lei constitucional duvidosa", não se e tariuaqui diante de jurisdição. Para começar logo com a segundoqualidade com que a "jurisdição" é aqui caracterizada, sópodemos expressar nossa admiração, uma vez que S I mittparece crer que os tribunais civis, criminais e admini Iral j-

vo ,cuja naturezajurisdicional não coloca em dúvida L rinmaplicado sempre e somente normas cujo conteúdo não 1'11

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duvidoso nem polêmico, que a controvérsia jurídica a er. decidida por um desses tribunais é sempre uma questão d '

fato e nunca uma assim-chamada questão de direito, a qualsurge apenas quando o conteúdo da norma a ser aplicada D rduvidoso e portanto polêmico. Como exemplo de um ca oem que não há "patente contradição" entre uma lei constitu-cional e uma lei ordinária, mas sim "dúvida e diferenças dopinião" sobre "se e em que medida existe uma contradi-ção", nos é apresentado: "quando a lei constitucional deter-mina que as faculdades de teologia sejam mantidas e uma leiordinária dispõe que as academias de teologia sejam supri-midas". O conteúdo da lei constitucional é evidentementduvidoso, porque é incerto se por "faculdades de teologia"pode-se compreender também "academias de teologia". Qual-quer palavra é supérflua para demonstrar que a jurisprudên-cia dos tribunais ordinários - cujo caráter jurisdicional nãopode, nem é nunca posto em dúvida - significa em numero-sos casos a definição do conteúdo de uma lei que é, de modoabsolutamente idêntico, duvidoso. Quando Schrnitt fala da"diferença fundamental entre a decisão de um processo e adecisão de dúvidas e diferenças de opinião sobre o conteúdode uma disposição constitucional", só podemos dizer que amaioria das decisões de processos são decisões de dúvidasdiferenças de opinião sobre o conteúdo de uma disposiçãolegal. E, com efeito, nunca se havia feito uma afirmaçãosobre a jurisdição que desconhecesse tão completamente asua essência como a seguinte: "Toda jurisdição está ligada anormas e cessa quando as próprias normas tornam-se duvi-dosas e polêmicas em seu conteúdo". Basta a inversão dessafrase para trazer de volta a verdade simples e por qualquerum visível de que a justiça em geral só começa realmentequando as normas se tornam duvidosas e polêmicas em seuconteúdo, pois do contrário haveria apenas controvérsias so-bre fatos, e não propriamente controvérsias jurídicas. Pode- e

duvidar de que seja conveniente confiar a um tribunal inde-pendente a definição do conteúdo de uma lei constitucionalduvidosa, e por várias razões, pode-se preferir que o gover-110 ou o Parlamento cuidem dessa função. Porém é impossí-vel afirmar que a função de um tribunal constitucional não éjurisdicional quando a norma que deve aplicar tem conteúdotiuvidoso, de modo que sua decisão consista na definição desse.onteúdo; porque é impossível afirmar que a incerteza do con-tcúdo da norma seja, no caso de uma lei constitucional, algodiferente do que acontece no caso de uma lei ordinária.

O outro critério - pelo qual as normas a serem aplicadaspelo judiciário devem possibilitar a subsunção de um fatomaterial- não é, realmente, incorreto; porém tanto mais in-correta é a afirmação de que a decisão sobre a constitucio-nalidade de uma lei não implica tal subsunção. Schmitt in-felizmente deixa de explicar melhor o que entende por Tatbe-

. stand. Mas talvez possamos supor que ele veja realizado oprocedimento de subsunção da maneira mais simples e cla-ra quando um tribunal criminal deva decidir sobre uma acusa-ção. Se o tribunal estabelece que o comportamento do acusadoé mesmo aquele fato que a lei penal prevê como delito, ouseja, como condição de uma determinada pena, trata-se de pro-cedimento absolutamente idêntico ao que se verifica quandoum tribunal constitucional reconhece como inconstitucio-nal uma lei impregnada por alguém. A inconstitucionalidadede uma lei pode consistir não só - como parece à primeiravista - no fato de não ter sido adotada segundo o procedimen-to previsto pela Constituição, mas também em que possua umonteúdo que, segundo a Constituição, não poderia ter; aonstituição, de fato, não regula apenas o procedimento le-

gislativo, mas também define de algum modo o conteúdo dasfuturas leis, por exemplo mediante a fixação de linhas direti-vas, princípios, etc. Como porém uma jurisdição constitucio-nal em relação às leis só é possível se as normas constitu-

256 257HANSKELSEN ,//I/IISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

dos esses casos é o suporte fático da produção de uma normaque é subsumido à norma que o regula e que é reconhecidoximo conforme ou contrário a ela. O tribunal constitucional,p )1' outro lado, reage ao julgamento de inconstitucionalidadede uma lei com o ato que corresponde, como actus contra-rius, ao suporte fático inconstitucional da produção da nor-ma, isto é, com a anulação da norma inconstitucional, sejanpenas - de modo pontual- para o caso concreto, seja - demodo geral - para todos os casos.

Quando Schmitt caracteriza o controle da constitucio-nalidade de uma lei no sentido de que aqui é apenas "con-frontado o conteúdo de uma lei com o de outra, sendo esta-bclecida uma colisão ou contradição", de modo que apenas" ão comparadas regras gerais, mas não subsumidas uma àoutra ou aplicadas uma à outra", ele força um entendimentoela realidade de modo tal que não vê a diferença entre a leicomo norma e a produção da lei como suporte fático. Ele ésimplesmente vítima de um equívoco. Em conseqüência, fa-lha totalmente o seu argumento, apresentado em todas as va-riações possíveis, de que não existe uma "jurisdição da leiconstitucional sobre a lei ordinária", nem "uma jurisdiçãoda norma sobre a norma, uma lei não pode ser a guardiã deuma outra lei". Na jurisdição constitucional não se trata -omo Schmitt exige da teoria normativa que analisa essa

função - de que uma norma deva "proteger normativamente asi mesma", ou que uma lei mais forte deva proteger uma leimais fraca ou vice-versa, mas sim meramente que uma nor-ma deve ser anulada em sua validade pontual ou geral porqueo suporte fático de sua produção está em contradição com anorma que regula tal suporte fático e que está, por isso mes-1110, num nível superior.

VI. Para não permitir que a jurisdição _constitucionalvalha como jurisdiçã para. oder caracterizá-Ia como eislaçav Schmitt apóia-se numa concepção da relação entre

cionais materiais se apresentarem também na forma consti-tucional específica, isto é, como leis qualificadas - pois docontrário toda lei constitucional material será ab-rogada oumodificada por uma lei ordinária que com ela contraste, nãosendo portanto possível uma lei inconstitucional- o controleda constitucionalidade de uma lei por parte de um tribunalconstitucional sempre significa a solução da questão sobre sea lei surgiu de maneira constitucional. Pois mesmo quandouma lei é inconstitucional porque tem um conteúdo inconsti-tucional, ela na verdade só o é por não ter sido adotada comolei que modifica a Constituição. E mesmo no caso de que aConstituição exclua totalmente determinado conteúdo de lei,de modo que uma lei constitucional com tal conteúdo nãopossa absolutamente ser adotada, por exemplo a lei de umestado-membro que intervém na competência federal (e que,mesmo adotada como lei da Constituição estadual, não estejaconforme à Constituição federal), ainda nesse caso a incons-titucionalidade da lei consiste na sua adoção; não no fato denão ter sido adotada de maneira devida, mas no simples fatode ter sido adotada. O suporte fático [Tatbestaná] que deveser subsumido à norma constitucional quando da decisão so-bre a constitucionalidade de uma lei, não é uma norma - fatoe norma são conceitos distintos - mas sim a produção da nor-ma, um verdadeiro suporte fático material, aquele suporte fá-tico que é regulado pela norma constitucional e que, porque ena medida em que é regulado pela Constituição, pode sersubsumido pela Constituição como qualquer outro suportefático sob qualquer outra norma. Pois um suporte fático sópode ser subsumido a uma norma se esta regular esse suportefático, ou seja, estabelecê-lo como condição ou conseqüên-cia. Tanto se um tribunal civil decide sobre a validade de umtestamento ou contrato ou declara inconstitucional um decre-to para não aplicá-lo no caso concreto, ou se um tribunal cons-titucional qualifica uma lei como inconstitucional, em to-

258 HANSKELS/:'N

essas duas fun ões q e acreditávamos até então poder con-s~íderarhá muito obsoleta. Trata-se da concep' ão segund ti

qual a decisão judicial já está contida r,ronJa na lei, sen to_apenas "deduzida" desta através de uma operação lógica: li

jurisdição como automatismo jurídico! SchÍnitt afirma defato com toda seriedade que a "decisão" do juiz "é deduzidano seu conteúdo de uma outra decisão, mensurável e calcu-lável, já contida na lei". Também essa doutrina descende doestoque da ideologia da monarquia constitucional: o juiz t r-nado independente do monarca não deve se conscientizar dpoder que a lei lhe confere, que - dado o seu caráter geral -lhe deve conferir. Ele deve crer que é um mero autômat ,que não produz criativamente direito, mas sim apenas "acha"direito já formado, "acha" uma decisão já existente na I i.Tal doutrina já foi desmascarada há muito tempo? Não 6portanto tão estranho que Schmitt, depois de haver se servi-do dessa teoria do automatismo para separar, como princí-pio, a jurisdição como mera aplicação da lei e a legislaçãcomo criação do direito, e depois que ela lhe assegurouprincipal argumento teórico em sua luta contra a jurisdiçãoconstitucional- "uma lei não é uma sentença, uma sentençanão é uma lei" -, coloque-a de lado, declarando enfatica-mente: "Em toda decisão, mesmo na de um tribunal quresolva um processo mediante a subsunção de um fatomaterial, há um elemento de decisão pura que não pode serdeduzido do conteúdo da lei". Pois bem, é justamente des acompreensão que resulta o fato de que entre lei e sentençanão existe diferença qualitativa, que esta é, tanto quantaquela, produção do direito, que a decisão de um tribuna!constitucional, por ser um ato de legislação, isto é, de pro-dução do direito, não deixa de ser um ato de jurisdição, ou

7. Cf. minha Allgemeine Staatslehre, pp. 231 SS., 301.

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 259

seja, de aplicação do direito, e particularmente que, em fun-vão de o elemento da decisão não se limitar de modo algum;\ função legislativa, mas sim também - e necessariamente-estar contido na função judicial, ambas devem possuir cará-ler político. Com isso, porém, torna-se vazia toda a argu-mentação pela qual o controle de constitucionalidade nãoseria jurisdição por causa de seu caráter político. Perma-nece apenas a questão sobre, or ue um autor de inteligên-'ia tão extraordinária como Schmitt se enreda e~tra i-ções tão palpáveis apenas para poder sustentar a tese de quea jurisdição constitucional não seria jgrisdição, mas sim le-gislação, quando de seu próprio raciocínio se depreende queela pode e deve ser as duas coisas. É dificil que haja outraexplicação além desta: a tese de que a juris_dição constitu-cional não é jurisdição é tão importante, sendo até mesmosustentada por Schmitt em contradição com sua própriacompreensão teórica, porque constitui o pressuposto de umaexigência da política do direito: como a decisão sobre a cons-titucionalidadede uma lei e a anulaçãode uma lei inconsti-lucional não são jurisdição, por isso mesmo tal função nãopode ser confiada a um colégio de juízes independentes,mas deve ser confiada a um outro órgão. Trata-se apenas delitro uso da mesma argumentação quando Schmitt divide os

Estados - segundo a função preponderante em cada caso -em Estados jurisdicionais e Estados legislativos, concluindodo fato de que um Estado - como o Reich alemão hoje -seja um Estado legislativo que: "Num Estado legislativo, aocontrário, não pode haver jurisdição constitucional ou juris-dição do Estado como o apropriado guardião da Constitui-ção". Do mesmo modo afirma: "Num Estado que não sejapuramente jurisdicional, esta [a jurisdição] não pode exercertal função." Talvez porém fosse mais correto dizer que um'stado cuja Constituição estabelece um tribunal constitu-

cional não é, por isso mesmo, um "Estado legislativo", do

I

260 HANS K/:,'LSHN

que concluir, porque tal Estado não se encaixa nesse e qu _ma teórico, que aqui "não pode" existir um tribunal con ti lu-ciona!. É sempre a mesma técnica de deduzir de um cone ·i-to jurídico pressuposto uma configuração jurídica desejada,a típica mistura de teoria jurídica com política do direitos.

Uma pesquisa jurídica científica que se ocupa com tl

possibilidade de uma jurisdição constitucional não deveria,

8. A tese da diferença essencial entre lei e sentença, que ninguém con-tradiz tão energicamente como Schrnitt quando afirma que ambas têm 11

mesma natureza, na medida em que ambas são decisões, constitui estranha-mente, para esse mesmo autor, a base de uma polêmica contra a teoria do gra-dualismo defendida por mim, a qual, reconhecendo a natureza idêntica delegislação e jurisdição, vai em busca de uma diferença quantitativa. Quando li

teoria do gradualismo vê uma produção de norma tanto na legislação como nujurisdição, procede tão metodologicarnente quanto Schrnitt quando este rcco-nhece em ambas o "elemento de decisão". Daí se explicará a veemência dsua polêmica, que trabalha menos com argumentos objetivos do que com juí-zos de valor bastante emocionais, como "abstrações vazias", "metáforas fan-tasiosas", "lógica aguada". O resultado da teoria do gradualismo - elaboradapor mim com base numa crítica metodológica radical e numa luta encarniça-da contra todo antropomorfismo - a "Hierarquia das normas" [Hierarchie derNormen], é liquidado rapidamente numa nota como um "antropornorfismoacrítico e privado de método" e "alegoria improvisada". Teria pouco senti-do, na resenha de um trabalho que é eminentemente de política do direit ,discutir sobre uma teoria que não oferecerá outra coisa além de uma análiseestrutural do direito. Contento-me portanto em afirmar que a doutrina con-tra a qual Schmitt polemiza não tem quase nada a ver com a teoria defendi-da por mim. Há aqui um mal-entendido grosseiro. Schmitt crê estar refutan-do essa teoria quando escreve: "Quando uma norma é mais difícil de modifi-car que outra, trata-se - sob todos os aspectos pensáveis: lógico, jurídico,sociológico - de outra coisa que uma hierarquia; uma atribuição de compe-tência por meio de lei constitucional não está, com respeito aos atos emana-dos pelo órgão competente, na posição de autoridade superior (pois uma nor-matização não é uma autoridade), e a lei ordinária não é, com maior razão,subordinada à lei mais difícil de modificar." Pois bem, se eu sustentasse quea Constituição só está "acima" da lei porque é mais difícil de modificar queesta, então minha teoria seria de fato tão absurda como Schrnitt a expõe.Nessa exposição, porém, é ignorado apenas um pequeno detalhe: que eudiferencio com a máxima ênfase entre Constituição no sentido material e

iuu) VIÇÃO CONSTITUCIONAL 261

por fim, ignorar o fato de que já existe um Estado - precisa-mente a Áustria - em que há mais de' um decênio funcionalima jurisdição constitucional central perfeitamente organi-zada. Analisar a sua real eficiência seria certamente maisfrutífero que indagar sobre a sua compatibilidade com o. nceito de Estado legislativo. Schmitt se contenta em colo-'ar a "solução austríaca" entre aspas e observar que "nocansaço da primeira década após o crash, o exame do signi-ficado objetivo de tal alargamento da jurisdição não foi ade-quado, satisfazendo-se com normativismos e formalismosabstratos". "Normativismos" e "formalismos" seriam uma re-ferência à Escola de Viena; bem, esta não foi impedida porsua "abstração" de realizar um trabalho criativo-jurídico bas-tante concreto, onde se inclui a Corte Constitucional austría-ca, cujo "significado concreto", em todo caso, Schmitt deixaele examinar, não descendo para tanto do alto de suas pró-prias abstrações.

A impossibilidade teórica desse método, a sua contradi-ção interna, tornam-se manifestas também quando Schmitt,na conclusão de seu escrito, põe-se a deduzir das suas pre-missas teóricas o desejado resultado de política do direito.

onstituição no sentido formal, e que fundamento a subordinação do nível dalei ao nível da Constituição não através da forma da Constituição, puramenteacidental e não essencial, mas sim através do seu conteúdo. A Constituiçãointeressa como norma que está acima da legislação porque define o procedi-mento legislativo, e em certa medida também o conteúdo das leis (a ser ema-nado com base na Constituição); do mesmo modo que a legislação está acimada assim-chamada execução (jurisdição, administração), eis que regula aformação e - em medida bastante ampla - o conteúdo dos respectivos atos.Na relação entre o nível da legislação e o da execução, a questão da alterabi-lidade mais fácil ou mais difícil não tem nenhum papel. Schmitt deveriasabê-lo, mesmo que tivesse lido apenas minha comunicação sobre "Essência edesenvolvimento da jurisdição do Estado" [Wesen und Entwicklung der Staatsge-richtsbarkeit] (in Verõffentlichungen der Vereinigung der c/eutschen Staats-rechtslehrer, Heft 5, 1928), ou ao menos a p. 36 do mesmo escrito.

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262 HANSKEL t:N

Lê-se ali: "Antes portanto de instituir, para questões e con-flitos eminentemente políticos, um tribunal como guardiãoda Constituição, sobrecarregando e ameaçando o judiciáriocom tal politização", deveria ser lembrado o conteúdo po i-tivo da Constituição de Weirnar, a qual, no juízo de Schmitt,institui o próprio presidente do Reicb como guardião. I tosignifica, nem mais nem menos, que para questões e confli-tos eminentemente políticos não se deve instituir um tribu-nal como guardião da Constituição porque através da ativi-dade de tal tribunal ajurisdição seria politizada, sobrecarr -gada e ameaçada. A jurisdição? Como poderia justamente "

J

jurisdição ser sobrecarregada e ameaçada pela jurisdiçãoconstitucional, quando esta última - como Schmitt ininter-ruptamente se esforçou por demonstrar - não é absoluta-mente jurisdição?

\.> Não se pode negar que a questão lançada por Schmitt tirespeito dos limites da jurisdição em geral e da jurisdição cons-

)itJ.tciºnal em particular seja absolutamente legítima. Necontexto, porém, a questão não deve ser colocada como unproblema conceitual de jurisdição, mas sim como um pr -blema sobre a melhor configuração da função desta, deven-do-se separar claramente ambos os problemas. Caso se de -je restringir o poder dos tribunais, e, assim, o caráter polítida sua função - tendência que sobressai particularmente namonarquia constitucional, podendo, porém, ser observadatambém na república democrática -, deve-se então limitar omáximo possível a margem de discricionariedade que as leisconcedem à utilização daquele poder. Além disso as normasconstitucionais a serem aplicadas por um tribunal constitu-cional, sobretudo as que definem o conteúdo de leis futuras- como as disposições sobre direitos fundamentais e simila-res -, não devem ser formuladas em termos demasiado gerais,nem devem operar com chavões vagos como "liberdad ","igualdade", "justiça", etc. Do contrário existe o perigo d .

263JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

uma transferência de poder - não previsto pela Constituiçãoc altamente inoportuno - do Parlamento para uma instânciaexterna a ele, "a qual pode tornar-se o expoente de forçaspolíticas totalmente distintas daquelas que se expressam noParlamento?". Essa porém não é uma questão específica dajurisdição constitucional; vale também para a relação entre alei e os tribunais civis, criminais e administrativos que devemaplicá-Ia. Trata-se do antiqüíssimo dilema platônico: poli-r ia ou nomoi?; reis-juizes ou legislador régio? Do ponto devista teórico, a diferença entre um tribunal constitucionalcom competência para cassar leis e um tribunal civil, crimi-nal ou administrativo normal é que, embora sendo ambos apli-cadores e produtores do direito, o segundo produz apenasnormas individuais, enquanto o primeiro, ao aplicar a Consti-tuição a um suporte fático de produção legislativa, obtendoassim uma anulação da lei inconstitucional, não produz, mas

, elimina uma norma geral, instituindo assim o actus contra-rius correspondente à produção jurídica, ou seja, atuando -como formulei anteriormente - como legislador negativo 10.

Porém entre o tipo de função de tal tribunal constitucional edos tribunais normais insere-se, com seu poder de contro-

le de leis e decretos, uma forma intermediária muito dignade nota. Pois um tribunal que não aplica no caso concretouma lei por sua inconstitucionalidade ou um decreto por suailegalidade, elimina uma norma geral e assim atua também

9. KELSEN, A garantia jurisdicional da Constituição. Essas frases cor-relacionam-se com exposições que anexo aqui na íntegra a fim de mostraràqueles que tenham lido apenas o escrito de Schmitt o verdadeiro caráter deum dos "zelotes de um normativismo cego", de sua "lógica normativista elormallstica" (41) e das "devastações que essa espécie de lógica promoveu no.onceito de lei". Veja-se o que consta, a propósito, na exposição mencionada,principalmente nas pp, 167-70 deste volume.

10. Veja-se o que consta, a propósito, na exposição sobre "A garantiajuri .dicional da Constituição", principalmente nas pp. 150-3 deste volume.

264 HANS KELSiI'N

como legislador negativo (no sentido material da palavralex-Iei), Apenas observe-se que a anulação da norma geralé limitada a um caso, não se dando - como na decisão dum tribunal constitucional- de modo total, ou seja, para to-dos os casos possíveis.

VII. É questão de política do direito se o processo atra-vés do qual um órgão dotado de independência judiciáriaexamina a constitucionalidade de uma lei deve ser configu-rado tal como um processo criminal, civil ou administrativ- particularmente, se.deve possuir caráter litigioso -, ou seja,se deve ser formulado de modo que os prós e contras da cons-titucionalidade da lei sejam discutidos o mais publicamentpossível. Tal processo não é exclusivo do judiciário; tambémo processo administrativo pode ser assim formulado. Se apropósito se fala de forma judiciária, é porque historica-mente, e até hoje, ele aparece principalmente nos tribunais.Na antiga Atenas, durante certo período, até mesmo o pro-cesso legislativo tinha essa configuração: quando uma lei an-tiga devia ser substituída por uma nova, a primeira era acusa-da diante dos nomótetas. E Atenas com certeza era tudo ,menos um "Estado jurisdicional", no sentido da conceitua-ção de Schmitt. O processo dialético do Parlamento moder-no é, fundamentalmente, algo muito parecido à "forma ju-diciária" do processo diante de um tribunal. Seu objetivo étrazer à luz todos os prós e contras de determinada solução,e a experiência demonstra que esse resultado é mais bemgarantido quando se confia o ataque e a defesa a duas ins-tâncias diferentes. Isso é imediatamente possível quando naquestão em debate existem dois interessados ou dois grupode interesse com orientação distinta. Esse é sem dúvida ocaso da questão de inconstitucionalidade de uma lei. Con-flitos de interesse de natureza nacional, religiosa, econômi-ca, antagonismos entre grupos interessados em centraliza-ção ou descentralização, e muito mais. Dar a tais antagonis-

JURISDiÇÃO CONSTITUCIONAL 265

1110 uma expressão técnico-processual adequada é tarefa do. digo processual. O caráter litigioso, o assim-chamado ca-ráter judiciário do procedimento, é também totalmente in-dicado quando se trata da aplicação de uma norma constitu-ional que concede uma margem larga de discricionarieda-

de. O litígio então não trata, ou melhor, não trata somente enão só diretamente sobre a questão da constitucionalidade,mas também sobre a conveniência do ato impugnado; é tam-bém uma discussão sobre o melhor modo pelo qual a cria-ção do direito - individual ou geral - deve ocorrer dentro doquadro traçado pela Constituição. Por exemplo, quando estáem questão se uma lei ordinária fere a Constituição, e o teordesta não oferece orientação precisa sobre esse ponto, demodo que a decisão do tribunal constitucional significa, emverdade, um desenvolvimento da Constituição em determi-nada direção, é precisamente nessa situação que o conflitode interesses existente é da máxima importância. E justa-mente aqui é de particular importância que a vontade esta-tal, que se manifesta na decisão do tribunal constitucional,aconteça dentro de um processo que expresse os conflitosde interesses existentes. Em todo processo civil, de acordocom a liberdade discricionária que a lei concede ao juiz, olitígio versa também sobre a oportunidade da decisão, e aforma judiciária demonstra ser adequada em relação à ativi-dade política de criação do direito realizada pelo tribunal, namedida em que se consuma na sentença uma ponderação deinteresses. Para não falar do processo administrativo, cujaforma judiciária em nada prejudica a discricionariedade outor-gada em medida tão ampla à administração. Mesmo que sequisesse falar, com respeito ao poder discricionário conce-dido à aplicação do direito - não em sentido teórico, mas noplano da política do direito -, de normas mais ou menos"sujeitas à jurisdição" [justiziable], seria totalmente errôneaa afirmação de que "a base para uma possível forma judi-

266 HANSKELSEN

ciária" do procedimento seria suprimida "na mesma medidaque a norma sujeita à jurisdição".

JO verdadeiro sentido da assim-chamada forma judiciária

e sua utilidade para o processo diante de uma autoridade quej atue como guardião da Constituição, certamente não será

compreendido se não se contemplar o fato sociológico básicode onde se origina a instituição do processo litigioso: comoem qualquer configuração jurídica, assim também na decisãode um tribunal- e em particular naquela de um "guardião daConstituição" - tomam parte interesses contrastantes, e toda"decisão" versa sobre conflitos de interesses, ou seja, emfavor de um ou de outro, ou no sentido de uma mediaçãoentre ambos; de modo que um processo de caráter litigioso,se não para outras coisas, serve pelo menos para expor clara-mente a real conjuntura de interesses. Tudo isso porém nãopode ser visto se o contraste de interesses existente é esca-moteado pela ficção de um interesse comum ou de uma uni-dade de interesses; o que é essencialmente diverso e essen-cialmente maior do que tudo isso pode ser, na melhor dashipóteses, um acordo de interesses. Trata-se da típica ficçãode que se lança mão quando se opera com a "unidade" da"vontade" do Estado ou com a "totalidade" do coletivo numsentido outro que o meramente formal, a fim de justificaruma configuração com um certo conteúdo definido da ordemestatal. A essa caracterização conduzem também as consi-derações em que Schmitt desenvolve a categoria do "Estadototal" em contraposição ao sistema do "pluralismo".

VIII. Ambos os conceitos são introduzidos a fim de ca-racterizar a situação constitucional concreta do Reich alemão.(Os conceitos de "policracia" e "federalismo", que Schmittigualmente utiliza ao lado de "pluralismo", têm um papel re-lativamente insignificante.) Por "pluralismo" Schmitt com-preende "uma multiplicidade composta por complexos deforças sociais solidamente organizados que perpassam todo

./URfSDIÇÃO CONSTITUCIONAL 267o Estado - ou seja, tanto as diferentes áreas da vida estatalquanto os limites territoriais dos estados e das entidadesautônomas locais - e que dominam enquanto tais a vontadec tatal, sem deixar de ser apenas formações sociais (não-es-tatais)". Quanto a esses "complexos de forças sociais" de-vemos pensar primeiramente nos partidos políticos; já orato_ ue Schmitt caracteriza com a palaVra!pluralismo on-siste sobretudo no estado de coisas definido até aqui comoEstado de artidos. Como resulta da conceituação, é precon-dição decisiva para uma estrutura política considerada plu-ralista que haja uma oposição real entre Estado e socieda-de. O pluralismo consiste justamente no fato de que a von-tade estatal é dominada por complexos caracterizados comosomente sociais, expressamente não-estatais. Para que sepossa realmente falar de "pluralismo", portanto, deve exis-tir uma esfera de vida social livre do Estado de onde sur-jam, partindo de diferentes pontos, influências sobre a von-tade estatal. Em vez disso, para Schmitt, a "mudança para oEstado total" consiste em que desapareça o conflito entre Es-lado e sociedade: "A sociedade transformada em Estadotorna-se um Estado de economia, de cultura, assistencial, debem-estar, previdenciário; o Estado transformado em auto-organização da sociedade, e portanto não mais separável des-ta, abarca todo o social, ou seja, tudo o que diz respeito à con-vivência dos seres humanos; não existe naquela mais nenhumsetor a respeito do qual o Estado possa observar uma neu-tralidade incondicional, no sentido de uma não-intervenção".Nessa "violenta mudança" para o "Estado total", nessa su-peração do Estado liberal - não-intervencionista, limitadoapenas a poucas funções sociais, que deixava à sociedade omáximo de espaço livre e constituía, assim, a real precondi-ção da contraposição conceitual entre Estado e sociedade -,Schmitt enxerga o sinal característico decisivo do moderno"Estado legislativo", considerando também como talo Reich

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268 HANSKEL f:'N

alemão da atualidade. Que o conceito de "Estado total" talcomo é definido até aqui, não ofereça qualquer visão novada realidade sociológica, mas sim apenas uma nova palavrapara o que até agora se costumava denominar "objetivotatal expansivo", em contraposição a "objetivo estatal limi-tado"; que o Estado total do século XX não seja absoluta-mente, como parece crer Schmitt, um fenômeno novo, poijá o Estado antigo e do mesmo modo o "Estado absoluto"isto é, o Estado policial do século XVIII, eram "Estado total",o qual, portanto, não está dialeticamente superado pelos an-teriores; que já o Estado liberal do século XIX, assim, fosseuma reação contra um Estado total - tudo isso não é degrande importância. Dar novos nomes a fatos há muito co-nhecidos é hoje um método muito apreciado e difundidopela literatura política. Mais notável ainda é a tentativa dedescrever a situação real da Constituição do Reich alemãocom duas características que se excluem mutuamente. Comoé possível que esse estado de coisas seja, por assim dizer, oápice do pluralismo e ao mesmo tempo. uma "mudança parao Estado total", se o pluralismo somente é possível na medi-da em que a vontade estatal seja influenciada por uma esfe-ra social, não-estatal, em cuja supressão e estatização con-siste justamente a "mudança para o Estado total"? Essa contra-dição, além disso, coloca Schmitt diante de dificuldades quenão são irrelevantes. A respeito dos partidos políticos,que existem também no Estado total, Schmitt diz: "os parti-dos, nos quais se organizam os diferentes interesses e ten-dências sociais, são a própria sociedade transformada emEstado de partidos ...". Uma vez que no Estado total não exis-te mais uma sociedade, Schmitt precisa tornar em Estado asociedade dentro dos partidos, isto é, apresentar os partidoscomo formação estatal, não mais social. Com isso, porém,sua categoria do pluralismo torna-se inutilizável. E de nadaserve que procure encobrir essa contradição, argumentando

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 269por fim: "A existência de uma multiplicidade de tais com-plexos que concorrem entre si e se mantêm reciprocamentedentro de certos limites, ou seja, a existência de um Estadode partidos pluralista, impede que o Estado total se imponhaenquanto tal com o mesmo ímpeto que já demonstrou nosassim-chamados Estados de partido Ú1ÜCO, Rússia Soviéticae Itália". Uma vez que, segundo a definição originária, oEstado pluralista se diferencia do Estado total justamentepelo fato de que este absorve a esfera social, tampouco podedar resultado essa outra tentativa de se livrar da contradição:"Com a pluralização, porém, a mudança para o Estàdo totalnão é anulada, mas sim apenas, por assim dizer, parcelada,na medida em que cada complexo organizado de forçassociais - da associação coral e do clube esportivo à autode-fesa armada - procura tanto quanto possível concretizar atotalidade em si e para si". Essa totalidade parcelada é sim-plesmente uma contradictio in adjecto.

A razão mais profunda da contradição está em queSchmitt, com os termos "pluralismo" e "Estado total", unedois pares de opostos que não têm nada em comum - a opo-sição entre Estado e sociedade e a oposição entre uma voli-ção autocrática-centralista e outra democrática-descentra-lista - e em que nos conceitos de "pluralismo" e "Estado to-tal" aparece em primeiro plano ora uma, ora outra das duasoposições. O Estado total, enquanto Estado que absorve com-pletamente a sociedade e abraça todas as funções sociais, épossível tanto na forma de democracia - na qual o processoda vontade estatal se dá na luta dos partidos políticos - comona forma de autocracia, na qual a formação de partidos polí-ticos está excluída. O Estado "total" pode também ser um"Estado de partidos pluralista" porque uma expansão tãoarrojada do objetivo estatal ainda é compatível com umaarticulação bastante ampla do povo em partidos políticos.Do mesmo modo, um Estado "total" entendido nesse senti-

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do seria compatível com uma ampla descentralização, p _rém não um Estado "total" no sentido de uma comunidadecom vontade centralizada, "unitária", e portanto "mais for-te", cujo "ímpeto", contudo, ~ quebrado num Estado demo-crático de partidos. Mas por que Schmitt sobrecarrega suadefinição de pluralismo com a oposição entre Estado e so-ciedade, a qual - como demonstram seu Estado total plura-lista e sua totalidade parcelada - é irrelevante para o fato aser compreendido sob o conceito de pluralismo e apenaenvolve contradições? Sobretudo por que a oposição entrEstado e sociedade é completamente eliminada no conceitode "Estado total", em evidente contradição com a realidadesocial que deve ser apreendida através desse conceito? Nãoé preciso ser adepto da concepção materialista da históriapara reconhecer que um Estado cuja ordem jurídica garantea propriedade privada dos meios de produção mantém n.1J1-

damentalmente a produção econômica e a distribuição doprodutos como função não-estatal e remete o cumprimentodesta que é, talvez, a mais importante das tarefas, a um setorque só pode diferenciar-se do Estado enquanto sociedade,não pode ser um "Estado total" no sentido da definição deSchmitt, isto é, um Estado que "abraça todo o social". Nessesentido - de um regime de coerção que absorve completa-mente a sociedade - apenas o Estado socialista pode ser um"Estado total". Se qualificamos o Estado capitalista de hojecomo "Estado total" sem poder provar tal coisa asseverandoque seu ordenamento já teria realizado a mudança decisivapara o socialismo de Estado - o que, de fato, não é possível,nem Schmitt procura fazer - então dificilmente poderemosnos defender da objeção de que a "mudança para o Estadototal" é apenas uma ideologia burguesa através da qual seencobre a situação de violenta oposição em que se encontrao proletariado, ou pelo menos uma grande parte dele, emrelação ao Estado legislativo da democracia parlamentar, do

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mesmo modo que a burguesia do início do século XIX emrelação ao Estado policial "total" da monarquia absoluta.Uma ideologia que afirma uma unidade inexistente de Esta-do e sociedade, pois a luta de classes não ocorre como lutaentre órgãos estatais, mas sim como luta que uma parte dasociedade - que não está no Estado porque não se identificacom ele -, conduz contra outra parte da sociedade que é oEstado, porque e na medida em que seu ordenamento garan-te os interesses dessa parte. Com a "mudança para o Estadototal" o conflito entre Estado e sociedade teria perdido o seusentido. Porém, do ponto de vista do proletariado e de umateoria social proletária, esse conflito tem hoje exatamente omesmo significado que tinha outrora do ponto de vista daburguesia e de uma doutrina burguesa do Estado e da socieda-de, sendo por isso tão atual e correto hoje como era então!'.

Assim, os conceitos de pluralismo e Estado total nãopodem resistir a uma crítica sociológica. Seu significadotoma-se claro quando atentamos para a pronunciada acen-

11. Se - como salienta Schmitt - a essência do "pluralismo" é caracteri-zada pelo "contraste com uma plena e compacta unidade estatal" e se nesseconceito - segundo sua definição modificada - reaparece o contraste entreEstado e sociedade (os partidos políticos em luta entre si representando, tam-bém como formações estatais, um elemento pluralista), então uma organiza-ção do tipo Estado federativo só pode ser considerada um estilhaçamento plu-ralista da unidade do Estado. O mesmo vale também para o desmembramentodo Estado através de uma Constituição corporativa. Quanto à demanda peloregime econômico "de um Estado de corporações, de sindicatos ou de conse-lhos", Schrnitt admite também que "sua concretização não fortaleceria a uni-dade da vontade estatal, mas antes a ameaçaria; os contrastes econômicose sociais não seriam resolvidos e superados mas sim se colocariam mais aber-ta e violentamente, pois os grupos em luta não estariam mais obrigados aseguir a via indireta das eleições gerais e da representação popular". Isso,porém, significa exatamente que o sistema corporativo é refutado como plu-ralista. Totalmente diferente, no entanto, é o posicionamento em relação aoEstado federativo. Aqui Schmitt admite somente a "possibilidade" de que plu-ralismo e federalismo - sendo que este, segundo a definição modificadade pluralismo, pode ser na verdade somente um caso especial do último e

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tuação valorativa com que surgem. Pluralismo: um estadode coisas em que a sociedade reprime o Estado, em que ten-dências hostis ameaçam o Estado em sua existência, por oameaçarem em sua unidade; pluralismo significa "o po-der de diversas grandezas sociais sobre a vontade estatal ,"dissolução do conceito de Estado", "divisão do Estado","estilhaçamento da unidade do Estado e da Constituição". A"mudança para o Estado total" é evolução em direção oposta;é a vitória do Estado sobre a sociedade hostil, é a situaçãoda assegurada unidade do Estado. Contra as forças pluralis-tas hostis ao Estado, que lhe ameaçam a unidade, buscam-se"remédios" e lança-se a questão de se "seria legítimo (...),eventualmente invocando-se o princípio cooperativo genui-namente alemão, impulsionar ainda mais essa evolução parao pluralismo". E Schmitt responde negativamente a essaquestão da forma mais decidida. Seu juízo de valor toma-sede todo evidente quando afirma que "o sistema pluralista,com seus contínuos acordos de partidos e de facções, trans-forma o Estado numa justaposição de compromissos atravésdos quais os partidos que participam a cada vez do acordode coalizão dividem entre si todos os cargos, rendimentos evantagens segundo a lei das quotas e ainda, porventura, con-

ademais um caso especialmente perigoso - "se aliem". Todavia, ele faz essapossibilidade recuar totalmente e toma o federalismo, "não obstante, um con-trapeso ainda particularmente forte contra as atuais formações pluralistas depoder e os métodos de sua política partidária". Noutro contexto é feita refe-rência ao fato de que "a Constituição se firma no caráter estatal dos estados"e que "o federalismo pode ser um reservatório de forças estatais". Não causasurpresa, portanto, que o federalismo seja justificado precisamente como"antídoto contra os métodos de um pluralismo político-partidário". Aqui, denovo, "pluralismo" é algo totalmente diferente; por outro lado, essa justifica-ção do federalismo simplesmente ignora que a uma multiplicação do sistemaparlamentar, como a que a Constituição federal traz consigo, está ligada umamultiplicação daquele "pluralismo", ao qual, portanto, qualquer coisa podeservir de contrapeso, menos o federalismo!

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sideram como justiça a paridade observada nessa ativida-de". Sim, no fim das contas, o pluralismo é até mesmo decla-rado "inconstitucional". Assim, a categoria do pluralismopode servir para pôr de lado aquela solução do problema dagarantia da Constituição que consiste na introdução de umajurisdição constitucional; e o "Estado total" serve para fun-damentar a solução que se assegura como a justa porquegarante a unidade do Estado, ameaçada ou mesmo eliminadapelo antagonismo especificamente pluralista entre Estado esociedade.

IX. Schmitt vê o caráter pluralista da jurisdição consti-tucional em que ela ocorre como um processo, no qual sefazem valer "direitos subjetivos" junto à Constituição ou aopoder estatal. Interpretar isso como "dissolução do concei-to de Estado" é de fato totalmente infundado. Se a Consti-tuição de um Estado federativo habilita tanto a União comoos estados a impugnar, diante de um tribunal constitucionalcentral, leis estaduais ou federais contrárias às normas sobrecompetência, se dá poderes aos tribunais ou a outras autori-dades de sublinhar a inconstitucionalidade de normas quedevem aplicar, ou mesmo se lhes dá direito a uma actio po-pularis a fim de eliminar radicalmente atos inconstitucionais,não se criam com isso "direitos subjetivos", como direitoscom tendência hostil ao Estado, porque hostil ao direito obje-tivo, mas sim no sentido jusnaturalista de direitos inatos, in-dependentes do ordenamento objetivo do Estado e do direi-to, a ser respeitados por esse ordenamento, que não sejamatribuídos e portanto não sejam por ele suprimíveis. O "di-reito subjetivo", que não consiste em outra coisa que na le-gitimação processual, na possibilidade de introduzir junto auma autoridade central um processo cujo escopo é a elimi-nação de um ato inconstitucional, a remoção de uma injusti-ça, tal direito subjetivo não é outra coisa que um expedientetécnico para a garantia da ordem estatal, sendo assim justa-

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mente o oposto do que se poderia denominar a "dissoluçãopluralista do Estado". Do mesmo modo, poder-se-ia falar deum "estilhaçamento pluralista" da unidade do Estado a pro-pósito da promotoria pública e da magistratura, pois no proces-so penal o Estado se divide em acusador e juiz.

A "mudança para o Estado total" influi sobre a jurisdi-ção constitucional antes de tudo na medida em que sua bus-ca é interpretada como tentativa de conter aquela mudança e,assim, o processo de fortalecimento e consolidação do Estado,sua vitória sobre a sociedade. "Não é de admirar que a defe-sa contra uma tal expansão do Estado" -leia-se a "mudançapara o Estado de economia", que representa a fase decisivana mudança para o Estado total- "surge antes de tudo comodefesa contra aquela atividade estatal que num momentocomo este determina justamente a natureza do Estado, por-tanto como defesa contra o Estado legislativo. Por isso sãoreclamadas em primeiro lugar garantias contra o legislador.Assim se explicarão as primeiras e pouco claras tentativasreparadoras [...] que se aferraram à jurisdição a fim de obterum contrapeso para o cada vez mais poderoso e abrangentelegislador. Tinham necessariamente que terminar em vaziosformalismos [...] Seu verdadeiro erro estava em que somen-te poderiam contrapor ao poder do moderno legislador umajurisdição que ou estivesse vinculada por normas precisasemitidas por esse mesmo legislador ou só pudesse opor-lheprincípios indeterminados e controversos, cujo auxílio nãoserviria para criar uma autoridade superior ao legislador".Mas quem neste mundo já esperou de um tribunal consti-tucional que ele se oponha ao alargamento da competêncialegislativa? Então a expansão do legislativo só se poderealizar através de quebras da Constituição? Dificilmenteseria possível uma interpretação mais equivocada da juris-dição constitucional. E quando Schmitt prossegue: "Numasituação assim modificada e diante de tal alargamento dos

deveres e problemas estatais, talvez o remédio possa ser dadopelo governo, porém decerto que não pelo judiciário", pre-parando assim sua exigência de que não um tribunal, mas ogoverno, seja feito guardião da Constituição, é precisamentenesse contexto que não se pode fechar os olhos para o fato deque a expansão legislativa também se dá, em medida consi-derável, através do poder de decreto do governo, particular-mente quando, com base numa interpretação do art. 48-2 -apoiada com entusiasmo justamente por Schmitt -, o poderde decreto do governo toma o lugar do poder legislativo doParlamento. De resto, um tribunal constitucional é instrumen-to totalmente inútil para impedir a mudança para o Estadototal. Não se pode, no entanto, desacreditar uma instituiçãopartindo-se de um objetivo que lhe é completamente estra-nho, e afirmando depois que ela não está em condições dealcançá-lo.

Um efeito da doutrina do "Estado total" que não é irre-levante consiste na diminuição do valor de um argumentocapital a favor de se confiar o controle a uma corte indepen-dente, e não ao governo. Uma vez que a Constituição divideo poder essencialmente entre dois pólos, Parlamento e go-verno (onde por "governo" deve-se entender especialmenteo órgão composto pelo chefe de Estado e os ministros queassinam seus atos), já apenas por isso deve existir necessa-riamente um antagonismo contínuo entre Parlamento e go-verno. E o perigo de uma violação constitucional deve nas-cer sobretudo da possibilidade de um dos dois pólos ultra-passar os limites que a Constituição lhe designou. Uma vezque justamente nos casos mais importantes de violação cons-titucional Parlamento e governo são partes litigantes, é re-comendável convocar para a decisão da controvérsia umaterceira instância que esteja fora desse antagonismo e quenão participe do exercício do poder que a Constituição divi-de essencialmente entre Parlamento e governo. Que essa

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mesma instância tenha, com isso, um certo poder, é inevitá-vel. Porém há uma diferença gigantesca entre, de um lado,conceder a um órgão apenas esse poder que deriva da fun-ção de controle constitucional e, de outro, tomar ainda maisfortes os dois principais detentores do poder, confiando-lhes ademais o controle da Constituição. A vantagem fun-damental de um tribunal constitucional permanece sendoque, desde o princípio, este não participa do exercício do po-der, e não se coloca antagonicamente em relação ao Parla-mento ou ao governo. Segundo a doutrina do "Estado total",porém, não existe antagonismo entre Parlamento e governo.Donde deriva - sem que tal precise ser dito expressamente,e Schrnitt de fato não o faz - que quando o governo, isto é, ochefe de Estado em conjunto com os ministros, atua comoguardião da Constituição para defendê-Ia de leis inconstitu-cionais, o controle constitucional não está sendo entregue anenhuma instância que possa ser considerada parte litigante.

A eliminação do antagonismo entre governo e Parlamen-to, decisiva para a solução do problema da garantia da Cons-tituição, resulta do fato de Schrnitt interpretá-lo apenas comouma conseqüência ou variante do dualismo de Estado e so-ciedade, que desaparece com a mudança para o "Estado to-tal". "Todas as instituições e normatizações importantes dodireito público que se desenvolveram ao longo do século XIXna Alemanha e constituem grande parte de nosso direito pú-blico têm por base aquela distinção (entre Estado e sociedade).O fato de que o Estado da monarquia constitucional alemã,com suas contraposições de príncipe e povo, Coroa e Câma-ra, governo e representação popular, tenha sido de modo ge-ral construído dualisticamente, é apenas: expressão do dua-lismo geral e fundamental de Estado e sociedade. A repre-sentação popular, o Parlamento, a corporação legislativa foramconcebidos como o palco em que a sociedade entrava em ce-na e atuava como antagonista do Estado". "Esse Estado que

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no sentido liberal, não-intervencionista, era fundamentalmen-te neutro em relação à sociedade e à economia, (...) modifi-cou-se radicalmente, na mesma medida em que aquela cons-trução dualística de Estado e sociedade, governo e povo,perdeu sua tensão, e o Estado legislativo se consumou. Poisagora o Estado vai se tomando de fato auto-organização daociedade. Com isso cai, como mencionamos, a até aqui sem-

pre pressuposta distinção entre Estado e sociedade, governoe povo, de modo que todos os conceitos e instituições cons-truídos sobre tal pressuposto (lei, orçamento, autonomiaadministrativa) tomam-se novos problemas". No Estado totalque abarca todo o social, particularmente, é impossível tam-bém haver qualquer antagonismo entre governo e Parlamento,pois tal antagonismo deve desaparecer junto com aquele queexiste entre Estado e sociedade. Porém Schinitt não apresentaessa conclusão expressamente, afirmando apenas expressisverbis que com a mudança para o Estado total deixa de existira distinção entre Estado e sociedade e, portanto, entre "gover-no e povo". Ao caracterizar o Estado total, ele não fala do dua-lismo entre governo e Parlamento, o qual na análise da monar-quia constitucional do século XIX é apresentado como meravariante do antagonismo entre Estado e sociedade. Ele deixaao leitor a tarefa de prosseguir com o pensamento nessa dire-ção; diz no entanto com suficiente clareza: "Todas as contra-posições até aqui usuais, ligadas ao pressuposto do Estadoneutro, que surgem a partir da distinção entre Estado e socie-dade e são apenas casos de aplicação e transcrição dessa dis-tinção, deixam de existir. Separações antitéticas tais como:Estado e economia, Estado e cultura (...) política e direito (...)perdem seu sentido e tomam-se vazias". A essas "separaçõesantitéticas", porém, segundo suas observações anteriores, per-tence também a oposição entre governo e Parlamento.

Não é preciso ter especial perspicácia para demonstrarque o antagonismo entre governo e Parlamento desapareceu

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tão pouco no Estado contemporâneo quanto aquele entreEstado e sociedade, com o qual não é, em absoluto, idênti-co. Ele não perdeu seu sentido, apenas se modificou. Nelese expressam não mais o antagonismo entre as camadas po-pulares representadas na maioria parlamentar e os gruposde interesse que impregnam o monarca e seu governo, massim o antagonismo que existe entre a minoria e a maioriaparlamentar, tendo esta no governo o seu fiduciário. Esse nãoé porém o único sentido que um antagonismo entre Parla-mento e governo pode ter modernamente. Ele pode assumiroutro sentido quando estiver no cargo um governo minoritá-rio ou um chefe de Estado eleito apenas por uma minoria dopovo, e especialmente quando um governo, não tendo por trásde si uma maioria parlamentar, governar inconstitucionalmen-te sem Parlamento. Numa época em que o governo do Reichse vê obrigado a ameaçar com a própria demissão caso oParlamento ou apenas uma comissão deste se reúna, corres-pondendo ao desejo da maioria parlamentar, toma-se dificilaceitar as últimas conseqüências da doutrina do "Estado to-tal" e admitir que "Parlamento e governo" seja uma "sepa-ração antitética" que tenha perdido seu sentido e se tomadovazia com a mudança para o Estado legislativo.

X. Os caminhos que levam do "Estado total" ao chefede Estado como "guardião da Constituição" não são, de res-to, fáceis de encontrar, mesmo para um leitor bastante aten-to. Parece que a real unidade do "Estado total" funcionacomo uma espécie de alicerce sociológico para outra unida-de, qual seja, a que o preâmbulo da Constituição de Weimarpressupõe e que - caso seja algo mais que a unidade jurídi-ca da população do Estado, que toda Constituição estabele-ce - é apenas uma outra expressão da mesma ideologia. "AConstituição do Reich em vigor firma-se no conceito demo-crático da homogênea, indivisível unidade de todo o povoalemão, o qual por força de seu próprio poder constituinte e

JURiSDIÇÃO CONSTITUCIONAL 279mediante uma decisão política positiva, portanto medianteato unilateral, deu a si mesmo essa Constituição. Dessemodo, todas as interpretações e aplicações da Constituiçãode Weimar que procuram fazer dela um tratado, um acor-do ou coisa similar, são solenemente repelidas como contrá-rias ao seu espírito". A conexão intrínseca - em nenhummomento afirmada diretamente por Schmitt - que existeentre a construção do "Estado total" e a "unidade homogê-nea, indivisível de todo o povo alemão", toma-se clara pelofato de que o "pluralismo" opõe-se a essa unidade exata-mente do mesmo modo que à outra unidade representadapelo "Estado total". O pluralismo é caracterizado expressa-mente pela "oposição a uma plena e compacta unidade esta-tal". E assim como o pluralismo estorva o "ímpeto" do Esta-do total através da oposição que nele se expressa entre Estadoe sociedade, "parcelando" a totalidade, o "elemento pluralis-ta" que aparece "na realidade de nossa situação constitucionalatual" ameaça essa "unidade homogênea, indivisível", naqual "se firma" a Constituição de Weimar. É principalmentesobre essa unidade que Schmitt fundamenta sua interpreta-ção da referida Constituição. Essa unidade não é meramenteum postulado ético-político, tal como costumam apregoaros preâmbulos constitucionais, mas sim uma realidade so-cial, se é verdadeiro que o antagonismo pluralista de Estadoe sociedade que ameaça tal unidade está, com efeito, elimi-nado, e que o "Estado total" que elimina tal antagonismo é,uma realidade. De fato, a realidade é descrita como deca-dente em meio a uma desagregação "pluralista", o que, noentanto, não impede que os "interessados nesse pluralismo"(ou os teóricos que o favorecem?) sejam censurados por"encobrir a realidade com auxílio de um assim chamadoformalismo" .

Essa "unidade homogênea, indivisível, de todo o povoalemão", invocada pelo preâmbulo constitúcional, é o nn=

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cipa suporte da t.e§e do prçsidente do Reich como guar-dião da Constituição. Pois do fato de que "a Constituição deWeimar é uma decisão política do povo alemão unitário en-quanto detentor do poder constituinte" - sendo que em verda-de essa Constituição é a resolução de um Parlamento cujaidentidade com o "povo alemão unitário'.' só pode ser afirma-da mediante a ficção da representação -, Schmitt conclui que"o problema do guardião da Constituição requer uma soluçãodiferente da que pode ser oferecida por uma fictícia formajudiciária". Ou seja: a solução é que o presidente do Reichseja o guardião da Constituição, pois ele, eleito por todo opovo, está destinado a "defender a unidade do povo como umtodo político", atuando como "contrapeso para o pluralismode grupos de poder sociais e econômicos", tendo também apossibilidade, pela indução do referendo popular, "de se ligardiretamente a essa vontade geral do povo alemão, de atuarcomo guardião e defensor da unidade e integridade constitu-cional do povo alemão. Mais tarde voltaremos a tratar do fatode que o presidente do Reich é definido aqui como "guardiãoda Constituição" num sentido que nunca poderá ser aplicadoa um tribunal constitucional, e dentro do qual este nunca foiafirmado por ninguém, de modo que contrapor o presidentedo Reich a um tribunal constitucional faz tão pouco sentidoquanto afirmar que o exército, por ser a melhor defesa doEstado, toma desnecessários os hospitais. Bastará aqui afir-marmos que se a Constituição institui um tribunal constitu-cional, isto não é uma "fictícia forma judiciária", mas sim acriação de uma instituição real; e que, se algo aqui pode serqualificado de "fictício" é justamente a tal "unidade dopovo", a qual Schmitt - pretensamente imitando a Consti-tuição - pressupõe como real, e ao mesmo tempo declara eli-minada pelo sistema pluralista concretamente existente como intuito de apresentar o chefe de Estado como remédio con-tra essa situação e como restaurador da referida unidade.

Representar a unidade do Estado de um modo visívelexteriormente é sem dúvida a função que o chefe de Estado,segundo todas as Constituições que instituem um órgão tal,eleve cumprir. Certamente, como diz Schmitt, "a posição dochefe de Estado está intimamente ligada à representação daunidade política na sua inteirezd.' Isso porém - numa com-preensão realista, livre de qualquer ideologia - significaapenas que pertence à função do chefe de Estado expres-ar simbolicamente a demanda irrenunciável por uma uni-

dade material, mais que formal do Estado. Podemos atémesmo ver aí a função principal desse órgão que as diferen-tes Constituições chamam de chefe de Estado. Essa fun-ção consiste não tanto nas competências materiais que sãoatribuídas a esse órgão, que deve exercê-Ias em conjuntocom os ministros, como parte não-independente de um órgãocomposto (que não é absolutamente o órgão supremo, masapenas um ao lado de outros órgãos supremos do Estado),quanto na sua denominação como chefe do Estado, impe-rador, rei, presidente, e nos privilégios honoríficos que lhesão atribuídos. A importância política dessa função não de-ve de maneira nenhuma ser subestimada. Contudo, signifi-ca tomar ideologia por realidade quando se vê - como fazSchmitt com relação à doutrina da monarquia constitucio-nal - na instituição do chefe de Estado não simplesmente osímbolo de uma unidade do Estado postulada no planoético-político, mas sim o produto ou o produtor de umadada unidade real, no sentido de uma efetiva solidariedade deinteresses. Pois esse é, de fato, o verdadeiro sentido da dou-trina do pouvoir neutre do monarca, que Schmitt transferepara o chefe de Estado republicano: mascarar o efetivo, radi-cal contraste de interesses que se expressa na realidade dospartidos políticos, e mais importante ainda, na realidade doconflito de classes que está por trás destes. Em termos pseu-dodemocráticos, a fórmula dessa ficção seria algo assim: o

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um acordo - garantida por sua independência dos partidospolíticos - temos de admitir que as condições para isso en-contram-se em maior grau num monarca hereditário do quenum presidente de Estado eleito e reelegível. A eleição dochefe de Estado, que se dá inevitavelmente sob a alta pres-ão de ações político-partidárias, pode ser um método de-

mocrático de nomeação, mas não lhe garante particularmen-te a independência. Concluir - a partir do fato de que o che-fe de Estado é eleito pelo povo, isto é, na verdade nomeadopor uma maioria, por vezes mesmo por uma minoria dopovo em luta com outros grupos - que ele expressará a von-tade geral do povo unitário é portanto discutível, não apenasporque tal vontade geral não existe, mas também porque jus-tamente a eleição não representa nenhuma garantia para umafunção do chefe de Estado de equilibrar interesses em con-flito. Se esta, via de regra, de fato se manifesta, é apesar des-se método de nomeação. Enxergar na eleição uma garantiade independência, como faz Schmitt, só é mesmo possívelse fecharmos os olhos para a realidade. Tampouco se devesuperestimar os outros meios que as Constituições de re-públicas democráticas oferecem para garantir a indepen-dênciado chefe de Estado eleito, tais como um mandatolongo e uma destituição mais dificil, tanto mais que eles, emparte, são paralisados pela possibilidade de reeleição pre-vista constitucionalmente. Mesmo a estipulação de incom-patibilidades, à qual Schmitt atribui especial importância, nãotem grande peso; sobretudo se estiver proibida a filiação acorporações legislativas, mas não a organizações políticas:uma proibição de pouco significado prático. Não há, parti-cularmente, razões suficientes para considerar a indepen-dência do chefe de Estado eleito mais forte ou mais garantidado que a do juiz ou do funcionário. Não se pode, sobretudo,desvalorizar a neutralidade do juiz de carreira em favor dado chefe de Estado com o argumento de que "Os verdadei-

povo que forma o Estado é um coletivo unitário homogêneoe possui também um interesse coletivo unitário que se ex-pressa numa vontade coletiva unitária. Essa vontade coleti-va, que está além de qualquer conflito de interesses e, assim,acima dos partidos políticos - é a "verdadeira" vontade doEstado -, não é produzida pelo Parlamento; este é o cenáriodos conflitos de interesses, da desagregação político-parti-dária (Schmitt diria "pluralista"). Seu artífice e instrumentoé o chefe de Estado. O caráter ideológico dessa interpreta-ção é evidente. Ela está já de saída em contradição com ofato de que a Constituição liga os atos do chefe de Estado àcolaboração dos ministros, responsáveis perante o Parla-mento. De resto, mesmo que houvesse atos autônomos dochefe de Estado, permaneceria sendo um mistério como nes-ses atos pode-se realizar uma harmonia de interesses quenão existe em parte alguma, o interesse objetivo do Estado,que não é o interesse deste ou daquele grupo particular.Mesmo um plebiscito popular - provocado pelo chefe deEstado - exprime, na melhor das hipóteses, a vontade deuma maioria, que é apresentada como a vontade geral dopovo, a típica ficção democrática.

Que todo chefe de Estado, na medida em que é inde-pendente dos grupos de interesses antagônicos, buscará comseus atos uma linha mediana, isto é, a linha do acordo, é algoque se compreende por si mesmo. Essa atitude, de fato, asse-gura, via de regra, a sua própria posição. O seu poder "neu-tro", porém, deve ser algo bem maior que a possibilidade deequilibrar interesses. E justamente essa possibilidade é no-tavelmente limitada pelo fato,já mencionado, de que ele nãopode agir sem a colaboração dos ministros, que dependemda maioria parlamentar.

Se, com todo o realismo e sem qualquer verniz ideoló-gico, enxergamos a "neutralidade" do chefe de Estado nessapossibilidade de influenciar a vontade estatal na direção de

284 HANSKELSEN .I RISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

ros detentores do poder político podem facilmente obter ainfluência necessária sobre o preenchimento dos postos dejuízes e a nomeação dos peritos. Se o conseguem, a resolu-ção em forma judiciária ou técnica das controvérsias tor-na-se um cômodo instrumento político, e isso é o oposto doque na verdade se objetivava com a neutralização". Ora, osjuízes são, via de regra, nomeados pelo chefe de Estado;não é este o "verdadeiro" detentor do poder político? E seapenas os partidos políticos o são, então a ausência de neu-tralidade dos juízes não pressupõe a ausência de neutrali-dade da instância que o nomeia? "Do ponto de vista práti-co", opina Schmitt, "é sempre um inibidor notável dos mé-todos político-partidários de preenchimento de cargos quan-do não é o companheiro de partido transformado em ministroaquele que nomeia os funcionários, mas sim um chefe deEstado independente do Parlamento, ou seja, de um partido".Onde, porém, está a garantia de que um "companheiro de par-tido" não seja eleito chefe de Estado, e desde quando ospartidos políticos não têm a possibilidade, também fora doParlamento, de tornar dependentes os órgãos eleitos por elesou com sua ajuda? Se a neutralidade garantida através da"independência" é a precondição essencial para a função deguardião da Constituição, então o chefe de Estado não pos-sui nenhuma vantagem - pelo menos - em relação a um tri-bunal independente, e isso deixando-se totalmente de ladoum fator que, embora não deva ser superestimado, pode muitobem fundamentar uma certa superioridade do tribunal: ofato de que o juiz é impelido à neutralidade já por sua éticaprofissional.

Como Schmitt não pode provar que o chefe de Estado éem maior medida independente e neutro do que o judiciárioe o funcionalismo público, declara finalmente: "Tanto o ju-diciário como o funcionalismo de carreira são sobrecarrega-dos de um modo insustentável quando se acumulam sobre

eles todas as tarefas e decisões políticas para as quais sedeseja independência e neutralidade partidária". Essa mu-clança da qualidade para a quantidade, porém, é totalmenteinadmissível e não prova absolutamente nada. Não se po-de comparar todo o judiciário a um camelo que desabará nochão se lhe pusermos em cima o fardo adicional da jurisdi-ção constitucional. Não é a jurisdição enquanto tal que estáem questão, mas sim um único tribunal; as tarefas deste nãosobrecarregam a "jurisdição", a qual não existe como quan-tidade, é uma abstração, e enquanto tal não pode ser so-brecarregada, mas sim somente aquele tribunal concreto, oqual Schmitt, no entanto, provou anteriormente não ser umaautoridade judiciária. E trata-se somente de saber quem émais independente e neutro: esse tribunal ou o chefe de Es-tado. Através da imagem distorcida de uma sobrecarga dajurisdição, Schmitt procura inutilmente esquivar-se de admi-tir que não conseguiu comprovar sua tese do "chefe de Es-tado como guardião da Constituição" com o argumento deque ele estaria mais apto a protegê-Ia por possuir em maiormedida que o tribunal a qualidade da independência e, por-tanto, da neutralidade. Antes, a própria fórmula com queSchmitt define a essência da "neutralidade", que seria pres-suposto para a tarefa de guardião da Constituição, adapta-sejustamente a um tribunal constitucional, militando direta-mente contra o chefe de Estado. Diz ele que "num Estadode direito com poderes separados, não é lógico confiar adi-cionalmente essa função (a de guardião da Constituição) aum dos poderes existentes, pois em tal caso esse poder ganha-ria preponderância sobre os outros e poderia, ele mesmo,esquivar-se do controle, tornando-se assim o senhor da Cons-tituição. É preciso, portanto, introduzir um poder neutroespecial ao lado dos outros poderes, combinando-o e equili-brando-o com estes através de atribuições específicas". Ora,então o chefe de Estado não é um dos "poderes existentes",

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sobretudo numa Constituição que combina o elemento parla-mentar com o plebiscitário e que divide o poder políticoentre Parlamento e presidente do Reich (em conjunto comos ministros)? E justo do ponto de vista de uma interpreta-ção da Constituição que se dedica, com todos os meios, adeslocar o centro de gravidade do poder na direção do chefede Estado! De quem podemos dizer que se coloca comopoder especial neutro "ao lado dos outros poderes": um tri-bunal destinado a nada mais que exercer um controle consti-tucional ou o chefe de Estado? É desse tribunal ou do chefede Estado que devemos dizer que - se chamado a exercer afunção de guardião da Constituição - recebe essa função"adicionalmente", adquirindo destarte uma "preponderân-cia" sobre os outros poderes instituídos pela Constituição,na medida em que assim "poderia, ele mesmo, esquivar-sedo controle"? Nem mesmo a ideologia de Benjamin Constantdo pouvoir neutre do monarca poderia obscurecer tantoessa interrogação a ponto de tornar a resposta seriamenteduvidosa.

XI. Que o chefe de Estado, no âmbito de uma Cons-tituição do tipo da de Weimar, não seja exatamente o órgãomais indicado para a função de controle constitucional; queparticularmente quanto à independência e neutralidade, elenão possua qualquer vantagem diante de um tribunal consti-tucional, é antes confirmado do que desmentido pelo escri-to de Schmitt. Porém Schmitt não apenas afirma que o che-fe de Estado é o órgão mais apto a ser o guardião da Cons-tituição, mas também que, segundo a Constituição vigente,o guardião é o presidente do Reich e apenas ele. Ninguémnegará que ele também o é, que funciona como garante daConstituição ao lado do Tribunal Federal instituído pelo art.19, ou da outra corte aqui mencionada e ao lado dos tribu-nais civis, criminais e administrativos que exercem um di-reito de controle material sobre as leis, na medida em que

possui, ao lado desses órgãos, a missão de examinar a cons-titucionalidade das leis e de outros atos. Ele a cumpre quan-do, de acordo com o art. 70, nega a promulgação de uma de-liberação legislativa contrária à Constituição ou quando, deacordo com o art. 48-1 e com ajuda das Força Armadas, obri-ga ao cumprimento dos seus deveres um estado que tenha feri-do a Constituição do Reich; isso na pressuposição de que elenão se limite a meramente executar a decisão de um tribunalque, em processo objetivo, tenha previamente constatado aviolação constitucional, ou seja, que o presidente do Reicbnão atue apenas como órgão executivo de um guardião daConstituição (como por exemplo o presidente federal segun-do o art. 146 da Constituição federal austríacaj'ê. Declarar opresidente do Reich como único guardião da Constituiçãocontraria as mais claras disposições da Constituição do Reich.Schmitt afirma incidentalmente: "Quando nas Constituiçõesalemãs do século XIX se prevê, ao lado de outras garantias,um tribunal especial do Estado para a proteção judiciária daConstituição, manifesta-se a verdade elementar de que essetipo de proteção pode apenas representar uma parte das ins-tituições de proteção e garantia da Constituição, e que seriauma sumária superficialidade esquecer, em função dessaproteção judiciária, os estreitíssimos limites de qualquer ju-risdição e as muitas outras espécies e métodos de garantiaconstitucional". Como porém ninguém afirmou que o tribu-nal constitucional seria o único guardião da Constituição, po-demos com maior direito dizer: quando na Constituição deWeimar se prevê, ao lado de outras garantias, o presidentedo Reich como garante da Constituição, manifesta-se a verda-de elementar de que essa garantia só pode representar uma

12. Cf. a esse respeito Kelsen, Die Bundesexekution, 1927, pp. 167 ss.Traduzido neste volume com o título "A intervenção federal".

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parte das instituições de proteção da Constituição e que seriauma sumária superficialidade esquecer, em função do presi-dente do Reich atuando como garante da Constituição, os es-treitíssimos limites desse tipo de garantia e as muitas outrasespécies e métodos de garantia constitucional!

A tese de que apenas o presidente do Reich é o guar-dião da Constituição somente pode alcançar aparente justi-ficação na medida em que seja dado a esse conceito de "guar-dião da Constituição" - isto é, de órgão que deve assegurara constitucionalidade de certos atos de Estado, ao mesmotempo reagindo contra violações constitucionais - um sig-nificado que jamais tenha tido ou possa ter ligação com aexpressão, se é que o presidente do Reich deve ser contra-posto como guardião da Constituição a um tribunal consti-tucional e se é que Schmitt pode dizer: "Antes portanto quese possa instituir, para questões e conflitos eminentementepolíticos, uma corte como guardiã da Constituição, sobre-carregando e ameaçando a jurisdição com tal politização, sedeveria primeiro recordar o conteúdo positivo da Constituiçãode Weimar e seu sistema de legislação constitucional. Segun-do o seu conteúdo atual, existe já um guardião da Constitui-ção, qual seja, o presidente do Reich", Chama inevitavel-mente a atenção o fato de que Schmitt, entre as atribuiçõesdo presidente do Reich em que deve manifestar-se sua fun-ção como guardião da Constituição, enumera também aque-las que não têm absolutamente nada a ver com uma garantiada Constituição. Schmitt, de fato, enxerga a função de guar-dião da Constituição no exercício de quase todas as atribui-ções que a Constituição concede ao presidente do Reich. Éassim com a competência prevista pelos arts. 45 ss., isto é, arepresentação no exterior, a declaração de guerra, a conclu-são da paz, a nomeação de funcionários, o comando supre-mo das Forças Armadas, etc.; a dissolução do Reichstagprevista no art. 43; a convocação de plebiscito popular se-

gundo o art. 73; e, especialmente, tudo que o chefe de Esta-do (em conjunto com os ministros) é autorizado a fazer peloart. 48 - e não apenas pela sua cláusula 1~. Se o presidentedo Reich "protege" a Constituição ao exercer todas essasfunções que ela lhe confia, então "guardião da Constituição"não significa senão "executor da Constituição". Nesse ca-so, porém, o Reichstag e outros órgãos diretamente subor-dinados à Constituição são tão "guardiães da Constituição"quanto o presidente do Reich, e no mesmo sentido se poderiadenominar os tribunais e autoridades administrativas como"guardiães" das leis. Afinal, Schmitt acredita reconheceraquela função também na fórmula de juramento do art. 42,eis que considera o presidente do Reich como guardião daConstituição também porque este jura que irá "defender"a Constituição. O art. 42, contudo, não diz - como citaSchmitt - "defender a Constituição", mas sim "defender aConstituição e as leis do Reich", o que não significa outracoisa que cumprir a Constituição e as leis, exercer as própriasfunções de modo constitucional e legal. Nesse sentido, o pre-sidente do Reich é "guardião" tanto da Constituição quantodas leis. E, na realidade, a argumentação de Schmitt acabafundamentalmente distinguindo a função de apenas um dosórgãos criados pela Constituição para sua própria execuçãoimediata, a posição de apenas um desses órgãos mantenedo-res da Constituição, ou seja, a competência funcional dopresidente do Reich - ou, mais precisamente, do governocomposto pelo presidente e os ministros do Reich -, em detri-mento das competências funcionais de todos os outros órgãosdiretamente subordinados à Constituição, particularmente oReichstag, na medida em que qualifica como função do"guardião da Constituição" apenas a primeira, porém não asúltimas. Desse modo, ele não apenas empresta uma auramais sublime à referida função, mas desperta também a im-pressão de que um controle da constitucionalidade dos atos

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daquele órgão - e tal 'controle é plenamente possível namedida em que sua função não é de controle - seria nomínimo supérfluo. "Guardião da Constituição", no sentidooriginário da expressão, significa garante da Constituição.Guardar o "guardião" seria o primeiro passo de um absur-do regressus ad infinitum de política do direito. No entantoSchmitt compreende, em seu conceito de guardião da Cons-tituição, funções totalmente diversas do controle constitu-cional, colocando mesmo a ênfase justamente sobre essasoutras funções.

O verdadeiro sentido que Schmitt liga ao conceito de"guardião da Constituição" por ele introduzido na discussãosobre a garantia constitucional- aquele do qual ele dependemais que de qualquer um - aparece de modo mais nítido epreciso na passagem de seu escrito em que ele crê haver da-do o golpe de misericórdia na idéia de jurisdição constitu-cional, ou seja, ali onde liquida essa instituição como an-tidemocrática. Explica ele que "é um abuso dos conceitosde forma judiciária e jurisdição, bem como da garantia ins-titucional dos funcionários de carreira da Alemanha, quan-do, em todos os casos nos quais, por motivos práticos, aindependência e a neutralidade parecem ser convenientesou necessárias, se quer logo implantar um tribunal com ju-ristas de carreira e uma forma judiciária". E depois de apre-sentar a opinião, já referida num contexto anterior, de quedesse modo "a jurisdição" é "sobrecarregada" num nívelinaceitável, ele arma o golpe mais forte que, do ponto devista do princípio democrático, aceito por Schmitt, se podevibrar no plano da política do direito contra a criação de umtribunal constitucional: "Além disso, a instituição de seme-lhante guardião da Constituição" - repare-se: um semelhan-te tribunal constitucional também seria um "guardião daConstituição", ainda que muito pior que o presidente doReich; Schmitt de fato utiliza o conceito de maneira univer-

.JURiSDiÇÃO CONSTITUCiONAL 291

sal, também nesse sentido! - "seria diretamente contrária àcoerência política do princípio democrático." Por que umtribunal constitucional seria um guardião antidemocráticoda Constituição, menos democrático que o chefe de Estado?O caráter democrático de um tribunal constitucional, não di-ferente daquele do chefe de Estado, só poderá depender domodo de sua nomeação e de sua posição jurídica. Caso sequeira dar uma configuração democrática a esse tribunal, na-da impede que o façamos ser eleito pelo povo, como o chefede Estado, e que se dê a seus membros tão pouco quanto aochefe de Estado a posição de funcionários de carreira; aindaque certamente pudesse permanecer a questão sobre se talmodo de criar e qualificar o órgão seria o mais conveniente,considerando-se a sua função. Tais ponderações, porém, va-Iem também para o chefe de Estado. Seja como for, não épossível afirmar que um tribunal não possa ser estruturadode modo tão democrático quanto qualquer outro órgão. Quan-do Schmitt opina que: "Do ponto de vista democrático difi-cilmente seria possível confiar tais funções a uma aristocra-cia da toga", tal objeção é liquidada simplesmente pelo fatode que um tribunal constitucional eleito pelo povo, ou ape-nas pelo parlamento - como, por exemplo, a Corte Consti-tucional austríaca nos moldes da Constituição de 1920 -, étudo menos uma "aristocracia da toga". Mas segundo a ex-posição de Schmitt, um tribunal constitucional parece anti-democrático não apenas porque supostamente tem que serorganizado de modo burocrático-aristocrático, mas tambémpor uma outra razão, a qual embora Schmitt não manejeexpressamente a fim de sustentar o referido caráter antide-mocrático, deixa ter este sentido ao menos de modo tácito,eis que liga tal argumento diretamente à afirmação de que ainstituição de um tribunal constitucional seria contrária aoprincípio democrático; no âmbito da democracia parlamen-tar-plebiscitária do século XX - assim sustenta Schmitt -

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um tribunal constitucional não estaria, como na monarquiaconstitucional do século XIX, voltado "contra um monarca ,mas sim contra o Parlamento". Enquanto em relação ao mo-narca a jurisdição pôde ter sucesso, não poderia ser seria-mente considerada "como contrapeso ao Parlamento", pois"a necessidade de instituições estáveis e de um contrapesoao parlamento se configura hoje, na Alemanha, como um pro-blema totalmente diverso do controle do monarca. Isso valetanto para o direito de controle judiciário geral e difuso co-mo para o controle concentrado numa única instância". Estecertamente é um dos mais assombrosos raciocínios desselivro, que não é pobre em surpresas lógicas. A afirmação deque um tribunal constitucional teria que fazer frente apenasao Parlamento, e não também ao governo, está em contradi-ção direta com a realidade. Se Schmitt tivesse se ocupadoum pouco mais atentamente da solução austríaca, que delemerece apenas uma irônica menção, saberia que esse tribu-nal, por sua jurisprudência, entrou em conflito justamentecom o governo, conflito esse que ameaça sua própria exis-tência. Mas todo o escrito de Schmitt está imbuído da ten-dência de ignorar a possibilidade de uma violação da Cons-tituição pelo chefe de Estado ou pelo governo, possibilidadeque existe justamente em relação a uma Constituição quetem entre suas disposições mais importantes um artigo co-mo o 48. Na medida, porém, em que Schmitt sustenta suatese, não demonstrada e indemonstrável, de que um tribunalconstitucional faria frente apenas ao Parlamento, ele rein-terpreta a função desse "guardião da Constituição", mudan-do-a de um controle da constitucionalidade de atos de Es-tado, particularmente de leis (note-se: promulgadas pelochefe de Estado), para um "contrapeso ao Parlamento". Es-se é realmente o papel que a Constituição de Weimar desti-na ao presidente do Reich, ou melhor dizendo, assim se po-de avaliar politicamente a posição, em termos de direito pú-

blico, que o presidente do Reich possui segundo a Constitui-ção; não é, contudo, a função de um tribunal constitucional,ou seja: nesse sentido não se poderá nunca afirmar que umtribunal constitucional, de acordo com a intenção da Cons-tituição que o institui, deve atuar como "contrapeso ao Par-lamento". O fato de que esse tribunal não pode desempe-nhar uma função nunca imaginada nem irnaginável para sinão depõe naturalmente em nada contra essa instituição, aqual por essa mesma razão pode existir ao lado de um chefede Estado que atue como "contrapeso ao Parlamento", sen-do assim, justamente pela existência de um tal "contrape-so", duplamente necessária.

XII. Nesta altura, porém, fica mesmo claro o que Schmittefetivamente entende por "guardião da Constituição". Nada,simplesmente nada que pudesse justificar a contraposiçãodo presidente do Reich enquanto "guardião da Constituição"a um tribunal constitucional- que também controla tal "guar-dião" -, impossibilitando que esse tribunal seja "guardião"ao declarar o presidente como tal, como se se tratasse damesma função, para a qual procuraríamos e encontraríamosno chefe de Estado apenas um titular mais idôneo, como fazSchmitt quando assim formula o resultado de sua investiga-ção: "Antes de propor um tribunal como guardião da Cons-tituição, tarefa para a qual não é próprio, deve-se lembrarque a Constituição já indica o presidente do Reich para essafunção". Se o presidente do Reich - e isso certamente nãoprecisa ser negado - é concebido pela Constituição como"contrapeso ao Parlamento", não 'se pode qualificar essafunção como de "guardião da Constituição", se também sedenomina do mesmo modo a garantia da Constituição me-diante um tribunal constitucional. Não se trata de uma meraquestão de precisão terminológica, pois é nesse equívocoinadmissível que Schrnitt vai buscar um de seus principaisargumentos contra a instituição da jurisdição constitucional.

l,

294 HANSKELSEN JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 29E essa argumentação lhe permite não apenas superestimar acompetência funcional do presidente do Reich - um dos doismantenedores principais da Constituição -, mas tambémsubestimar a do outro, o Parlamento. Se o parlamento, comodiz Schmitt, é o "cenário do sistema pluralista" por ser o terre-no onde os conflitos de interesses se exprimem na luta dosgrupos de interesses organizados em partidos políticos parainfluenciar a vontade estatal, esse é um processo que, não obs-tante todos os perigos que poderia comportar para uma forma-ção benéfica da vontade do Estado, não pode ser qualificadode inconstitucional. A Constituição de Weimar criou de fatonão só o presidente do Reich, "eleito por todo o povo", mastambém, e mesmo em primeiro lugar, o Reichstag, eleito poresse mesmo povo, e portanto aquele sistema que Schmitt qua-lifica de "pluralista". Se a Constituição institui o presidentecomo "contrapeso" ao Reichstag, é apenas porque coloca esteúltimo, e portanto o sistema "pluralista" que necessariamentevem ligado a ele, como "peso" no jogo das forças políticas.

Esse sistema pode parecer pernicioso do ponto de vistade um ideal político qualquer; porém declará-Io inconstitu-cional por isso e apenas por isso é um abuso jusnaturalistade uma categoria que só tem sentido em termos de direitopositivo. O sistema em questão não seria inconstitucional nemse o Parlamento, por falta de uma maioria estável ou porobstrução de uma minoria, fosse incapaz de trabalhar; tantomais se a Constituição, nesse caso, indica o chefe de Estadocomo órgão substituto, o que, segundo a interpretação queSchmitt faz da Constituição de Weimar, seria legal. Exa-tamente do mesmo modo como não se tem uma violação daConstituição e o órgão substituto não pode ser consideradoguardião da Constituição quando o monarca constitucionalfica incapaz de trabalhar (p, ex. a Baviera sob Luís II). Po-rém é justamente este o sentido que o conceito de "guardiãoda Constituição" assume em Schmitt. E como o presidente

do Reich, com o complexo de competências que lhe atribuia Constituição, e particularmente por causa de seu poder d .atuar como substituto do Reichstag, é declarado guardiã daConstituição - e apenas ele, excluído o segundo (ou melh I"o primeiro) mantenedor da constituição, o Reichstag - a fun-ção desse Reichstag que "forma o cenário do sistema plura-lista", a qual, de modo exclusivo e unilateral, é contrap 8tH

como "centrífuga" à função centrípeta do presidente, s ndassim colocada como contrária à defesa da Constituição, devaparecer pura e simplesmente como ilegal. A partir do "si::;-tema pluralista", uma categoria sociológica originalmentnão-valorativa, se deduzem inopinadamente os "métodosdissolutivos do Estado próprios do Estado pluralista de par-tidos", os "métodos destruidores da Constituição próprios dosistema pluralista" e, por fim, o "pluralismo inconstitucio-nal", sendo tarefa do presidente "salvar" o Estado de tudoisso. A "Constituição" não consiste nas normas que regulamos órgãos e o procedimento legislativos, assim como a p lil-

ção e competência dos supremos órgãos executivos não n-siste em normas ou "leis". A "Constituição" é um estad ticoisas, o estado da "unidade" do povo alemão. Em que 011-

siste essa "unidade", que tem um caráter material, não m rH-mente formal, não é dito com mais precisão, mas só p dser um estado de coisas desejado por apenas um determina-do ponto de vista político. No lugar do conceito positiv tiConstituição introduz-se a "unidade" como um ideal jusnn-turalista. Com a ajuda desse ideal pode-se interpretar ornoquebra da Constituição o sistema pluralista cujo cenári oParlamento - e com isso a função desse mantenedor dnConstituição, pois ela, entrando no lugar da Constituiç o,destrói ou ameaça a "unidade" - e a função do chef d IIH-tado como salvaguarda da Constituição, pois ela re taura oudefende a "unidade". Tal interpretação da Constituição 111 ()

pode culminar senão na apoteose do art. 48. Seu re ultado

296 HANSKELSEN JUIUSDiÇÃO CONSTiTUCiONAL 297

tanto mais paradoxal se não for intencional- é que o elemen-to que "no Reich alemão perturba ou ameaça notavelmente asegurança e a ordem públicas" é o sistema pluralista, ou falan-do claramente, o Reichstag, cuja verdadeira função parececonsistir, por ser essencialmente "pluralista", em satisfazerpermanentemente a condição que a Constituição de Weirnarvincula à aplicação do art. 48-213.

Dos dois titulares do poder estatal instituídos pela Cons-tituição, um toma-se inimigo e o outro amigo do Estado; umquer destruí-lo, isto é, destruir sua "unidade", e o outro quer

defendê-lo de tal destruição: um é o violador, o outro é o guar-dião da Constituição. Isso não tem nada mais a ver com umainterpretação de Constituição em termos de direito positivo;trata-se da mitologia de Ormazd e Arirnan * com roupagensde direito público.

13. Que o sistema parlamentarista não fracassou em toda parte é com-provado com uma olhada sobre a Áustria, a França, a Inglaterra e os Estadosnórdicos. Não obstante, Schmitt acredita poder proferir, sem restrições, a sen-tença de morte do parlamentarismo em si. O método que utiliza para tal fim éo de uma dialética francamente mística: "O Parlamento, a corporação legisla-tiva, o titular e ponto central do Estado legislativo, no mesmo instante em quesua vitória pareceu completa, tomou-se uma criação contraditória em simesma, que nega seus próprios pressupostos e os pressupostos de sua própriavitória. A posição e preponderância que mantinha até então, seu ímpeto deexpansão sobre o governo, seu apresentar-se em nome do povo, tudo issopressupunha uma diferenciação entre Estado e sociedade que após a vitóriado Parlamento não subsistiu, em todo caso não nessa forma. Sua unidade, atémesmo sua identificação consigo mesmo, eram determinadas até então pe-lo seu antagonista político interno, o antigo Estado militar e burocrático damonarquia. Quando este deixou de existir, o Parlamento, por assim dizer,se despedaçou por dentro". Se identificamos o Parlamento com a "socie-dade" voltada contra o Estado, e se o "Estado total" significa a eliminaçãodesse antagonismo, então não há, no Estado total, segundo a lógica dessa filo-sofia social, lugar para o Parlamento. Para o caso porém de concebermos aidéia de que a eliminação do antagonismo entre Estado e sociedade e, assim,o Estado total, pudesse também ser realizado por parte de um Parlamento queexpandisse sua competência e mantivesse "sua unidade, até mesmo sua iden-tificação consigo mesmo" ao colocar-se como órgão estatal máximo que con-centrasse em si todos os poderes, aí observa-se que "O Estado agora é, comose costuma dizer, auto-organização da sociedade, contudo devemos indagarde que modo a sociedade que se auto-organiza atinge a unidade, e se a unida-de é de fato o resultado da auto-organização. Pois auto-organização é, em pri-meiro lugar, apenas um postulado e um procedimento caracterizado pela opo-sição a métodos precedentes, hoje não mais existentes, de formação da vonta-

Essa análise critica, naturalmente, não deseja nem podecolocar em questão o valor político que em determinadascircunstâncias possuem a busca da máxima expansão possí-vel do poder do presidente do Reich, isto é, do governo, e aconseqüente rejeição de uma jurisdição constitucional. Oescrito de Schmitt é objeto desta crítica não porque sirva aesse escopo, o qual não deve em absoluto ser rebaixado aquicomo "político-partidário", mas sim apenas porque se ser-ve, para tal escopo político, de certos métodos que se apre-sentam como conhecimento sociológico e interpretaçãoconstitucional dentro da teoria do Estado, em resumo, como"discussão científica" da matéria. Esta crítica deve mostrar,

de e unidade do Estado, portanto caracterizados apenas de maneira negativa epolêmica. A identidade expressa na palavra 'auto' e que é unida lingüistica-mente a 'organização', não tem por que necessariamente e em qualquer casoconcretizar-se, nem como unidade da sociedade em si, nem como unidade doEstado. Existem também, como temos visto com bastante freqüência, organi-zações infrutíferas e ineficazes". - A "unidade" do Estado total não podeentão ser produzida pelo Parlamento, mas apenas pelo chefe de Estado! Parauma crítica que parta de um ponto de vista político oposto, por exemplo umacritica marxista, não é dificil desmascarar tal argumentação como ideologia.Esse Parlamento, que no instante de sua vitória se despedaça misteriosamentepor dentro e toma-se uma criação que nega seus próprios pressupostos apenasporque não precisa mais dividir o poder com um monarca, não seria esse par-lamento simplesmente a expressão do fato de que a burguesia, onde quer queo Parlamento, pela configuração da luta de classes, deixa de ser um útil ins-trumento político de dominação de classe, modifica seu próprio ideal políticoe passa da democracia à ditadura?

* Ormazd e Ariman: na concepção dualística do zoroastrismo, respecti-vamente, a divindade criadora suprema e o espírito do mal em eterna luta comseu equivalente benigno. (N. do T.)

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com um exemplo particularmente instrutivo e altamente sin-tomático da situação atual da nossa teoria do Estado e do di-reito público, o quanto se justifica a busca de uma separaçãoa mais rigorosa possível entre conhecimento científico e juí-zo de valor político. A mistura entre ciência e política comoprincípio, tão em voga hoje em dia, é o método típico da mo-derna construção ideológica. Do ponto de vista do conheci-mento científico, ela deve ser refutada também quando -como no mais das vezes e certamente também no presentecaso - é feita de modo totalmente inconsciente. Diante daconsciência crítica aguçada de nossa época, esse método po-lítico não pode, a longo prazo, servir de nada; pois ele émuito facilmente desmascarado pelo adversário político ouentão é utilizado para uma legitimação igualmente discutí-vel dos objetivos opostos. Mas por isso mesmo ele podeprejudicar tanto mais sensivelmente a ciência; pois todo ovalor da ciência - em função do qual a política procura sem-pre ligar-se a ela, e justamente pelos melhores motivos éti-cos, porque no interesse de algo tido como bom - esse va-lor, que é um valor intrínseco, de todo distinto daquele outroético-político, não resiste se a ciência, dentro desse conflitoquase trágico para ela, não tiver a força de subtrair-se à se-dutora união com a política.